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Kultur e máscara - a sublimação da cultura à civilização


Bruno Curcino Hanke1

Nunca há um documento da cultura


que não seja, ao mesmo tempo,
um documento da barbárie.
Walter Benjamin

Diante do tema do Outrarte 2019, ocorreu-me trazer algo que tenho trabalhado há algum
tempo e que foi objeto de minha tese de doutorado. Freud, em “O futuro de uma ilusão”
(1927), escreve na tentativa de conceituar o que seria a cultura humana:
A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida
humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo 2 ter
que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao
observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu
com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das
necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível.
(Freud, 1927/1996, p. 16)
Interessou-me sobremaneira o desprezo freudiano sobre a suposta diferença entre
civilização e cultura, pois, embora tivesse escrito tanto sobre a cultura humana, Freud tratou
os dois termos como sinônimos ao longo de sua obra explicitando esse impasse apenas em um
livro de maturidade. Portanto, no que tange a “cultura” e “civilização”, talvez, se Freud não
tivesse realçado o desprezo pela distinção entre os verbetes, esse não seria um objeto de
estudo interessante.
Se Freud recusa uma diferença entre os termos, o mesmo não acontece em outros
campos do saber. Assim, trouxe para a discussão o crítico literário Jean Starobinski e o
sociólogo Norbert Elias, pois ambos trabalham, pela etimologia e pelo campo sócio-histórico,
a construção e os desdobramentos linguísticos dos termos que aqui destaco.

1 Psicanalista, doutor em Psicologia pela UFMG.


2 “[...] und ich verschmähe es, Kultur und Zivilisation zu trennen”, no original. São traduções possíveis de
“verschmähe”: na língua espanhola, a edição Amorrurtu indica “omito” e a edição da Biblioteca Nueva,
“desdeñando”; no português, vemos “desprezo” na tradução da Standard e “eu me recuso” nas traduções da
LP&M (2010) e da Companhia das Letras (2014). Com exceção da versão “omito”, as outras palavras denotam
uma veemência na negação da ideia de que “civilização” e “cultura” são noções que deveriam ser vistas
separadamente.
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Nesse sentido, farei uma breve apresentação do que pesquisei nesses dois autores para
pensar possíveis aproximações com o conceito de sublimação. A pergunta que guia o que virá
é: “civilização” pode ser entendida como efeito sublimado do conteúdo da “cultura”? A partir
da contiguidade entre cultura e civilização, como entender o que está em jogo nessa
intimidade êxtima entre elas?

Norbert Elias, Kultur e Civilisation


O conceito de “civilização”, para Elias, abarca um número grande de aspectos, ante os
quais seria difícil construir um conceito que sinalizasse apenas um deles. Ele aponta que
“civilização” descreve o que causa orgulho na sociedade ocidental: “o nível de sua tecnologia,
a natureza de suas maneiras” (1990, p. 23, itálico no original).
Há distinções em como diferentes nações ocidentais tratam o termo. Para ingleses e
franceses, o termo diz respeito ao
[...] seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso do
Ocidente e da humanidade. Já no emprego que lhe é dado pelos
alemães Zivilisation, significa algo de fato útil, mas, apesar disso,
apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a
aparência externa de seres humanos, a superfície da existência
humana. A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do
que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias
realizações e no próprio ser, é Kultur. (Elias, 1990, p. 24)
Para ingleses e franceses, civilização diz respeito a aspectos políticos, econômicos,
morais e religiosos, mas a Kultur alemã tem uma especificidade ao se fixar nos aspectos
intelectuais, religiosos e artísticos. Kultur não se refere ao comportamento. “Civilização” tem
um teor processual e dinâmico, podendo ser entendido como um movimento “para a frente”.
Kultur é delimitado, referindo-se ao que explicita o funcionamento de um povo, sua
particularidade, sua identidade fixa. Em sua qualidade processual, “civilização” seria próximo
de uma inclinação expansionista e predatória, tal como ocorreu no período de conquista de
vários territórios que se tornariam colônias - há esse pendor de imposição de modo de vida
atrelado ao termo. Já Kultur tem uma dimensão interna, de reflexão, de contínuo processo de
autorreconhecimento e de construção e reconstrução de identidade (Elias, 1990, p. 25).
Dois fatos são elencados por Elias como constituintes da diferença entre civilização e
cultura no povo alemão. O primeiro deles é uma citação de Kant (2004), presente em Ideias
sobre uma História Universal, do ponto de vista de um Cidadão do Mundo, de 1784:
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Mediante a arte e a ciência, somos cultivados em alto grau. Somos


civilizados até a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoro
sociais. Mas ainda falta muito para nos considerarmos moralizados.
Se, com efeito, a ideia de moralidade pertence à cultura, o uso,
entretanto, desta ideia, que não vai além de uma aparência de
moralidade (Sittenähnliche) no amor à honra e no decoro exterior,
constitui apenas a civilização. (Kant, 2004, p. 16)
O outro dado histórico é que a cortesia acaba se tornando uma maneira de obstruir
qualquer tipo de ação, fazendo-se denotar uma postura enganadora. “Em termos simples, [...]
é expressa aqui a mesma antítese formulada por Kant, refinada e aprofundada no contraste
entre cultura e civilização: ‘cortesia’ externa enganadora vs. ‘virtude’ autêntica” (Elias, 1990,
p. 29).
De fato, embora houvesse toda uma crítica alemã à “superficialidade” de influência
francesa, era a literatura franco-inglesa que era exaltada. A língua francesa preponderava nas
decisões do universo político, enquanto que a alemã vinha encontrando acolhida na literatura.
O que se publicava no campo literário nesse período não tem marca política, mas deixava
transparecer que alguns sentimentos no seio da cultura alemã começavam a entrar em
ebulição. Pequenos grupos vivendo em situações semelhantes se reúnem para discutir poesia e
qual entrada sua escrita poderia ter nos temas cotidianos. Se demonstravam com tais reuniões
um movimento ativo de produção, eram grupos vistos como abjetos pela aristocracia cortesã.
O refinamento se opõe à diferença.
Logo, essa relação vertical provoca na classe média repulsa às “características humanas
gerais como ‘superficialidade’, ‘polidez de fachada’, ‘insinceridade’, e assim por diante”
(Elias, 1990, p. 45). O confronto poucas vezes abandonava a tentativa de autolegitimação da
classe intelectual alemã. Bildung e Kultur se colocavam como o avesso de “civilização”.
A Bildung se torna referência na medida em que constrói uma identidade para esse povo
que incorporava da posição de sua língua no contexto europeu a pecha de atraso cultural,
entre outros aspectos. Tornando-se classe governante, a intelligentsia altera o contraste entre
Kultur e Zivilisation: “de antítese primariamente social torna-se primariamente nacional”
(Elias, 1990, p. 47, itálico no original).

Jean Starobinski - A máscara da civilização


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Para Jean Starobinski (2001), civilização é um conceito unificador, na medida em que


atribui aos povos civilizados a polidez, apreciação das artes e das ciências, obtenção de
conforto material e doméstico, e aponta a dinâmica processual de sua ocorrência. Com a ideia
de “aperfeiçoamento”, a vida individual tem a finalidade de atingir o mais alto grau de
grandeza possível.
Não é preciso muito para ligar este momento da etimologia de “civilização” (século
XVIII) com a acepção moderna de “progresso”. “A história, a reflexão do historiador,
conjeturais ou empíricas, põem mãos à obra para chegar a um ‘quadro de progressos do
espírito humano’, a uma representação da marcha da civilização por meio de diversos estados
de aperfeiçoamento decisivos” (Starobinski, 2001, p. 15).
Aliar processo de civilização ao progresso, e ambos ao campo histórico, colocando-os
como base de seu constructo fundamental, é distinguir os que participam dessa trajetória dos
que não participam. “Natureza”, “selvageria” e “barbárie” denotam a debilidade de um povo a
ser civilizado. Starobinski assinala que a polidez na “comparação entre o civilizado e o
selvagem (ainda que canibal) não acaba em vantagem do civilizado” (2001, p. 18). Para ele, o
marquês de Mirabeau chama a atenção para a hipocrisia da etiqueta: o critério moral confirma
a civilização. O sentido disso está na interpretação do marquês de que as “boas maneiras”
distanciadas de certa moralidade são apenas máscara.
[...] a civilização de um povo é o abrandamento de seus costumes, a
urbanidade, a polidez e os conhecimentos difundidos de maneira que
as conveniências aí sejam observadas e façam as vezes de leis de
detalhe; tudo isso não me representa senão a máscara da virtude e não
sua face, e a civilização não faz nada pela sociedade se não lhe dá o
fundo e a fama da virtude. (Mirabeau apud Starobinski, 2001, p. 19)
Há aqui a denúncia de que nossas civilizações têm sua marca bárbara. A civilização
mantém em si a brutalidade que se admitia de maneira hipotética apenas entre os povos
selvagens. A hipocrisia, a maledicência e a injustiça são o novo tipo de violência, a
dissimulada. “[...] reduzidas a aparências superficiais, a polidez, a civilidade deixa, no
interior, em profundidade, o campo livre aos seus contrários: a malevolência, a malignidade,
em suma, a violência de que, na realidade, jamais abdicou” (Starobinski, 2001, pp. 24-25).

Sublimação
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Nos Três ensaios para uma teoria da sexualidade (1905/1974), Freud apresenta a
sublimação como atividade que aparentemente não tem relação com o sexual, mas que
extrairia sua força para a construção de algo de fato não-sexual. Daí, vemos sua tentativa de
definir sublimação através da elevação estética que nem todos conseguiriam atingir.
No entanto, quando o conceito se torna dependente da estruturação narcísica do eu, no
texto de 1914, vemos também que o desenvolvimento de fantasias tenta proteger o sujeito das
angústias da vida, e nisso obviamente também se encontra o culto da vestimenta, que “[...] tão
valorizado em nossa cultura, esconde sua real função de manter acesa a curiosidade pelas
partes ocultas do corpo. A civilização joga com o desejo na medida em que impõe um
adiamento da satisfação” (Cruxén, 2004, p. 17).
Assim, termos como politesse ou civilité aparecem com a mesma aplicação do que veio
a se firmar como civilisation. O que estava em jogo era a imagem que a classe alta europeia
queria transmitir àqueles tidos como inferiores e primitivos. A artimanha imagética não
irradiava necessariamente qualquer substância mais aprofundada do espírito francês, mas se
dedicava apenas a demonstrar uma soberania pelo comportamento.
A sublimação, como um dos destinos da pulsão, não deixa de traçar caminhos para a
agressividade humana. Fato inerente a toda ação, essa agressividade tem o simbólico
lacaniano (Lacan, 1997) como margem possível para que a violência não destrua grupos.
Embora saibamos que o desamparo (outro nome para o real) muitas vezes não constitui borda
que o maneje, não devemos esquecer que as formas culturais ou civilizatórias têm o objetivo
de manter a destrutividade humana à distância, mesmo causando sofrimento.
Portanto, se a cultura já se apresenta como uma espécie de sublimação do desamparo
(Hilflosigkeit) ao qual se vê o humano desde a constituição das primeiras comunidades - ou
como a percebemos em suas raízes linguísticas em “culto” e “agricultura” - civilização não
seria também algo semelhante no que tange ao modo como tentamos lidar com a
agressividade? A resposta, de momento, seria um “talvez”, se pensarmos no que a sublimação
tem êxito e no que ela fracassa.

Referências Bibliográficas

Cruxên, Orlando (2004). A sublimação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Elias, N. (1990). O processo civilizador: uma história dos costumes (vol. I). Rio de Janeiro,
RJ: Jorge Zahar Ed.
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Freud, Sigmund (1974). Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: S. Freud. Obras
completas – Vol. VII. Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.

Freud, S. (1974). O futuro de uma ilusão. In: S. Freud. Obras completas – Vol. XXI. Rio de
Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1927.

Freud, S. (1974). O mal-estar na cultura. In: S. Freud. Obras completas – Vol. XXI. Rio de
Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1930.

Lacan, J. (1997). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Starobinski, J. (2001). As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo, SP: Companhia das
Letras.

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