Não é nossa intenção fazer crer que com esta Mostra, estamos dando
a conhecer o melhor da banda desenhada latino-americana desde há
um século até aos nossos dias. Seria pretensioso considerar que podemos abarcar uma produção tão vasta e rica num pavilhão com aproximadamente 200 peças expostas. Queremos ressaltar o significado simbólico deste evento que, ainda que não seja uma visão completa, é efectivamente a primeira vez que se reúne numa mesma exposição parte da produção de doze países latino-americanos, cujo principal denominador comum, além de pertencerem todos ao mesmo continente, é o idioma espanhol (à excepção do Brasil). Denominador comum sim, mas por sorte, não aglutinante, o que permitiu que nascessem criadores extraordinários e personagens inolvidáveis. É a primeira vez em absoluto na Europa e primeira vez no mundo, que se irão expor num mesmo recinto obras de países tão díspares como a Argentina e o México, extremos sul e norte da parte latina do continente, partilhando honras com a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Colômbia, a Costa Rica, Cuba, o Paraguai, o Peru, a Venezuela e o Uruguai. Da maior parte destes países é muito pouco o que transcendeu a nível internacional e de alguns inclusive no se sabe nada no resto do mundo.
O evento complementa-se com a presença de investigadores
especializados dos países participantes, convidados pelos organizadores do Festival, que num par de conferências irão debater acerca das suas experiências pessoais, a evolução da banda desenhada desde as suas origens, a influência social que exerceu nos seus anos de auge e as propostas que as novas gerações oferecem para o futuro.
Também nesta parte do planeta tudo começa a partir de meados do
século XIX, segundo o exemplo europeu ou norte-americano. Nalgumas cidades antes, noutras depois, mas, finalizando esse século, publicam-se vinhetas de corte político ou de sátira social em quase todos os jornais das principais cidades. A grande aventura, que desemboca no auge da banda desenhada, começa com vinhetas e caricaturas e já entrados no século XX, convertidas no entretenimento popular, pouco a pouco foram-se transformando num verdadeiro fenómeno da cultura de massas. Além de entreter o leitor acidental ou habitual, também se utilizam como meio para difundir informação social e ideológica, literatura clássica e popular e para alfabetizar populações, alcançando nalguns casos tiragens de mais de um milhão de copias ao mês.
Fenómenos singulares como o caso de La Familia Burrón que vê a luz
por primeira vez em 1948, criação do maestro mexicano Gabriel Vargas e que dá origem à transformação da linguagem de um sector inteiro da sociedade mexicana, são totalmente desconhecidos no resto do mundo. De igual dimensão é o fenómeno argentino de "Patoruzú" de Dante Quinterno, aparecido pela primeira vez no diário Crítica em 1928, cujas expressões "Canejo", "Huija", "Ahijuna", "Amalaya" (significam todas: caramba!), "Sotreta" (vilão) e muitas outras, fizeram parte do vocabulário de várias gerações de crianças e de adultos. No Chile, em 1949, nasce a personagem "Condorito" de René Ríos "Pepo", que apesar de ter conseguido sair das fronteiras do seu país de origem, só é conhecido na América latina (hoje os leitores da revista ultrapassam os 82 milhões). No Uruguai é a partir do ano 1930 quando chegam as verdadeiras histórias de BD, da mão de Julio E. Suárez, cuja principal personagem "Peloduro" no só sobrevive ao seu autor até nossos dias, mas sim que lhe deu o apelido que o fez famoso. A quantidade de publicações vendidas destas personagens supera com excedentes a produção anglo- americana ou franco-belga nos seus respectivos países. No Brasil "O Menino Maluquinho", bonita criação de Ziraldo Alves Pinto, personagem de enorme sucesso nos livros infantis e o cinema, que forma parte do imaginário colectivo de várias gerações de brasileiros, como Banda Desenhada teve uma aceitação mais limitada. Foi em 1970 que Mauricio de Souza, depois de ter publicado uma infinidade de personagens em dezenas de jornais, lança a revista "Turma da Mónica", com a personagem homónima, com uma tiragem inicial de 200.000 exemplares. De Souza e a sua "Turma da Mónica" começam a ser conhecidos no exterior e as histórias de BD traduzem-se em vários idiomas. Desde 1970 até aos nossos dias venderam-se mais de mil milhões de cópias entre todas as suas revistas, cobrindo 70% do mercado de edições para crianças.
Neste panorama de enormes êxitos locais e pouco eco internacional,
a Argentina consegue criar a sua própria escola de desenhadores graças ao empurrão de duas grandes personalidades: Cesare Civita (italiano, emigrado a Argentina em 1938) e Ramón Columba, ambos fundadores das Editoriais Abril e Columba respectivamente. Grandes empreendedores de ampla visão, mudam radicalmente o gosto de gerações inteiras importando não só materiais estrangeiros mas também , no caso de Civita, aos artistas italianos que finalmente deram origem à fundamental escola argentina de criadores.
A possibilidade de distribuir ao longo de toda a extensão do
continente ajuda ao México a converter-se no país com maior produção em língua espanhola. Só "ajuda" porque na realidade já com o consumo interno o volume de produção nalgumas revistas superava o milhão de cópias por mês.
O cone sul desempenha funções também como vaso comunicante. La
forte presença desde meados do século XIX de imigração europeia na Argentina, Chile e Uruguai facilitou um forte intercambio e transito de autores tão marcado, que nalguns casos a nacionalidade do autor confunde-se e considera-se do país donde desenvolveu a sua arte. É o caso de Alberto Breccia, por exemplo, nascido no Uruguai e residente até à sua morte na Argentina. A crise económica destes países, golpes de estado, inflações, desvalorizações e censuras, restringem dramaticamente o mercado a princípios dos anos noventas. Um mercado que tinha começado a declinar na década precedente. Mas naturalmente não é só isso, a América latina tal como os principais mercados europeus, ressente a presença dos novos horizontes tecnológicos e de um novo produto: "o manga", mais agressivo comercialmente, desenredando pouco a pouco a banda desenhada para um público cada vez mais especializado o erótico. Hoje, os grandes maestros de todo o continente continuam a publicar principalmente para editoriais europeias, mas para as novas gerações de autores o horizonte é incerto, nalguns casos trabalham para as grandes empresas norte- americanas, e são poucos os que conseguem passar a exigente prova de gosto e do mercado europeu.
Neste mundo actual onde cada aspecto da ciência e da técnica se
explora e reutiliza em infinitos campos, onde já nem o tempo nem a distancia são problemas para comunicar, absurda e inexplicavelmente, a banda desenhada sai dos quiosques latino- americanos para hibernar sem ter sido suficientemente explorada quando, por sua própria natureza, as possibilidades de utilização deste meio são realmente infinitas. No entanto, sempre apareceu alguém com determinação suficiente para renovar e relançar de novo o género. Não é falta de talentos nem de criatividade, há elementos mais do que suficientes para esperar um novo auge do meio. Nestes primeiros anos do século proliferam encontros e festivais em vários países (tenho conhecimento concreto de eventos e iniciativas a muito alto nível na Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, Peru, Venezuela e Uruguai). Os organizadores destes eventos estão a tecer uma rede de produção e distribuição, para que as produções locais sejam conhecidas fora das suas fronteiras. Justamente não há fronteiras, a única fronteira é a imaginação. Hoje estamos a transitar através de um "breaking point" entre passado e futuro, entre os grandes maestros e os novos criadores de BD. O legado de uns para enriquecer a força interior e o trabalho de outros, que serão quem terá a seu cargo a difícil tarefa de reinventar o porvir deste meio.