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A leitura transdisciplinar na
interpretação do narrador
Alfre d o Bo si Ocupante da
Cadeira 12
na Academia
Brasileira de
Letras.
T alvez caiba uma distinção inicial entre dois termos tão pró-
ximos e afins como são “interdisciplinaridade” e “transdis-
ciplinaridade”. Embora possam empregar-se como sinônimos em
mais de um contexto, parece-me que se deveria dar ao primeiro
uma extensão semântica que tem a ver com a natureza mesma das
disciplinas que se relacionariam entre si. Um curso é interdisciplinar
na medida em que contém disciplinas distintas, mas aparentadas
como, por exemplo, História Social e Sociologia, Metodologia e
Teoria do Conhecimento, Didática de uma determinada língua e
Linguística aplicada etc. Uma formação em Letras é interdisciplinar
por excelência, pois só se completaria com o estudo de uma língua
e de sua Literatura bem como da história social e cultural do povo
que nela se exprime.
Creio que há consenso em torno da necessidade e do valor de
uma formação interdisciplinar considerando a extrema fragmenta-
ção e pulverização do ensino superior nesta era de especialização.
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Transdisciplinaridade
Quanto ao termo afim, “transdisciplinaridade”, conviria mais adequada-
mente à situação de um tema particular, pontual, que pode ser devidamente
explorado com o auxílio de uma ou mais áreas do saber que completem ou até
mesmo interroguem a sua disciplina de origem. Transita-se assim (o prefixo
trans é explícito) de uma área a outra do conhecimento não por mera curiosi-
dade ou borboleteio sem rumo, mas para aprofundar e aclarar o entendimen-
to do texto literário com um fim preciso que evite digressões supérfluas. O
grande linguísta e amador de poesia, Roman Jákobson, afirmou certa vez que
é na zona fronteiriça entre duas disciplinas que nascem as grandes hipóteses
da ciência.
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pois se trata de uma epopeia nacional), é preciso considerar que esse episódio
antiépico, fazendo-nos ouvir os protestos e lamentos dos descontentes, ecoa
também uma tradição literária bem caracterizada que o poeta culto da Renas-
cença não desconhecia.
Veja-se que a transdisciplinaridade pode não só avançar para uma discipli-
na próxima, a História, como também explorar um contexto afim, o campo
das Letras Clássicas, a Retórica e a Poética, que nos advertem sobre o sentido
e o valor do coro trágico.
Passagens de Os Lusíadas, canto IV, que ilustram o momento antiépico do
texto:
Em tão longo caminho e duvidoso – por perdidos as gentes nos julgavam, – as mulheres
c’um choro piadoso – os homens com suspiros que arrancavam – mães, esposas, irmãs, que o
temeroso – amor mais desconfia, acrescentavam – a desesperação e o frio medo – de já nos
não tornar a ver tão cedo. (Est. 89)
[Falam as esposas]:
Por que ir aventurar ao mar iroso – esta vida que é minha e não é vossa? – como por um
caminho duvidoso, – vos esquece a afeição tão doce nossa? – nosso amor, nosso vão conten-
tamento, – quereis que com as velas leve o vento? (Est. 91)
[Fala o Velho ]:
Ó glória de mandar, ó vã cobiça
desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Chamam-te Fama, e Glória soberana,
Nomes com que se o povo néscio engana. (E. 96)
A que novos desastres determinas – de levar estes Reinos a esta gente? que perigos, que
mortes lhe destinas, – debaixo dalgum nome preeminente? – que promessas de reinos e de
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minas – de ouro, que lhe farás tão facilmente? – que famas lhe prometerás? que histórias?
que triunfos? que palmas? que vitórias?
Oh! maldito o primeiro que, no mundo, – nas ondas vela pôs em seco lenho! – digno de
eterna pena do profundo, – se é justa a justa lei que sigo e tenho! 1
Trouxe o filho de Jápeto do Céu – o fogo que ajuntou ao peito humano, – fogo que o mundo
em armas acendeu – em mortes, em desonras (grande engano!) – Quanto melhor nos fora,
Prometeu, – e quanto para o mundo menos dano, – que a tua estátua ilustre não tivera –
fogos de altos desejo que a movera! (Estâncias 102-103)
Narrador mediador
Como interpretar a oposição de perspectivas na fala do mesmo narrador?
Vasco da Gama é historicamente sempre o mesmo narrador, que conta as con-
quistas portuguesas, mas refere respeitosamente a fala acusadora do Velho do
Restelo. Temos o mesmo autor (Luís de Camões) que engendra um mediador
entre o seu olhar e as situações e pessoas que são matéria da epopeia. Me-
diador que assume duas vozes diferentes: uma, a que exalta com tuba heróica
e belicosa a aventura lusíada e explicitamente a viagem de Vasco da Gama;
e outra, que exprime os sentimentos dos desvalidos que sofrerão na pele os
efeitos daquela mesma empresa.
Um narrador, desavindo a certa altura consigo mesmo, desdobra-se con-
forme o estrato social de que entende ser porta-voz. Assim, junto à investiga-
ção sociológica do Portugal do século XV, e considerando a relação tensa do
coro com os protagonistas do poema, deve haver também uma reflexão sobre
o estatuto do narrador – o que é tarefa própria da Teoria Literária.
1 Afrânio Peixoto rastreou antecedentes dessa rejeição aos inventos do homo faber em poemas de Tibulo e de
Horácio. Do primeiro, cita esta passagem das Elegias (I, III): O pinho não havia ainda afrontado as ondas cerúleas, nem
se tinha exposto uma vela desfraldada ao sopro dos ventos, nem o nauta, nas suas excursões vagamundas, fizera gemer seus navios
ao peso das mercadorias estrangeiras. De Horácio, a Ode I, do Livro III: Não foi em vão que Zeus prudente separou os mundos
com a barreira do Oceano. Em Ensaios camonianos. Coimbra: Universidade, 1932, pp. 198-199.
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Porém Cacambo
Fez, a seu modo, cortesia estranha,
E começou: “Ó general famoso
Tu tens à vista quanta gente bebe
Do soberbo Uruguai a esquerda margem.
Bem que os nossos avós fossem despojo
Da perfídia da Europa e daqui mesmo
C’os não vingados ossos dos parentes,
Se vejam branquejar ao longe os vales,
Eu, desarmado e só, buscar-te venho.
Tanto espero de ti! E, enquanto as armas,
Dão lugar à razão, Senhor, vejamos
Se se pode salvar a vida e o sangue
De tantos desgraçados.”
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2 Em Simone Weil. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Introdução e organização de Ecléa Bosi. 2ª. ed.,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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3 ROUANET, Sergio Paulo Riso e melancolia. S. Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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2011.
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do relato. Não por acaso. Era preciso dar ao leitor a sensação frustrante
de abandono sofrida pelo jovem. De repente, a revelação. Depois de dias
e dias de mal-estar, Jacobina olha-se ao espelho, mas não vê a sua imagem
costumeira. Só formas esgarçadas, retalhos avulsos e desconjuntados. Falta a
figura, falta a imagem cabal da persona. São momentos de desorientamento
e depressão até que vem a Jacobina a ideia de vestir a farda de alferes, havia
pouco objeto de tanta admiração. O efeito foi imediato. Envergando a farda,
ele volta a ser o que era, o alferes. A alma exterior reconstituiu num relance
a alma interior, que perdera forma e substância. O espelho, substituto do
olhar do outro, tinha de novo matéria capaz de ser refletida.
Quando li pela primeira vez esse conto, aconteceu-me estar estudando um
tema de Psicologia Social, a teoria dos papéis de Nadel. O livro chamava-
se The Structure of Social Theory. O sujeito, na perspectiva desse autor, é, rigo-
rosamente falando, o seu papel social, ou, mais precisamente, “a somatória
dos seus papéis sociais”. A sua existência se confunde com a profissão que o
molda de fora para dentro. Deixa de ser João ou José para ser professor ou
doutor. Creio que os estudos de Psicologia Social da personalidade ajudam
a dar um alcance amplo, conceitual, à interpretação do conto machadiano.
Mas uma outra experiência de leitura igualmente me socorreu na ocasião: o
conhecimento dos contos e romances de Pirandello, matéria de minha tese
de doutoramento. Pirandello trata a máscara social (variante do papel social)
como causa de sofrimento: a vida interior reclama às vezes dramaticamente
a supressão da máscara, rejeitando as opiniões e os preconceitos afivelados à
pessoa. Quem leu O falecido Matias Pascal deve lembrar-se dos esforços desespe-
rados do protagonista para libertar-se da sua aparência social. Mas a direção
do seu pensamento parece oposta à de Machado de Assis. A alma interior
se insurge, em Pirandello, reclama a sua presença no mundo, e deseja ser re-
conhecida por trás da máscara da profissão, da nacionalidade, da idade, do
status... A Literatura Comparada aqui nos ensina que um mesmo tema pode ser
tratado com perspectivas diferentes, o que é uma riqueza da ficção. Os nar-
radores pirandelliano e machadiano valem-se de mediadores, embora ambos
concluam que a força do social é insuperável.
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Voltando a Jacobina, ele conta a sua história como quem quer demonstrar
o poder do outro, do olhar do outro, para dar consistência à nossa própria
pessoa que, de outro modo, nos escaparia. No entanto, é também verdade que
o narrador tem consciência do processo, tantas vezes opressivo, da constituição da alma de fora
para dentro. E essa consciência é também uma função mediadora do narrador.
A primeira mediação é a que se construiu rente à memória dos fatos (“Os
fatos são tudo”, afirma Jacobina, e essa frase tem forte ressonância positi-
vista). Há quem conta os fatos, mas há também quem analisa e interpreta o
sentido do que ocorreu. Ambos são concomitantes, embora necessariamente
sucessivos na ordem sintática da escrita. E ambos são idôneos no campo da
ficção em que se apresentam.
Quem era Jacobina antes de ganhar o posto de alferes? Um mocinho pro-
vinciano de modestas aspirações. Quem passou a ser Jacobina depois da expe-
riência crucial contada no episódio do espelho? Um homem, entre quarentão
e cinquentão, “capitalista”, “astuto” e “casmurro”. A transformação do rapaz
ingênuo em homem desconfiado e fechado, já vimos, não seria caso único ou
isolado em uma história escrita pelo Machado maduro. O preço da maturi-
dade é a aceitação do poder da sociedade, algo que mistura sóbria resignação
e certa ríspida esquivança, talvez resíduo resistente da alma interior que não
pôde dizer seu nome.
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