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ATUALIDADES

“Three tomatos are walking down the street, a


Tarantino, poppa tomato, a momma tomato, and a little
baby tomato. The baby tomato is lagging behind
Deleuze, the poppa and momma tomato. The poppa
tomato gets mad, goes over to the baby tomato
Baudrillard, and stamps on him and says: — Catch up!”

tomates A PIADINHA polissêmica contada por Mia a


Vincent em Pulp Fiction narra a saga de um
pequeno bebê tomate: ao ser instado pela
ordem paterna de acompanhar o passo, é
atingido e vira suco. O tomate que virou suco.
A diégesis, no entanto, não se contém no
limite de seu enquadramento fílmico e, como
metáfora, atinge o espectador. Manter o pas-
so com a sucessão dos fotogramas taran-
tinianos é virar suco a cada seqüência. OK.
Mas sigamos um pouco mais o percurso desta
metáfora que não se detém: o espectador, na
sala e fora dela, não é ele o homem pós-
moderno? O ex-atendente de video-locadora
nos alerta para uma escolha polissêmica:
manter o passo com o mundo (pós-moderno),
ou virar suco.
Na comédia pastelão atiram-se tortas,
em lugar de tomates. Versão antiga do suco.
A celeuma em torno da obra do californiano
diretor tem-nos programado surpresas as mais
diversas. Pequenas guerras civis, grandes
comoções nacionais. Debates, tapas, bofetões.
Sem nos determos em versões tupiniquins,
tomemos um exemplo (mais um) de um dos
lados contendores:

“No sé si Tarantino es un psicópata,


desde luego su personaje lo es... para
dementes que se regodean en el sadis-
mo... un país como Estados Unidos, con
un índice de delincuencia exagerado,
sólo le faltaba lo que ahora tiene que
mostrar Tarantino . . . una forma repul-
siva de ver la violencia: domesticándo-
la . . . un falsario . . . el ejemplo supremo,
máximo, de la más absoluta falta de
comunicación. Pulp Fiction no cuenta
nada, no dice nada, no habla de nada, no
expresa nada.”(Delgado 1995: 94-102)
Fernando Mascarello
Mestrando em Comunicação / PUCRS De outro lado, uma quase beatlemania,

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destino apropriado – em tempos de mídia – jorrar, e feio. Mas estes filmes terminaram
para um psicopata em potencial (vide Assas- com a apreciação e estima relativamente ge-
sinos por Natureza). Culto que se verifica em ral. Fundamentalmente, porque seus direto-
todos os níveis: grande público, cinefilia, res tinham o incansável (hoje) “comprometi-
tietagem levada a sério, crítica, etc. Mas seu mento político” – ainda que algo heterodoxo –
avatar mais contundente talvez seja o da fosse na forma de romantismo revolucionário
própria reelaboração artística; o quadro é bem ou de alegoria da intervenção americana no
resumido por Ronson, do Independent (citado sudeste asiático.
em Dawson 1995: 207): Pois Quentin só se compromete com
trash e diversão. A própria palavra soa forte
“. . . fui ver Amateur, de Hal Hartley, no demais em se tratando dele. Mas apenas esta
qual dois atiradores discutem as vanta- incorreção política dá conta do pastelão mo-
gens relativas do telefone celular antes ralista a que temos assistido? Evidente que
de explodirem seu alvo. No dia seguin- não. Outras entradas se fazem necessárias.
te, assisti às projeções de final de semes- A sociedade pós-industrial é o reino da
tre da National Film School. De cada simulação midiática, e este é o universo
cinco filmes dos alunos, quatro incorpo- diegético de Tarantino. São dois universos
ravam violentos tiroteios a uma trilha que se tangenciam. Para compreender o mes-
de pop hits iconoclásticos dos anos 70, tre-de-cerimônias do circo da violência, é
dois terminavam com todos os persona- mister invocar os dois grandes teóricos con-
gens disparando uns sobre os outros, e temporâneos do simulacro: Gilles Deleuze e
um tinha dois homens discutindo as Jean Baudrillard.
idiossincrasias de The Brady Bunch an- No regime de simulação baudrillar-
tes de ‘apagarem’ sua vítima. Desde diano, a mídia é responsável pela produção
Cidadão Kane não aparecia um homem desenfreada de signos que já não guardam
vindo de uma relativa obscuridade para atrelamento com a realidade. O hiper-real
redefinir a arte do cinema.” assim produzido almeja ser mais real que a
realidade que já não é.
Bem claro que a idolatria deforma e O pensador francês organizou a história
exagera. Os méritos, não o são de um só da imagem em quatro estágios sucessivos.
homem, nunca. A produção brasileira de No primeiro, o signo “é o reflexo de uma
“cine-violência”, por exemplo, já era objeto realidade profunda” (1991: 13). A seguir,
da reflexão de Bernardet em 1994. Ao “mascara e deforma uma realidade profun-
americano, no entanto, coube o papel de da”. No terceiro, a imagem “mascara a ausên-
aglutinar a atenção do imaginário cia de uma realidade profunda”. E no último,
internacional com respeito ao que Jean-Claude ela já “não tem relação com qualquer reali-
propõe chamar a “crueldade irônica” de certa dade: ela é o seu próprio simulacro puro”.
produção cinematográfica contemporânea. Tarantino parece querer inaugurar uma nova
Por outro lado, a polêmica envolvendo etapa: seu cinema oferece um novo estágio, o
filmes cuja temática é a violência não é nenhu- da simulação do simulado, re-simulação do
ma novidade. Bonnie and Clyde (Arthur Penn, fabricado. O referente parasitado de seu sig-
1967) foi unanimemente atacado pela crítica no não é a violência, mas a representação dela
quando do lançamento; logo a seguir, ganha- que criativamente vimos nos oferecendo. Fos-
ria dez indicações para o Oscar. Algo seme- se Tarantino brasileiro, sua imagem seria o
lhante ao que se passou com Meu Ódio será simulacro de Gil Gomes.
tua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, É oportuno lembrar as considerações
1969). Ambos são marcos no desenvolvimen- traçadas pelo norte-americano Fredric
to da linguagem no que diz respeito à repre- Jameson – embora dentro de uma ótica do
sentação da violência. O sangue começava a político – sobre a problemática da estetização

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da realidade. Segundo sua teoria da visão no de invocarmos Deleuze. Se ele não sobrevi-
século XX (Jameson 1994), experimentamos veu para pensar o cineasta norte-americano,
recentemente a passagem de um momento seu aparato conceitual brinda-nos com a pos-
foucaudiano a um outro pós-moderno do sibilidade de refletir sobre a sociedade pós-
olhar. No primeiro, ainda era viável uma moderna de uma maneira mais positiva que o
reflexividade e auto-consciência a respeito da apocalíptico Baudrillard.
sociedade e de sua relação com a tecnologia O simulacro de Deleuze é muito mais
da imagem midiática. No pós-moderno, po- construtivo. A hiper-realidade é o real. Como
rém, “a reflexividade como tal se submerge aponta Shaviro (1993: 5), “as aparências são
na pura superabundância de imagens como instáveis, e devem ser continuamente
em um novo elemento no qual respiramos reinterpretadas – não para descobrir a verda-
como se fosse natural” (1994: 120), criando de, mas precisamente porque não existe ne-
um impasse. nhuma verdade profunda”. Onde Baudrillard
O olhar tarantiniano propõe um novo propõe a “simulação como uma perda de
estágio: busca ser reflexivo aravés de uma real”, Deleuze a indica como “uma produtiva
estetização do estético. intensificação da realidade”.
Voltemos ao campo da simulação. O Mas se o hiper-real é o real, como tatuar-
parasitismo da imagem-simulacro do cineas- mos nele a nossa marca? Desesperada e nos-
ta sobre o representado dá-se através da paró- talgicamente, sonhando com as utopias per-
dia. Os formalistas russos falam dela como didas? Tarantino nos sugere uma produção
uma “decolagem” do texto parodiado através alternativa de real simulado. A simulação
do desnudamento de seus mecanismos. O midiática é inatacável. Pois ele, em face disto,
mecanismo obsoleto não é descartado, mas aceita o jogo e passa a usar de seus mesmos
repetido em um novo e incongruente contex- expedientes, produzindo, aqui e ali, um real
to, o que o caricatura e torna perceptível. com um viés diferenciado, para um público
Aqui se iniciam as dificuldades na recepção leitor disposto a buscá-lo.
do cinema de Tarantino: o simulacro contem- Seguindo à risca as concepções
porâneo representado é um vírus assaz resis- bakhtinianas, o garoto do Tennessee marca
tente ao desnudamento. sua presença na arena de competição entre
Q.T. sabe muito bem disso; esta a sua textos e vozes que convivem na controvertida
mágica e brincadeira. E eis então a origem de formação cultural do pós-moderno.
todo o embate crítico e acadêmico de que E os tomates? A verdade é que a escolha
temos sido testemunhas: o simulacro polissêmica era também uma simulação. Para
tarantiniano do simulacro pós-moderno é manter o passo com o contemporâneo, urge
cônscio de seus limites. A inexpugnabilidade virar suco .
da imagem midiática revela-se na linguagem
do diretor em todo o seu absurdo. O
desnudamento da simulação representada
não se efetua integralmente. Pelo contrário, Bibliografia
estaciona perigosamente em uma terra de
ninguém. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio
Melhor dizendo, o texto parodista con- d’Água, 1991.
funde-se com o parodiado. É o carimbo no
passaporte de Tarantino para seu ingresso no BERNARDET, Jean-Claude. “A crueldade irônica: a nova
país do sórdido, do psicopático, do reacioná- fórmula de violência no cinema dos anos 90”. In: Imagens, 2,
rio. Campinas: Unicamp, 1994.
O que o videolocador propõe então é o
convívio com o jogo dos simulacros. Não COOK, David A. A history of narrative film. Nova Iorque:
podendo vencê-lo, une-se a ele. E é hora assim Norton, 2a. ed., 1990.

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DAWSON, Jeff. Quentin Tarantino: the cinema of cool. Nova
Iorque: Applause, 1995.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil mesetas: capitalismo


y esquizofrenia. Valência: Pre-textos, 1988.

DELGADO, Francisco; PAYAN, Miguel Juan; UCEDA, Jacinto.


Quentin Tarantino. Madrid: Ediciones JC, 1995.

JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno


e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

SHAVIRO, Steven. The cinematic body. Minneapolis: University


of Minnesota Press, 1993.

TARANTINO, Quentin. Pulp Fiction. Nova Iorque: Miramax


Books, 1994.

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