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“É inútil resistir?” – Para uma


genealogia das resistências no Brasil
9-12 minutos

FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

por Aline Passos e Idelber Avelar

Este é um verbete escrito a quatro mãos inserido no contexto de


um projeto mantido por um de nós na internet sob a rubrica de
cemitério das palavras, que consiste em fazer a crônica periódica
do óbito de certos vocábulos, por abandono ou sobreuso,
conforme o caso. Sem tomar nenhum desses discursos como
puros reflexos de um real preexistente, o mapeamento registra a
evolução dos usos de certas palavras no jornalismo, no sistema
político, nas redes sociais e em outros espaços da esfera

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pública. O projeto se inicia com a observação do paulatino


abandono em que caem os termos latifundiário e latifúndio,
substituídos principalmente por ruralista e propriedade rural em
todos os dialetos do português falado no Brasil. Bem mapeável
em jornais e discursos políticos ao longo das décadas de 1990 e
2000, o declínio de latifúndio não é, a priori, o resultado do
desaparecimento de seu referente. Como se sabe, o Brasil
continua sem realizar uma reforma agrária nos moldes da que se
fez no México já no começo do século XX, que pelo menos
mitigasse a concentração altíssima de posse da terra.
Latifundiário é um caso em que a palavra vai desaparecendo
sem que seu referente mude substancialmente — ele apenas
passa agora a ser designado por outro termo, ruralista, que
apaga origens de classe e cria um leque mais amplo de
identificações. No terreno do sobreuso, oposto ao que sofre
latifúndio, estão os termos golpe e fascismo, aos quais
recorreram intensamente amplos setores da esquerda brasileira
nos últimos anos.

Do latim tardio resistentia, surgido a partir da raiz nominativa do


verbo resistere, o termo se incorporou às línguas europeias
modernas via francês antigo resistance. No Oxford English
Dictionary, o significado político de oposição organizada secreta
a uma ocupação hostil estrangeira foi registrado em 1939. A
palavra chegou aos nossos dias pela justaposição de sentidos
que vão de manter-se de pé a enfrentar. Embora o sentido
reativo esteja invariavelmente colocado pela oposição a uma
força preexistente, resistir abrange dimensões ativas e passivas.
Não à toa, na década de 1940, o Código Penal brasileiro tipificou
essas duas dimensões, a primeira no artigo 329, como
resistência propriamente dita, e a segunda no artigo 330, sob o
título de desobediência. O que parece constante a respeito da

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resistência é que a força que a antecede é sempre uma


autoridade, ou ainda, é a lei, seja da gravidade ou a que aparece
corporificada na figura de um policial. Falar de resistência,
portanto, é falar de duas forças antagônicas e inconciliáveis.
Talvez por isso, na história, quando a resistência se confunde
com a lei, uma delas tende a sucumbir: problema fundamental
apontado por Gilles Deleuze em relação aos governos de
esquerda.

Resistência migrou do vocabulário da esquerda armada dos anos


1970 (de montoneros argentinos a tupamaros uruguaios à
miríade de siglas que se proliferam no Brasil a partir dos rachas
do PCB) e foi ressignificado na academia politizada através dos
estudos culturais nos Estados Unidos dos anos 1980. Nos
estudos literários e culturais, resistência passou a ser um
instrumento de validação estética ou cultural de certas práticas e
também critério de desqualificação de outras, quando nestas se
percebia a dimensão de resistência política ausente ou sabotada.
Nos vários marxismos, nas evocações à carnavalização
bakhtiniana e até mesmo em estudos inspirados em Michel
Foucault (que guardava conhecida reserva ante a palavra), a
resistência tornou-se um mantra e um paradigma legitimador de
discursos. Não foi à toa que algumas das principais obras
escritas sobre os movimentos de esquerda dos anos 1970
recuperaram a palavra resistência em algum binômio: resistência
e integração, como no estudo de Daniel James sobre o
peronismo; resistência e medo[1], nos vários artigos da clássica
coletânea Fear at the edge[2], sobre os regimes autoritários do
Cone Sul; cultura e resistência, em muitos estudos que vão
desde a historiografia sobre a música popular de Marcos
Napolitano[3]até os ensaios sobre cultura e poder de figuras
como Marilena Chauí[4]ou Renato Ortiz[5].

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O ethos que marca positivamente o termo resistência ascendeu


ao Planalto em 2003, e o lulismo não se furtou a usar o termo
como mote mesmo enquanto governava. Do elogio da Tropicália
como resistência política no discurso feito no Barbican Center de
Londres, em março de 2006, ao louvor à “capacidade de
resistência e de sobrevivência da empresa brasileira,” no
discurso proferido no Rio de Janeiro em 12 de maio de 2008,
Lula nomeou, com certa frequência, o sujeito de uma resistência
como exemplo positivo. A palavra aparecia mesmo em situações
nas quais o sujeito nomeado era “a empresa nacional,” que como
sabemos foi metonímia lulista para um conjunto bem finito de
oligopólios entendidos como campeões nacionais. Ao mesmo
tempo em que mobilizou referências históricas à palavra
resistência, o lulismo também agenciou, enquanto governo, uma
série de dispositivos de exceção, dos quais se pode destacar a
lei antidrogas, por seu efeito na produção de um encarceramento
massivo e intervenções militares sobre favelas.

Não por acaso, nestes espaços, autos de resistência ou


resistência seguida de morte designam, além e aquém dos
procedimentos jurídicos, uma situação de letalidade policial. Dito
de outra forma, elas indicam que uma pessoa foi morta por um
policial em serviço. Neste sentido, a palavra resistência se refere
à conduta de alguém que confrontou a atuação de um agente de
Estado. Embora a retórica do “conflito” ou “confronto” não raro
sirva para esconder práticas de execução sumária,
resistênciapossui uma dimensão ativa atribuída a quem morreu.
No texto original do pacote anticrime do ministro Sérgio Moro,
uma alteração no artigo 329 do Código Penal pretende inverter o
sentido jurídico, mas também histórico-político, da
palavra resistência. Trata-se da inserção de uma qualificadora–
circunstância que aumenta os patamares mínimo e máximo de

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pena–que transforma a “resistência seguida de morte” numa


situação em que o morto é o agente policial que estava em
serviço. O redimensionamento da “resistência” no pacote
anticrime é fatal. Ele opera pela inversão dos pólos autor/vítima,
vida/morte e violência legítima/crime. Enquanto a “resistência
seguida de morte”, como nós a conhecemos, implica na
absolvição de uma autoridade que mata de forma supostamente
legítima, o que Sérgio Moro propõe é que a expressão passe a
designar o caráter criminoso de quem mata uma autoridade,
ainda que de forma acidental.[6]Em outras palavras, quem
resiste à autoridade morre porque é indigno de vida, mas caso
sobreviva, é indigno de liberdade.

No entanto, se há uma coisa da qual o ministro não pode ser


acusado é de originalidade. O Estado Democrático de Direito
também pode ser lido como uma história de cerco às
resistências. Esta, no entanto, é uma história menor, uma história
que a História não conta e o Direito sepulta sob a lápide da lei e
da autoridade. A grande questão, assim, não é tanto como a
resistência é tratada nos termos do projeto anticrime, mas como
se tornou possível desenhar o cerco em termos jurídicos, se a
sua condição de possibilidade era precisamente não assumir
uma forma jurídica para transitar pela exceção. As alterações
previstas no projeto informam explicitamente que o destino da
resistência é a morte ou a prisão, algo que, se por um lado, já era
amplamente conhecido por imensas parcelas da população, por
outro não podia ser dito, muito menos legislado, pois havia um
custo político ao fazê-lo. Como esse custo desapareceu é uma
história ainda a ser contada, mas existem pistas significativas de
que ela passa pela desidratação do sentido ativo da resistência
no exato momento em que se pretendeu confundi-la com
governo. Em outras palavras, o autoritarismo de Sergio Moro

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precisa ser encarado não como a emergência de uma aberração,


mas por meio de uma genealogia do enfraquecimento da
resistência ao ponto de fazer quase desaparecer o custo político
de o Direito assumi-la enquanto seu grande inimigo.

Aline Passos é doutoranda em sociologia pela Universidade


Federal de Sergipe, abolicionista e flamenguista.

Idelber Avelar é ensaísta e professor de estudos latino-


americanos em Tulane University, Nova Orleans. Escreve sobre
literatura, política e o Galo.

[1] James, Daniel. Resistance and Integration: Peronism and


the Argentine Working Class, 1946-1976. Cambridge: Cambridge
University Press, 1988.

[2] Corradi, Juan E.; Fagen, Patricia W.; Garretón, Manuel A.


(editores).Fear at the Edge: State Terror and Resistance in Latin
America. Berkeley: U. of California P., 1992.

[3] Napolitano, Marcos. Seguindo a canção: engajamento


político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo:
Annablume, 2001.

[4] Chauí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso


competente e outras falas.São Paulo: Cortez, 1989.

[5] Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional.São


Paulo: Brasiliense, 1985.

[6] Passos, Aline; Rodrigues, Carls (orgs). “Pacote de Tróia: a


lei anticrime de Moro” (dossiê). Revista Cult 244 (2019): 20-39.

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