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Imagine-se num deserto ou numa floresta, junto a uma tribo, no remoto ano 10 mil

a.C. Imagine sendo esse o exato momento em que você ganha consciência de sua
existência. É só você e o mundo. Você é um personagem de teatro colocado numa peça
sem que lhe dessem o roteiro.

Ele [o homem] é um ator, desempenhando um papel no drama do ser e, pelo simples


fato de sua existência, comprometido a desempenhá-lo sem saber qual ele é. A
própria circunstância em que o homem se vê acidentalmente na condição de não ter
plena certeza de qual é a peça e de como deve se conduzir para não estraga-la já é
desconcertante;

Você não sabe o que fazer, mas algo o impele para que busque uma ordem, um sentido
a tudo isso. Há, arrisco, uma vontade de sentido ― termo emprestado de Viktor
Frankl ― na própria essência humana. Isto dá-se pois há uma coisa inerente a essa
situação embaraçosa: é a própria percepção da existência e de que ela transcorre
dentro de algo do qual não podemos escapar ― não dá para sair do teatro com o fito
de ler o cartaz, a sinopse da peça ou:

Não há nenhuma posição fora da existência a partir da qual seu significado possa
ser visto e um curso de ação possa ser traçado de acordo com um plano, nem há uma
ilha bem-aventurada para a qual o homem possa se retirar a fim de recapturar seu
eu.

Disso decorre que a participação no ser ― no real ― e a existência coincidem. A


participação no ser, a conquista de um papel nesse teatro obscuro, é a própria
existência. E existir não é facultativo. O peso da existência é inexorável.

Temos a seguinte tensão: o homem sabe que existe, mas não sabe por quê e nem muito
bem no que existe. Resta, então, observar agudamente o cenário e nele colher alguma
pista que ajude a desvendar esse mistério agoniante que é a existência.

É esse o assunto de Ordem e História. Voegelin investiga como no desenrolar da


história os seres humanos foram se saindo nessa tarefa de compreender qual é, no
fim das contas, seu papel na existência e como proceder como um dos quatro membros
da comunidade primordial do ser. As fontes sobre as quais ele se debruçará para
compreender o fenômeno são os rastros históricos dessa busca pela ordem e esses
rastros são aquilo que o autor chama de símbolos de ordem. Esses símbolos, ou
linguagem simbólica, tem o papel de revelar certos aspectos da realidade que não
podem ser ditos pela linguagem comum convencionada produto da relação mais
corriqueira entre o homem como sujeito cognoscente e o mundo material como objeto
de conhecimento. Uma vez transcorrido esse processo de simbolização, os seres
humanos daquela comunidade estarão em posse de uma nota mais sútil para discernir a
estrutura da realidade e, por conseguinte, uma bússola mais calibrada para nela se
orientar. A ordem da história ― a dinâmica que torna a história humana discernível
― é a história pela busca da ordem. Esses símbolos deixados são os documentos que
tornam possível que se conte a uma história humana ou, como fala Voegelin, seu
drama existencial ao longo do tempo.

Voegelin distingue três características típicas nesse processo de simbolização:

1 ― Predominância da experiência de participação:

O homem primitivo, o homo religosus de que fala Mircea Eliade, vive num mundo
mágico. Tudo para ele pode ter algum sentido, tudo pode redundar numa explicação
para além daquela realidade material circundante. O homem moderno, por sua vez, tem
signos linguísticos para explicar quase tudo que vê; tem a ciência ditando o que
pode e o que não pode ser considerado real ainda que isso não lhe caiba e tem uma
série de ideologias turvando sua percepção direta da realidade. O homem primitivo,
diversamente gozava de uma participação mais intensa no todo do real. A relação nua
e crua do homem com seu meio, ali, no seu ambiente natural medonhamente hostil,
tendo que enfrentar feras de dia e as trevas da noite, isso fazia certamente com
que a experiência de participação no ser fosse sentida com uma intensidade brutal
dificilmente sentida pelo homem médio das metrópoles contemporâneas. Por fim, para
usar o termo cunhado por Eliade, podemos dizer que o homem antigo concebia o mundo
como uma grande hierofania, uma permanente manifestação do sagrado. Ele escreve em
História das Crenças e das Ideias Religiosas:

É difícil imaginar de que modo o espírito humano poderia funcionar sem a convicção
de que existe no mundo alguma coisa de irredutivelmente real; e é impossível
imaginar como a consciência poderia aparecer sem conferir significação aos impulsos
e ás experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo e o que
é desprovido dessas qualidades, isto é, o fluxo caótico e perigoso das coisas, seus
aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e vazios de sentido.

Em suma, o sagrado é um elemento na estrutura da consciência, e não uma fase na


história da consciência. Nos mais arcaicos níveis de cultura, viver como ser humano
é em si um ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um
valor sacramental.

Coaduna com tal opinião o historiador e filósofo galês Christopher Dawson. Diz ele
em Progresso e Religião:

No caso da cultura primitiva, acima de tudo, nenhum dualismo [separação de


realidade material e espiritual; corpo e espírito] existiu. Toda a vida da
sociedade tinha orientação religiosa, e religião era o centro vital do organismo
social. Isso não ocorre, pois, o homem primitivo seja essencialmente mais religioso
que o homem moderno ou menos interessado no lado material da vida, mas porque os
aspectos materiais e espirituais de sua cultura estão inextrincavelmente
entrelaçados, já que o fator religioso intervém em todos os momentos de sua
existência. Mesmo a mais simples de suas necessidades materiais só pode ser
satisfeita pelo favor e pela cooperação de forças sobrenaturais. […] Ele volta-se à
religião não apenas para obter bens espirituais, como conhecimento ou bravura, mas
também para ter êxito na caça para ter saúde e fecundidade, para a chuva e para os
frutos da terra.

O homem dessas sociedades mais remotas, portanto, vive numa espécie de


coparticipação mais profunda com os outros membros da comunidade do ser.

Diz Voegelin:

Seja o homem o que for, ele sabe que é uma parte do ser. A grande corrente do ser,
em que ele flui e flui nele, é a mesma corrente a que pertence tudo aquilo que
flutua até a sua perspectiva. A comunidade do ser é vivenciada com tal intimidade
que a consubstancialidade dos parceiros se sobrepõe à separação de substâncias.
Movemo-nos em uma comunidade encantada em que tudo que vem ao nosso encontro tem
força, vontade e sentimentos, em que animais e plantas poder ser homens e deuses,
em que homens podem ser divinos e deuses são reis, em que o diáfano céu da manhã é
o falcão Hórus e o Sol e a Lua são seus olhos, em que a unicidade subterrânea do
ser é um condutor de correntes mágicas de forças boas ou más que alcançar]ao
subterraneamente o parceiro superficialmente inalcançável, em que as coisas são as
mesmas e não são as mesmas, e podem se transformar uma nas outras.

Temos então que o homem antigo não está sozinho na peça. Há outros componentes e
estes têm uma dinâmica própria, independente. Lembre-se que o teatro é o planeta
Terra, dentro da via Láctea, nesse mesmíssimo universo. Há toda a natureza
funcionando exatamente como hoje, malgrado sem a astronomia explicando tudo no
linguajar intrincado que hoje lhe é peculiar, sem biólogos, agrônomos, físicos etc.
Sequer existem os teólogos. A experiência psicológica é diferente. O mundo é um
lugar fantástico, sagrado. Tudo o que existe pode nos ensinar um pouco mais sobre a
ordem do ser, tudo pode tornar-se um símbolo de ordem.

2 ― Preocupação com a duração e a passagem:

Essa segunda característica ajuda a explicar a ideia da comunidade do ser. Voegelin


inicia desse modo a Introdução de Ordem e História:

Deus e homem, mundo e sociedade formam uma comunidade primordial do ser.

Desta comunidade três membros são facilmente apreendidos desde a experiência


primeira de participação. O homem sabe que existe e que existe no mundo (cosmos)
com outras pessoas (sociedade) – sabe, ainda que não consiga explicar o modo de
existência de cada um desses parceiros. Pode-se questionar se o quarto membro,
Deus, não está incluso aí unicamente por que quis o autor dizer que ele existe. O
cético, o agnóstico ou o ateísta protestariam, certamente. Provavelmente deixariam
de ler a obra ali mesmo acusando o alemão de ser um fundamentalista. No entanto, o
desenrolar da obra justifica a afirmativa. Mas voltemos ao tópico de opostos
duração-passagem.

A ideia de duração e passagem é uma orientação das mais essenciais pois dá a noção,
ainda que falseada à primeira vista, de uma hierarquia nessa comunidade do ser. O
homem compreende que a vida de seus semelhantes é passageira, logo, a sua também é.
A experiência da morte, não obstante a comum esperança de um retorno, é qualquer
coisa de arrebatadora. Todo mundo está mais ou menos consciente de que é frágil
ante a avalanche das forças naturais e que a vida está sempre por um fio.
Entretanto, apesar da morte de um e de outro dos seus, o homem percebe que sua
sociedade segue existindo. Há o nascimento compensando, em termos de existência
comunitária, a perda anterior. Compreende-se, então, que o homem passa, mas a
sociedade permanece. E se a sociedade fosse destruída? E se ocorresse um dilúvio
que acabasse de um só golpe com todos? Quais seriam as consequências ontológicas? O
mundo, ainda assim, continuaria aí. A existência do cosmos prescinde da existência
do homem e das sociedades humanas. O mundo físico do espaço-tempo-matéria é,
portanto, o mais permanente dos membros.

Um exemplo muito interessante que Voegelin nos dá sobre esse tipo de simbolização
da hierarquia do ser são os primeiros capítulos de Gênesis:

Dos três relatos ― história da criação, pré-história do grande dilúvio e história


da Torre de Babel ―, o homem surge como criatura à semelhança de Deus,
especificamente elevado acima de todas as outras criaturas pelo seu conhecimento
de, e liberdade para, o bem e o mal. Ele tem dificuldade para encontrar o
equilíbrio certo de sua existência e é irresistivelmente inclinado a buscar a
divindade da qual é apenas uma imagem. É lançado de volta a um entendimento de sua
condição pela consciência da morte, de sua temporalidade humana em comparação com a
permanência divina; conscientiza-se da precariedade e da fraqueza de sua existência
por intermédio de catástrofes naturais incontroláveis; e a diversificação da
humanidade em povos ensina-lhe que não há “Um Mundo” de humanidade que rivaliza com
o céu, mas apenas um ajuste humilde de cada sociedade, no espaço e tempo que lhe é
atribuído, à majestade da ordem cósmica.

Mas Gênesis é um caso particular e já constitui uma novidade na medida em que


naquela altura já se descobriu o outro membro da comunidade ontológica e colocaram-
no acima do próprio cosmos na hierarquia do ser. O cosmos é nada mais que uma
criatura de um Deus transcendente, supracósmico.
Se tomarmos isso como sendo mera subjetividade já não haver uma prova – no sentido
positivista-empirista – cientificamente atestada da existência desse membro,
teremos que, petulantemente, excluir como inválidas, por exemplo, as experiências
israelita, cristã e islâmica da história atribuindo a elas uma espécie de
subjetivismo delirante coletivo. O que Voegelin está investigando é o processo do
homem rumo a uma compreensão da existência e o modo mais adequado de sintonizar-se
no ser. Com ou sem as objeções materialistas, o povo de Israel viveu concretamente
baseando sua existência numa relação direta com o Deus transcendente e isso é um
fato objetivo. A partir do momento em que o primeiro homem captou a existência
desse membro, um novo mecanismo psicológico se abriu, as perspectivas da existência
mudaram e bilhões de pessoas desde então percebem a realidade tendo esse membro
divino-transcendente como fundamento. Não há como excluí-lo de uma análise que tem
as finalidades a que Voegelin se propõe.

Fica posto, então, que temos uma comunidade do ser. O homem na sua busca por ordem
descobriu a hierarquia que subjaz a essa comunidade. Até um certo período
histórico, nas ditas civilizações cosmológicas, só eram percebidos três desses
quatro parceiros – ou melhor, não havia as condições experienciais para distinguir
Deus e o cosmos, daí que só se concebiam divindades intracósmicas ou se atribuía
divindade a objetos do mundo espaço-físico. O cosmos era então o ente máximo e,
portanto, a referência para a adequada ordem social e para melhor sintonização do
homem individual no ser como um todo. A revelação no Monte Sinai rompeu com esse
paradigma e mostrou que há um quarto membro na comunidade do ser e que, destarte,
era a partir dele que deveríamos buscar a ordem na sociedade e na alma.

3 ― Criação de símbolos:

Por fim, Voegelin indica como a terceira característica típica desse processo de
simbolização a criação propriamente dita de símbolos que desturvam realidades até
então não apreendidas. São analogias das percepções reais mais sutis que as tornam
moeda corrente naquele meio social que engendrou o símbolo. De certo modo, toda
nomeação ou processo de criação de um signo torna os entes do mundo real senão mais
inteligíveis – na medida em que a inteligência capta o ser das coisas ainda que não
as possamos transpor num discurso linguístico – ao menos pensáveis. Doravante pode-
se especular por meio de um raciocínio articulado sobre aquilo. Saímos da linguagem
animalesca dos sinais e gestos, para uma linguagem nominal, que utiliza nomes para
comunicar o ente a que se refere.

No nível da linguagem simbólica se dá o mesmo ainda que não se trate de uma


linguagem significativa como a do escopo tipo saussuriano, dado o fato de que não
seja obra da mera arbitrariedade humana – uma linguagem convencionada, um signo que
aceitamos como adequado para dizer certa coisa – mas, de outro modo, do resultado
de um esforço de traduzir em traços discursivos passíveis de comunicar aos outros
homens uma realidade que só se deixa conhecer, nos seus aspectos estruturais mais
profundos, de maneira simbólica.

Para Voegelin, olhando à história do homem na sua busca de sintonização no ser,


podemos notar um processo dinâmico de compactação e diferenciação desses símbolos.
As comunidades humanas analisadas em Ordem e História apresentavam em determinado
momento analisado através dos seus documentos autoexpressivos blocos compactos do
cognoscível. Ou seja: no seu processo interno rumo a uma compreensão do ser,
chegaram até um certo limite e isso, obviamente, só pode ser percebido por um
observador distante no tempo. Hoje um estudioso tem acesso aos elementos da alta
cultura das antigas civilizações mesopotâmica ou egípcia. Analisando seus escritos,
os poemas míticos, os cultos religiosos, o vocabulário político, sua arquitetura
etc., pode-se descobrir até que ponto puderam avançar em direção a essa compreensão
mais excelente acerca da realidade do ser. Ademais, a análise retroativa desse
bloco compacto de símbolos pode mostrar, de um período a outro ou de um povo a
outro, se ouve alguma diferenciação. Diferenciação indica o processo pelo qual um
bloco compacto ou suas partes são rearticuladas de modo a revelarem um algo a mais
que até ali mantinha-se ocultado. Nas palavras de Voegelin:

Essas tentativas têm uma história na medida em que a análise reflexiva, respondendo
à pressão da experiência, gerará símbolos cada vez mais adequado à sua tarefa.
Blocos compactos do cognoscível serão diferenciados em suas partes componentes, e o
próprio cognoscível será gradualmente distinguido do essencialmente incognoscível.
Assim, a história da simbolização é uma progressão de experiência de símbolos
compactos para diferenciados.

Há, por conseguinte, um legado comum humano nessa busca pela ordem no ser. Voegelin
diria:

Sua luta pela verdade da ordem é a própria substância da história; e conforme os


progressos rumo à verdade são alcançados pelas sociedades à medida que elas
sucedem-se umas às outras no tempo, a sociedade singular transcende a si mesma e se
torna um partícipe no empenho comum da humanidade.

Isto,

Pois a natureza humana é constante na história da humanidade, a despeito de seu


desdobramento, da ordem compacta à ordem diferenciada: os estágios discerníveis da
verdade progressiva da existência não são causados por “mudanças na natureza do
homem” que romperiam a unidade da humanidade e a dissolveriam numa série de
espécies diferentes.

Em suma, quer dizer que tanto nós quanto os paleantropídeos de que fala Mircea
Eliade somos partes de um empreendimento comum. A despeito das tradições culturais
particulares e do weltanschauung, da cosmovisão que ela produz, tudo isso serve, no
fim, como capital de experiências humanas para que possamos alcançar a perseguida
ordem existencial.

Para concluir a ideia desse terceiro tópico, acrescenta-se que Voegelin distingue,
como assinalou-se brevemente acima, duas formas básicas de simbolização que
caracterizam grandes períodos da história, quais sejam: a) sociedade como microsmo;
b) sociedade como macroantropo.

A sociedade como microcosmo é uma experiência comum aos povos das primeiras grandes
civilizações. Aventou-se acima que até um dado momento da história o cume na
hierarquia do ser era o cosmos. Nada mais natural. Diria Mircea Eliade que a
simples contemplação da abóboda celeste é suficiente para desencadear uma
experiência religiosa. A grandeza do céu, as revoluções que periodicamente
assistia-se desenrolando nele, o mistério que até hoje ele propõe, enfim, tudo ali
decerto sugeriria ao homem antigo a impressão de divindade e, por conseguinte,
deveria ser considerado o fator organizador, o modelo de ordem a ser copiado.
Diz Voegelin:

A primeira forma mencionada é a primeira também cronologicamente. A razão disso não


requer explicações muito elaboradas, pois a Terra e o céu são de modo tão notáveis
a ordem abrangente em que a existência humana deve se encaixar para sobreviver que
o parceiro avassaladoramente poderoso e visível da comunidade do ser sugere
inevitavelmente a sua ordem como modelo de toda a ordem, incluindo a do homem e da
sociedade. De qualquer maneira, as civilizações do antigo Oriente Próximo que serão
abordadas na parte 1 deste estudo simbolizaram a sociedade politicamente organizada
como um análogo cósmico, como um cosmion, fazendo que os ritmos vegetativos e as
revoluções celestes funcionem como modelos para a ordem estrutural e procedural da
sociedade.
São as chamadas civilizações cosmológicas que se incluem nesse tipo de simbolização
da ordem. Entram na lista: a civilização Mesopotâmica ― dos sumérios aos
babilônicos ―; a civilização Aquemênida ou Persa; a civilização Hitita-Cananéia; a
civilização Egípcia; a civilização Chinesa; a civilização Minoico-Cretense; e
podemos incluir na lista a civilização Mesoamericana ― maias, incas e astecas. Em
boa medida, faz jus apontar que, mesmo em sociedades mais arcaicas, em tribos
antiguíssimas de organização mais rudimentar, essa forma de interpretação da
realidade era a norma.

Em síntese, a sociedade é um microcosmo, um cosmion, quando o parceiro principal da


ordem do ser é o mundo físico e, portanto, quando crê-se que é dele que emana o
sentido da estrutura da realidade. Os exemplos de símbolos desse tipo abundam,
pois, grande parte da história da humanidade foi constituída de povos com essa
percepção das coisas.

Pode-se dizer que esse é o modo mais comum, alterado somente pela intervenção
direta do Deus transcendente que se fez notar pelos meios que diremos a seguir.

A sociedade como um macroantroporepresenta uma mudança formidável na ordem das


coisas. A ordem não emana mais do parceiro a que chamamos mundo, mas parte, agora,
da alma do homem que é o canal de comunicação entre o Deus transcendente e a
sociedade. O homem moral agora é o modelo de ordem. E é-o, pois recebe diretamente
de Deus esse modelo.
O segundo símbolo ou forma ― a sociedade como um macroantropo ― tende a aparecer
quando os impérios cosmologicamente simbolizados desabam e, em seu desastre,
arrastam a confiança na ordem cósmica. A sociedade, apesar de sua integração ritual
na ordem cósmica, ruiu; se o cosmos não é a fonte da ordem duradoura na existência
humana, onde pode ser encontrada a fonte da ordem? Nessa conjuntura, a simbolização
tende a se deslocar para o que é mais durador do que o mundo visivelmente existente
― ou seja, para o ser invisivelmente existente além de todo o ser na existência
tangível. Esse ser divino invisível, que transcende todo o ser no mundo e o próprio
mundo, só pode ser vivenciado como um movimento na alma do homem, e, assim, a alma,
quando ordenada pela sintonia com o deus invisível, torna-se o modelo de ordem que
fornecerá símbolos para ordenar a sociedade analogicamente à sua imagem.

Durante o estudo Voegelin dá os detalhes de como essa mudança pôde ocorrer. Como um
resumo, vale dizer que ele denomina esse fenômeno como salto no ser. Esse salto,
com clareza definitiva, dando uma compreensão evidente sobre um Deus que transcende
o estrato físico da realidade, teria ocorrido fundamentalmente em dois lugares: em
Israel quando Deus se revela e conversa diretamente com Moisés e na Grécia, com o
advento da filosofia. Não obstante, como assevera Toynbee para as civilizações em
geral e Vernant no caso específico da Grécia ― mas sugerindo uma espécie de regra ―
essa mudança na concepção humana deu-se, conquanto de maneira parcial, em outros
povos num mesmo recorte histórico-temporal que se inicia mais ou menos no IX a.C.

No Egito, o colapso social entre o Antigo e o Médio Império viu a ascensão da


religiosidade de Osíris. Na desintegração feudal da China apareceu as escolas
filosóficas, especialmente as de Lao-Tsé e Confúcio. O período de guerra antes da
fundação do Império Mauria ― na Índia ― foi marcado pelo surgimento do Buda e do
jainismo. Quando o mundo da pólis helênica se desintegrou, os filósofos apareceram,
e os problemas posteriores do mundo helenístico foram marcados pela ascensão do
cristianismo.

Embora esses sejam saltos parciais rumo a compreensão do ser ― compreensão cujo o
auge, segundo Voegelin, é a religião judaico-cristã e a filosofia grega de Platão e
Aristóteles ―, todos essas escolas de pensamento trazem a novidade do indivíduo
moralmente guiado como sendo o modelo para a ordem social em detrimento da ordem
cósmica. É escusado dizer que todos os que se lançaram em tal intento foram tidos
como malucos e perturbadores da ordem social. A percepção desse Deus abscôndito,
transcendente, escorregadio, não é disponível a todos. Imagine você
confortavelmente podendo ver, com os olhos da cara, todos os dias, a divindade no
céu e, de repente, lhe dizem que na verdade aquilo não é deus coisa nenhuma e que
na verdade o Deus não se pode ver senão nos recônditos mais profundos da alma só
acessíveis com dificílimas práticas de piedade ascética. É uma troca
psicologicamente arriscada. A própria história do Povo Escolhido é travejada por
essa tensão entre a tentação da ordem cosmológica e a existência sob o Deus
transcendente.

Ademais, o homem passa a ser mais responsável pela busca de ordem, uma vez em que o
princípio ordenador só pode ser acessado na sua própria alma. Não basta agora estar
incluso no cosmos social, como acreditavam os egípcios, para receber a maat, a
graça. Com a novidade do salto no ser, a responsabilidade moral é o foco principal
do homem religioso. É preciso ser santo e é necessário amar a verdade a ponto de
busca-la a qualquer custo ― ainda que a verdade divina seja diferente da verdade
compreendida no cosmion da sociedade. É Moisés contra o faraó. É Sócrates contra a
pólis. É Cristo contra o Império.

Um outro ponto que Voegelin toca já nessa introdução, e que é de suma importância à
compreensão da obra, é a questão da: tolerância x intolerância na criação de
símbolos de ordem.

No início da trajetória humana rumo a uma melhor compreensão e sintonização no ser,


era comum a existência de símbolos que se contradiziam uns aos outros. Recuando até
uma época não explorada por Voegelin ― não obstante mantenha o mesmo esquema ―,
podemos ver em Eliade, tratando dos homens primitivos, os símbolos muitos comumente
encontrados: do omphalos, do axis mundi e da imago mundi. Omphalos é umbigo, o
centro do mundo; axis mundi é o canal de comunicação do mundo dos homens com o
mundo inferior e superior; imago mundi é a reprodução arquitetônica do cosmos. Na
simbologia política e religiosa antiga não chocava a coexistência simbólica de
dois, três ou uma dezena omphalos, por exemplo. China, Egito e Creta viam-se a si
mesmos como o centro do mundo. Seus imperadores, ambos crendo-se ser filhos do Sol,
defendiam que era a partir deles que emanava a graça dos deuses e que só quem
estivesse naquele cosmion a receberia. Estrangeiros viviam no caos. Mas acabava por
aí. Não havia uma real perturbação existencial. A convivência com vários centros do
mundo não suscitava um sério questionamento sobre a contradição lógica subjacente a
esse fenômeno. No máximo fazia-se rearranjos nas especulações cosmogônicas, mas a
estrutura se mantinha. Na mesopotâmia politeísta, à força das pressões históricas
das lutas imperiais, da sucessão dos centros religiosos etc. uma plêiade de
símbolos foi sendo criada. A cada revolução política havia uma readequação da
cosmogonia, seja para incluir ou excluir uma ou outra divindade do panteão oficial.
Ou ainda como ocorria no Egito no caso das sucessivas mudanças da sede do império
às quais sempre recebiam uma nova interpretação dentro dos mitos cosmogônicos
tradicionais.

A tolerância inicial ― na elaboração dos símbolos de ordem ― reflete a consciência


de que a ordem do ser pode ser representada analogicamente de mais de uma maneira.

Essa seria uma característica que se adiciona às outras três nesse processo de
formação de símbolos. Os homens estavam conscientes do aspecto meramente simbólico
daquilo que estavam criando e as incoerências com que se deparavam nesse processo
não era motivo de preocupação.

Entretanto, em algum momento essa tolerância se rompe e a atenção começa a se


voltar para a adequação ou inadequação dos símbolos criados. O ser, a quem eu busco
me sintonizar ― e essa é a busca fundamental de minha existência ―, é só um, mas,
não obstante, há uma pluralidade simbólica que, não pode ser encarado de outro modo
senão como um erro.
Voegelin, então, mostra-nos dois meios pelos quais os homens responderam a esse
desconforto. Essas tentativas denotam o limite dessa tolerância inicial. São elas:
o sumodeísmo político e a especulação teogônica. Ambos indicam passos em direção a
uma perspectiva monoteísta. O sumodeísmo político diz sobre a elaboração, típica
nas civilizações cosmológicas, de uma hierarquia dos deuses das cidades-estados
abrangidas pelo império ― como ocorre na Mesopotâmia sob o domínio babilônio e
também no Império Egípcio com a unificação do Alto e do Baixo Egito. Já a
especulação teogônica é a tentativa de readequar o mito cosmogônico para que se
inclua a ideia de que deus menos importantes derivam de um deus superior, sendo
este o criador supremo.

Porém, esses esforços iniciais são insuficientes. Algo mais profundo mudou. E mudou
na percepção mesma do homem quanto a verdade do ser. Por detrás do emaranhado de
símbolos engendrados por analogia com a realidade mundana, o parceiro longínquo
começa a fazer-se notar. E não dá para ignorá-lo, mas também não dá para simbolizá-
lo adequadamente. O homem começa a sentir sua participação no ser, tal como
estabelecida pelo bloco compacto das civilizações cosmológicas, defeituosa. A
sintonia não está boa. Então, nas palavras do Voegelin:

Não só os símbolos impróprios serão rejeitados, como o homem voltará as costas para
o mundo e a sociedade como fontes da analogia enganosa. Ele ― o homem ―
experimentará a periagogé platônica, uma inversão ou conversão no sentido da
verdadeira ordem.

O homem se voltará ao Deus transcendente como a fonte de ordem. É o salto no ser


mencionado acima.

Mas, e os outros dois parceiros, o mundo e a sociedade, até então deveras estimado?
Israel é o povo escolhido. Seus membros vivem agora numa sintonia com o parceiro
transcendente da comunidade. Mas Israel está no mundo e é uma sociedade. A
comunidade quaternária não se transmuta em comunidade binária pela nova descoberta.
Não é só Deus e homem. A estrutura do real é fixa independente dos eventos
paradigmáticos de diferenciação pneumática (revelação) ou noética (análise
filosófica).

O salto ascendente no ser não é um salto para fora da existência. A parceria


enfática com Deus não abole a parceria na comunidade do ser em geral, que inclui o
ser na existência mundana.

Estamos ainda no teatro, descobrimos quem é o diretor, Ele nos revelou o roteiro,
explicou como tudo começou e disse que mais dia menos dia a peça vai acabar para
todos. Não obstante, ele não abre a porta do teatro para que nos retiremos e
possamos ir prontamente à Sua casa regozijarmo-nos. Temos que continuar encenando
nesse mesmo teatro. Ele o criou para isso.

O que se fez para desatar esse nó da nova perspectiva de sintonização é a criação


de uma estrutura dualista da existência que faz como que nos sintonizemos de uma
forma com o parceiro transcendente e de outra com o parceiro imanente. Teremos,
doravante, que conviver com uma theologia supranaturalis e com uma theologia
civilis; com o Estado secular e com a Igreja; com a história profana e com a
história sacra.

Resumindo o ponto: a conversão, a periagogé – que é o momento que o homem do mito


da caverna descobre o mundo real atrás de si –, o voltar-se a Deus ou o salto no
ser, causam, de pronto, uma intolerância quanto os símbolos inadequados antigos.

Há uma luta profunda pela verdade. O povo que recebeu a revelação do Deus
transcendente não pode aceitar as divindades cananeias, o culto à Moloch. O faraó ―
ou o que ele quer simbolizar ― é visto como uma mentira existencial. Ou: o homem
que teve o vislumbre da dimensão metafísica por meio da contemplação do Bom, do
Justo e do Belo, não pode transigir com o relativismo do culto às divindades
baseadas em realidades físicas as quais ele vê como enganosas. Ou ainda: o homem
que sabe da vinda do Messias – da maior hierofania da história –, quando ouve dizer
ou quando ele mesmo presencia a Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição, não é
mais possível aceitar o culto ao Imperador.

Mas há, a despeito de tudo isso, a necessidade de sintonia no ser como um todo. Há
a existência e a participação. Temos que reavaliar essa intolerância à simbolização
imprópria, pois nutrimos amor ao ser e a verdade, e a verdade é que por mais alto
que saltemos em direção ao ser essas tensões do real não podem ser desfeitas. Elas
são as condições mesmas da existência daí que essa intolerância tenha que ser
acomodada em algum novo esquema simbólico.

Sobre esse problema Voegelin cita o exemplo de Platão. O filósofo, já idoso, teria
uma atitude de tolerância quanto aos símbolos equivocados, apesar de afirmar com
intensidade o princípio de que Deus é a medida de tudo e de que é a partir dele que
devemos buscar a fonte de ordem. Isto pois,

…há uma nova consciência de que um ataque à simbolização imprópria da ordem pode
destruir a própria ordem junto com a fé em suas analogias, de que é melhor ver a
verdade obscuramente do que não a ver de forma alguma, de que a sintonia imperfeita
à ordem do ser é preferível à desordem. A intolerância inspirada pelo amor ao ser é
equilibrada por uma nova tolerância, inspirada pelo amor à existência e pelo
respeito aos caminhos tortuosos em que o homem se move historicamente para mais
perto da verdadeira ordem do ser. No Epinomis, Platão pronuncia a palavra final de
sua sabedoria ― que todo mito tem sua verdade.

Como conclusão, vale dizer que essa introdução serve como um guia introdutório à
leitura de Israel e a Revelação, O Mundo da Pólis e Platão e Aristóteles, os três
primeiros volumes da série Ordem e História. Esses três livros foram escritos na
década de 1950. À época Voegelin não tinha ainda discernido alguns problemas
teóricos que só se solucionaram na sua obra mais madura das décadas de 1970 e 1980.
Daí que o quarto volume, A Era Ecumênica, já se inicie com alguns reparos a esse
primeiro conjunto de impressões. No entanto, como o próprio autor afirma, as
correções não invalidam as chaves analíticas aqui apresentadas: simbolização da
ordem, comunidade quaternária do ser, compactação-diferenciação, salto no ser,
tolerância-intolerância mantém sua validade teórica e serão refinadas no inacabado
quinto volume intitulado Em Busca da Ordem.

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