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Arábia: Críticas AdoroCinema http://www.adorocinema.

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Arábia: Críticas AdoroCinema

AdoroCinema

Três anos após se destacar com A Vizinhança do Tigre, o cineasta Affonso


Uchoa chega com um novo trabalho, agora acompanhado de João Dumans na
direção. Se no longa anterior, a dupla - Dumans era roteirista - focava sua atenção na
periferia de Contagem, com jovens que lutavam contra as condições impostas pelo
mundo e se dividiam entre o trabalho, muitas vezes duro, e a vida do crime, agora eles
usam a região como ponto de partida para uma trama ainda maior.

Arábia começa apresentando a história de um jovem que mora com o irmão mais
novo em Ouro Preto. Os pais nunca estão presentes e o garoto tem a responsabilidade
de cuidar do caçula, que tem problemas sérios de saúde, com a respiração
prejudicada. André (Murilo Caliari), o mais velho, conta com a ajuda da tia, uma
enfermeira que trata várias pessoas na região. Determinado dia, um dos operários de
uma fábrica local sofre um acidente e a tia pede a André que vá até a casa dele
apanhar algumas roupas e utensílios básicos. É quando o jovem acaba encontrando
um caderno com memórias da vida daquele operário, chamado Cristiano (Aristides de
Sousa).

A partir daí, o filme mergulha completamente na vida de Cristiano, que passa a ser o
narrador da história. De forma corajosa, o longa troca de protagonista após um
período considerável focado em André. É curioso notar que o título do filme, Arábia,
surge na tela justamente no momento que passamos para a trama de Cristiano,
mostrando que aquilo visto antes era, de certa forma, um grande prelúdio.

Antes de entrarmos com mais detalhes na parte principal do filme, centrada em


Cristiano, é importante destacar alguns elementos da trama de André, que também
tem toques melancólicos e uma naturalidade impressionante na dinâmica entre os
irmãos. Destaca-se ainda a fotografia Leonardo Feliciano, em especial no plano-
sequência extraordinário que abre a produção, com André andando de bicicleta com
as montanhas de Minas ao fundo, num cenário rural e contemplativo, que ganha
força ao som da canção "Blues Run The Game", do Jackson C. Frank. A linda abertura

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é quebrada com a chegada do menino na cidade, se deparando de cara com a fábrica


de alumínio local.

Ao ingressarmos na história de vida de Cristiano, somos jogados num turbilhão de


emoções, todas impactadas pelo belo trabalho de narração de Aristides, que de certa
forma lembra um pouco a poética performance de Irandhir Santos em Viajo Porque
Preciso, Volto Porque Te Amo. A narração em off, principalmente quando presente
em boa parte de um filme, muitas vezes é problemática, mas aqui é um dos elementos
mais interessante, uma vez que a voz de Aristides passa uma humanidade pungente
ao espectador.

Natural de Contagem, Cristiano passou um tempo na prisão ainda jovem. Então,


decide deixar sua cidade para evitar entrar num ciclo de violência que o leve mais
uma vez para o cárcere. A partir daí, circula pelo interior de Minas procurando
empregos e, muitas vezes, aceitando condições precárias de trabalho e moradia. Ele
atua na lavoura, faz pequenos bicos e, por fim, embarca no dia a dia feroz de fábricas.
O filme é uma ode ao trabalhador comum, aquele indivíduo sem muita esperança,
que tenta levar a vida de forma honesta, independente de não ter muita escolaridade.
Num momento como o que o país vive hoje, com direitos trabalhistas sendo cortados,
Cristiano é mais do que nunca um retrato do brasileiro simples.

Com o mérito de oferecer uma análise crítica com uma história acessível e tocante,
Arábia é uma produção singular. Muitas vezes no cinema brasileiro, o cineasta de
classe alta tentou retratar o dia a dia do trabalhador. Alguns conseguiram, é claro,
mas muitos falharam. Naturais de Contagem, os diretores sabem do universo que
estão tratando e oferecem um olhar diferenciado sobre os personagens. Ao assistir a
produção, sentimos agonia e sofremos ao lado de Cristiano, mas também celebramos
seus momentos de felicidade - como quando se apaixona por Ana (Renata Cabral). A
relação do espectador não é de pena no que diz respeito ao protagonista. Apesar de
sermos um olhar de fora, a sensação é de que estamos ao lado daquele sujeito,
acompanhando passo a passo de sua saga.

O longa conta com ótimos trabalhos de desenho de som e mixagem, principalmente


nos momentos em que busca retratar a grandiosidade quase monstruosa do trabalho
em uma fábrica. A trilha sonora também é importante elemento. Se começamos com
uma canção em inglês, que é prefeita para a cena citada acima - afinal é um cenário
quase estrangeiro -, a obra segue com belas canções da música popular brasileira. É
difícil não se tocar ao som de "Três Apitos", clássico de Noel Rosa aqui interpretado

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por Maria Bethânia, que fala justamente do trabalho em uma fábrica e a espera pelo
amor. Como Cristiano se muda inúmeras vezes de região, o filme também possui
elementos de road movie. E nada melhor para transmitir o sentimento de uma
estrada mineira do que Renato Teixeira e sua "Raízes".

As canções supracitadas são apresentadas com gravações originais,


mas Arábia também dá a voz a seus personagens, que são vistos em um momentos
de descontração cantando "Cowboy fora da Lei", de Raul Seixas. Em outra cena,
temos um senhor cantando "Marina", de Dorival Caymmi. Esta sequência em
particular é uma das mais tocantes, mostrando a força da canção e da imagem mesmo
diante de um claro desafino. A beleza está na imperfeição. E isso vale para toda a
obra.

Ainda que fale muito por alto sobre sindicalismo, o filme não levanta bandeiras.
Cristiano é um homem comum, que muitas vezes sofre com uma inércia daqueles que
já estão acostumados a serem explorados. No final das contas, Arábia acaba sendo
uma obra sobre a defesa do homem simples e trabalhador, do brasileiro violado todos
os dias por um sistema opressor. Neste sentido, valoriza-se o tom naturalista de
muitos dos diálogos do filme. É impossível não se divertir com Cristiano e um
caminhoneiro que conhece discutindo sobre as melhores e piores coisas para se
carregar.

Além dos personagens já citados, o filme conta com um protagonista extra: Minas
Gerais. A questão do espaço é trabalhada de forma muito interessante, com o estado
surgindo como se fosse um grande país. Cristiano em momento algum sai de MG,
embora pareça transitar por um país inteiro.

Oferecendo uma reflexão inquietante e uma reviravolta extraordinária no que diz


respeito à empatia, o filme se encerra com uma tela preta que parece durar minutos.
Por mais que sejam apenas alguns segundos além do normal, toda aquela vastidão
escura é o bastante para o espectador se prender numa reflexão sobre o impactante
desfecho. Uma obra verdadeiramente especial.

Filme visto no 50º Festival de Brasília, em setembro de 2017.

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Comentários

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