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No Justificando
A pergunta é grave, porque lança um anátema sobre a mais significativa ação do Ministério
Público no combate à corrupção. Se a resposta é afirmativa e parte de um membro da
instituição, o caso é gravíssimo, porque se atribui sempre algum nível de credibilidade à fala
do insider. E a gravidade do libelo poderá lançá-lo a um ostracismo impiedoso. Feitas as
contas, vamos à tarefa.
Os múltiplos fascismos que pulularam no mundo tornam difícil a tarefa de discernir um ideário
comum, embora, com certa facilidade, pudéssemos apontar, na década de 1930, os regimes
de inspiração fascista. Não se tratava de uma forma de organização do estado, tampouco de
uma teoria política. Era retoricamente revolucionário porque prometia uma radical
transformação da sociedade, embora conservador em sua promessa de assegurar às classes
altas e médias a manutenção da ordem e da moral tradicionais. Ensina Hobsbawm, em Era
dos extremos, que “os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução: em sua
retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas das sociedade, em sua convocação a
uma total transformação da sociedade”; “denunciavam a emancipação liberal […] e
desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes
modernistas” (p. 121).
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05/05/2019 Wilson Rocha Assis: Há fascismo na Lava Jato?, por Wilson Rocha Fernandes Assis - GGN
Dito isso, a aproximação da Lava Jato com o fascismo certamente guarda dificuldades. Além
do distanciamento histórico, há na atualidade um conjunto de atores e instituições inédito.
Contextualizando, no limiar do século XXI, o neoliberalismo reformulou a administração
pública impondo-lhe métricas de eficiência com pouca permeabilidade democrática. O
ativismo do poder judiciário foi fomentado e, depois, aperfeiçoado em complexos processos de
planejamento estratégico. A autonomização do judiciário foi tolerada na medida em que
percebida como um instrumento de eficientização do próprio estado. Novos tempos,
certamente.
A crise capitalista iniciada em 2008 fez crescer a insatisfação social e estimulou novas formas
de ação política, com forte questionamento das instâncias tradicionais de representação.
Novas formas de mediação social desafiaram os mecanismos tradicionais de intermediação
política. Entra aqui o fenômeno radicalmente novo das redes sociais. No sistema de justiça, o
mural da repartição, o edital, as portarias tornaram-se anacrônicos diante da velocidade e dos
baixos custos das redes sociais. Para o Ministério Público, moldado constitucionalmente para a
defesa da ordem democrática, tornou-se sedutor atravessar o caminho das representações
tradicionais – partidos políticos e parlamento, sobretudo – para construir diretamente com o
corpo social novos consensos democráticos. A burocracia bem formada, situada no topo da
Administração, não resistiu à tentação e foi às ruas.
Até aqui, poder-se-ia discutir o acerto da estratégia, a efetividade dos instrumentos propostos
ou os limites a serem observados pelo Ministério Público em sua interlocução direta com a
sociedade. Mas não haveria que se falar em fascismo. A Lava Jato, embora ensaiasse, não
havia ainda lançado um esforço sistemático de mobilização popular. A virada ocorre com o
projeto das “Dez medidas contra a corrupção”. Tratava-se de um projeto de lei redigido nos
gabinetes do Ministério Público Federal, mas apresentado à sociedade como um projeto de lei
de iniciativa popular.
Lançada pela Lava Jato, a iniciativa é encampada pela cúpula da instituição e corre o Brasil
financiada com recursos do Ministério Público Federal. Servidores públicos receberam
incentivos funcionais para colher assinaturas em diversos espaços sociais. Procuradores da
República viajaram pelo país divulgando o projeto de lei. Projeto de lei apresentado como de
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iniciativa popular, mas elaborado por funcionários públicos, divulgado em campanhas oficiais
de marketing, com coleta de assinaturas financiada com recursos públicos. O paradoxo era
evidente, mas também era conveniente. Tratá-lo como um projeto de iniciativa popular
amarfanhava legitimidade à proposta e incrementava o capital institucional em meio a uma
cruzada contra poderosos. Havia guerreiras e guerreiros sinceramente devotados na
infantaria. Mas não houve cálculo estratégico. O Congresso Nacional acusou a manobra.
Não teço comentários sobre o conteúdo da proposta, apenas chamo a atenção para o flerte
com uma estratégia fascista: a promessa revolucionária, a mobilização das massas, o
apagamento da distinção formal e essencial entre Estado e sociedade. Não faltou o
personalismo de um herói, o apelo aos valores tradicionais, o medo da classe média frente à
crise econômica, os escândalos de corrupção desencadeados por um governo de esquerda. O
avanço da operação policial-judicial proporcionou méritos concretos no combate à
criminalidade, comparáveis aos de Mussolini. Ensina Hobsbawm que o fascismo foi “o único
regime italiano a conseguir suprimir a Máfia italiana e a Camorra napolitana” (p. 131). A
promessa da Lava Jato, para além das vicissitudes democráticas e contratempos históricos,
estava lançada: doravante, não haverá crime sem pena.
No caso mais recente da fundação anunciada a partir do acordo dos membros da Lava Jato
com a Petrobrás, duas questões chamam a atenção. Primeiro, a criatividade institucional.
Segundo, a justificativa de que a nova entidade será gerida pela sociedade, em benefício da
sociedade.
Já o item 2.4.1, (ii), pretende garantir a legitimidade da proposta por meio da pluralidade
institucional de sua gestão, da transparência quanto ao critérios para tomada de decisões e
pela ampla consulta e participação social.
Ora, os itens 2.4.1, (i) e 2.4.6 colidem frontalmente com o item 2.4.1, (ii), quando excluem
da pluralidade institucional pretendida para a gestão da nova fundação grupos ou pessoas
ligadas a partidos políticos. Vale lembrar que os partidos políticos destinam-se a assegurar, no
interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os
interesses definidos na Constituição Federal, conforme artigo 1o., da Lei n. 9.096/95. Atento
às entrelinhas do Acordo, vê-se que Lava Jato não apenas exclui os partidos políticos,
agremiações centrais da vida democrática brasileira, mas pretende exatamente criar
legitimidade em razão desta exclusão. O equívoco é tremendo.
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Bom, mas isso é fascismo? Pode-se dizer que houve no fascismo um grande esforço para dar
a volta nos mecanismos formais de representação democrática, consolidando poderes que
exorbitavam os limites da lei e feriam a democracia, em prol de transformações favoráveis no
tecido social. Tudo foi feito em favor da sociedade. As vicissitudes e contratempos do regime
democrático foram preteridas em prol da eficiência das instituições, segundo a visão
privilegiada de um chefe. Dizia-se na Itália que “Mussolini fez os trens rodarem no horário”.
Por fim, para bem entender como o fascismo pode imiscuir-se em projetos inovadores de
engenharia social, vale dizer que ele não é uma ideologia. Segundo Hobsbawm, “a teoria não
era o ponto forte de movimentos dedicados às inadequações da razão e do racionalismo e à
superioridade do instinto e da vontade”. A suposta banalização de seu uso não constitui um
erro teórico, mas é expressão de sua natureza imprecisa e difusa. A identificação de suas
características em fenômenos políticos contemporâneos demonstra a não superação da
realidade histórica que marcou seu nascimento. Hoje, como na década de 1930, crises
econômicas que ameaçam o status quo de grupos estabelecidos fazem emergir movimentos
ao mesmo tempo reformistas e regressivos, que desafiam a democracia liberal.
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