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25321-Texto Do Artigo-137992-1-10-20160406 PDF
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Resumo
No Brasil, na Linguística Aplicada, temos a recorrência cada vez mais acentuada de
investigações teóricas e trabalhos voltados ao campo de estudos intitulado Novos Estudos do
Letramento. Neste sentido, o objetivo deste artigo é (1) revisitar algumas noções desse campo
de conhecimento; (2) mapear as implicações pedagógicas dele emergentes; e (3) refletir sobre a
seguinte pergunta de pesquisa: até que ponto essas novas propostas de ensino de leitura e de
escrita produzem efeitos significativos, em relação à implementação de políticas condizentes
com o arcabouço teórico acionado pelos Novos Estudos do Letramento? Giroux (2011),
Barton (1994), Kleiman (1995), Barton e Hamilton (1998), Street (2000) e Kalantzis e Cope
(2006) orientam a revisão teórica desse artigo. Para o mapeamento das propostas metodológicas
sugeridas na literatura, investigamos a obra Letramentos, de Vóvio, Sito e De Grande (2010) e,
situados no bojo das reflexões aqui propostas, utilizaremos os estudos de Lillis (2003), Makoni e
Meinhof (2006), Walsh (2009) e Zavala (2010). O resultado de nossa investigação indica que as
mudanças educacionais precisariam ser bem mais categóricas do que as sugeridas na literatura
para promover, de fato, outras cenas de letramento que não apenas as hegemônicas.
Palavras-chave: novos estudos do letramento, projetos de letramento, formas linguísticas.
na obra freireana, ao longo do presente trabalho às valorações que a modalidade escrita recebe
manteremos os dois termos, conforme utilizado nas diversas vivências, ao passo que ‘eventos de
por Soares (2004), porque eles parecem evocar letramento’ são as ocasiões em que a escrita
concepções que se relacionam com os conceitos medeia a interação. Neste contexto, Barton e
de ‘letramento autônomo’ e de ‘letramento Hamilton (1998) ainda chamam atenção para o
ideológico’, respectivamente. A seguir, fato de que o conceito de práticas de letramento
apresentamos alguns dos principais conceitos não implica ‘repetição de letramento’, mas
desenvolvidos pelos NEL. modos culturais de usar socialmente a escrita.
Essas considerações conceituais se tornam
Estudos do Letramento: conceitos de grande relevância para a compreensão de
fundamentais como diferentes grupos sociais atribuem valores
aos eventos de letramento tão presentes nas
Nesta seção, além de uma breve discussão sociedades grafocêntricas, especialmente no
sobre as implicações de uma perspectiva domínio escolar. Desse modo, as implicações
histórico-cultural dos NEL, apresentamos os mais gerais para a esfera escolar parecem sugerir
conceitos fundamentais de ‘práticas’ e ‘eventos’ que a ação docente, para ser eficaz, deve
de letramento e de ‘modelo autônomo’ e desvelar os valores associados às práticas de
‘modelo ideológico’ de letramento. letramento dos estudantes, ou seja, desvelar
Para Barton (1994), diferentes culturas ou como eles valoram a modalidade escrita, em
diferentes períodos históricos pressupõem geral, ou em cada evento, em particular, para,
diferentes usos da escrita, pois esses, além de assim, intervir nos eventos de letramento, nos
estarem relacionados aos diversos domínios da usos reais da escrita.
vida dos sujeitos (familiar, religioso, escolar etc.), Essa ação, caracterizada como uma
a depender de suas relações sociais, implicam ‘ressignificação’ das práticas de letramento, deve
também diferentes ideologias2. Desse modo, a ser compreendida como um deslocamento nas
historicidade dos usos da escrita, nesse campo representações de mundo dos sujeitos,
de investigação, é, pois, de fundamental acarretado pelas interações com os objetos de
relevância, pois o fato de serem os sujeitos conhecimento ou com os outros sujeitos de
singulares e histórica e culturalmente situados diferentes representações de mundo, facultadas
justifica os letramentos dos quais participam pela esfera escolar, conforme ‘horizontaliza’ as
(Barton & Hamilton, 1998, p. 12). práticas de uso da linguagem (Kalantzis & Cope,
Assim, o conceito de letramento toma as 2006), especialmente as práticas de uso da
formas particulares de uso da escrita como escrita, função sine qua non da instituição escolar.
decorrentes de regras sociais mais amplas, o que Mais adiante, noutra seção, as reflexões do
significa que essas práticas orientam-se por presente trabalho dedicar-se-ão justamente a
modelos culturais de ação no mundo, ou seja, as investigar ‘como’ os autores da área têm
práticas de uso da escrita cumprem propósitos. sugerido promover essa horizontalização.
Em decorrência disso, não há como hierarquizá- Cabe acentuar que outros dois importantes
las (em simples e complexas, por exemplo), uma conceitos dos NEL são os conceitos de modelo
vez que as diferentes práticas decorrem também autônomo e modelo ideológico de letramento
de diferentes papéis sociais dos sujeitos. (Street, 2000). Na concepção que orienta o
Não obstante, mesmo não podendo ser ‘modelo autônomo’, concebe-se a escrita como
hierarquizados é possível considerar que alguns autônoma, como completa em si mesma, com
usos da escrita podem ser mais influentes ou qualidades que lhes são intrínsecas, o que a
gozar de mais prestígio que outros, conforme se desvincula dos contextos socioculturais de uso.
aproximem ou se distanciem dos letramentos Nesse paradigma, caberia aos sujeitos ‘acessar’ o
dominantes, ou seja, daqueles perenizados, código escrito para terem suas condições
cristalizados, consagrados hegemônicos cognitivas alteradas, desenvolvidas, já que o
historicamente (Street, 2000). domínio da escrita é condição causal para o
Nesse sentido, Street (2000) desenvolve os progresso, para a mobilidade social e também
conceitos de (i) práticas e de (ii) eventos de para a erudição, aceitando-se que o código
letramento. ‘Práticas de letramento’ referem-se escrito provoca efeitos universais
Bastam as notícias de algumas pesquisas,
2Estamos compreendendo ideologia como
representação da realidade, conforme ideário
bakhtiniano.
como as de Luria (1976)3 e as de Scribner e Cole outra, de forma que as práticas de letramento
(1981)4 (apud Kleiman, 1995, pp. 23-26), para se são concebidas como uma ‘continuidade’ do
compreender que “o tipo de 'habilidade' que é desenvolvimento linguístico dos sujeitos, já
desenvolvido [com o uso da escrita] depende da marcados por práticas orais.
prática social em que o sujeito se engaja quando Barton e Hamilton (1998) também
ele usa a escrita.” (Kleiman, 1995, p. 25). Isso mostram, conforme documentam letramentos
significa, por exemplo, que as habilidades cotidianos que não são reconhecidos pelos
creditadas ao contato com ‘a escrita’, como as de discursos dominantes, como os letramentos são
classificação, categorização, raciocínio lógico- constituídos ideologicamente e estão enovelados
dedutivo e memorização, decorrem, na verdade, em relações de poder. Também atestam que as
da ‘escolarização’, ou seja, das práticas de instituições de poder (como a escola, por
letramento nas instituições formais de ensino, e exemplo) tendem a legitimar apenas as práticas
não da escrita em si. de letramento dominantes.
A despeito dos resultados dessas pesquisas, Kleiman (1995) chega à mesma conclusão,
essa concepção autônoma de letramento parece analisando as práticas de letramento escolar,
orientar a compreensão tradicional de tanto no contexto americano quanto no
‘alfabetização’ no Brasil, inclusive a dos gestores contexto brasileiro, e afirma que a escola segue
públicos. Street (2003), por exemplo, trava um mantendo as desigualdades sociais, na medida
confronto com agentes governamentais, ao em que conduz os estudante pelas trilhas já
diagnosticar que as políticas educacionais se anteriormente sugeridas pela classe social a que
baseiam nesse modelo de letramento, o que pertencem. De maneira geral, para a autora, “as
contribui para fortalecer o atroz ‘mito do falhas [educacionais] [...] são decorrentes dos
letramento’ (Gee, 2008). próprios pressupostos que subjazem ao modelo
Já o ‘modelo ideológico’ de letramento de letramento escolar” (Kleiman, 1995, p. 47).
concebe a escrita não como detentora de Giroux (2011), por isso, chama atenção
qualidades imanentes, mas como um artefato para o que temos compreendido ser uma
cultural, como um aspecto das estruturas de manifestação política acerca da concepção de
poder de uma sociedade, como um sistema ‘alfabetização’ (no sentido freireano)
ideológico e que, por isso, pode ser contestado. denunciando a natureza ideológica do
Nesse sentido, como as práticas de uso da conhecimento e afirmando que
escrita são socioculturalmente determinadas,
assumem significados específicos, a depender O importante a reconhecer aqui é a necessidade de
dos contextos e das instituições em que estão reconstituir uma visão radical da alfabetização que
presentes. Subjacente ao conceito freireano de gire em torno da importância de nomear e
‘alfabetização’ parecem estar os mesmos transformar as condições ideológicas e sociais [...].
Seria fundamental, também, desenvolver um discurso
princípios desse modelo de letramento, embora
programático para a alfabetização como parte de um
o autor não se refira a esse campo conceitual. projeto político e de uma prática pedagógica que
Uma diferença importante entre um ofereça uma linguagem de esperança e de
modelo e outro, para o enfrentamento dos transformação dos que lutam no presente por um
problemas linguísticos na esfera escolar, é, por futuro melhor (Giroux, 2011, p. 41).
exemplo, como se relacionam com a modalidade
oral. Como no modelo autônomo a escrita é Temos, assim, especialmente com Street
concebida em sua imanência, em seu (2000) e Giroux (2011), fundamentos
funcionamento lógico interno, as práticas de conceituais tanto para contestar a homologação
letramento opõem-se à modalidade oral, sendo exclusiva dos letramentos considerados
superiores a ela. Assim, usar a linguagem escrita dominantes quanto para advogar em prol de
implica, muitas vezes, uma ruptura com a uma reforma política em torno do que pode ser
oralidade. Já o modelo ideológico opera com a aceito no uso social da escrita.
noção de ‘interface’ entre fala e escrita: há
compartilhamentos entre uma modalidade e Implicações educacionais
teoria de letramento acarreta uma teoria de sugerir que os gêneros sejam os objetos de
aprendizagem. Às novas práticas sugeridas, ensino, uma vez que Oliveira (2010), no quinto
dedicamo-nos nesta seção, considerando as capítulo do livro, desenvolve, como prática
propostas de diversos autores que integram a pedagógica inovadora e promissora, a proposta
obra Letramentos, de Vóvio, Sito e De Grande de Kleiman6 (apud Oliveira, 2010) de se trabalhar
(2010). com ‘projetos de letramento’ para a constituição
Boa parte do livro parece sugerir um modus de uma nova cultura de ensino e de
operandi para a horizontalização das práticas de aprendizagem. Essa proposta consiste em o
letramento na esfera escolar, a fim de torná-las professor partir de questões específicas do
mais dialógica e minimizar os efeitos dos contexto escolar, dos problemas e/ou situações
violentos processos de discriminação, de diversas de interesse dos alunos, para mobilizá-
aculturação a que alguns grupos sociais têm sido los a agir no mundo, ‘via’ gêneros.
submetidos. Nesse sentido, um importante Os projetos de letramento representariam
postulado conceitual que permeia todos os uma possibilidade de horizontalização das
capítulos da obra é o de que os usos da práticas de letramento (Kalantzis & Cope, 2006),
linguagem estão diretamente relacionados com na medida em que os sujeitos, a fim de realizar
as ‘construções identitárias’5 dos sujeitos, as mais diversas ações para a execução dos
compreendendo que essa construção se realiza projetos, teriam que participar de diferentes
discursivamente, conforme os sujeitos se ‘eventos’ de letramento, não necessariamente
engajam em diferentes práticas sociais mediadas aqueles já praticados nos grupos socioculturais
pela escrita. de que fazem parte.
Debruçando-se sobre como a ação do Por isso, a escola não lidaria apenas com as
professor da área da linguagem pode ser mais práticas de letramento hegemônicas ou mais
plural, Bunzen (2010), no quarto capítulo do prestigiadas (cujos eventos são mediados por
livro, observa que a cultura escolar tem sido gêneros já homologados globalmente7, como a
paladina da escrita, tendo em vista a natureza ‘dissertação’, o editorial, o romance, a notícia
escritural dos objetos de conhecimento a que se etc.), bem como não agiria para promover
dedica e, como seus saberes gozam de grande ‘acesso’ ao que é dominante, pressupondo um
prestígio social, os letramentos escolares movimento em direção às práticas de letramento
também usufruem de grande autoridade em hegemônicas. Antes, promoveria a
nossa cultura. Talvez, por isso, a escola ainda horizontalização das práticas de letramento a
seja uma via para a legitimação de práticas de partir de imersões, de ‘vivências’ dos sujeitos em
letramento, podendo contribuir tanto para novos modos de ‘agir’, a depender dos projetos
perpetuar práticas já prestigiadas quanto para a serem executados.
homologar outras formas de dizer que estão As instituições formais de ensino
silenciadas. colocariam, assim, sob constante escrutínio o
Para Bunzen (2010), o ‘letramento escolar’ que é familiar e o que é estranho aos estudantes,
manifesta-se por um conjunto de ‘cenas de o dado e o novo, o que é da ordem do cotidiano
letramento’, por meio da produção, utilização e e, por isso, já internalizado ideologicamente, e o
recepção de um conjunto de ‘gêneros’, que que é incomum para eles, desnaturalizando as
podem ser próprios da esfera escolar ou podem diversas representações socioculturais e
também ser convocados de outras esferas e facultando, aos sujeitos, a internalização de
reacentuados axiologicamente, a depender das outras. Essa seria uma nova ética educacional,
práticas sociais de cada contexto educacional. uma ética de valorização do pluralismo, sem cair
Isso garante a compreensão de que nas armadilhas do apagamento de discursos, em
‘letramento escolar’ não se refere a ‘um modelo busca da homogeneidade, que valoriza apenas
universal’ de práticas escolares: como o ‘uma cultura’, ou da trivialização/facilitação
conhecimento escolar é uma construção educacional, posturas que só serviriam para
coletiva, mediada pela linguagem e organizada
através de gêneros, os ‘eventos’ do letramento 6Kleiman,
escolar podem acionar uma variedade muito Angela B. (2000). O processo de
aculturação pela escrita: ensino de forma ou
grande de gêneros. aprendizagem da função? In: KLEIMAN, Angela. B.;
Com isso, porém, os NEL não parecem Signorini, Inês (Org.). O ensino e a formação do professor:
alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artes
5O conceito de identidade mobilizado é o de Hall Médicas do Sul, p. 223-243.
(2003). 7 Sobre a discussão global/local, cf. Street (2003).
Assim, em nossa compreensão, o aparato pela linguagem, assim, não seria proporcionar
conceitual dos NEL, considerando os trabalhos aos estudantes práticas de letramento de outras
aqui revisitados, fornecem elementos para uma culturas, pois isso ainda parece ter um caráter de
proposta metodológica mais radical, que ‘celebração da diversidade’ (Walsh, 2009). Mas o
desestabilize a tradição de naturalizar que estamos propondo é que
determinadas formas linguísticas a determinados
gêneros, o que, na verdade, camufla as relações a língua da escolarização deva mudar, de
históricas e de poder que os constituíram de modo a corresponder à língua da criação
uma dada forma em detrimento de outras. familiar [...]. A outra alternativa é
Talvez por essa razão, Bazerman (2010) experimentar, no ensino de línguas, o uso
de materiais baseados em textos autênticos
ascenda à discussão sobre a natureza
de variedades diferentes. [...] A ortografia
‘condominal’ das palavras, afirmando que para tal língua pode ser constituída de
povoamos as palavras dos outros com as nossas modo a permitir variação máxima (Makoni
intenções, o que vem a corroborar para o & Meinhof, 2006, p. 200).
entendimento de que já passou da hora de se
admitir que grupos culturais minoritários Relembremos que uma primeira dificuldade
‘paguem’ também a parte do ‘aluguel’ que lhes que se apresenta a um sujeito que ingressa no
cabe, facultando-se a eles a possibilidade de sistema formal de educação é adaptar-se às
imprimir suas marcas também no mundo práticas de letramento específicas do domínio
simbólico da escrita. educacional e, consequentemente, aos seus
Destarte, consideramos que as implicações eventos de letramento. Lea e Street (1998), por
decorrentes da estreita relação conceitual entre exemplo, argumentam que a complexidade dos
cultura e linguagem, na perspectiva dos NEL, usos da linguagem na universidade,
poderiam ter chegado um pouco mais longe, especialmente a da produção textual, está
propondo intervenção na constituição da relacionada a questões de ‘epistemologia’ e de
convenção nacional da escrita. Já sabemos que ‘identidade’ dos sujeitos. Para os autores, o que
todas as sociedades ‘convencionam’ um forma está em jogo, quando ingressam na esfera
de escrita, uma norma-padrão8 para operar em acadêmica (e expandimos essa mesma
contextos institucionais, a fim de funcionar compreensão para a escola básica), é a própria
como uma força centrípeta num território subjetividade dos sujeitos.
nacional. A norma-padrão brasileira, aquela com Zavala (2010, p. 72) também observa que o
a qual a escola opera, já que é uma instituição “uso linguístico constitui só uma parte de algo
formal, foi erigida sob fortes fundamentos de mais amplo [...] e que também envolve pensar,
exclusão da diferença, identificados com sentir, valorizar e atuar de uma forma
propósitos colonizadores, de forma que ela determinada”, de forma que, quando o ensino
também precisaria ser reformulada, com o de língua rejeita certos usos linguísticos, está, na
objetivo de refletir a diversidade sociocultural verdade, rejeitando o modo de pensar, de sentir,
nacional. de valorizar e de atuar dos sujeitos.
Notemos que argumentar em prol de um No bojo dessas reflexões, situamos os
ensino mais dialógico, mais plural, que estudos de Lillis (2003) que, nesse sentido,
horizontalize as práticas de letramentos dos pleiteia uma abordagem dialógica sobre o ensino
estudantes, que reconheça os usos da escrita de línguas, o que significa rejeitar discursos
como circunscritos em situações comunicativas autoritários e admitir que a diferença está
específicas não é suficiente, por dois principais sempre em jogo (Lillis, 2003), reexaminando o
motivos: em primeiro lugar, porque essas que pode contar como conhecimento, como
afirmações são muito genéricas, de caráter identidade. Do ponto de vista da superfície da
epistemológico e, talvez, teórico, enquanto a língua, reexaminar o que conta como estrutura
lógica do saber (e fazer) docente é de natureza linguística levar-nos-ia a admitir outras formas
pragmática (Valsechi, 2010); em segundo lugar, de uso da língua, uma vez que as “formas de
porque mais produtivo seria abalar os padrões escrita caminham juntas às formas de pensar e
institucionais legitimados socialmente, para a as operações cognitivas envolvidas são, por sua
escola não ter que “remar contra a maré”. vez, inseparáveis da compreensão subjetiva e
A melhor forma de aceitarmos a diferença contextualizada que a pessoa faz do mundo”
(Zavala, 2010, p. 81).
8 Sobre a institucionalização da norma-padrão, A esta altura cabe acentuar que, mesmo
conferir discussão em Faraco (2008).
com o discurso (perverso) existente na ainda não se aproxima do ponto crucial, que é o
atualidade que apregoa que, com a tratamento a ser dado às formas linguísticas
universalização do ‛acesso’ da educação formal numa perspectiva sociocultural de linguagem.
(concepção emergente do ‘modelo autônomo’ Em nossa compreensão, o arcabouço
de letramento), todos terão as mesmas conceitual dos NEL poderia promover
oportunidades para acessar os recursos materiais propostas bem mais desafiadoras para a esfera
e para exercer cidadania, Kalantzis e Cope educacional, do ponto de vista de uma
(2006) argumentam que, sendo a educação um orientação política sobre as práticas de
processo de transformação, a distância entre a letramento. Considerando um sentido mais
cultura educacional e a cultura do estudante faz radical do conceito de letramento, ao qual
com que essa transformação seja muito mais estamos nos filiando, “a alfabetização crítica
‛difícil’ para alguns grupos do que para outros. significa fazer com que a individualidade de cada
Neste contexto, a escola, ao invés de um esteja presente como parte de um projeto
promover educação por exclusão, por moral e político que vincula a produção do
assimilação (Kalantzis & Cope, 2006) ou significado à possibilidade da ação humana,
simplesmente celebrar superficialmente a comunidade democrática e da ação
diversidade cultural (Walsh, 2009), poderia transformadora” (Giroux, 2011, p. 58).
pensar em assumir, de fato, o pluralismo Para nós, admitir a individualidade de cada
cultural, materializado-o na diversidade um é, inclusive, admitir formas linguísticas
linguística que pode constituir os ‘discursos mais representativas de diferentes grupos culturais.
elaborados do mundo da escrita’ (Brito, 2012). Alguns exemplos podem ilustrar nossa
argumentação e evidenciar que, mesmo não
Considerações finais havendo um planejamento político para lidar
com a diversidade (linguística) brasileira, há
Este texto orientou-se pela seguinte focos de resistência contra a assepsia linguística
pergunta de pesquisa: ‘até que ponto as novas praticada (às vezes pela escola, outras pelos
propostas de ensino de língua decorrentes dos gramáticos e linguistas), como a emblemática
NEL produzem efeitos significativos e afirmação da Sociolinguista Marta Scherre (2005)
condizentes com esse arcabouço teórico’? de que, mesmo a norma-padrão legitimando
Para tentar respondê-la, apresentamos, na apenas a palavra ‘marejar’, seus olhos
primeira seção, os sentidos mobilizados por continuariam sempre ‘merejados’.
diferentes autores em relação aos termos Citando um último exemplo de uso
‘alfabetização’ e ‘letramento’, a fim de assinalar linguístico que, embora repudiado por
de quais sentidos os NEL se distanciam e de gramáticas tradicionais e por (alguns)
quais se aproximam. Em seguida, na segunda professores de português, é de uso frequente em
seção, apresentamos uma breve explanação diversos gêneros (dos mais informais e orais aos
sobre o que significa a compreensão histórico- mais formais e escritos), lembramos o uso de
cultural assumida pelos NEL, além dos ‘mesmo’ com função referencial anafórica (em
importantes conceitos de ‘eventos’ e ‘práticas’ de estruturas do tipo “os estudantes... os
letramento, ‘modelo autônomo’ e ‘ modelo mesmos...”). Num corpus composto por 30
ideológico’ de letramento. monografias da área de Administração, Pereira
Na terceira seção, tomando como base (2013) investigou as diversas funções desse item
especialmente a obra Letramentos, de Vóvio, et al. linguístico e, considerando 972 ocorrências dessa
(2010), mapeamos ‘sugestões metodológicas’ forma, constatou que o uso do item na função
para o ensino de língua em instituições formais mais repudiada foi o mais frequente nas
de educação, com base na proposta conceitual monografias investigadas, representando 31%
dos NEL, encontrando a indicação do trabalho das ocorrências.
com ‘projetos de letramento’ para a promoção Esses são apenas alguns exemplos de que,
da horizontalização das práticas de letramento independentemente do que a escola segue
dos estudantes. legitimando ou não, o trabalho dos sujeitos com
Em seguida, na quarta seção deste texto, a língua resiste às tentativas de apagamento das
refletindo efetivamente sobre a pergunta de identidades culturais, comprovando que ela [a
pesquisa, consideramos que a proposta língua] é um “fenômeno ideológico por
metodológica descrita na obra Letramentos, excelência” (Bakhtin, 2006 [1929] p. 34), situada
apesar de produtiva, principalmente para alterar na ‘arena’ da luta de classes.
concepções que envolvem o ensino de língua, Finalmente, em relação à possibilidade de