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UCAM – UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

ROSÂNGELA DE OLIVEIRA MARTINS

O “ESPIRITISMO BRASILEIRO” E SUA RELAÇÃO COM OS CATÓLICOS

VITÓRIA DE SANTO ANTÃO – PE


2019
UCAM – UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
ROSÂNGELA DE OLIVEIRA MARTINS

O “ESPIRITISMO BRASILEIRO” E SUA RELAÇÃO COM OS CATÓLICOS

Artigo Científico Apresentado à Universidade


Candido Mendes - UCAM, como requisito parcial
para a obtenção do título de Especialista em
Teologia.

VITÓRIA DE SANTO ANTÃO – PE


2019
1

O “ESPIRITISMO BRASILEIRO” E SUA RELAÇÃO COM OS CATÓLICOS

Rosângela de Oliveira Martins1

RESUMO

A preocupação básica deste estudo é fazer uma abordagem das relações espiritismo/catolicismo,
durante o processo de formação do espiritismo moldado à brasileira, enfatizado em seu aspecto
religioso, no Brasil. Salienta-se que a nova doutrina despertou por um lado a ira da Igreja Católica e,
por outro, a simpatia e aceitação de parte dos fiéis católicos. Para colocar estas questões em discussão,
realizou-se uma pesquisa bibliográfica entre as obras de KARDEC (1857-1869) e as de outros autores,
que colaboraram para compor os argumentos deste trabalho. Através das análises destas relações em
paralelo às propostas espíritas, este artigo tem como objetivo chegar ao entendimento das
características multifacetadas da doutrina espírita, capazes de guiar a sua expansão e de se fazer
abraçar pelos fiéis cristãos.

Palavras-chave: Catolicismo. Católicos. Espíritas. Espiritismo. Igreja Católica.


Religião.

Introdução

O presente trabalho tem como tema o destaque das características assumidas


pelo “espiritismo brasileiro” que colaboraram para a sua aceitação, especificamente,
entre parte dos católicos. Porém, tal situação nunca foi bem vista pela Igreja Católica,
o que gerou, e ainda tem gerado, uma relação de conflito e de dúvidas.
Nesta perspectiva, construiu-se questões que nortearam este trabalho:
 O que é o espiritismo: ciência, filosofia cristã, religião?
 Pode um fiel ser católico e espírita ao mesmo tempo?
No meio destes questionamentos e diante desta relação conturbada, estão o
católico e o espírita que, muitas vezes, pela falta de um estudo mais aprofundado,
acabam por omitir suas verdadeiras crenças ou mesclá-las de acordo com a sua
própria lógica criada a partir do senso comum.

1Bacharel em Comunicação Social pela FACHA-Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso


e Pós-graduanda em Teologia pela UCAM-Universidade Cândido Mendes
2

Daí a importância de, inicialmente, reportar às origens do espiritismo na


França, para se apurar a essência dessa doutrina decodificada por Allan Kardec. A
partir das obras do próprio Kardec, escritas entre 1857 e 1869, e de outros autores, é
estabelecida uma discussão sobre as características natas e as assumidas pelo
espiritismo no Brasil. Depois, com a contribuição de Arribas (2009-2017), segue-se
por um breve resumo histórico contextualizado da caminhada do espiritismo no Brasil,
pela via religiosa.
Enquanto os estudos de Brandão1, citado por Kitagawa (2013), revelam a
existência de um “catolicismo popular”, Stoll (2004) destaca as influências católicas
no espiritismo.
Destaca-se também a posição da Igreja Católica Apostólica Romana, através
de Andrade (2012), que estuda o legado de Frei Boaventura (1919-2009), um dos
maiores defensores do catolicismo no Brasil. Em ataques direcionados ao espiritismo,
ele atua no país como porta voz das determinações ditadas pela Igreja, cujas
orientações aos católicos continuam sendo replicadas pelos mais tradicionais e
conceituados clérigos.
Mas apesar do firme posicionamento da Igreja Católica contra o espiritismo,
dados do IBGE sobre o censo de 2010 registram as mudanças no perfil religioso do
país. Com a colaboração de Becceneri e outros (2017), que expõem o perfil
sociodemográfico dos espíritas no Brasil, amplia-se o entendimento dos fatores que
levam à sua expansão.
Auxiliados pelos trabalhos de Carvalho (2019), Stool (2004), Becceneri e
outros (2017), e Lewgoy (2008-2011), constata-se o êxito do “espiritismo brasileiro” a
ponto de ser levado para outros países.
Autores como Grijp (1976) e Cerqueira (2012) defendem o diálogo para
minimizar os conflitos entre católicos e espíritas e ampliar o entendimento mútuo.
Conforme descrito, para a realização deste artigo utilizou-se como recurso
metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise de materiais já
publicados na literatura e de artigos científicos divulgados no meio eletrônico. Dessa
forma, com as contribuições de todos os autores aqui citados, através da abordagem

1
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Ser católico: dimensões brasileiras, um estudo sobre a atribuição
através da religião. In Brasil e Estados Unidos. Religião e Identidade Nacional. FERNANDES, Rubem
César e outros. Rio de Janeiro: Graal, 1988, 189 p.
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desse processo de sobrevivência e de propagação do espiritismo no Brasil e no


exterior, conclui-se este artigo com a constatação das características singulares e
próprias do espiritismo capazes de responder às questões aqui propostas.

Desenvolvimento

Após vários estudos das manifestações de espíritos ocorridas em meados do


século XIX, da França o Professor Hippolyte Léon Denizard Rivail apresentou ao
mundo o espiritismo. Passando a adotar o nome de Allan Kardec, publicou vários
livros, resultados de suas pesquisas, estudos e descobertas, explicando
detalhadamente o que era a nova doutrina. Em 1857, em O Livro dos Espíritos, reuniu
seus fundamentos teóricos: “Diremos, pois, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo
tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo
invisível.” (KARDEC, 2017, p.13)
Em 1861, o Livro dos Médiuns trata a então enunciada doutrina como uma
ciência experimental, mostrando que a prática espírita, no que concerne às sessões
espíritas, deve ter finalidades de estudos e captação dos ensinamentos dos espíritos.
Em 1864, com o Evangelho Segundo o Espiritismo, ao tomar passagens dos
Evangelhos do Novo Testamento, Kardec mostra a palavra de Jesus Cristo, presente
em cada frase; obra de força ética e moral; um livro com instruções morais passadas
pelos espíritos, que reforçam os ensinamentos de Jesus descritos pelos apóstolos.
Convém observar que as definições de espiritismo dadas por Kardec se
completam. Em O que é o Espiritismo, obra de 18...

“O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina


filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem
estabelecer com os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as
consequências morais que decorrem dessas relações.” (...) “O Espiritismo é
uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos,
e das suas relações com o mundo corporal.” (KARDEC, 2009, p.8)

Em 1858, fundou a Revista Espírita – Jornal de Assuntos Psicológicos, que


foi essencial para mostrar a seriedade e a lógica da doutrina. Tendo circulado até
1869, Kardec se defendia dos ataques e críticas, relatava experiências com os
espíritos e esclarecia os leitores através desse contato mais constante. Na Revista
Espírita de dezembro de 1868 ele fala da palavra religião:
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“Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em
razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas ideias diferentes,
e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque
desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. (...)”
“(...) não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na
acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título
sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que
simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.” (KARDEC, 1868, p.491)

Para Kardec, no sentido de laço moral que une as pessoas numa comunhão
de ideias e sentimentos, com fraternidade, solidariedade e benevolência mútuas, o
espiritismo poderia ser chamado de religião. Num sentido filosófico, seria como a
religião da amizade ou a religião da família. Considerando que tem como fim a
transformação moral do homem e toma os ensinamentos de Jesus Cristo para a sua
aplicação no dia a dia, revivendo o Cristianismo na sua verdadeira expressão de amor
e caridade, é uma doutrina filosófica cristã. Porém, no significado usual da palavra, o
espiritismo não é uma religião.
Depois, Kardec resume a crença espírita de forma objetiva e explica que o
sentido de religião do espiritismo é de laço, de comunhão:

“Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e


em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do
presente; na pluralidade das existências como meio de expiação, de
reparação e de adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos
seres mais imperfeitos; na felicidade crescente com a perfeição; na equitativa
remuneração do bem e do mal, segundo o princípio: a cada um segundo as
suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem
privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação limitada à
imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre
o bem e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo visível e o
mundo invisível; na solidariedade que religa todos os seres passados,
presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre
como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterno; aceitar
corajosamente as provações, em vista de um futuro mais invejável que o
presente; praticar a caridade em pensamentos, em palavras e obras na mais
larga acepção do termo; esforçar-se cada dia para ser melhor que na
véspera, extirpando toda imperfeição de sua alma; submeter todas as
crenças ao controle do livre-exame e da razão, e nada aceitar pela fé cega;
respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam, e
não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da
Ciência a revelação das leis da Natureza, que são as leis de Deus: eis o
Credo, a religião do Espiritismo, religião que pode conciliar-se com todos os
cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve
unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando
que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.”
(KARDEC, 1868, p.494 e 495 – grifos do autor)

Pelo que foi esclarecido pelo próprio Kardec, o espiritismo, enquanto ciência,
é compatível com toda religião cristã. Enquanto doutrina filosófica, aprofunda o estudo
5

das leis morais e revela Jesus como o mais perfeito modelo oferecido por Deus para
ser seguido pela humanidade.
Kardec tenta mostrar que o espiritismo é o elo que veio para unir a ciência e
a religião. Ele coloca a explicação racional e científica do espiritismo no livro A
Gênese, de 1868. Através das suas experiências, pelas verdades reveladas pelos
espíritos, os mistérios e milagres da religião, não aceitos pela ciência como tais,
passam a ter a explicação científica. Segundo ele, com os princípios do Espiritismo
como a imortalidade da alma, a crença na reencarnação, a comunicabilidade com os
espíritos e as leis de evolução e de causa e efeito, tudo se torna compreendido.
(KARDEC,
Durante o final do século XX, o espiritismo, que foi um movimento universal,
se retraiu até mesmo na França. Lá passaram a limitar-se a poucos grupos com
ênfase mais científica. No Brasil, a história foi outra. (LEWGOY, 2008)
Arribas (2011) mostra que o caminho percorrido pelo espiritismo no Brasil
acabou por seguir pelo viés religioso por uma questão de sobrevivência. Ela explica
que o desenvolvimento do espiritismo no Brasil deu à doutrina um caráter
parcialmente distinto do espiritismo original, que tinha um aspecto mais filosófico e
científico. No Brasil, ele foi praticamente obrigado a seguir pelo caminho da religião
para que ele conseguisse sobreviver e se difundir, por causa de todo um processo
histórico-cultural-social imposto. Sofreu ataques de todos os lados: a sua
característica curativa pelos passes e com a recomendação de medicamentos
homeopáticos provocaram as associações médicas; o código penal brasileiro de 1890
previa punições a práticas espíritas; a Igreja Católica julgava seus ensinamentos e
práticas como heresias.
Então, para unificar e proteger os grupos espíritas, em 1884 foi criada a FEB.
Na época, existiam grupos espíritas que enfatizavam cada um dos aspectos da
doutrina: o científico, o filosófico e o religioso. E foi este último que ganhou força na
FEB, que colaborou para o direcionamento do espiritismo nos moldes de religiosidade.
(ARRIBAS, 2011)
Analisando o contexto brasileiro a partir da sua descoberta no século XVI,
vemos que o país passou por uma colonização basicamente católica e permaneceu
como país católico até a instauração de um Estado republicano laico, em 1889. Em
todas as áreas é incontestável as influências africanas e indígenas também. Com a
entrada dos imigrantes, após o fim da escravidão, outras religiões vieram para o país.
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Essas misturas de culturas e de crenças deram à população um caráter religioso e


místico. Por isso o Brasil tornou-se um campo fértil para a instalação de várias
religiões. Assim, o sincretismo religioso e cultural tornou o brasileiro condescendente,
a ponto de até aceitar as crenças de uma religião mesmo seguindo outra. (ARRIBAS,
2011).
Ao chegar ao Brasil, o Espiritismo não era tratado como religião; era uma nova
ciência que descobria uma filosofia de cunho moral. Entretanto, o seu
desenvolvimento no Brasil lhe atribuiu um caráter parcialmente distinto do espiritismo
original. Para Arribas (2011), a nova Constituição de 1891, tornando o país laico e
permitindo a liberdade de cultos religiosos, contribuiu para os rumos da nova doutrina,
no sentido de apontar o caminho que ela poderia seguir a fim de fugir das
perseguições do Estado e da polícia. Como religião, o Espiritismo passaria a
sobreviver de forma legal.
Segundo Stoll (2004), a inserção do espiritismo na sociedade brasileira, em
especial na classe média, deu-se em função da grande produção de literatura espírita.
Além dos livros de Kardec, Chico Xavier foi o maior responsável pela divulgação da
doutrina em nosso país. Stoll (2004) lembra que foi num contexto de disputas com o
Catolicismo que o Espiritismo foi inserido no campo religioso brasileiro. Arribas (2009)
nos confirma, relatando que as crenças na reencarnação e as manifestações dos
espíritos é que começaram a atrair simpatizantes à doutrina. Isso passou a inquietar
e provocar a Igreja Católica, apesar de as primeiras produções literárias brasileiras
definirem o Espiritismo como uma atualização dos dogmas católicos e não como uma
nova religião. (ARRIBAS, 2009)
Em seus trabalhos, Brandão, citado por Kitagawa (2013), expõe a posição de
que no Brasil a comunidade católica tem uma inclinação a aceitar modalidades
próprias religiosas. No país existe o católico praticante que conhece e procura seguir
os dogmas da religião e o católico não praticante. Portanto, esse jeito de ser católico
à sua maneira lhes permite a agregação de certos valores de outras religiões, como
por exemplo a crença na reencarnação. É uma grande massa de indivíduos auto
declarados católicos, mas que se limitam aos sacramentos e serviços da Igreja; que
têm a visão popular de exaltar santos como divindades, ao invés de segui-los apenas
como exemplo de vida.
Como Stoll (2004) explica, entre os anos de 1940 e 1950, Chico Xavier
consolidou-se como “homem santo”, sendo a figura de maior expressão espírita no
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país. Sua história de vida se assemelha a dos santos; suas qualidades morais e
práticas de caridade produzem um modelo de exemplo. Por ter sido um católico
fervoroso e ter como um dos espíritos guia um sacerdote religioso, Emmanuel, acabou
gerando um sincretismo com a tradição católica. Outros fatores aproximam a figura
do espírita Chico com o catolicismo: a renúncia ao casamento, ao sexo e a bens
materiais, inspirado no modelo monástico de virtudes católicas. Lewgoy (2011)
complementa, afirmando existir um contestado sincretismo com os valores católicos,
que foi incorporado pela FEB – Federação Espírita Brasileira, que ganhou força com
a trajetória de Chico, que o transformou em seu símbolo revestido de grande influência
católica.
Até a década de 1950, mesmo reprimidas pela Igreja Católica, certas
crendices e manifestações eram tratadas no campo do folclore. Porém, o clero viu a
necessidade de se posicionar de forma mais firme e de alertar os católicos quanto a
essas práticas tidas como não católicas. Assim, em 1952 é criada a CNBB -
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, e com ela, o Secretariado Nacional da
Defesa da Fé e Moral, que deu início à Campanha de Esclarecimento aos Católicos.
Com o mote de condenar todas as manifestações anticatólicas, Frei Boaventura
tornou-se o responsável por esclarecer e coibir movimentos espiritualistas, que foram
o maior alvo desses ataques. Então, para ser combatido, precisava ser estudado e
compreendido, o que resultou na publicação de dezenas de artigos, cadernos e livros,
todos de sua autoria, condenando as práticas espíritas. (ANDRADE 2012)
Como um dos maiores representantes do catolicismo no Brasil nos anos de
1950 e 1960, Frei Boaventura de Kloppenburg, demonstrou grande fervor pela
hegemonia da Igreja Católica que o levou a disparar violentas críticas à ebulição
religiosa da época. Caracterizada pela ascensão de outras religiões, principalmente
do Espiritismo, este passou a ser visto e tratado como uma grande ameaça. Andrade
(2012) destaca ainda que Frei Boaventura se enquadra na elite de teólogos que, como
mostra a história da própria Igreja, estabeleceu as chaves interpretativas das
escrituras sagradas e dos dogmas do catolicismo. Ele apontava a curiosidade e a
propaganda da prática da caridade como meio de salvação como alguns dos mais
eficazes artifícios utilizados pelos espíritas, para atrair os católicos. Frei Boaventura
não media críticas e ataques; denominava os espíritas como verdadeiros hereges;
proibia qualquer tipo de contato com o Espiritismo. Chegou a enumerar 40 itens que
são defendidos pelo Catolicismo e negados pelo Espiritismo, concluindo, então, que
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o Espiritismo era a negação total da doutrina cristã. Frei Boaventura se apropria do


discurso católico e o relaciona com a realidade social de cada momento de sua vida.
Teve relevante atuação e contribuição quanto à divulgação das diretrizes da Igreja
Católica aqui no Brasil, inclusive das ideias do Concílio Vaticano Il (1962 a 1965). É
quando a Igreja Católica procura estabelecer um diálogo com o mundo moderno,
tornando a linguagem católica mais acessível, mais evangelizadora e até mais
tolerante e ecumênica. Afinal, era necessário compreender o homem moderno para
conseguir agir e mudar a sua postura considerada inapropriada pela Igreja Católica.
Ainda hoje podemos ver seus trabalhos utilizados como referências para
argumentação de vários religiosos em defesa da Igreja. (ANDRADE 2012)
Brandão, citado por Kitagawa (2013), explica essa postura, dita inapropriada,
esclarecendo que o catolicismo é “tido como domínio do universo religioso brasileiro
regido por uma única Igreja de uma só religião, com muita frequência é dividido – tanto
por cientistas sociais quanto por agentes eclesiásticos – em um “catolicismo oficial” e
um “catolicismo popular”.” . Lewgoy (2008) complementa ao dizer que a reencarnação
é importante presença nas crenças da população brasileira, que em sua maioria é
católica.
Em defesa do espiritismo, Chaves (2002) coloca que os cristãos dos
primórdios do Cristianismo não cultuavam a Divindade de Jesus; não conheciam a
Santíssima trindade e nem tinham o Espírito Santo como parte dessa tríade. Segundo
ele, tais concepções foram adotadas a partir dos concílios. Por isso que considera o
Cristianismo Primitivo autêntico, pois não havia ainda sido adulterado pelos teólogos.
E, por não aceitar todos os dogmas estabelecidos pela Igreja desde então, os espíritas
são considerados hereges. Para Lewgoy (2011) a crença na reencarnação para o
progresso e a negação do dogma da trindade causaram a ruptura com a ideia de
Cristianismo que se tinha, até então. E acrescenta: “Os espíritas pensam-se
simultaneamente como ruptura e renovação do cristianismo, quando situam a
codificação de Kardec como “Terceira Revelação”.” (LEWGOY, 2011, p. 94)
Para Silva (2002), apenas Deus é infalível. Por isso os dogmas impostos pelos
homens devem ser questionados. Deve-se a tudo analisar se valendo da razão e da
lógica. Ele argumenta que crer nas mensagens de Jesus Cristo e seguir o seu exemplo
é ser cristão. E acrescenta que a máxima espírita de que fora da caridade não há
salvação é o principal mandamento ensinado por Jesus Cristo.
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Assim, mesmo perdendo tantos adeptos para o Protestantismo, que é a 2ª


maior religião do país, conforme dados extraídos do IBGE – Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, a Igreja Católica nunca atacou de forma tão enérgica o
Protestantismo como o fez com o Espiritismo, considerado o maior adversário da
Igreja Católica no Brasil. Em 1950, 93,5% da população era católica; em 2000, 73,7%;
e em 2010, passou para 64,6%. Os que se declaram espíritas no ano 2000 eram 1,3%,
passando para 2,02%, o que corresponde a mais de 3,8 milhões de brasileiros.
Becceneri e outros (2017) esclarecem que “Em linhas gerais, perdem terreno
as organizações religiosas com maior rigidez institucional e com pouca flexibilidade
dentro do mercado religioso.” Eles ainda acrescentam que nos últimos 30 anos os
seguidores espíritas apresentaram um maior ritmo de crescimentos que os católicos
e que os protestantes. Segundo mostram em suas pesquisas, valendo-se de
microdados dos censos de 1991, 2000 e 2010 do IBGE, os espíritas possuem um
perfil mais envelhecido e com maior nível de instrução, além de serem mais elitizados.
Lewgoy (2011) aponta como esse perfil do espírita é favorável à divulgação
da doutrina. Segundo ele, a constituição de alianças entre médiuns poderosos,
grandes palestrantes, médicos intelectuais e a busca de aliados no cenário acadêmico
internacional, são estratégias para inserir o espiritismo em posições socialmente
legítimas, dentro do cenário científico. Na tentativa de unificação do modelo espírita
brasileiro, a FEB, o Conselho Espírita Internacional e as Associações Médicas
Espíritas, presentes em mais de 30 países, atuam de forma articulada. São eventos,
congressos e palestras que mantêm o contato e o vínculo entre si, num
compartilhamento constante de informações. Muitos médicos membros dessas
associações espíritas encaram o espiritismo como uma ciência complementar à
medicina acadêmica. Com a globalização, as religiões se valem, com mais eficiência
e estrutura, de todos os recursos e mecanismos de comunicação e tecnologia para
conseguir se propagar mais rapidamente. Assim, o espiritismo tem promovido valores
de religiosidade composta de fraternidade, paz, amor, espiritualidade, saúde e
concórdia universal, que, em sua maioria, atingem às camadas sociais mais
esclarecidas. Cabe destacar também a relevância da estrutura editorial da FEB, o que
facilita a divulgação da doutrina em âmbito nacional e internacional. (LEWGOY, 2011)
Atualmente, Divaldo Franco, com suas palestras e conferências tem sido um
grande missionário da doutrina no exterior. Suas produções literárias e as de Chico
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Xavier, tido como um santo popular não católico, já foram traduzidas em vários
idiomas e circulam por vários países. (LEWGOY, 2008)
Num sentido de tolerância, Klaus van der Grijp (1976) já defendia esse diálogo
aberto desde a década de 1970; que não se deveria erguer barreiras e que denunciar
as diferenças como sendo uma visão anti bíblica é acentuar o contraste entre católicos
e protestantes contra os espíritas. Assim, ele enumera pressupostos que permitem
uma adaptação da mensagem evangélica das religiões cristãs contemporâneas que
convergem com os preceitos espíritas. Tais como a separação entre corpo e alma;
que o espírito continua existindo após a morte do corpo físico; que tem um caminho a
percorrer, uma escalada dos degraus do ser. Porém a teologia cristã tende a contestar
a possibilidade do auto aperfeiçoamento, fora da vida terrena. Outro ponto é que o
homem é o resultado de suas escolhas; os atos bons levam à redenção e à evolução;
os males que pratica são responsáveis pelas suas desgraças. Porém, a Graça e o
Perdão Divinos são da vontade de Deus, que é soberana e está à cima de todas as
leis. Estas fazem parte de tantas questões abertas que podem dinamizar o diálogo
entre os cristãos e os espíritas, já apontado por Klaus van der Grijp desde 1976. Ele
defende que essa pode ser uma oportunidade para “repensar alguns tópicos da nossa
fé cristã e de ampliar o horizonte da nossa espiritualidade”. Pelo fato de a Bíblia não
ser clara ou não falar a respeito não quer dizer que tais fatos não existam.
Por sua vez, Cerqueira (2012) defende que, mais importante do que realçar
as diferenças é discuti-las de forma aberta e respeitosa; é buscar a tolerância e as
convergências. Ao invés disso, observam-se discussões que ocultam a tentativa de
se apropriar da supremacia religiosa.

Conclusão

O espiritismo explica-se que, enquanto ciência, continua a evoluir, mas as


religiões, como partem de revelações de um messias (no caso do Cristianismo,
Jesus), têm seus ensinamentos imutáveis através dos séculos. Por isso resgata o
Cristianismo Primitivo, anterior às modificações trazidas pelos concílios, propaga a
palavra de Jesus Cristo e crê que nele está contido o maior exemplo a ser seguido
pela humanidade. O espiritismo enxerga que a Igreja Católica, interpretou seja por
motivos ou interesses sociais e políticos ou equívocos de interpretação, introduziu
dogmas que são considerados questionáveis para os espíritas.
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O catolicismo e o espiritismo são cristãos, guiados pelos mesmos Evangelhos


e pelo mesmo Cristo, pregando as mesmas mensagens de caridade e de amor ao
próximo.
Pode-se observar que o espiritismo no Brasil foi levado a seguir assumindo
moldes de religião, sem o ser, no sentido próprio da palavra. Vê-se que a sua essência
científica e questionadora desvendou a existência dos espíritos e a comunicabilidade
com os mortos, provando a reencarnação. Todos esses elementos favoreceram o
surgimento do católico-espírita.
Desde o Concílio Vaticano II, a própria Igreja Católica tem se mostrado mais
tolerante.
A questão essencial não é a disputa pela supremacia religiosa ou qual é a
detentora da verdade. Não se trata de lutar para ver quem atrai mais adeptos ou para
não os perder. Trata-se de buscar em Deus, através dos ensinamentos de Jesus, a
união e a força para o enfrentamento do mal.
Dessa forma, com as contribuições de todos autores aqui citados, conclui-se,
através da abordagem desse processo de sobrevivência e de propagação do
espiritismo no Brasil e no exterior, a extração das suas características singulares
capazes de responder às questões iniciais deste artigo. Proporcionaram ao espiritismo
a manutenção da sua essência, enquanto ciência e doutrina filosófica, o que o permite
abraçar outras religiões, e ampliar os horizontes no campo religioso, colocando-se
como opção de crença cristã, sem de fato admitir a condição de religião.

REFERÊNCIAS

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Católica no Brasil: aspectos de uma biografia. História Unisinos, vol. 16, n. 1,
jan./abr. 2012. Disponível em:
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12

ARRIBAS, Célia da Graça. Espíritas e Católicos: os “adversários cúmplices” na


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25 jul. 2019.

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Acesso em: 31 ago. 2019.

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