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O embranquecimento da música brasileira: um estudo sobre o processo

de branqueamento da música negra contemporânea no Brasil.


Raiany Fernandes Costa da Silva

Introdução: A música negra é negra?


Ao falar de branqueamento na música brasileira refere-se à exclusão gradativa
do indivíduo negro dos gêneros e estilos musicais criados pelos mesmos, gerando a
sensação que esses mesmos gêneros e estilos foram criados por músicos brancos,
sendo somente esses músicos reconhecidos dentro da indústria fonográfica.
Levando em consideração a estigmatização do negro na sociedade, a exclusão
e marginalização, atos discriminatórios erroneamente interpretados como resultado
do despreparo do sujeito negro; o isolamento econômico, social e cultural do negro é
uma indiscutível consequência da discriminação racial.
Por isso era inadmissível que o negro pudesse ser culturalmente igual ao
branco. Era inadmissível dentro da indústria fonográfica vigente que produtos culturais
derivados da matriz africana ganhassem o protagonismo com a comunicação visual
focando na figura do indivíduo negro.
Começou então um processo de apropriação de signos culturais negros por
parte da indústria fonográfica, em sua maioria caucasiana, em prol do lucro. Foi
rapidamente entendido por ela que a cultura negra era popular, mas o negro não era.
O racismo vigente na sociedade projetou-se na indústria cultural, mais
especificamente na fonográfica, começando então um processo de exclusão do negro
em sua própria cultura ou em produtos originados dela. Iniciando, então, o
embranquecimento da música negra.
Neste estudo pretende-se fazer um rápido histórico mundial da discriminação
racial na indústria fonográfica, passando pelo Blues, falando no nascimento do mesmo
nas plantações de algodão onde os negros trabalhavam, e toda a importância do ritmo
como forma de resistência a segregação racial no EUA; até suas consequências nos
dias atuais, falando sobre a discriminação na premiação mais importante dessa
indústria, o Grammy.
Ainda, pretende-se fazer um rápido histórico deste contexto dentro da indústria
fonográfica brasileira, desde o samba e sua criminalização pós-abolição, falando
sobre o processo de afirmação do ritmo consagrado nas ruas da Lapa, no Rio de
Janeiro, e o primeiro negro brasileiro a conseguir um contrato com uma gravadora,
Eduardo das Neves; até surgimento do o funk carioca nos bailes funk do movimento
Black Rio e a tentativa de criminalização do funk contemporâneo pelo estado.

Histórico Mundial: Do Blues ao racismo do Grammy.


Com origem nos cantos religiosos (spirtuals) africanos, onde a tradição é
passada de pai para filho, o blues nasceu com negros americanos, descendentes de
escravos africanos, no final do século XIX nas plantações de algodão do país. Tendo
desta forma se transformado na primeira e principal expressão cultural
especificamente negro-americana, carregando consigo toda a estigmatização racista
direcionada aos negros americanos até meado dos anos 60.
A história do Blues caminha junto o movimento dos direitos civis dos negros
nos EUA e a discriminação que o ritmo sofreu diretamente ligada com a manutenção
dos privilégios conquistados pelos brancos através da escravidão e sobre os negros,
que ainda sofriam as consequências desse período histórico. Com sua primeira
gravação sonora datada em 1930, os registros do nascimento do ritmo são
especialmente raros, já que por ter nascido de uma antiga tradição oral e desafiar as
regras de harmonia solfejo da música clássica ocidental, o Blues desfiou durante um
longo tempo o costume da escrita musical.
O papel sociológico exercido pelo blues na construção do sujeito social negro
nos estados Unidos da América é inegável, contudo, somente através de um estudo
etnomusicológico é possível compreender e garantir definitivamente o lugar do Blues
na sociedade americana. É necessário afirmar do ponto de vista musicológico,
comercial, e para fundamentar esse estudo sobre o embranquecimento da música
negra; que o Blues foi uma das principais fontes de todos os gêneros musicais
americanos.
O principais ritmos bem sucedidos comercialmente da indústria fonográfica
americana, como o jazz; soul; disco; rock'n roll; uma boa parte da música pop; da
corrente folk urbana os anos 60; e mesmo, de modo significativo, da música country
em todas as suas derivadas - western swing, bluegrass, rockabilly; tiveram sua origem
no blues e sofreram um processo de embranquecimento, e de apropriação,
impulsionado pela indústria fonográfica da época.
Existem diversos exemplos expressivos da apropriação da cultura negra, em
especial do Blues, pela grande indústria fonográfica, afim de lucrar em cima dos signos
da cultura e também excluir o negro do protagonismo em sua própria cultura. A
disseminação do Chicago Blues é um ótimo exemplo, pois o gênero que foi uma
evolução do blues tradicional, com baixo, guitarra elétrica e algumas vezes saxofone,
fez um grande sucesso comercial.
Com base nos estudos de branqueamento de Maria Aparecida Silva Bento, é
possível identificar que a estigmatização da cultura negra como inferior, a depreciação
e o medo gerado pelo protagonismo do negro fizeram a indústria fonográfica entender
que a cultura negra era rentável, mas o indivíduo negro não.
Disfarçado como inspiração pouco a pouco o blues foi mudando de
protagonismo e desencadeando a substituição do negro por indivíduos negros na
comunicação visual desse gênero. Os grandes sucessos do Blues foram regravados
por cantores e bandas brancas, como por exemplo Rolling Stones, Eric Clapton e
outros, incluindo Elvis Presley erroneamente coroado “Rei do Rock” pela mídia
especializada quando suas músicas eram claramente apropriações das músicas de
Chuck Berry. Este tendo uma de suas músicas “Memphis Tennessee” consideradas
um dos maiores clássicos do Rock, mas que somente alcançou tal prestígio após ser
regravada por Johnny Rivers.
Ainda base os estudos de Maria Aparecida, ao refletir e discordar sobre a não
abordagem do papel do branco na discriminação racial no trabalho de Florestan
Fernandes, todas as consequências da discriminação racial entre elas o isolamento
cultural foi interpretado como despreparo e não como medo ou discriminação.
Tal pensamento perpetua até hoje entre estudiosos e entre o mercado
fonográfico. O mais recente caso foi a polêmica da discriminação racial no Grammy,
a maior premiação da indústria fonográfica americana. Em 2017 o álbum “Lemonade”
de Beyoncé, perdeu para o “25” de Adele, apesar de ter quebrado diversos recordes
fonográficos, assim como álbuns anteriores da cantora que também perderam na
mesma categoria em anos anteriores. A cantora britânica fez questão de elogiar
publicamente sua “concorrente” na categoria enquanto recebia o prêmio e reconhecer
a importância da representatividade que o álbum trazia consigo.
Apesar da declaração negando o racismo dentro da premiação, em 2017
completaram-se 9 anos que um negro não ganhava a premiação de álbum do Ano. O
último tinha sido Herbie Hancock, com “River: The Joni Letters”, em 2008. Tratando-
se do gênero rap a discriminação fica mais evidente ainda: Os dois últimos álbuns de
Rap a conseguirem o prêmio de Álbum do Ano foram o belíssimo “The Miseducation
of Lauryn Hill”, em 1999 (sendo a última mulher negra a conseguir esse feito) e o
incrível “Speakerboxxx/The Love Below”, do Outkast, em 2004.
Em 2016 algo similar já havia acontecido, Kendrick Lamar era o grande favorito
do Grammy Awards 2016, com 11 indicações, inclusive a Álbum do ano com "Pimp a
butterfly". O álbum de Kendrick foi aclamado pela crítica e era o favorito a levar o
prêmio, porém, Taylor Swift venceu o rapper e o disco com “1989”. Outros artistas de
grande reconhecimento no mercado fonográfico também já foram esnobados pelo
Grammy, como Michael Jackson, Nina Simone, Prince, Jimmy Hendrix e Bob Marley,
que nunca ganhou um Grammy.

Histórico Brasileiro: Do samba ao Funk.


Assim como nos Estados Unidos, a música negra teve grande influência e
contribuição na construção da sociedade brasileira e na identidade do negro brasileiro.
E de acordo com a Historiadora Martha Abreu (2015), apesar de todas as politicas de
branqueamento da população e algumas teorias sobre a inferioridade negra, era
impossível para os estudiosos negar a origem negra da música popular brasileira que
estava em formação.
Ao fazer um recorte para o gênero do samba no pós-abolição, é impossível não
falar do Rio de Janeiro. O período da escravidão marcou a cidade com seu legado
cultural, com rodas de samba, jongo, caxambu e o partido-alto. Após o período
escravagista, as canções assumiram versões mais modernas, passando a serem
conhecidas e divulgadas como ‘música negra’ em suas diversas denominações
regionais e nacionais.
Contudo, de acordo com Maria Aparecida Bento (2002), que faz um estudo
mais aprofundado do processo de branqueamento e da branquitude no Brasil, a elite
branca brasileira estava com medo da massa de negros livres que agora viviam de
forma miserável graças as consequências dos quatro séculos de escravidão.
O mesmo processo de estigmatização do negro na sociedade, exclusão e
marginalização que ocorreu nos Estudos Unidos da América, ocorreu no Brasil. Assim
como o isolamento econômico, social e cultural do negro. Para que o samba fosse
reconhecido como um gênero musical expoente da música brasileira houve muita luta
e ação dos músicos negros. O período pós-abolição da escravidão no Brasil foi
marcado por leis que visavam outras formas de dominação da população negra,
através de prisões arbitrárias e de perseguições às manifestações culturais surgidas
nas comunidades negras.
Um nome de extrema importância para o estudo da história do protagonismo
de artistas negros no campo musical foi o de Eduardo das Neves, que apresentava
em suas canções assuntos relativos às representações dos negros no período pós-
abolição, com temáticas ligadas ao passado escravista, à conquista da liberdade e à
construção de uma identidade negra. Segundo Abreu (2015) “Ele se autointitulava
‘Crioulo Dudu’ e era orgulhoso de sua cor e de ser cantor de lundu.”, tendo sido o
primeiro artista negro a assinar um contrato com uma representante de uma grande
gravadora multinacional, a Casa Edison, a primeira gravadora do Brasil.
Ainda, de acordo com Abreu (2015), mesmo com todo o sucesso da música
negra, o racismo nunca deixou de ser o grande obstáculo no caminho desses artistas,
o protagonismo dos mesmos foi roubado, já que dificilmente eles estariam nos palcos,
salvo de forma estereotipadas como a comicidade, ingenuidade e sensualidade
exagerada.
O embranquecimento do gênero com origem africana acontece até os dias de
hoje, após a sua apropriação por diversos artistas brancos, estes facilmente
consagrados pela mídia especializada brasileira por sua grande expressão artística.
Ainda há uma tentativa de vitimização por parte de artistas brancos ao enfrentarem
dificuldades em serem aceitos pelo público e críticos negros como artistas do gênero.
Temos como exemplo o caso da cantora Mallu Magalhães, que em 2017 num
programa de grande audiência na maior emissora de televisão aberta do país dedicou
uma canção “pra quem é preconceituoso e fala que branco não pode tocar samba”; A
cantora e compositora Grace Carvalho, participante de um programa musical na
mesma emissora, ao lançar uma música intitulada “Samba Branco” onde diz que o
samba agora é branco e pede para que não deixem a negra sambar pois ela colocaria
a narradora da canção no chinelo; E o cantor Ferrugem com declarações sobre
racismo reverso e a dificuldade de ser aceito tocando o gênero sendo um homem
branco.
O mesmo acontece no Rap Nacional, gênero que surgiu na Jamaica nos anos
60 e teve destaque no Brasil no ano de 1986. O mesmo surgiu precisamente na
periferia da maior cidade do nosso país, a cidade de São Paulo. Muitas foram às
dificuldades encontradas pelas pessoas que praticavam este estilo musical, já que era
taxado como um tipo de música violenta e principalmente de periferia, o que era já
uma discriminação racial e cultura por si só.
O estilo do Rap tem como principal característica, ser forte, onde mostra em
forma de música os protestos de todas as pessoas mais necessitadas do nosso país.
É um estilo musical que é usado para fazer uma forma sadia de protesto no Brasil,
tendo como principais nomes artistas como Racionais, Planet Hemp e outros. Contudo
sob um processo de embranquecimento e de apropriação do protagonismo do
indivíduo negro, declarações da banda Haikass e as letras de suas músicas como
“Não sou de favela, sou branco e nasci disposto”, “Aqui se corta o Axé”, “Não vivo de
CLT”, “To cansado de ver ou ouvir iludidão falar sobre minoria”, indo na contramão do
histórico de resistência social do gênero musical.
O processo de marginalização ocorrido com o gênero musical do samba
acontece com o funk, gênero musical também nascido nas ruas do subúrbio do Rio
de Janeiro e expressão cultural da população periférica do estado. Documentos sobre
a ditadura brasileira apontam o começo do funk em 1970 junto com o movimento Black
Rio em baile cariocas, este consolidado como o símbolo expoente da cultura negra
brasileira, onde o gênero dava seus primeiros passos baseado em ritmos musicais
como o soul e o Miami Bass. Os representantes mais significativos desse período da
história do funk são a Furacão 2000, equipe responsável por produzir a grande maioria
dos bailes funks do Rio de Janeiro; e DJ Malboro, responsável por introduzir a bateria
eletrônica no ritmo, começando assim o processo que levou o gênero musical a se
tornar o que conhecemos hoje.
Sendo um gênero musical criado na periferia e para a periferia, o funk passou
por um processo de embranquecimento significativo ao ponto de criar uma vertente
dentro do próprio gênero, o funk ostentação. Com letras que fazem referência e
exaltando o consumismo desenfreado, o subgênero foi criado nos subúrbios de São
Paulo e trocam a mensagem periférica e o protagonismo negro por mensagens sobre
carros e jóias, além de protagonizado e produzido em sua maioria por artistas brancos.

Considerações finais
O funk como expressão cultural da periferia e do povo negro brasileiro, sofre
imenso preconceito e marginalização, assim como todos os gêneros musicais
originados da cultura negra antes dele. É visível o processo de embranquecimento
sofrido por esses gêneros musicais assim que os mesmos são entendidos como
produto pela indústria fonográfica.
Afim de exemplificar a discriminação presente na indústria fonográfica e na
sociedade brasileira em relação os gêneros musicais negros, é importante citar a
tentativa de criminalização do funk. No ano de 2017 uma sugestão de projeto de lei
criminalizando o gênero musical recebeu 200 mil assinaturas, com a justificativa de
que o gênero musical devia ser classificado como crime de saúde publica à criança
ao adolescente e à família. A sugestão não foi aprovada poisa mesma vai contra a
Constituição Brasileira de 88.
As ações policias do governo do estado do Rio de Janeiro afim de fechar o
Baile da Gaiola, baile funk do bairro da Penha, e a prisão do principal representante
do funk carioca e do Baile da Gaiola, o Renan da Penha, também são exemplos de
atos discriminatórios em relação ao gênero periférico.
Ainda recentemente, o pai de Beyoncé que foi seu primeiro empresário afirmou
a imprensa que sua filha não teria atingido o sucesso que conseguiu se seu tom de
pele fosse mais escuro, entendendo a passibilidade de seu tom de pele claro dentro
da indústria fonográfica e na aceitação da sociedade à sua imagem.
Apesar dos estudos, apontamentos e das ações afirmativas étnico-raciais
existentes hoje, a sociedade ainda tem um grande caminho para percorrer em relação
a igualdade racial. A representatividade negra na mídia ainda é pequena, os sujeitos
negros ainda são deixados a margem da sociedade através do racismo estrutural e a
indústria fonográfica ainda nos segrega até quando precisa reconhecer nossa
excelência.
Referências Bibliográficas
ABREU, Martha. O legado das canções escravas nos Estados Unidos e no
Brasil: diálogos musicais no pós-abolição. Revista Brasileira de História, v. 35, n. 69,
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Brasil. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no
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RAP no Brasil, você sabe como começou? Disponível em:
<https://www.revistarap.com.br/rap-no-brasil/>. Acesso em: 14 jun. 2019.
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The Recording Academy / GRAMMYs. Adele Wins Album of the Year |
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