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Diante do tema do Outrarte 2019, ocorreu-me trazer algo que tenho trabalhado há algum
tempo e que foi objeto de minha tese de doutorado. Freud, em “O futuro de uma ilusão”
(1927), escreve na tentativa de conceituar o que seria a cultura humana:
A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida
humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo 2 ter
que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao
observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu
com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das
necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível.
(Freud, 1927/1996, p. 16)
Interessou-me sobremaneira o desprezo freudiano sobre a suposta diferença entre
civilização e cultura, pois, embora tivesse escrito tanto sobre a cultura humana, Freud tratou
os dois termos como sinônimos ao longo de sua obra explicitando esse impasse apenas em um
livro de maturidade. Portanto, no que tange a “cultura” e “civilização”, talvez, se Freud não
tivesse realçado o desprezo pela distinção entre os verbetes, esse não seria um objeto de
estudo interessante.
Se Freud recusa uma diferença entre os termos, o mesmo não acontece em outros
campos do saber. Assim, trouxe para a discussão o crítico literário Jean Starobinski e o
sociólogo Norbert Elias, pois ambos trabalham, pela etimologia e pelo campo sócio-histórico,
a construção e os desdobramentos linguísticos dos termos que aqui destaco.
Nesse sentido, farei uma breve apresentação do que pesquisei nesses dois autores para
pensar possíveis aproximações com o conceito de sublimação. A pergunta que guia o que virá
é: “civilização” pode ser entendida como efeito sublimado do conteúdo da “cultura”? A partir
da contiguidade entre cultura e civilização, como entender o que está em jogo nessa
intimidade êxtima entre elas?
Sublimação
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Nos Três ensaios para uma teoria da sexualidade (1905/1974), Freud apresenta a
sublimação como atividade que aparentemente não tem relação com o sexual, mas que
extrairia sua força para a construção de algo de fato não-sexual. Daí, vemos sua tentativa de
definir sublimação através da elevação estética que nem todos conseguiriam atingir.
No entanto, quando o conceito se torna dependente da estruturação narcísica do eu, no
texto de 1914, vemos também que o desenvolvimento de fantasias tenta proteger o sujeito das
angústias da vida, e nisso obviamente também se encontra o culto da vestimenta, que “[...] tão
valorizado em nossa cultura, esconde sua real função de manter acesa a curiosidade pelas
partes ocultas do corpo. A civilização joga com o desejo na medida em que impõe um
adiamento da satisfação” (Cruxén, 2004, p. 17).
Assim, termos como politesse ou civilité aparecem com a mesma aplicação do que veio
a se firmar como civilisation. O que estava em jogo era a imagem que a classe alta europeia
queria transmitir àqueles tidos como inferiores e primitivos. A artimanha imagética não
irradiava necessariamente qualquer substância mais aprofundada do espírito francês, mas se
dedicava apenas a demonstrar uma soberania pelo comportamento.
A sublimação, como um dos destinos da pulsão, não deixa de traçar caminhos para a
agressividade humana. Fato inerente a toda ação, essa agressividade tem o simbólico
lacaniano (Lacan, 1997) como margem possível para que a violência não destrua grupos.
Embora saibamos que o desamparo (outro nome para o real) muitas vezes não constitui borda
que o maneje, não devemos esquecer que as formas culturais ou civilizatórias têm o objetivo
de manter a destrutividade humana à distância, mesmo causando sofrimento.
Portanto, se a cultura já se apresenta como uma espécie de sublimação do desamparo
(Hilflosigkeit) ao qual se vê o humano desde a constituição das primeiras comunidades - ou
como a percebemos em suas raízes linguísticas em “culto” e “agricultura” - civilização não
seria também algo semelhante no que tange ao modo como tentamos lidar com a
agressividade? A resposta, de momento, seria um “talvez”, se pensarmos no que a sublimação
tem êxito e no que ela fracassa.
Referências Bibliográficas
Elias, N. (1990). O processo civilizador: uma história dos costumes (vol. I). Rio de Janeiro,
RJ: Jorge Zahar Ed.
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Freud, Sigmund (1974). Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: S. Freud. Obras
completas – Vol. VII. Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.
Freud, S. (1974). O futuro de uma ilusão. In: S. Freud. Obras completas – Vol. XXI. Rio de
Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1927.
Freud, S. (1974). O mal-estar na cultura. In: S. Freud. Obras completas – Vol. XXI. Rio de
Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1930.
Lacan, J. (1997). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Starobinski, J. (2001). As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo, SP: Companhia das
Letras.