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Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 295-306

O Rorschach e o agir na patologia


borderline: A alucinação negativa e a
simbolização (*)

JOÃO CARLOS VIEGAS (**)


MARIA EMÍLIA MARQUES (***)

INTRODUÇÃO da especificidade dos seus processos revela-se


um vértice de investigação privilegiado, ao
A preocupação, justificada, com a exuberância serviço da necessidade de fazer frente às
patológica do agir, tem origem na visibilidade e dificuldades encontradas.
gravidade que os seus fenómenos apresentam: as O agir, entendido como um processo de
condutas de risco a vários níveis, a agressão, a descarga consubstanciado no acto impulsivo
violência, a criminalidade, o suicídio, o homi- devido a uma falha instalada ao nível das capaci-
cídio, etc. dades de mentalização e/ou elaboração psíquica
Tais fenómenos encontram o seu principal (Bergeret, 1998; Millaud, 1998; Tardif, 1998),
domínio de expressão nas patologias borderline, tem sido invariavelmente descrito numa dimen-
no seio das quais o agir, a falta de controlo do são agressiva, como o resultado de uma força
impulso, se revela como a característica mais impulsiva, cega e inusitada, fantasmaticamente
comum, desconcertante, preocupante e social- animada e destituída de sentido.
mente inquietante. No plano da clínica, estas Contudo, para nós, o agir é concebido como
patologias destacam-se ainda por serem as mais uma procura de continente, sentido e simbolização
amplamente representadas, com os pacientes que que, inscrito sempre numa relação, actua antes de
mais exigências compreensivas e dificuldades mais contra a ameaça do nada (Viegas, 2007).
técnicas têm erguido, ao nível dos processos de No seio desta concepção destacamos duas
“cura”. dimensões, de carácter interdependente: (I) o
Assim, nestes quadros clínicos em que toma agir como procura de simbolização que se
importância central o agir, o estudo aprofundado inscreve necessariamente no quadro de uma
relação; (II) o agir como procura de simboliza-
ção, que é uma resposta à ameaça do nada que se
(*) Artigo elaborado a partir da dissertação de encontra subjacente à insubstância do simbólico.
mestrado em Psicopatologia e Psicologia Clínica,
apresentada e defendida em 2007, no ISPA. Consideramos, assim, que o agir deve ser
(**) Psicólogo Clínico. Docente do INUAF, compreendido no quadro geral de uma teoria que
Instituto Superior D. Afonso III. dê conta das dimensões relacionais que lhe
(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do presidem e que, para além disso, se mostre
Instituto Superior de Psicologia Aplicada. particularmente sensível à ameaça do nada, ou

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seja, uma teoria do negativo. O nada é, efectiva- (Greenberg & Mitchell, 1983/2003; Grotstein,
mente, o negativo radical (Green, 1993). 1987; Grotstein, Lang, & Solomon, 1987).
Se bem que muitas concepções se tenham As teorias do conflito, de cariz eminentemente
revelado, de forma crescente, sensíveis à neces- pulsional, proclamam a primazia etiológica da
sidade de inscrever o agir na esfera da relação, o incapacidade de mentalização e integração das
mesmo não se pode dizer relativamente à exigências libidinais e agressivas do conflito
questão do negativo. pulsional, contra as quais o sujeito procede a
Quanto aos métodos utilizados para a avaliação uma mobilização massiva de mecanismos de
e diagnóstico das problemáticas em questão, o defesa primitivos, nomeadamente, a clivagem e a
método Rorschach é, reconhecidamente, o mais identificação projectiva.
sensível às dimensões primitivas do funciona- Estes mecanismos de defesa primitivos, que
mento mental borderline, que se manifesta actuam antes de mais contra as exigências
impregnado pela dominância do processo pulsionais insatisfeitas ou contraditórias, sempre
primário, enquanto os testes psicológicos mais intoleráveis e relacionadas com angústias de
estruturados e de natureza mais objectiva, não perda objecto (na senda de Freud), ou esquizo-
assinalam nada de particular, dadas as capacidades paranóides (na senda de Klein), geram uma
adaptativas que estes sujeitos manifestamente deturpação fantasmática acentuada e destrutiva da
preservam, estando presente a manutenção da captação da realidade e dos objectos de relação.
prova da realidade (Kernberg, 1975). Tal deturpação pressupõe então uma perturbação
Contudo, os procedimentos Rorschach utili- severa dos limites Eu–não-Eu, instalada na base
zados na abordagem dos fenómenos borderline de uma indiferenciação estabelecida entre os
em geral, e do agir em particular, mostram-se arranjos destrutivos da pulsão e o seu objecto,
insensíveis à condição subjacente do negativo. que declara a presença de uma patologia fundada
É assim que, com o intuito de suplantar esta nos destinos da pulsão, no seio do narcisismo
lacuna, procedemos a uma investigação através da precoce.
qual procurámos estabelecer duas dimensões As teorias do défice, de cariz eminentemente
fundamentais: (I) em primeiro lugar, fundamentar relacional, proclamam a primazia etiológica do
teoricamente a nossa concepção do agir como défice, instalado ao nível da interiorização das
procura de simbolização, recorrendo a integrações funções do Eu – como a manutenção dos limites,
tecidas essencialmente entre os contributos de o controlo da tolerância à frustração e o controlo
Freud (1925/1973) e Bion (1965, 1967) e do impulso –, pressupondo um sujeito trauma-
articuladas no quadro geral da teoria do negativo ticamente frustrado no seio do seu narcisismo,
de Green (1993); (II) em segundo lugar, e para pôr dada a precariedade empática das respostas dos
à prova esta concepção, formulámos dimensões da objectos do Eu às suas necessidades nucleares.
técnica e procedimentos específicos que nos A percepção justificada e realista destas falhas
permitiram conceber o Rorschach como um origina, secundariamente, um exagero acentuado
“espaço virtual de alucinação negativa” (Viegas, e destrutivo das tendências naturais para o
2007), recorrendo fundamentalmente aos pensamento animista e fantasista, contra o qual o
contributos metodológicos de Marques (1994, sujeito mobiliza, secundariamente, mecanismos
1999), que estabelece o instrumento como um de defesa primitivos, como a clivagem e a identi-
“espaço de relação, interpretação, comunicação, ficação projectiva. Estes mecanismos de defesa
transformação, ligação e simbolização”.
podem manifestar-se, quer pela retaliação agres-
siva, quer como procura de prazer libidinal puro,
A PATOLOGIA BORDER E O AGIR
sempre como estratégias de expiação da falha
empática, mas cuja função revela, antes de mais,
Concepções teóricas gerais os esforços fracassados de auto-regulação e
manutenção da coesão do Eu, persistentemente
Existem duas grandes tendências dominantes, ameaçado por angústias de desintegração.
que concorrem no mesmo terreno, inscritas Para além destas duas inscrições teóricas,
em torno da controvérsia conflito vs. défice podemos ainda delimitar um terceiro terreno de

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concepções mais recentes, que têm vindo a nucleares no seio dos processos constitutivos.
proclamar a necessidade de abordar a falha Tal como a descreve Green (1993), a alucinação
instalada ao nível da interacção dos mecanismos negativa é, por um lado, um mecanismo nuclear
de retro-acção que actuam entre os diversos e propulsor, que actua no seio dos processos
factores constitutivos – neurobiológicos, constitutivos da condição estrutural e simbólica
psicológicos (intrapsíquicos e intersubjectivos ou do sujeito e, por outro lado, um fenómeno
relacionais), sociais, etc. –, no seio dos quais se mental que destapa a ameaça do nada.
destacam a pulsão e o objecto, considerando-se Sempre que um acontecimento psíquico se
então o conflito e o défice como duas face da apresenta como uma realidade por pensar ou, se
mesma moeda (Grotstein, 1987; Grotstein, Lang, quisermos, como um “acontecimento pulsional”
& Solomon, 1987). Independentemente das por pensar, a alucinação negativa exerce os seus
divergências e integrações relativas à etiologia e efeitos, o que remete para a representação da
compreensão da natureza essencial da falha, ausência de representação, que expõe a mente às
considera-se sempre que esta última condena condições que a tornaram possível, ou seja, o
invariavelmente as capacidades de mentalização- apagamento do objecto e a sua transformação em
adaptação e o acesso ao pensamento simbólico, estrutura enquadrante do sujeito (Green, 1977,
levando ao fracasso dos processos de auto- 1993, 1994).
regulação, integração e elaboração mental das Por outras palavras, a alucinação negativa
tensões psíquicas e dos estados afectivos. destapa a ameaça do nada e incita o pensamento
O fracasso destes processos dá lugar à que alucina no fundo branco das suas próprias
emergência de uma actividade fantasmática de produções – sobre o qual o objecto se apaga –, a
natureza eminentemente destrutiva, da qual o re-percorrer a trajectória de um movimento,
sujeito pode procurar aliviar-se através de através do qual perceber não é conhecer, é
processos que assumem a forma de descarga – re-conhecer e pensar sobre um percebido cuja
evacuação sobre os objectos, veiculados através informação que veicula se encontra englobada
da identificação projectiva patológica, que arrasta naquilo que a pulsão traz consigo e se imprime
para fora os produtos da clivagem, pressupondo numa dominante perceptivo-sensorial, presidida
uma perturbação severa dos limites dentro-fora, pelo par contrastante prazer-desprazer. Portanto,
Eu–não-Eu. Está aqui o terreno fértil do agir. a base de ocorrência da alucinação negativa é, na
Estas concepções, sendo sensíveis à precarie- verdade, o processo primário (Green, 1977,
dade das capacidades simbólicas e ao enquadra- 1993, 1994).
mento relacional do agir, denotam contudo uma Efectivamente, como considera Bion (1992),
centração no fantasma, leia-se, na positividade o destino dos elementos beta pode corresponder,
do fenómeno inconsciente, permanecendo insen- precisamente, aos fenómenos submetidos ao
síveis à dimensão que, quanto a nós, se encontra domínio do princípio do prazer-desprazer, ao
necessariamente subjacente à insubstância do qual Freud (1920/1973) subordina toda a
simbólico: a ameaça do nada, do sem-sentido e a actividade pulsional do Id. Assim, em última
presença de fundo de uma angústia de natureza instância, esta actividade pulsional, inscrita
fundamentalmente nadificante (Viegas, 2007). numa dominante perceptivo-sensorial – beta,
sem-sentido e tendencialmente caótica –, remete
O agir como procura de simbolização: uma o sujeito para a possibilidade da sua transfor-
teoria do negativo mação ulterior, desde que os conteúdos mentais
em questão encontrem um continente psíquico
Para fundamentarmos a nossa hipótese, próprio onde se alojar, ligar, re-ligar, simbolizar
comecemos por dizer que a ameaça do nada e pensar, através da identificação projectiva
conduz, efectivamente, ao problema do negativo (normal), na relação continente-conteúdo
e do trabalho do negativo (Green, 1986, 1993, (Viegas, 2000, 2007). Caso isso não suceda,
1994, 2000) e, consequentemente, à questão da uma solução, ou pseudo-solução, é a descarga-
alucinação negativa (Green, 1977, 1993), como -evacuação dos conteúdos mentais emergentes,
mecanismo central que desempenha funções como prelúdio do agir.

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Dito isto, consideramos que a assimbolia é, As repercussões da controvérsia conflito vs
efectivamente, a questão border mais central, défice, a que anteriormente nos referimos,
que revela a precariedade instalada ao nível dos reflectiram-se ao nível das abordagens Rorschach
processos de transformação do objecto em dos fenómenos borderline, em geral, e do agir em
estrutura enquadrante do sujeito. A assimbolia particular, estando bem expressas na literatura da
declara, portanto, a precariedade da constituição escola francesa (Chabert 1883/1994, 1983/1999) e
de um continente psíquico próprio, autónomo e, de uma das escolas americanas (Lerner, 1991;
consequentemente, declara a precariedade dos Lerner & Lerner, 1980) de metodologia projectiva.
limites Eu–não-Eu, dentro-fora, interno-externo. Como reflexo das concepções teóricas em
Tendo em conta estes pressupostos a patologia que se inspiram, no que diz respeito à especifi-
borderline é, efectivamente, uma patologia dos cidade dos processos do agir, independentemente
limites. Sempre que um acontecimento psíquico da divergência relativa à etiologia da falha que
se apresenta como uma realidade por pensar, a lhe dá origem, ambas as escolas procuram captar
alucinação negativa, como representação da no Rorschach a falência das capacidades
ausência de representação, exerce os seus efeitos simbólicas, dando conta da emergência de uma
no momento presente, destapa a ameaça do nada actividade fantasmática eminentemente destru-
e a identificação projectiva excessiva actua na tiva, veiculada através da identificação projec-
perfusão dos limites dentro-fora, como preludio tiva excessiva, ou patológica, que arrasta para
do agir e como procura de continente, sentido e fora os produtos da clivagem e pressupõe uma
simbolização. perturbação severa dos limites Eu–não-Eu,
Por outras palavras, a identificação projectiva dentro-fora, interno-externo (fantasia-realidade).
predomina amplamente sobre a função alfa Utilizámos como base do nosso método o
(Amaral Dias, 2004) e a mente funciona sob um modelo Rorschach estabelecido por Marques
modelo de evacuação-acção, como prelúdio do (1994, 1999), que concebe o instrumento como
agir. Mas aos conteúdos mentais evacuados – um espaço de relação, comunicação, ligação,
elementos beta – preside o “querer implícito” transformação e simbolização. Utilizando como
dos conteúdos que procuram continente, sentido
base este modelo, particularmente sensível ao
e simbolização.
processo de simbolização, procedemos então a
O agir é, efectivamente, uma procura de
novas elaborações, com vista a conceber o
simbolização que actua contra a ameaça do nada,
Rorschach como um espaço virtual de alucina-
à qual preside a ocorrência da alucinação
ção negativa.
negativa do objecto. Como contrapartida, resta a
Partindo da assimilação estabelecida por
retirada, o retraimento narcísico, pseudo-
Marques (1994) entre processo-resposta
depressivo, facultado através de formas diversas
Rorschach e o modelo de transformações de
de pseudo-mentalização
Bion (1965), consideramos que as transfor-
mações ocorrem, na sua dimensão mais abstracta
O AGIR NA PATOLOGIA BORDER e essencial, sob o pano de fundo do nada, ou
À PROVA NO RORSCHACH seja, sob a condição radical do negativo.
Assim, consideramos que o processo-resposta
Para pôr à prova as nossas concepções sobre o Rorschach, que se revela como um processo de
agir, revisitámos o método Rorschach, de acordo transformação resultante da percepção de uma
com os nossos objectivos e de modo coerente e mancha que contém qualidades psíquicas
convergente com as concepções que adoptámos, essências – o caos e o nada –, revela a natureza
para o tornar particularmente sensível às da realidade psíquica do sujeito, como a sua
dimensões relacionais e à questão do negativo: a “realidade última” ou “verdade original”, sendo
ameaça do nada e a presença de fundo de uma necessária a participação da alucinação negativa,
angústia fundamentalmente nadificante, tão potencialmente induzida por essas qualidades.
frequentemente expressa nas queixas destes Por outras palavras, é necessário que o objecto
sujeitos sob a forma de sentimentos de vazio e se apague, como representação da ausência de
de falta de sentido. representação, para que se revele o modo como

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se transforma em estrutura enquadrante do adaptação perceptiva de base (F-), mostrando o
sujeito. Revela-se então, através dos produtos da fracasso das defesas pela realidade (Chabert,
transformação, a natureza imperceptível, não 1987/1998).
figurável nem representável – incognoscível – da No momento em que é perdida a adaptação
estrutura enquadrante do espaço interno perceptiva de base, o objecto apaga-se e a
representativo (Viegas, 2007). alucinação negativa destapa a ameaça do nada,
Tornar o nosso instrumento sensível a estas dando origem, dada a precariedade dos limites
expressões, estabelecendo-o como um espaço dentro-fora, à evacuação dos conteúdos mentais
virtual de alucinação negativa, implica então emergentes – elementos beta –, através da
renovar e redimensionar o nosso olhar sobre as identificação projectiva excessiva ou patológica,
qualidades psíquicas e perceptivas – o caos e o como preludio do agir. Estes processos evacua-
nada – que reconhecemos serem intrínsecas à tivos assumem, efectivamente, uma forma de
natureza das manchas Rorschach. descarga sobre os objectos, que surgem então
Efectivamente, percepcionar uma mancha atingidos, distorcidos, por vezes bizarros, confa-
Rorschach, e dado o impacto percetivo-sensorial bulados, contaminados, etc. (F-). Contudo, aos
de carácter estranho, desconhecido, disruptivo e conteúdos mentais evacuados preside o intuito
sem-sentido, gera um sentimento de caos psíquico ou o querer implícito dos conteúdos que
que se impõe ao sujeito como um acontecimento procuram continente, sentido e simbolização.
psíquico por pensar. O caos, o impacto sensorial e Mas, para além disto, a expressão-revelação
sem-sentido da realidade perceptiva da mancha, é Rorschach destes processos pode, efectivamente,
um mal menor face à eminência do nada que se relacionar-se directamente com (I) angústias de
encontra subjacente, o fundo branco sobre o qual perda de objecto – e, implicitamente, de
o objecto se apaga e o caos se destaca como um separação-individuação –, assim como, secun-
acontecimento psíquico por pensar. Este nada, que dariamente, com (II) angústias de desintegração
se encontra subjacente ao lugar onde o objecto se e com (III) angústias esquizo-paranóides.
apaga e o caos se destaca, impõe-se então como (I) Relaciona-se directamente com angústias
representação da ausência de representação e a de perda de objecto – e, por derivação, com
alucinação negativa exerce os seus efeitos no angústias de separação-individuação –, na
momento presente: incita o pensamento, que medida em que, quando a alucinação negativa
alucina no fundo branco das suas próprias exerce os seus efeitos, o objecto se apaga, é
produções, a repercorrer a trajectória de um perdido e declara sem subterfúgios imediatos a
movimento que só se pode realizar, através do ameaça do nada, porque o objecto perdido não
processo primário, pela percepção/re-captação pode ser re-encontrado, ou seja, o objecto é
que re-liga o traço mnésico, a reminiscência (foi) perdido mas não transformado em estrutura
evocadora do afecto-representação, como enquadrante do sujeito – e esta é, como
material para ligação, transformação e simbo- fundamentámos, a questão border mais central.
lização, portanto, através da identificação Deste modo, a ocorrência da alucinação
projectiva, na relação continente-conteúdo. negativa constitui-se como uma verdadeira
Debrucemo-nos então sobre estas soluções, reactualização projectiva, ou como uma
em termos de procedimentos de análise. revivescência actual da perda, sempre re-sentida
como uma ruptura brusca e destrutiva. Esta
reactualização projectiva revela, então, a
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE perturbação severa dos limites dentro-fora,
Eu–não-Eu, instalada na base de uma indistinção
Os nossos procedimentos visam captar as entre os arranjos destrutivos da pulsão e o seu
expressões que revelam as consequências objecto. São estes arranjos destrutivos, como
directas da ocorrência da alucinação negativa no “crenças pulsionais” enraizadas num narcisismo
Rorschach no caso dos sujeitos borderline, que destrutivo (Green, 1983, 1994), que então se
se traduz, antes de mais, na derrapagem dos consubstanciam em toda a gama de equações
processos perceptivos e na perda de eficácia da simbólicas – dentro igual a fora –, presididas

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pela categoria geral destruído-destrutivo, no seio recurso a formas de pseudo-mentalização que
das quais os objectos – manchas – são facultam a contenção do agir. Estas formas de
englobados, distorcidos, destruídos, esmagados, pseudo-mentalização, tendencialmente associadas
contaminados, etc. a uma sensibilidade narcísica às características
(II) Neste quadro, a alucinação negativa sensoriais do esbatimento dos estímulos (E),
exerce os seus efeitos, o pensamento alucina no revelam-se geralmente através de temas
fundo branco das suas produções e imprime-se especulares – reflexos, simetrias, paisagens,
uma actividade perceptivo-sensorial, beta, processos espelhados, etc.-, como cenários que
caótica e sem-sentido, porque não pode ser traduzem, através da identificação projectiva,
transformada. Este caos psíquico pode, uma estagnação regressiva dos processos
efectivamente, constituir-se como uma ameaça mentais na contemplação do perfeito idealizado,
de desintegração que ataca a coesão do Eu, como lugar onde se realiza o anseio que ilude
originando esforços fracassados de auto- toda a angústia.
-regulação, que podem, mais uma vez, assumir a
forma de descarga sobre os objectos-manchas.
Contudo, quanto a nós, trata-se aqui de uma OS SUJEITOS
ameaça – a desintegração – à qual subjaz uma
outra maior: a ameaça do nada, ou a ameaça da Recorremos a quatro protocolos Rorschach,
dissolução dos limites pela queda vertiginosa recolhidos em contexto próprio de consulta, no
num vazio nadificante. Neste sentido, os Serviço de Psiquiatria do Hospital Amadora
esforços a que o sujeito procede representam, Sintra, onde os nossos sujeitos foram diagnosti-
antes de mais, como ilustraremos, uma procura cados, de um ponto de vista estrutural, com
de continente, sentido e simbolização, que actua patologia borderline.
contra a ameaça do nada. Utilizamos dois protocolos de sujeitos com
(III) Por outro lado, a emergência do caos historial agido – Sónia, de 21 anos, e a Helena,
psíquico vem também justificar o eclodir do de 45 anos –, e dois protocolos de sujeitos sem
fantasma, que por lá passou a andar, como historial agido – o Luís, de 42 anos, e o Manuel,
pseudo-organização dos conteúdos mentais de 40 anos.
emergentes – elementos beta –, ou como
manobra mental alicerçada na falência do
simbólico, através da qual se ilude a ameaça em
DISCUSSÃO
questão – o nada. Como manobra mental
alicerçada na falência do simbólico, portanto,
como produção border, clivada, ou como A partir da análise e interpretação realizadas
solução paranóide erigida num cenário em que, apresentaremos algumas das dimensões mais
efectivamente, a ideação persecutória exclui a significativas da especificidade dos fenómenos
benesse do objecto, ou do agente da frustração do agir e, como contraponto, as que assinalam a
tornado perseguidor e assim identificado como especificidade dos fenómenos conducentes ao
alvo de agressão. retraimento narcísico. Recorreremos como
Esta actividade fantasmática pode, efectiva- ilustração a alguns excertos dos protocolos da
mente, como ilustraremos, revelar-se no Sónia, da Helena, do Luís e do Manuel.
Rorschach através de uma ideação temática
persistente, que não permite sair das lógicas em O agir como procura de continente, sentido e
que a ameaça e a perigosidade se sobrepõem à simbolização
apreensão simbólica dos objectos-mancha, como
equação inevitável: dentro igual a fora, Nos casos das narrativas da Sónia e da
destruído-destrutivo. Helena, as respostas aos cartões da série pastel
Por fim, como solução alternativa perante a permitem-nos apresentar os melhores exemplos
ameaça do nada, pode surgir o retraimento ilustrativos dos processos do agir, uma vez que
narcísico sobre si – pseudo-depressivo –, pelo esta série facilita a sua expressão-revelação,

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pelas suas características perceptivas, sensoriais A alucinação negativa do objecto persiste e a
e estruturais, que introduzem um apelo afectivo evacuação dos conteúdos mentais emergentes
baseado numa sobre-estimulação de múltiplas insiste, através de conteúdos sem-sentido, desli-
formas e cores, a qual é inesperadamente gados entre si, parciais, bizarros e declarada-
introduzida pelo cartão VIII, passando depois a mente caóticos, denotando agora um nível de
apresentar uma interpenetrabilidade de limites, desorganização estonteante e radical.
com exclusão de elementos rapidamente Efectivamente, a identificação projectiva
estruturantes (cartão IX) e, finalmente, uma excessiva, evacuativa actua na perfusão dos
dispersão dos elementos, que em nada facilita a limites dentro-fora e a mente funciona sob um
integração (cartão X). modelo de evacuação-acção, como prelúdio do
Na sequência de um protocolo marcado pela agir: não há transformação e simbolização,
falta de sentido, pela pobreza simbólica e pelo apenas deformação originada pela evacuação
excesso de formalização – defesas pela realidade (F-). A identificação projectiva predomina
–, Sónia inicia as suas respostas à série pastel amplamente sobre a função alfa.
com uma adaptação perceptiva de base, facultada Esta desorganização caótica de conteúdos
pela fácil captação da banalidade do cartão VIII mentais apenas aptos à evacuação pode, efec-
(“dois animais”). tivamente, consubstanciar-se na forma de uma
Contudo, prosseguindo um movimento de ansiedade de desintegração que ameaça a coesão
procura através da exploração das restantes partes do Eu, mas esta desorganização caótica é uma
do estímulo, dada a menor figuração das mesmas consequência directa da insubstância do simbó-
e o impacto sensorial da multiplicidade das suas lico, à qual subjaz um mal maior: a ameaça do
formas e cores, Sónia vai encontrar dificuldades nada, ou da dissolução dos limites e da queda
acrescidas nos esforços de formalização, que vertiginosa num vazio nadificante.
então cedem lugar a uma actividade mental Assim, perante a ameaça em questão, aos
altamente desorganizada, em consequência da conteúdos mentais evacuados preside o cumpri-
qual emerge uma série caótica de conteúdos mento de um “querer implícito”, claramente
deformados, bizarros e destrutivos, apenas aptos à anunciado por Sónia, pela insistência na procura,
evacuação: “útero, monstro, borboleta, pessoa, com as marcas da repetição e da falência do
cara, caveira de animal” (F-). simbólico: conteúdo procura continente, sentido
Efectivamente, face ao impacto tumultuoso e e simbolização.
invasivo das características estruturais e Num estilo bem diferente das narrativas de
sensoriais da mancha, o controlo formal fracassa, Sónia, a Helena entra na série pastel em processo
o objecto escapa, apaga-se e a alucinação evacuativo, neste caso denunciado por temáticas
negativa exerce os seus efeitos – a revivescência catastróficas, no seio das quais o campo do
actual da perda, que destapa a ameaça do nada –, sentido se mostra radicalmente perturbado, como
dando origem a um processo evacuativo dos denotam logo as primeiras respostas ao cartão
conteúdos mentais emergentes, que não VIII: Isto parece-me uma montanha em que vai
encontram um continente psíquico onde se entrar um vulcão em irrupção, a lava. E agora
alojar, ligar, transformar, simbolizar e pensar. não me estou a lembrar do nome, tecnicamente
Na sequência da desorganização induzida pelo tem um nome próprio, está em espécie de
cartão VIII, a sobre-estimulação perceptivo- erupção que vai sair precisamente por este
sensorial suscitada pelos cartões IX e X não filamento e vai cair lava por esta montanha... (ia
permite a Sónia conter o processo evacuativo entregar o cartão, mas continua) Também tem
anteriormente originado (cartão IX: cabeça de aqui outra coisa, parecem-me uns animais, que é
insecto, duas caras, uma cabeça de animal e a lava que vai provocar a catástrofe, é o perigo,
mais dois monstros. Cartão X: dois animais, os animais fazem sentir o perigo que vai
uma cabeça de pato, dois monstrinhos, depois acontecer ao planeta... Porque parece que são
mais dois outros monstrinhos, uma pessoa, uma duas feras. No inquérito explicta: – a lava saía
cara de gato, uma cara de pássaro, mais nada. precisamente por este orifício (eixo central); os
Mais dois monstrinhos). dois animais a simbolizar que o planeta terra é

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tão frágil que isto pode ir tudo pelos ares. é fogo, que as outras plantas irão todas morrer.
Porque isto parece-me leões ou tigres, mais Aliás, aqui vê-se já, no outro tipo de planeta a
tigres que é um animal mais ameaçador. O leão quererem nascer plantas, a quererem pôr
só ataca quando teme, o tigre é mais complicado verdura no outro planeta. E no inquérito:
(rosas laterais). Destruição do mundo. Já teríamos descoberto
Efectivamente, estas temáticas catastróficas outros mundos (cinza) avançados e a habitar
veiculam – evacuam – dimensões psíquicas outros planetas.
internas de natureza destrutiva, ameaçadora e Assim, no cartão X o alucinatório insiste, a
persecutória, que transbordam na perfusão dos ameaça do nada persiste e o sensorial – beta,
limites dentro-fora, através da identificação caótico e invasivo –, origina uma procura de
projectiva patológica e contaminam radicalmente sentido totalmente fracassada, consubstanciada
a percepção-captação dos objectos da realidade num excesso de identificação projectiva que
externa. assinala a perturbação dos limites e arrasta,
Como seria de esperar, perante a sua ausência evacua para fora as dimensões catastróficas da
de elementos estruturantes, o cartão IX não desorganização interior, através de temáticas
permite conter o processo evacuativo anterior- cada vez menos coerentes, persecutórias,
mente iniciado e Helena repete, arrasta a temática bizarras e algo delirantes.
anterior, enquanto o campo do sentido procurado Efectivamente, a identificação projectiva
continua a mostrar-se radicalmente perturbado, predomina amplamente sobre a função alfa e a
não permitindo sair das lógicas em que a ameaça mente funciona sob um modelo de evacuação-
e a perigosidade se sobrepõem, como equação -acção, como prelúdio do agir. Mas, aos
inevitável – dentro igual a fora; destruído- conteúdos mentais evacuados, mais uma vez,
destrutivo –, à apreensão simbólica dos objectos. como bem denota o esforço de procura de
Cartão IX: Esquisito!... \/.../\...\/... Olhe esta circunscrição temática dos mesmos, preside o
faz-me lembrar, virando assim, portanto isto “querer implícito” dos pensamentos que
seria a relva e um lago que está por baixo, e a procuram ser pensados, dos conteúdos que
água, um repuxo, e o perigo que está por baixo procuram continente, sentido e simbolização.
que é o perigo da lava que está por baixo e que Em suma, o agir é uma procura de continente,
pode entrar em irrupção a qualquer momento. A sentido e simbolização, que actua antes de mais
água e canalização, a lava, apesar de ser azul contra a ameaça do nada. Face a esta, o fantasma,
clara, e o perigo da lava que está por baixo de a identificação projectiva e a clivagem, como
terra, que é o perigo da catástrofe que poderá bem ilustram as narrativas da Helena com uma
entrar, ou não. Explicita no inquérito: um lago tonalidade persecutória dominante numa pseudo-
(Dbl) com uma relva (verde) à volta, falta aqui -organização fantasmática (esquizo-paranóide)
terra para sustentar a relva, e isto seria um dos conteúdos mentais emergentes, são uma
repuxo que se pode pôr com cores (rosa), e aqui consequência secundária.
a lava em actividade (laranja).
Estes processos evacuativos contêm, efectiva- O retraimento narcísico e a pseudo-
mente, a marca da ameaça contra a qual actuam, -mentalização
ou seja, a marca do alucinatório que traduz uma
revivescência actual da perda e destapa a ameaça Quanto às narrativas de Luís e Manuel (sujeitos
do nada – a alucinação negativa do objecto –, sem historial agido), recorreremos a alguns cartões
como ameaça subjacente à falência do simbólico. negros, uma vez que as suas tonalidades negro-
Cartão X: Se calhar é a mais difícil e compli- -esbatido podem remeter mais facilmente para
cada! Isto para mim parece-me a auto- formas de sensibilidade narcísica (respostas E),
destruição do planeta, da terra, em que há facilitando o retraimento narcísico sobre si,
outros planetas, em que já estão habitados por dominante nestes sujeitos, como contraponto do
outros humanos que será este cinzento, que já agir e solução elegida perante a ameaça do nada.
estão a fazer construções – eu leio muito sobre Recorreremos também ao cartão X da série
isso – o céu azul, e isto será o fim do mundo que pastel, que facilita a expressão dos processos

302
agídos e nos permite ilustrar as diferenças claras O contacto inicial com a dispersão do cartão
que existem entre as narrativas destes sujeitos X e com a sobre-estimulação da sua multiplici-
(sem historial agido) e as da Sónia e da Helena dade de tons e formas – características do
(com historial agido). estímulo que facilitam a expressão dos processos
O Luís inicia a situação Rorschach com uma agídos –, não conduz a mais do que a um novo
adaptação perceptiva de base, que, contudo, revela movimento de retraimento narcísico, bem
mal-estar no contacto com o material, através do traduzido na temática evocada (“Aqui uma série
conteúdo anatómico (“conjunto de ossos”), assim de pássaros na água e empoleirados num ramo
como uma sensibilidade à falta (Gbl). de árvore. A água em baixo. Um outro pássaro
Efectivamente, a segunda resposta confirma em baixo, mais uma vez num processo
este mal-estar através da evocação de um con- espelhado” – usa vários D e bl)
teúdo de natureza eminentemente desagradável e A dispersão do cartão dificulta a manutenção
constrangedora (“uma cabeça de besouro ampli- da posição em retraimento, mal compensada
ada”), que se traduz numa perda de adaptação pela qualidade do suporte perceptivo (F-), e
perceptiva inicial (F-). Luís passa a dar mais importância à ausência de
O objecto escapa e a alucinação negativa cor (Dbl), ao negativo – o fundo branco como
exerce os seus efeitos, mais uma vez, a revives- evocação da ameaça do nada –, do que à cor.
cência actual da perda que destapa a ameaça do Contudo, num segundo momento, consegue
nada. Face a esta, o Luís procede a um movi- proceder à recuperação do controlo perceptivo
mento de retraimento narcísico sobre si, revelado (F+), através de um conteúdo anatómico que
através de uma sensibilidade narcísica centrada ainda denota a ansiedade (“traqueia”, cinz. sup.).
nas características sensoriais do estímulo (E). Este controlo perceptivo mantém-se através da
Este movimento de retraimento, pesudo- evocação de um fogo de artifício, uma vez que
-depressivo, consubstancia-se em formas de se trata de uma percepção relativamente corrente
pseudo-mentalização que facultam a contenção neste cartão, enquanto este último movimento
do agir (“águas calmas, sombras, lua, reflexos”), denota já um alívio da ansiedade suscitada
mas que em nada traduzem uma capacidade (“fogo de artifício, coisa que sempre gostei” D
efectiva de simbolizar e pensar (“para treinar a cinz. e azul).
imaginação tento formar imagens em sombras”, Por fim, Luís termina sem perder a adaptação
diz no inquérito). perceptiva de base (“cavalo marinho”, F+),
No cartão IV, longe de uma captação simbó- evocando um tema marinho que já nada traduz de
lica das dimensões de força e potência evocadas inquietante, mas sim a viabilidade da contenção
pelo estimulo, Luís evoca uma “pele mal do agir, através de um controlo formal dos
esticada, seca e demasiado velha”. Em suma, o objectos, num contexto em que as evocações
simbólico não está lá, o objecto distancia-se temáticas não deixam de revelar uma sensibilidade
(“idade média”), ameaça escapar e a eminência narcísica ao serviço do retraimento.
da alucinação negativa – a eminência do nada – Quanto a Manuel, no cartão V, na sequência de
marca a sua presença. um conjunto de respostas dominado por esforços
Mais uma vez, na sequência desta eminência, dificultados de controlo formal dos objectos, surge
o Luís procede a um movimento de retraimento uma acumulação de ansiedade, que se expressa
narcísico sobre si, através de uma sensibilidade através de uma certa hostilidade, dirigida ao
narcísica submetida às características sensoriais examinador (ri... “não tinha bonecos mais
do esbatimento (E) do estímulo (“simetria, simples?”).
claros-escuros que se reflectem na água”. As duas respostas que surgem depois (“... Tanto
Mais uma vez, este movimento de retrai- pode ser um caracol... Como um animal pré-
mento, pseudo-depressivo, traduz-se através de -histórico, não consigo”) denotam expressões
formas de pseudo-mentalização que, muito que oscilam entre a passividade e a eminência
aquém de uma capacidade efectiva de apreensão duma hostilidade, ao que se segue o retirar-se da
simbólica das manchas, facultam a contenção do situação (“Podia dizer aqui atrás...” – vira o
agir. cartão).

303
A reacção de Manuel ao cartão VI, vem sentido e simbolização que, inscrita a priori na
confirmar a importância funcional e relacional relação, actua contra a ameaça do nada, dada a
do movimento em questão. insubstância do simbólico; (II) bem como a
Neste cartão, de evocações simbólicas trans- solução alternativa perante a ameaça em questão,
parentes, Manuel esforça-se por encontrar algo que ilustrámos através dos processos conducentes
conhecido, tentando objectivar e aceder ao ao retraimento narcísico sobre si, através da
controlo formal – defesas pela realidade –, mas retirada e do recurso a formas de pseudo-
acusa uma dificuldade inquietante, quer através -mentalização, que facultam a contenção do agir.
do comentário (“Nossa senhora!”), quer da
representação da ausência da representação, dada
a insubstância do simbólico (“não tem semelhança CONCLUSÕES
com nada que possa estar na minha mente”).
A alucinação negativa exerce os seus efeitos no Em termos conclusivos julgamos ter prestado
momento presente e o Manuel, desta vez, procede fundamentalmente dois contributos originais, de
a uma retirada mais radical da situação, a recusa. âmbito teórico e metodológico, para as práticas
No inquérito surge uma resposta adicional que da psicologia clínica:
denota claramente a natureza da retirada, através
(I) Uma concepção do agir como uma procura
do retraimento narcísico sobre si (“uma paisagem,
de continente, sentido e simbolização.
o reflexo num lago”), sustido numa sensibilidade
regressiva às características sensoriais do estímulo (II) Uma concepção do Rorschach como um
(E). Trata-se de um movimento pseudo-mentali- espaço virtual de alucinação negativa.
zante – e pseudo-depressivo –, dado que o
Efectivamente, recorrendo a uma gama vasta
simbólico continua a manifestar a sua ausência
de integrações teóricas – tecidas essencialmente,
(“continua a faltar aqui água” – no Dbl), apesar
em termos de referências centrais, entre os
das evocações transparentes do cartão.
contributos de Freud (1925/1973) e Bion (1965) e
Finalmente, no cartão X, longe das lógicas
articuladas no quadro geral da teoria do negativo
evacuativas subjacentes aos processos agídos,
de Green (1977, 1983, 1986, 1993, 1994, 2000) –,
Manuel expressa o alívio pelo término da passa-
concebemos o agir no seio dos fenómenos border
gem e procede a uma retirada festiva (ri). “Isto, como uma procura de continente, sentido e
depois de ter passado por aquilo tudo, isto é o simbolização que, inscrita a priori na relação,
fim da festa! Deve ser para completar, como tem actua contra a ameaça do nada.
mais cores, mais aberturas. Um fogo de artifício, Para pôr à prova a nossa concepção – recor-
por aí”. rendo essencialmente aos contributos metodoló-
No inquérito, congratula-se com a viabilidade gicos de Marques (1994, 1999), que estabelece o
da fuga à situação aflitiva e coroa a retirada Rorschach como um espaço de relação, inter-
como solução celestial, um final feliz que, dada a pretação, comunicação, ligação, transformação e
intolerância às dimensões de frustração emer- simbolização –, concebemos o método Rorschach
gentes no contacto com as manchas, só pode como um espaço virtual de alucinação negativa,
traduzir a aspiração regressiva, não agída mas tornando-o particularmente sensível às dimensões
estagnante, à contemplação do perfeito ideali- do negativo e à presença de fundo do nada. De
zado: o encontro com reflexo narcísico de si no facto, as concepções dominantes, teóricas e meto-
lago celestial, como lugar onde se ilude a perda e dológicas, sobre os fenómenos border em geral, e
toda a natureza de angústia (“É a última, fogo de o agir em particular, têm ignorado persisten-
artifício. Aqui – aponta cartão VIII – fugir de temente a presença de fundo da ameaça do nada,
uma situação de aflição, ambas têm um acaba- tão frequentemente expressa nas queixas destes
mento celestial (cinzas sup.), o que pela minha sujeitos, sob a forma de sentimentos de vazio e de
análise demonstra que é um final feliz”). falta de sentido.
Em suma, através da ilustração apresentada, Através desta concepção metodológica e da
julgamos ter revelado (I) a natureza específica dos análise e interpretação de quatro narrativas
processos do agir, como procura de continente, Rorschach de sujeitos borderline, ilustrámos e

304
julgamos ter confirmado a nossa concepção Green, A. (1977). L’hallucination négative. Note pour
sobre o agir, como procura de simbolização que une addendum à un Traité dês hallucinations.
actua contra a ameaça do nada, tal como, como L’Evolution Psychiatrique, XLII, III/2 (número
especial).
contraponto do agir, ou solução alternativa
perante a ameaça do nada, ilustrámos também os Green, A. (1983). Narcissisme de vie, narcissisme de
processos conducentes ao retraimento narcísico mort. Paris: Les Editions de Minuit.
sobre si, através da retirada e de formas de Green, A. (1986). Le travail du négatif. Revue
pseudo-mentalização – pseudo-depressiva –, que Française de Psychanalyse, 1, 489-493.
facultam a contenção do agir. Green, A. (1993). Le travail du négatif. Paris: Les
Como injunção adicional, julgamos que as Editions de Minuit.
dimensões aqui ilustradas à luz da teoria do Green, A. (1994). Para introduzir o negativo em
negativo – o agir e o retraimento narcísico –, vão psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise,
de encontro às distinções diagnósticas tentadas XXVIII(1), 25-38.
estabilizar por diversos autores – entre as
Green, A. (2000). A mente primordial e o trabalho do
perturbações borderline e as perturbações negativo. Livro Anual de Psicanálise, XIV, 133-
narcísicas da personalidade –, como ilustra a 148.
controvérsia suscitada pelos contributos teóricos
Greenberg, J. R., & Mitchell, S. A. (1983/2003). Object
e técnicos de Kohut (1978) e Kernberg (1975) e relations in psychoanalytic theory. Havard
consideramos que estabelecemos sobre esta University Press. Edição portuguesa: Relações de
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Millaud (Org.), Le passage à l’act. Aspects cliniques
et psychodynamiques (pp. 15-24). Paris: Masson.
ABSTRACT
Viegas, J. C. (2007). O Rorschach e o agir na patología
borderline: A alucinação negativa e a simbolização.
Dissertação de Mestrado. Lisboa: ISPA. We have attempted to reach the psychic mechanisms
together with mental and relational processes,
underlying acting in the Borderline pathology,
conceiving it as a search for continent, sense and
symbolisation, which acts against the threat of nothing
RESUMO that underlies the absence of substance of symbolic.
To test this conception, we regard Rorschach as a
O nosso objectivo é aceder à natureza dos mecanis- “virtual space of negative hallucination”, by
mos psíquicos e dos processos mentais e relacionais assimilating previous methodological assumptions that
subjacentes ao agir na patologia borderline, establish the instrument as “a space of relationship,
concebendo-os como uma procura de continente, sentido interpretation, communication and symbolisation”.
e simbolização que actua contra a ameaça do nada, que All in all, we believe to have presented a new
se encontra subjacente à insubstância do simbólico. theoretical contribution to the understanding of the
Para pôr à prova esta concepção, concebemos o phenomena involving acting, to the extent that we
Rorschach como um “espaço virtual de alucinação have conceived it differently from the previous
negativa”, assimilando pressupostos metodológicos conceptions; as well as a new methodical contribution,
que estabelecem o instrumento como um “espaço de since the Clinical Psychology has proved to lack the
relação, interpretação, comunicação e simbolização”. methods and techniques fit to tackle the dimension of
Em termos conclusivos julgamos ter prestado um negative, in other words, the fundamental presence of
contributo teórico para a compreensão dos fenómenos nothing as well as the occurrence of negative
do agir, na medida em que o concebemos de um hallucination.
modo distinto das concepções anteriores; assim como Key words: Acting, Borderline pathology, Negative
um contributo metodológico, na medida em que a hallucination, Rorschach.

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