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Agricultura Familiar, Reforma Agrária e sua inserção no enfoque territorial no Brasil

Alicia Ruiz Olalde1


Cadja Araújo Portugal2

Resumo

A partir dos anos 90 vem se observando um crescente interesse pela agricultura familiar no
Brasil. Recentemente, tem sido destacada a dimensão territorial do desenvolvimento rural, que se
expressa na criação da SDT (Secretaria do Desenvolvimento Territorial) e na construção de um
projeto de desenvolvimento de base territorial. A análise retrospectiva permite afirmar que no
passado foram utilizadas outras denominações para se referir à agricultura familiar: na década de
50 e 60 prevaleceu a utilização do termo “camponês”, nos anos 70 a de “pequeno produtor” e,
mais recentemente a de agricultor familiar. Na última década está havendo uma tentativa de re-
significar o conceito de agricultor familiar e de tornar esta categoria central num modelo de
desenvolvimento. Todavia, há divergências em relação ao modelo proposto para a agricultura
familiar: existe uma visão onde o agricultor familiar está fortemente inserido nos mercados e
procura sempre adotar novas tecnologias e outra que destaca a autonomia relativa do pequeno
produtor, enfatizando a utilização de recursos locais e a diversificação da produção. Também há
divergências em relação ao papel dos assentamentos no desenvolvimento do país, pois alguns
acreditam na Reforma Agrária apenas como política social compensatória, enquanto outros lhe
atribuem um papel mais significativo no desenvolvimento. Em todo caso, a passagem do modelo
setorial para o modelo de base territorial só poderá se fundamentar na valorização da agricultura
familiar, na diversificação da economia local (incentivo ao setor de serviços e à pluriatividade) e
na Reforma Agrária, sendo necessário para isto o aprofundamento da discussão sobre o modelo
tecnológico, produtivo e organizacional mais apropriado para a agricultura familiar e para os
assentamentos da Reforma Agrária.

Palavras-chave: desenvolvimento territorial, agricultura familiar, Reforma Agrária.

1. Introdução

Os anos 90 trouxeram novamente à tona questões como a Reforma Agrária e a agricultura


familiar que alguns analistas acreditavam superadas pelo próprio decorrer da modernização da
agricultura e pela urbanização da sociedade brasileira. O interesse pela agricultura familiar se
materializou em políticas públicas, como o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar) e na criação do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), além do
revigoramento da Reforma Agrária.

1
Professora da UFBA, e-mail: aliruiz@ufba.br
2
Professora da FTC, e-mail: cadja@gd.com.br
2

Certamente, não existe consenso em relação à importância da agricultura familiar e da


Reforma Agrária para o desenvolvimento do país, podendo ser citado, como exemplo do ponto de
vista oposto, recente artigo publicado na Revista Veja (03/03/04), onde se expressa que a
Reforma Agrária é uma questão que perdeu razão de ser com a modernização do campo, pois um
único agricultor pode alimentar 1.000 pessoas e onde ainda é questionada a idéia do governo
propor que o foco da EMBRAPA deva se voltar para atender aos pequenos produtores: “é como o
governo americano desviar a NASA de suas missões espaciais para focar seu potencial
tecnológico no atendimento às enchentes do Rio Mississipi”.

A formulação das políticas públicas favoráveis à agricultura familiar e à Reforma Agrária


obedeceu, em boa medida, às reivindicações das organizações de trabalhadores rurais e à pressão
dos movimentos sociais organizados, mas está fundamentada também em formulações
conceituais desenvolvidas pela comunidade acadêmica nacional e apoiada em modelos de
interpretação de agências multilaterais, como a FAO, o IICA e o Banco Mundial.

Entre as principais vertentes que fundamentam a centralidade da agricultura familiar está


o conceito da multifuncionalidade do espaço rural. O modelo “produtivista”, de necessário
aumento da produção e da produtividade, orientado para as funções da agricultura como
fornecedora de alimentos, matérias-primas e divisas, tem cedido lugar à ótica da
multifuncionalidade, pois se tratando de agricultura familiar é evidente que além da contribuição
à produção agrícola nacional, esta pode fornecer outros bens tangíveis ou intangíveis, como a
geração de emprego, desenvolvimento de sistemas agrícolas diversificados, serviços ambientais e
mesmo atender a aspirações da sociedade, como a preservação da paisagem e da cultura local,
hoje já colocadas nos países desenvolvidos. Além disso, a agricultura familiar permite uma
distribuição populacional mais equilibrada no território, em relação à agricultura patronal,
normalmente associada à monocultura. Estas idéias devem ser contextualizadas no debate sobre
os caminhos para a construção do desenvolvimento sustentável.

Em recente reportagem o Prof. José Eli da Veiga expressa que as vantagens de uma
estratégia centrada na agricultura familiar ainda não foram bem percebidas pela sociedade
brasileira, apesar da implementação do PRONAF e das teses da FAO e outros organismos
internacionais que estudam a problemática do desenvolvimento. Segundo ele, não há qualquer
confirmação para a crença tão generalizada no Brasil de que as fazendas patronais sejam mais
eficientes que os sítios familiares, pelo que o desprezo reinante pela agricultura familiar é de
fundo político-ideológico. Também destaca nesse artigo o brutal poder devorador de postos de
trabalho da atual modernização das grandes lavouras, exemplificado no caso da cana-de-açúcar,
onde a demanda de força de trabalho foi cortada pela metade nos anos 90, apesar da expansão de
10% da área cultivada (VEIGA, 2003).

Nos últimos dois anos vem sendo sugerida uma perspectiva que reforça as idéias acima
apresentadas que é a dimensão territorial do desenvolvimento rural, onde as atividades agrícolas e
não-agrícolas devem ser integradas no espaço local, perdendo sentido a tradicional divisão
urbana/rural e ultrapassando o enfoque predominantemente setorial do espaço rural. No âmbito
das políticas públicas, isto se traduziu na criação da SDT (Secretaria do Desenvolvimento
Territorial), subordinada ao MDA, e na presente formulação de um projeto de desenvolvimento
territorial e de um novo modelo institucional para viabilizar este projeto.
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O conceito de desenvolvimento territorial representa não apenas uma nova unidade de


planejamento para as políticas públicas, procurando eliminar a falta de coordenação dos
investimentos e o viés setorial da intervenção governamental, mas representa também uma nova
forma de formular políticas, com maior participação da sociedade civil e a divisão de
responsabilidades entre o poder público e a sociedade.

Assim, dada a relevância que estas temáticas vem tomando no período recente, torna-se
necessário indagar qual será o modelo produtivo e organizacional mais favorável para que os
agricultores familiares e os assentados da reforma agrária possam contribuir para dinamizar e
democratizar os espaços sócio-econômicos locais, promovendo o desenvolvimento rural (ou
territorial) sustentável.

2. Evolução da análise da agricultura familiar no Brasil

Como expressa a Profa. Nazareth Wanderley “A agricultura familiar não é uma categoria
social recente, nem a ela corresponde uma categoria analítica nova na sociologia rural. No
entanto, sua utilização, com o significado e abrangência que lhe tem sido atribuído nos últimos
anos, no Brasil, assume ares de novidade e renovação” (WANDERLEY, 2001: 21).

No passado, muitas terminologias foram empregadas historicamente para se referir ao


mesmo sujeito: camponês, pequeno produtor, lavrador, agricultor de subsistência, agricultor
familiar. A substituição de termos obedece, em parte, à própria evolução do contexto social, mas
é resultado também de novas percepções sobre a mesma categoria social. A utilização dessas
terminologias aparece, com freqüência, carregada de profundo significado político-ideológico.

De meados dos anos cinqüenta até o final da década de 1960, os estudiosos concentravam
suas análises sobre a natureza das relações de produção no campo, reproduzindo, em grande
parte, os argumentos do debate que no marxismo ficou conhecido como “a questão agrária” e
predominava a utilização do termo camponês. Os pequenos proprietários, os arrendatários, os
parceiros, os posseiros e outras categorias sociais estavam contidos na noção de campesinato. M.
Vinhas, em “Problemas agrário-camponeses no Brasil”, publicado em 1968, classifica os
agricultores em: latifundiários, camponeses e assalariados, subdividindo os camponeses em ricos,
médios e pobres.

Na obra desse autor, e de outros analistas da época, destacam-se os traços pré-capitalistas


ou semi-feudais da estrutura agrária brasileira, o caráter anti-econômico e anti-social do
latifúndio, a exploração de colonos, parceiros e arrendatários através da extração de rendas não
monetárias. Também observa que o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado em 1963, poderia
amenizar estas relações pré-capitalistas, mas não as eliminaria.

Os camponeses eram identificados com os diferentes tipos de minifúndios, uma categoria


que expressava a oposição aos latifúndios e que podia ser encontrada na estrutura agrária
brasileira. De acordo ao método dialético, procurava-se o sujeito da mudança social nas
contradições e nas possíveis alianças de classe, cujo objetivo político seria a transformação da
estrutura agrária brasileira, considerada arcaica e ineficiente.
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A crítica à estrutura agrária tomou impulso a partir das formulações da Comissão


Econômica para América Latina (CEPAL), que postulava que a indústria deveria liderar o
processo de desenvolvimento e que à agricultura caberia fornecer alimentos e matérias-primas
para alimentar a crescente população urbana do país e financiar o esforço de substituição de
importações. Nesse sentido, temia-se que a arcaica estrutura agrária representasse um obstáculo
na dinamização do setor agrícola, tese que veio ser conhecida como da inelasticidade ou da
inadequação da oferta e que parecia ser confirmada pela escassez de alimentos e inflação vivida
em alguns países latino-americanos na época.

Era com esse argumento que, nos anos 60, se buscava cooptar os “setores progressistas”
da burguesia industrial a apoiar uma “Reforma Agrária Camponesa”, pela necessidade de
aumentar a oferta agrícola e ao mesmo tempo ampliar o consumo dos produtos das indústrias
nascentes. O Estatuto da Terra, aprovado em 1964, embora nunca chegasse a ser efetivamente
implementado, faz uma clara defesa da propriedade familiar, em parte pela influência das idéias
da Aliança para o Progresso, que buscava criar uma classe média de pequenos proprietários,
evitando o surgimento de revoluções agrárias e movimentos camponeses (GRAZIANO DA
SILVA, 1999).

Sob a ótica bem diferente, a professora Maria Isaura Pereira de Queiroz observava, em
1973, que o tradicional sitiante se enquadrava na categoria que a Sociologia Rural identificava
como camponês. Esse campesinato brasileiro, segundo a autora, teria sofrido certa invisibilidade
nos estudos sócio-antropológicos, pois muitos negavam sua existência, o que contrastava com a
forte presença desta categoria em outras manifestações, como a cultura e o folclore. Esta
invisibilidade não poderia ser explicada por sua contribuição marginal à produção ou por ser
numericamente pouco expressivo, pois constituía a maior parte da população rural e era
responsável em boa medida pelo abastecimento de alimentos para as grandes cidades. Contudo,
era reconhecido por Queiroz (1973) que o campesinato brasileiro já se encontrava em vias de
desaparecimento, persistindo ainda em certas regiões devido às condições locais. As mudanças
deveriam ser atribuídas ao crescente contato com o meio urbano e o mercado, isto é, à expansão
da produção em bases capitalistas.

Na década de 70, em plena “modernização conservadora”, houve um deslocamento nos


termos e os proprietários de pequenos lotes de terra deixaram de ser identificados como
minifundiários ou camponeses para tornarem-se pequenos produtores. Denominação essa que foi
ressaltada à medida que crescia a capacidade do Estado, naqueles anos, de propor e executar
políticas de crédito e assistência técnica, para estas categorias, então também chamadas de
produtores de baixa renda.

Ressalte-se que a idéia de pequeno não tem ainda um conteúdo conceitual próprio e que
se procurava com essa terminologia desideologizar a questão, correspondendo ao período político
que se estava vivendo. Nesse contexto, o conceito de pequena produção tinha um caráter
operacional, normalmente vinculado à caracterização empírica dos grupos estudados, deixando
de lado a discussão sobre o camponês, categoria carregada de significado ideológico e político.

Nessa mesma época, tomou força a tese da “funcionalidade” da pequena produção, com
base nas idéias de Rosa Luxemburgo, para quem a subordinação do setor não-capitalista era
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condição necessária para a acumulação no setor capitalista, o que permitia uma espécie de
“acumulação primitiva contínua”, onde os pobres do campo alimentavam os pobres da cidade
(GRAZIANO DA SILVA, 1999).

À medida que o processo de modernização da agropecuária se intensificava e se


consolidava, as reflexões sobre a noção de funcionalidade entraram em um período de crítica,
levando a um re-direcionamento teórico, com ênfase na subordinação da pequena produção ao
capital. Diversas pesquisas então apontaram para o processo de integração da pequena produção
ao capital industrial.

A partir da segunda metade da década de 70, surgiram no Brasil os primeiros estudos


sobre camponeses e pequenos agricultores inspirados na “teoria dos sistemas econômicos não
capitalistas” proposta por Alexander Chayanov. A importância desta corrente está em centrar-se
na compreensão da lógica da unidade camponesa. Contudo, embora esses trabalhos tivessem sido
inovadores no sentido de transgredir as acomodadas fronteiras do marxismo clássico, sobretudo
na vertente leninista, não romperam inteiramente com essa tradição (SCHNEIDER, 1999).

Os camponeses são descritos por sua relativa autonomia na forma de gestão da força de
trabalho e do processo produtivo que se articula com o sistema econômico dominante. O trabalho
de Santos (1978), por exemplo, além de demonstrar os mecanismos internos de gestão e
funcionamento da economia camponesa, mostrou como essa subordinava-se ao capital.

A indústria e a vida urbana passam a ser o novo centro dinâmico da economia e a


condicionar as transformações da agricultura familiar, conduzindo à emergência dos complexos
agroindustriais (CAIs). Para alguns autores, a dinâmica dos CAIs demonstrava a forma
predominante de desenvolvimento capitalista e revelava o papel de integração vertical,
subordinando ou excluindo a pequena produção.

Face ao rápido processo de transformação tecnológica da agricultura brasileira,


acrescentaram-se as noções de “integração” e “exclusão” (PORTO e SIQUEIRA, 1994).
Integrados seriam aqueles produtores que conquistaram elos de ligação com as agroindústrias e
os mercados consumidores. Pequenos produtores excluídos, por sua vez, eram aqueles que
haviam sido alijados do processo de modernização conservadora como os sem-terra, posseiros,
atingidos por barragens, e outros. Do ponto de vista teórico, essas novas categorias acabaram
reforçando a matriz teórica marxista clássica, que explicava esses processos a partir da idéia de
que o capitalismo expandia-se para o campo de modo indireto, subordinando os pequenos
produtores à sua lógica econômica e provocando um intenso processo de diferenciação social.
Nesse sentido também agiriam os complexos agroindustriais que representariam o processo de
integração e subordinação da agricultura à indústria. Nesta linha de análise, Martine (1991, p. 54)
observava que,

[...] a agricultura atravessou um processo radical de transformação em


vista de sua integração à dinâmica industrial de produção e da
constituição do complexo agro-industrial. Foi alterada a base técnica,
desenvolvida a indústria fornecedora de meios de produção para a
agricultura e ampliada, em linhas modernas, a indústria processadora de
alimentos e matérias-primas. Deste modo, a base tecnológica da produção
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agrícola foi alterada profundamente, assim como a composição das


culturas e os processos de produção. Tanto a mudança na escala de
produção trazida pelo novo pacote tecnológico como a tendência
especulativa desencadeada pelo processo de modernização serviram para
acentuar ainda mais a concentração de propriedade da terra, afetando
também as relações de produção no campo.

Mais recentemente, já na década de 90, uma pesquisa realizada pela FAO (Organização
das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e pelo INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária), cujo objetivo principal era estabelecer as diretrizes para um
“modelo de desenvolvimento sustentável”, escolheu-se como forma de classificar os
estabelecimentos agropecuários brasileiros pela separação entre dois modelos: “patronal” e
“familiar”. Os primeiros teriam como característica a completa separação entre gestão e trabalho,
a organização descentralizada e ênfase na especialização.

O modelo familiar teria como característica a relação íntima entre trabalho e gestão, a
direção do processo produtivo conduzido pelos proprietários, a ênfase na diversificação produtiva
e na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida, a utilização do trabalho assalariado em
caráter complementar e a tomada de decisões imediatas, ligadas ao alto grau de imprevisibilidade
do processo produtivo (Quadro 1) (FAO/INCRA, 1994).

Quadro 1. Características das agriculturas patronal e familiar


MODELO PATRONAL MODELO FAMILIAR
Completa separação entre gestão e trabalho Trabalho e gestão intimamente relacionados
Organização centralizada Direção no processo produtivo assegurada
diretamente pelos proprietários
Ênfase na especialização Ênfase na diversificação
Ênfase em práticas agrícolas padronizáveis Ênfase na durabilidade dos recursos naturais e na
qualidade de vida
Trabalho assalariado predominante Trabalho assalariado complementar
Tecnologias dirigidas à eliminação das decisões Decisões imediatas, adequadas ao alto grau de
“de terreno” e “de momento” imprevisibilidade do processo produtivo
Tecnologias voltadas principalmente à redução Tomada de decisões “in loco”, condicionadas pelas
das necessidades de mão de obra especialidades do processo produtivo
Pesada dependência de insumos comprados Ênfase no uso de insumos internos

Fonte: Pesquisa FAO/INCRA(1996)

Sob o enfoque da sociologia, a característica principal para a identificação do agricultor


familiar está relacionada às relações sociais de produção, sendo outros elementos como área,
tecnologia empregada, volume de produção e outros aspectos complementares à característica
principal.
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A pergunta que surge é por que só agora o conceito de agricultura familiar ganha
centralidade? Um dos motivos, segundo alguns analistas, está associado à posição incômoda que
a questão do campesinato ocupou nas análises de influência marxista. Abramovay (1992),
analisando os motivos da falta de protagonismo do campesinato na análise marxista, sugere que
buscar uma explicação para essa categoria a partir de sua inserção na sociedade orientada pela
lógica do capital seria um equívoco, porque para o marxismo sua existência e reprodução sob o
capitalismo seriam antes de tudo uma incongruência. Para o autor,

A atividade produtiva que dá origem a sua reprodução não tem o estatuto


de trabalho social e é neste sentido que o campesinato só pode se
constituir naquele grupo de bárbaros de que falava Marx. As duas únicas
classes que possuem a universalidade de incorporar nelas mesmas os
elementos básicos de organização da socialidade contemporânea são a
burguesia e o proletariado” (ABRAMOVAY, 1992, p. 35-36, grifos do
autor).

Desta revisão conclui-se que na última década está ocorrendo uma tentativa de re-
significar o conceito de agricultura familiar. Em primeiro lugar, procura-se afastar a análise da
tese da inevitabilidade do seu desaparecimento, que além dos autores de linha conservadora foi
uma tese repetida até a exaustão por autores de influência marxista, seja na sua versão ortodoxa,
da diferenciação camponesa, ou na versão modificada pela idéia de subordinação, de
funcionalidade ou de integração/exclusão da agricultura familiar à lógica do capital, pois estas
teorias atribuem ao agricultor familiar um papel subordinado e um destino trágico no processo de
desenvolvimento.

Também se busca afastar a análise da agricultura familiar da idéia de pequeno produtor,


de agricultor de subsistência e de outras categorias que implicam pobreza, atraso ou inferioridade
deste tipo de empreendimento em relação a outras categorias de produtor, onde a questão da
agricultura familiar seria apenas objeto de uma política social compensatória. Neste sentido, a
mensagem implícita é que o agricultor familiar não precisa ser pobre nem pequeno, nem estar
condenado inexoravelmente à extinção, como parece confirmar a experiência internacional. Neste
sentido, para reforçar o papel da agricultura familiar seria necessário o apoio do governo através
de políticas públicas e a construção de um pacto social amplo que escolha aos agricultores
familiares como protagonistas de um processo de desenvolvimento rural.

Por outro lado, além de se tratar de empreendimentos economicamente viáveis, os


empreendimentos familiares permitiriam também cumprir uma série de funções associadas aos
novos paradigmas, expressas no conceito de sustentabilidade, fomento à pluriatividade e ao
desenvolvimento territorial, que contribuiriam para o desenvolvimento sustentável. Como
expressa a Prof. Nazareth Wanderley (2002), o meio rural, sempre visto como fonte de
problemas, hoje aparece também como portador de soluções, vinculadas à melhoria do emprego e
da qualidade de vida.

Em síntese, pode-se dizer que a re-significação da categoria da agricultura familiar está


relacionada, por um lado, à crise dos paradigmas clássicos, e à substituição de um enfoque
unilineal e determinista, onde o desfecho já é conhecido a priori, por análises onde existem vários
caminhos possíveis, dependendo da articulação dos atores sociais e do apoio governamental.
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Nesse sentido, entre as alternativas possíveis defende-se o modelo familiar por estar mais
próximo dos ideais da sustentabilidade.

3. Classificações e tipologias na agricultura familiar no Brasil

Na pesquisa FAO/INCRA (1994), utilizando (RMB)3, os estabelecimentos familiares


foram separados em três categorias: familiar consolidada, familiar em transição e familiar
periférica4 (Quadro 2).

Quadro 2. Número de estabelecimentos familiares e renda monetária bruta média

Estratos de RMB No de Estabelecimentos % RBM Média


familiares (sm/a)
Consolidados 1.150.433 26,5 57,1
Transição 1.020.312 23,5 12,0
Periféricos 2.168.308 50,0 0,5
Total 4.339.053 100,0 18,2
Fonte: Pesquisa FAO/INCRA(1996) e Censo Agropecuário de 1985

As unidades familiares consolidadas estão acima da média e representam 26,5% do total;


em transição, agricultores que estão entre a média e a mediana e representam 23,5% do total e
periféricos, agricultores que estão abaixo da mediana e representam 50% do total. Observe-se que
nesta última categoria a renda média anual das famílias é de apenas 0,5 salário mínimo, o que
indica que não é da produção no estabelecimento que essas famílias tiram seu sustento.

Alencar e Moura Filho (1988) classificam os agricultores familiares em: latifúndio,


empresa agrícola capitalista, unidade ou empresa de produção familiar, unidade familiar
camponesa e unidade neocamponesa. As unidades neocamponesas, segundo os autores, estão
formadas por agricultores cujas propriedades são tecnificadas, tentam maximizar seus lucros e
mantêm relações de parceria com empresas agro-industriais, comerciais e cooperativas que
fornecem insumos ou capital para o sistema de produção em troca do recebimento da produção.

Outra forma de se estudar as propriedades rurais é pela técnica de tipologia, que separar as
propriedades em tipos ou grupos homogêneos para se proceder às comparações. No estudo

3
Diferença entre receita e despesa (BLUM, 2001, p. 64)
4
Agricultores consolidados são os que estão integrados no mercado, geralmente participam do agribusiness e são
capitalizados; agricultores em transição estão em fase de capitalização e os periféricos, também conhecidos como
descapitalizados, não possuem renda para crédito, não têm acesso a tecnologia e, portanto, estão à margem do
processo de crescimento.
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tipológico de Baiardi (1998), embora voltado à aplicação de regras de Desenvolvimento


Sustentável, permite um entendimento dessa diversidade.

O autor identifica cinco tipos de agricultura familiar no Brasil: A, B, C, D e E.

O Tipo A é o que conhecemos como agricultor moderno, trata da agricultura


“farmerizada”, opera em uma área superior a 100 ha, utiliza insumos modernos e tecnologia.

O Tipo B trata da agricultura familiar integrada verticalmente. Desenvolveram-se a partir


da implantação de agroindústrias em regiões de colonização européia e para agricultores
familiares de outra origem que se diferenciavam por adotar as inovações tecnológicas exigidas
pela agroindústria; opera em escala média de até 50 ha

O Tipo C são grupos originados de famílias com tradição rural e camponesa das áreas de
ocupação colonial, operam em estabelecimentos inferiores a 50 ha, trabalham para reprodução e
alguma acumulação.

O Tipo D trata da agricultura familiar semi-mercantil. Originaram-se de descendentes de


homens livres; operam em área variável, mas inferior à 50 ha; tem fortalecido o associativismo e
o surgimento de pequenas plantas industriais; têm propensão em cooperar com projetos locais de
desenvolvimento sustentável a depender do seu grau de educação.

O Tipo E trata da agricultura completamente desassistida. Estabelecem-se em áreas com


escassos recursos naturais ou em condição de grande carência de infra-estrutura; operam em áreas
inferiores a 50ha, e na sua maioria completam sua renda com aposentadorias e dinheiro oriundos
de parentes da zona urbana.

De acordo com FAO/INCRA (2000) pode-se associar os tipos A, B, C e D a,


respectivamente, agricultores capitalizados, em processo de capitalização, em descapitalização e
descapitalizados. Entretanto, entre os agricultores familiares do tipo D, também existem
agricultores mais capitalizados, os quais podem ter sido classificados neste grupo devido a
frustração de safra, baixos preços de seus produtos no mercado ou a realização de novos
investimentos nos quais as receitas ainda não estão superando as despesas.

Dos 4.139.369 estabelecimentos familiares do Brasil, no estudo FAO/INCRA (2000)


foram classificados como tipo A 406.291 agricultores, ocupando 6,8% da área, absorvendo 11,7%
do financiamento total da agricultura e sendo responsáveis por 19,2% de todo o VBP5 Nacional.
O tipo D é representando por 1.915.780 estabelecimentos, ocupa 8,9% da área, é responsável por
4,1% do VBP agropecuário do Brasil e fica com 5,6% de todo crédito rural (FAO/INCRA, 2000).

As classificações citadas constituem apenas uma amostra do grande universo de tipologias


e classificações propostas para o Brasil. Estas classificações apontam para a diversidade de
situações dentro da agricultura familiar, desde o produtor tecnificado e integrado aos mercados
até a produção de subsistência e complementação com trabalho assalariado fora da propriedade.

5
VBP (Valor Bruto da Produção) é o valor da produção colhida, obtida de todos os produtos animais e vegetais
10

Os critérios mais freqüentemente utilizados para diferenciar os tipos estão relacionados com: tipo
de tecnologia empregada, orientação para subsistência/ mercado, tamanho da propriedade e grau
de capitalização. Por isso, quando se fala de agricultura familiar está se referindo a um universo
diversificado, o que tem levado alguns autores até a questionar a utilidade desta categoria para a
implementação de políticas públicas.

4. Os modelos da agricultura familiar

Ainda havendo consenso sobre a importância da agricultura familiar, as visões em relação


ao modelo que essa agricultura familiar deveria adotar divergem em vários aspectos.

Abramovay (1992) diferencia a agricultura familiar no interior das sociedades capitalistas


mais desenvolvidas como uma forma completamente diferente do campesinato clássico.
Enquanto que os camponeses podiam ser entendidos como “sociedades parciais com uma cultura
parcial, integrados de modo incompleto a mercados imperfeitos”, representando um modo de
vida caracterizado pela personalização dos vínculos sociais e pela ausência de uma contabilidade
nas operações produtivas. Já a agricultura familiar, segundo o mesmo autor,

[...] é altamente integrada ao mercado, capaz de incorporar os principais


avanços técnicos e de responder as políticas governamentais [...] Aquilo
que era antes de tudo um modo de vida converteu-se numa profissão,
numa forma de trabalho (ABRAMOVAY, 1992, p.22-127).

Para esse autor, em lhe sendo favorável o ambiente e com apoio do Estado, a agricultura
familiar preencherá uma série de requisitos, dentre os quais fornecer alimentos baratos e de boa
qualidade para a sociedade e reproduzir-se como uma forma social engajada nos mecanismos de
desenvolvimento rural. O pensamento de Abramovay fica claramente evidenciado quando
expressa que “Se quisermos combater a pobreza, precisamos, em primeiro lugar, permitir a
elevação da capacidade de investimento dos mais pobres. Além disso, é necessário melhorar sua
inserção em mercados que sejam cada vez mais dinâmicos e competitivos”.6

Assim, existe uma visão onde o agricultor familiar está fortemente inserido nos mercados
e procura sempre adotar novas tecnologias. Em contraposição, há uma corrente que tem sido
caracterizada como “neo-populismo ecológico”, por resgatar alguns conceitos do pensamento de
Chayanov, que destaca a necessidade de preservar a autonomia relativa do pequeno produtor,
enfatizando a utilização de recursos locais, a diversificação da produção e outros atributos que
apontam para a sustetabilidade de alguns sistemas de produção tradicionais, quando
aperfeiçoados pelo emprego de tecnologias apropriadas. Nessa visão, a sobrevivência do
agricultor familiar teria muito mais de resistência do que de funcionalidade à lógica da expansão
capitalista.

Este segundo enfoque está associado ao que se conhece como agroecologia. Na


agroecologia (ALTIERI, 2002), os objetivos de um programa de desenvolvimento rural seriam:

6
Texto disponível no site http: www.nead.org.br (consulta 01/12/2003).
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1) Favorecer a segurança alimentar com valorização de produtos tradicionais e conservação


de germoplasma de variedades cultivadas locais;
2) Resgatar e reavaliar o conhecimento das tecnologias camponesas;
3) Promover o uso eficiente dos recursos locais;
4) Aumentar a diversidade vegetal e animal de modo a diminuir os riscos;
5) Reduzir o uso de insumos externos;
6) Buscar novas relações de mercado e organização social.

O pensamento agroecológico resgata a figura do camponês e valoriza seus conhecimentos,


sobretudo em relação ao convívio com o meio ambiente, aprendido através de gerações de
interação doa agricultores com os recursos naturais.

O desenvolvimento rural, sob essa ótica, representa uma tentativa de ir além da


modernização técnico-produtiva, apresentando-se como uma estratégia de sobrevivência das
unidades familiares que buscam sua reprodução. O modelo não é mais o do agricultor-
empresário, mas o do agricultor-camponês que domina tecnologias, toma decisões sobre o modo
de produzir e trabalhar (SCHNEIDER, 2003).

Em síntese, há consenso sobre a necessidade de construir uma agricultura mais sustentável


que considere os aspectos sociais e ambientais, além dos aspectos econômicos, e sobre a
importância dos agricultores familiares na construção desse novo modelo, mas ainda há
divergências sobre as estratégias mais apropriadas para que a agricultura familiar atinja esses
objetivos. Há uma linha que defende maior competitividade e integração nos mercados e o
enfoque agroecológico que se fundamenta numa profunda mudança no modelo tecnológico, na
organização da produção e até mesmo numa mudança de valores e na própria organização da
sociedade.

Contudo, a agroecologia não está pensando numa agricultura apenas de subsistência, mas a
integração ao mercado de produtos e insumos deve ser olhada com cautela, para não aumentar a
dependência do produtor. Por outro lado, a maioria dos autores que enfatizam a necessidade de
modernizar a agricultura familiar, também não ignoram os impactos ambientais e sociais que
muitas das chamadas técnicas modernas tem provocado ou poderão vir a provocar. Por isso,
pode-se concluir que estas visões não são antagônicas e que poderão ser compatibilizadas através
de conceitos como o comércio justo, a certificação solidária, o pagamento de serviços ambientais
e outros, que apontam para as dimensões econômicas, sociais e ambientais da agricultura
familiar.

5. A agricultura familiar no enfoque territorial

Percebe-se que o ambiente rural brasileiro vem mudando no decorrer dos últimos anos,
principalmente, quanto as suas relações sociais e de trabalho, isso “[...] transforma as noções de
urbano e rural em categorias simbólicas construídas a partir de representações sociais que, em
algumas regiões, não correspondem mais a realidades distintas cultural e socialmente”
12

(CARNEIRO, 1997, p. 11). A delimitação de fronteiras entre a cidade e o campo, a partir de uma
classificação sustentada em atividades econômicas ou mesmo em hábitos culturais, se torna cada
vez mais difícil.

Jara (2003) expressa que na época atual, marcada pela complexidade, contradição e
incerteza, taxas de mudança acelerada, interações intensas e fluxos de informação acelerados:
“estamos pressionados a auto-organizar o processo de desorganização permanente através de
novas institucionalidades”.

Os Estados nacionais e os organismos públicos internacionais, que exerceram papel


hegemônico no desenvolvimento capitalista do pós-guerra, em muitos sentidos perderam esta
proeminência e se enfraqueceram (sobretudo pela crescente importância das organizações não
governamentais da sociedade civil de um lado e pelo aumento do poder das empresas
transnacionais de outro), e não raro viram-se obrigados a promover mudanças e readequações
para não sucumbir aos novos tempos. Uma das saídas experimentadas é a necessidade de
estabelecer parcerias com governos e entidades locais para favorecer a participação da sociedade
civil.

Estes conceitos sempre foram campo da sociologia e da antropologia, mas nos últimos
anos, e de forma paradoxal, em paralelo à expansão dos mercados, da competição e da
globalização, estas instituições locais passaram também a ser objeto da ciência econômica, na
chamada nova economia institucional ou sociologia econômica. O apoio mutuo e a confiança
pode se traduzir na redução de custos de transação para negociar com fornecedores e
colaboradores, representando uma vantagem competitiva que se expressa no conceito de “capital
social”.

Ao contrário do que poderia se supor, as novas tecnologias da informação não


promoveram uma “desterritorialização” do conhecimento. Arranjos produtivos localizados,
sistemas produtivos locais, clusters, redes de empresas, distritos industrias e outros aparecem
realçando o papel dos laços não formais entre atores e, sobretudo, a dimensão espacial dos
conhecimentos tácitos, com base nos quais eles se relacionam.

Vale ressaltar que a política territorial não consiste em redistribuir riquezas já criadas, mas
em despertar os potenciais para a criação de riquezas, iniciativas e coordenações novas. Os
territórios não são um espaço neutro, mas eles vão se tornando verdadeiros atores, na medida em
que promovem e fortalecem as interações entre os atores locais. Isto é, o território está
constituído além da dimensão espacial, mas por uma dimensão social.

A maior parte dos territórios rurais no Brasil terá como um agente fundamental para a
construção dessa nova institucionalidade os agricultores familiares e suas organizações, pois eles
constituem a maior parte da população nos territórios não-urbanos no Brasil. Eles representam a
maior fonte de geração de emprego e renda nos municípios essencialmente rurais e, de modo
geral, constituem a categoria social mais organizada nesses territórios.

Nesse sentido, na análise de Veiga et al. (2001), o modelo de desenvolvimento territorial


deveria se fundamentar na valorização da agricultura familiar, na diversificação da economia
local (incentivo ao setor de serviços e à pluriatividade) e no estímulo ao empreendedorismo.
13

Sob esta ótica, os territórios: são projetos estratégicos que pressupõem a participação real
dos grupos interessados e uma nova relação entre sociedade civil e Estado, não mais centrada em
transferência controlada de recursos, mas em contratos de desenvolvimento entre atores locais e
Estado. O Fórum Internacional “Território, Desenvolvimento Rural e Democracia” (promovido
pelo IICA, MDA e EMBRAPA, com apoio do Banco Mundial e da CONTAG), que ocorreu em
Fortaleza-CE, em novembro de 2003, revela a articulação de diversas entidades, como
organizações internacionais, movimento sindical, governo, representantes do meio acadêmico e
entidades de apoio, como SEBRAE e Banco do Nordeste, na construção, ainda incipiente, desse
novo enfoque.

Os objetivos desses arranjos territoriais seriam: a) aumentar a eficiência e a eficácia das


ações governamentais; b) democratizar as instituições públicas ampliando o espaço das decisões
e o controle social; e c) fomentar parcerias e co-responsabilidades entre o Estado e as
organizações da sociedade (URQUIZA, 2003).

Para o Estado, os desafios colocados são, por um lado, que os grupos locais assumam o
próprio processo de desenvolvimento e, por outro, redefinir seu papel nessa construção. Já para
os agricultores familiares, os principais desafios estão associados à capacidade de organização,
capacitação e acesso a mercados diferenciados, para o qual será essencial a construção de
parcerias.

6. Os sentidos da reforma agrária nos anos 90

Embora quase todos os analistas concordem com a necessidade de realizar algum tipo de
reforma, há divergências em relação a seu caráter e dimensão. É freqüente a argumentação de que
a Reforma Agrária não pode ser colocada nos mesmos termos das décadas de 50 e 60, devido às
transformações sofridas pelo setor agrícola e pela sociedade nesse período. Palmeira e Leite
(1998) observam que houve uma inversão em relação ao sentido dos termos em relação aos anos
50 e 60: ao invés da bandeira da reforma agrária ser objeto de uma conscientização dos
camponeses promovida por uma elite urbana, o problema era agora as organizações de
trabalhadores “venderem” a uma cidade também transformada a idéia da reforma agrária e
conseguirem, junto com forças urbanas, levar o governo a realizá-la.

Alentejano (1996) identifica três visões sobre a Reforma Agrária nos anos 90: a) reforma
agrária como política social compensatória; b) reforma agrária como política distributiva; c)
reforma agrária como uma política voltada para a transformação do modelo de desenvolvimento
vigente.

No primeiro grupo estão aqueles que consideram que a modernização resolveu os


problemas agrícolas brasileiros, aumentando a oferta de produtos agrícolas de forma satisfatória,
compatível com o crescimento da demanda, o que isentaria o país da necessidade de realizar a
Reforma Agrária. Nesta visão, a reforma agrária só teria sentido como resgate da dívida social
para dar um mínimo de dignidade e condições de vida para os excluídos e conter o êxodo rural.
14

Uma variante desta visão é a posição defendida por Graziano da Silva (1998) que, embora
reconhecendo algumas virtudes da reforma agrária, considera muito limitadas as possibilidades
de criação de empregos agrícolas, constatando que em diversos países o processo de
desenvolvimento esteve associado ao crescimento dos agricultores part-time e famílias
pluritativas, integrando atividades agrícolas e não agrícolas. O crescimento das atividades não
agrícolas também é constatado por este autor no Brasil, conformando o ele que denominou “novo
mundo rural”. Assim, Graziano defende a realização de “uma reforma agrária não essencialmente
agrícola”. Nas suas palavras: “os problemas fundamentais e dos preços podem ser revolvidos por
nossos complexos agroindustriais.(...) Por que não um assentamento que, além de arroz e feijão,
produzisse também casas populares? Ou um “pesque pague”que desse uma opção de lazer barato
às nossas classes médias baixas confinadas nas grandes metrópoles? Ou guardas ecológicos que
protegessem o entorno de nossos parques e reservas florestais e servissem de guias turísticos? Ou
de caseiros de “chácaras de recreio” com o acesso gratuito às terras garantido por regime de
comodato?” (GRAZIANO DA SILVA, 1998: 83-84).

A segunda visão está associada com contribuições teóricas que tem destacado a
centralidade da agricultura familiar e da reforma agrária. Algumas posições recentes de
organismos multilaterais, como o Banco Mundial resgatam o sentido econômico e não apenas
social da reforma agrária. Há argumentos que questionam a existência de significativas
economias de escala na agricultura e evidências do erro de considerar que a relação entre
redistribuição de renda e o crescimento econômico seria forçosamente negativa nas fases iniciais
do processo de desenvolvimento. Assim, foi se delineando a idéia de que a distribuição de ativos
(terra e educação) teria um papel a cumprir no processo de crescimento e desenvolvimento
econômico (GUANZIROLI et al. 2001).

A centralidade da agricultura familiar está relacionada a conceituações de renomados


economistas e teóricos do desenvolvimento que recolocaram a antiga discussão sobre a existência
de trade-off entre eqüidade e eficiência. A questão da redução das desigualdades deveria ser
resolvida porque, além da inclusão social e da cidadania, seria favorável para apoiar o processo
de crescimento econômico. Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial, afirmou que
o Brasil, em razão do seu alto grau de desigualdade de renda e riqueza, poderia alcançar mais do
que qualquer outro país do mundo, resultados de crescimento econômico e desenvolvimento na
condução de reformas destinadas a aumentar a eqüidade e a eficiência.

Na visão de Abramovay e Carvalho Filho (1993) a reforma agrária pode ser definida
como o processo que permite ampliar a quantidade de pobres rurais capazes de se incorporar
como produtores na vida nacional pelo apoio que receberem de instrumentos de política agrícola.
Assim, esses excluídos poderiam se incorporar como produtores e consumidores através da
reestruturação do minifúndio, da transformação de arrendatários em proprietários, da
incorporação dos filhos dos agricultores como produtores rurais, dinamizando o processo de
crescimento econômico e fundamentando o desenvolvimento sobre bases mais sustentáveis.

Além da distribuição de renda, alguns analistas destacam o papel da Reforma Agrária na


dinamização sócio-econômica local e, portanto, na descentralização do processo de
desenvolvimento. Navarro (1997), por exemplo, destaca o papel dos novos assentamentos nos
circuitos econômicos locais e regionais.
15

Assim, aos argumentos clássicos para defender a realização da reforma agrária como a
necessidade de promover uma melhor distribuição de renda, aumento da oferta agrícola e
democratização do poder local, soma-se agora as novas “funções”, como a dinamização dos
espaços regionais, geração de emprego e sustentabilidade ambiental.

Em relação à questão do emprego, há uma ampla discussão sobre a terceira revolução


industrial e a capacidade de absorção de mão-de-obra das novas atividades produtivas,
principalmente quando referido à mão-de-obra menos qualificada. Assim, não se trataria, como
no modelo clássico, de um simples problema de descompasso entre o ritmo de expulsão da
agricultura e de absorção nas atividades não-agrícolas, próprio de uma “transição demográfica”
incompleta, mas de uma característica estrutural desta nova fase do capitalismo.

Mas, ao mesmo tempo em que a reforma agrária retomava sua centralidade no debate
sobre estratégias de desenvolvimento econômico, começaram a se discutir as estratégias mais
adequadas para implementar essas reformas. A proposta Marked Oriented do Banco Mundial
privilegia o crédito fundiário como forma de diminuir os problemas atribuídos às desapropriações
(falta de agilidade, escolha pouco apropriada das terras, preços elevados, etc.). Foi essa estratégia
que orientou, desde 1997, o projeto piloto, conhecido como “Cédula da Terra” e mais tarde o
Banco da Terra, que tem merecido severas críticas.

Vários movimentos sociais e alguns analistas são radicalmente contrários à “reforma


agrária de mercado”, tendo um ponto de vista mais próximo do que Alentejano (1996) considera
como “reforma agrária como uma política voltada para a transformação do modelo de
desenvolvimento vigente”. Assim, a Reforma Agrária seria mais um dos mecanismos de
construção e realização da cidadania da classe trabalhadora e, neste sentido, parte da constituição
de um novo modelo de desenvolvimento, que para alguns é identificado como a construção de
uma sociedade socialista. Guanziroli et al. (2001) identificam esta última visão como a reforma
“ampla, massiva e imediata” reivindicada pelo MST, que representaria a eliminação do latifúndio
e a implantação de um modelo amplo de agricultura familiar.

7. Considerações finais

Há fortes nexos entre a re-significação da agricultura familiar, a defesa da Reforma


Agrária e o conceito de desenvolvimento territorial. Para os autores que pensam que o rural está
associado ainda exclusivamente ao agrícola, à modernização da agricultura, à expansão da
produção e da produtividade e ao fornecimento de divisas através do incremento das exportações,
a agricultura familiar e a Reforma Agrária são questões do passado, mantidas apenas por
motivações político-ideológicas. No melhor dos casos, esses analistas defendem as políticas
orientadas aos agricultores familiares e aos sem terra como políticas sociais compensatórias,
como uma questão de justiça social ou como uma forma de atenuar as seqüelas do próprio
modelo de desenvolvimento, como o desemprego e o êxodo rural. Nesse enfoque, o conceito de
desenvolvimento territorial carece de significado, pois se confunde com o conceito de
desenvolvimento agrícola.
16

Em contraposição, os autores que acreditam que a agricultura familiar e a Reforma


Agrária podem possibilitar a aplicação de modelos tecnológicos que permitam um convívio mais
harmonioso com a natureza, práticas comerciais que favoreçam a inclusão social e uma
distribuição mais equilibrada da população, estão defendendo a abordagem territorial como
enfoque que permite superar a camisa de força do enfoque setorial, naturalmente concentrador e
excludente. Certamente, o enfoque territorial não abrange apenas a questão da agricultura
familiar e da Reforma Agrária, incluindo o conceito de pluriatividade e o incentivo ao
empreendedorismo local de modo geral, no entanto, dadas as atuais características da maioria dos
territórios no Brasil, nenhum enfoque territorial poderia ignorar que a base para construção de um
modelo de desenvolvimento participativo e democrático no meio rural será a agricultura familiar.

No entanto, para que a agricultura familiar e a Reforma Agrária possam representar a base
do desenvolvimento territorial torna-se necessário aprofundar a discussão sobre o modelo
tecnológico, produtivo e organizacional destas unidades e sua contribuição para a construção da
sustentabilidade. Seria muito difícil imaginar o desenvolvimento dos territórios no Brasil atual se
não se acredita no potencial da agricultura familiar e da Reforma Agrária.

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