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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SEGUNDA AVALIAÇÃO - ANTROPOLOGIA II


STELLA AÍDA – DRE: 116226707

DOIS RIOS
Minha família é multinuclear. A princípio pensei em retratar somente o núcleo
materno, no qual passo a maior parte do meu tempo, já que meus pais são divorciados há
10 anos e moro junto com minha mãe e meu irmão. No entanto, após muita reflexão
acerca do estreitamento da minha relação com minha família paterna, resolvi incluí-los
nas observações do meu diário. Assim, minha família é constituída por dois núcleos: o
materno, composto de mãe, irmão e namorado da mãe (e às vezes avós maternos), no qual
o “almoço de domingo carrega características mais tradicionais (sentar à mesa, jantar
juntos...); e o núcleo paterno, composto por pai, duas irmãs do meu pai e seus maridos,
dois avós, três primos e meu irmão, o elo entre os dois grupos.
No segundo, as reuniões não acontecem toda semana - pelo menos não as que eu
tenho disponibilidade de participar – e são muito menos tradicionais, do que um jantar
em torno da mesa. Geralmente, nos reunimos na casa da minha avó ou de sua filha mais
velha, minha tia, por algum evento especial: jogo do flamengo, aniversário, comemoração
de conquistas, como empregos e formaturas. Um fato curioso é que quando algum desses
eventos se passa no mesmo dia que algum jogo do flamengo, diferente do que se poderia
esperar, as celebrações não se fundem, somando as euforias, mas causam uma grande
confusão. A TV, membro ocasional desse “almoço de domingo”, quando resolve
transmitir um jogo durante uma outra comemoração, se torna a mensageira do caos. Isso
porque as mulheres mais velhas da família, minha avó e as duas tias, detestam futebol e
afirmam que não suportam nem ouvir o som da TV em dia de jogo, acusando meus tios e
meu avô de fanáticos. Esse acontecimento não é um caso isolado, mas mesmo com toda
sua recorrência, todos os personagens continuam agindo da mesma maneira – os homens
no sofá com suas cervejas assistindo o jogo e ignorando as reclamações, e as mulheres,
também no sofá, sendo ignoradas, embora as reclamações não sejam nada baixas ou sutis
- resultando na mesma discussão toda vez.
No último dia em que isso aconteceu, meu namorado estava comigo na casa da
minha avó, juntamente com todos os personagens mencionados. Estávamos no sofá, eu,
ele, meu tio Fábio, meu tio Francisco e meu avô assistindo flamengo e vasco. Meus dois
primos mais velhos (Isabella e Fabinho) haviam entrado no quarto, que fica ao lado da
sala, para checar o porquê das mulheres estarem todas lá dentro, e não na sala conosco.
Descobriram que elas não queriam ouvir o jogo. Simultaneamente, na sala após o vasco
sofrer um gol, meu tio vascaíno se levantou e foi ao quintal pata checar o churrasco. Não
percebemos, no meio da euforia do gol, que faltava uma personagem nessa história: a
criança de 4 anos. Quando ouvimos a comemoração da pequena, nosso grito foi de susto,
em questão de segundos ela havia alcançado a bolsa de remédios e esvaziado todos os
líquidos e xaropes no chão. No meio da confusão e das nossas risadas, enquanto eu tentava
limpar o chão com um esfregão, minha avó e minha tia não achavam a menor graça. Foi
nesse momento que num discurso efusivo, sobre como não deveriam deixar de olhar a
criança nem por um minuto, minha avó acusou, gritando, os homens de serem “tarados
por futebol”, o que gerou aquele tipo de risada que toma o ambiente e contagia. Até minha
tia caiu no riso. E o tio vascaíno? Que tinha ido checar o churrasco? Fingiu estar lá fora
o tempo todo pra escapar da bronca!
Além disso, embora na maior parte das minhas lembranças de criança, - situadas
na antiga casa da minha avó, na qual todos nós nos sentávamos a mesa, almoçávamos e
depois comíamos sobremesa assistindo algum programa de domingo da globo, ou um
jogo de futebol, - minha avó fosse a responsável pelo “cardápio”, esse lugar foi passado
à minha tia mais velha. Ela sempre se encarrega de fazer receitas diferentes pro almoço e
bolos recheados pra sobremesa, mesmo quando a reunião é na casa da minha avó. Nesse
caso, minha tia leva de casa, além das comidas, alguns utensílios, porque desde que minha
avó se mudou da enorme antiga casa, para uma casinha com cômodos pequenos e cozinha
apertada, a maior parte destes ficou pra trás.
Com a mudança da casa, algumas tradições se perderam, como sentar à mesa
grande, já que na cozinha da casa nova mal cabe uma mesa pequena. Mas novas tradições
se instauraram, como precisamos estar espacialmente próximos, nos aproximamos
emocionalmente também. No momento em que não tem jogo passando na TV,
comentamos programas de auditório ou contamos histórias sobre as coisas engraçadas
que fizeram ou falaram as crianças (meu irmão de 10 anos e minha prima de 4) e
terminamos rindo muito. Se esse diário tivesse sido escrito meses atrás, as discussões
sobre política entrariam na lista de mais acaloradas, mas conforme nos afastamos do ano
da eleição, elas vão diminuindo também.
Meu pai sempre foi a pessoa mais atrasada da família, todos compartilham dessa
opinião. Por isso, desde criança, nunca fui a primeira a chegar na casa da minha avó para
os almoços, então sempre houve na minha cabeça um quadro bem estabelecido, enquanto
estava a caminho, da casa já cheia de pessoas, nunca da casa vazia. Agora, porém, meu
pai mora na mesma casa que meus avós, e eu dirijo, então o quadro na minha cabeça
mudou, sou sempre a primeira a chegar. Minha tia Lavínia é sempre a última, e apesar
disso, a fama de atrasado continua com meu pai, segundo minha tia “porque ela tem três
filhos, então tá desculpada”. Os encontros só terminam quando tia Lavínia resolve ir
embora (já que das 12 pessoas da família, 5 são “dela”), e aí todos nós começamos a
juntar nossas coisas para irmos também. Um fato curioso sobre o momento de ir embora,
que me acompanha em todas as casas (na antiga casa da minha avó, na nova, no
apartamento da minha tia) é que sempre passo os últimos minutos antes de sair
procurando meus sapatos. Caso o encontro seja no apartamento da minha tia, e não na
casa da minha avó, o evento se encerra quando meu avô decide ir embora. Nesse caso, o
conflito que marca o momento é minha avó dando tchau e puxando novos assuntos
repetidas vezes, enquanto meu avô segura o elevador e se irrita com a despedida nunca
breve.
Já na família materna, os “almoços” são mais frequentes, consegui - depois de
algum esforço - identificar o evento que faz jus ao nome e, de fato é um almoço de
domingo em família, este acontece excepcionalmente. Assim, optei por registrar o evento
que me dá a sensação que se espera quando ouvimos “almoço de domingo em família”.
Recorri então, menos à terminologia e mais ao sentimento de união e de resgate de um
momento que cada vez mais se perde na correria de dias apertados. Pelo menos uma vez
na semana, geralmente na janta pois é o único horário em que toda a família - minha mãe
e meu irmão de 10 anos - está em casa, nos reunimos para comer na mesa juntos e
conversar sobre o cotidiano, trocar conselhos e contar histórias. Minha mãe cozinha:
macarrão ou estrogonofe. (Na última semana tivemos dois dias seguidos, isso significa
macarrão na terça e estrogonofe na quarta). A preparação para o nosso “almoço de
domingo” começa com a frase “vou fazer uma janta”, a partir desse momento a
organização do ambiente começa a ser feita por mim, que arrumo a mesa e faço suco.
Meu irmão quase sempre chega só na hora de comer, e dependendo do humor, tenta
barganhar para comer no quarto, o que já gerou conflitos. Além disso, algumas mesmas
frases costumam aparecer em todas as ocasiões. “Guarda o celular”, que pode ser dita de
qualquer pessoa para qualquer pessoa da mesa. “Sua comida é a melhor do mundo”, essa
vem sempre do meu irmão para a minha mãe. Percebi essas particularidades enquanto
escrevia no diário. Tenho tentado fazer o exercício de me afastar do evento, no momento
depois que ele acontece e anotar passo a passo do que acontece nesses eventos, mesmo
que antes parecesse o mais natural possível. Não somente, quando alguma reflexão acerca
dos “almoços” surge, anoto também. Escrever no diário me fez refletir sobre a pesada
carga mental de ser uma mãe que trabalha fora e, bem, é mãe e do esforço para manter
algum modo de tradição na família. Essa reflexão me atingiu num dia que ao fazer um
suco diferente do usual maracujá, notei que a todo momento, mesmo essa sendo a minha
tarefa, fiz com que minha mãe participasse do processo, questionando a todo tempo se
estava aguado demais, ou doce demais ou azedo demais.
Então, de certo modo, o trabalho da mãe nunca se resume somente à superfície,
ela ocupa ainda, o cargo de fiscalizar (para garantir que seja feito) e aprovar (para garantir
que não seja refeito) o trabalho dos filhos. Além disso, passou pela minha cabeça diversas
vezes a importância que acredito que tenham esses momentos na formação de uma
criança. Mesmo quando meu irmão tenta jantar enquanto vê vídeos no celular, e sabe que
não pode, e sabe que se pedir a resposta será não, na maior parte das vezes, isso não o
deixa mal-humorado ou contrariado, pelo contrário. Ele se senta e não parece torcer para
acabar, do contrário, narra cada detalhe das piadas contadas em sala de aula, dos gols e
defesas no futebol, e nós, ouvimos atentamente.
Comentei sobre meu trabalho apenas com a minha mãe e meu irmão, que ficaram
muito empolgados e começaram a agir de forma diferente e mais mecânica (sentando com
postura, usando linguagem formal) no primeiro almoço em que sabiam o que eu estava
fazendo. No entanto, eles logo esqueceram e isso só se repetiu quando foi preciso fazer
um registro fotográfico do evento. Não me senti confortável o suficiente para mencionar
o projeto aos meus familiares da parte paterna.
Na minha casa, como os almoços eram mais regulares, pude experimentar tanto
escrever no diário enquanto o almoço acontecia, quanto apenas observar e tirar um
momento para refletir depois. Já na família do meu pai, decidi que o melhor método seria
apenas a observação participante, seguida de anotações e reflexões depois. Ambos
momentos de reflexão e escrita aconteceram em minha mesa, no meu quarto. Com a porta
fechada, pedia ao meu irmão que não entrasse (a todo momento ele entra para dividir
alguma informação sobre jogos de celular) e começava a escrever no notebook. Tenho
tentado escrever sobre os almoços desde que o trabalho foi proposto, mas não consegui
estabelecer uma rotina regrada para isso. Dessa forma, limitei a minha escrita ao dia em
que acontecia o evento ou ao dia seguinte.
Durante a escrita e a vivência, formulei reflexões sobre a relação das mães com
seus filhos e suas filhas, e a destes com a família. Acredito que por fazermos parte de uma
cultura em que, numa família composta por pai, mãe e filhos, a família é “da mãe”, no
sentido de que a mãe que cuida, que decide, que resolve... Encontramos recorrência de
famílias em que a parte mais próxima dos filhos é a parte materna, os avós mais próximos
são os avós maternos, mesmo quando o pai ainda mantém relação próxima com seu lado
da família. Ao meu ver, é como se mãe e filhos formassem uma unidade familiar
indissociável, o que mais raramente acontece com pai e filhos. Assim, os filhos herdam
as relações de proximidade e família da mãe, não do pai.
Ademais, a reflexão de gênero também atraiu meu olhar. Vejamos, no incidente
do derramamento dos xaropes, embora a situação tenha gerado risadas, acredito que,
como minha avó fez questão de destacar, se as mulheres estivessem na sala, não deixariam
isso acontecer. Os homens da família não sentem que tem a mesma responsabilidade com
os filhos/sobrinhos que as mulheres, para eles sobra o papel de brincar e distrair a criança,
para logo “devolve-la” para alguma mulher, que vá se encarregar da responsabilidade.
Além disso, notável que embora o almoço, a sobremesa e quase tudo relacionado a
cozinha seja responsabilidade feminina, quando a celebração conta com churrasco, isso
fica a cargo dos homens.
No que trata da minha experiência pessoal com o trabalho, além da conclusão de
que possuo dois núcleos familiares, percebi como o papel de cada um na minha vida,
Minha proximidade com o núcleo aumentou de maneira diretamente proporcional à
minha idade. Conforme pude deixar de chegar atrasada e participar mais ativamente,
independente da presença do meu pai. Mesmo assim, o significado das reuniões é distinto
de quando falo da família materna. No primeiro caso, os assuntos se resumem a conversas
triviais, piadas, fofocas sobre a outra metade da família. Já no segundo, a reunião em
torno da mesa, comer a comida feita pela minha mãe, convida assuntos de todos os tipos,
inclusive os mais pessoais e emotivos.
De certo modo, é como se as duas partes distintas, que são minha família,
refletissem e constituíssem uma extensão dos estereótipos (no meu caso condizente com
a realidade) do que é o papel de um pai e da mãe. Minha família materna é frequência,
responsabilidade e “sem celular na mesa”, mas também é desabafo, colo, cuidado,
conselho e choro. É um porto seguro, que, como deve ser, não vai a lugar nenhum.
Enquanto a paterna é diversão, risadas, amizade, mas dificilmente aquela pra quem eu
recorreria pra não cair, não porque sei que não vão me segurar, mas porque segurança é
o sinônimo de outra família.

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