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MANGUEIRA: UMA EXPERIÊNCIA COLABORATIVA EM ARTE E TECNOLOGIA

Msc. André Ramos (IdA, UnB)

Msc. Anelise Witt (IdA, UnB)

Msc. Gabriel Lyra Chaves (IdA, UnB)

Msc. Luis Fernando Hermida Cadena (IdA, UnB)

Maurício Chades (IdA, UnB)

RESUMO
Este artigo visa ressaltar a experiência colaborativa na execução do projeto Mangueira, que
consiste em uma instalação interativa que utiliza Arduíno, Processing e projeção mapeada
para criar e exibir imagens na copa de uma árvore da espécie Mangifera indica. As imagens
alteram-se devido as variações de temperatura, umidade e luz captadas pelos sensores. O
projeto em questão insere-se no contexto da arte e da tecnologia, e busca suscitar questões
sobre a relação que estabelecemos com o tempo em uma cultura permeada pela tecnologia
digital.

PALAVRAS-CHAVE
arte e tecnologia; processing; projeção mapeada; colaboração

ABSTRACT
This article aims to highlight the collaborative experience in implementing the hose design,
consisting of an interactive installation that uses Arduino, Processing and projection mapped
to create and display images on top of a tree species Mangifera indica. The images change
due to variations in temperature, humidity and light captured by the sensors. The project in
question falls within the context of art and technology, and seeks to raise questions about the
relationship we establish with time in a culture permeated by digital technology.

KEYWORDS
art and technology; processing; projection mapping; collaboration

Este artigo é o resultado de um experimento em Processing proposto pela disciplina


de Arte e Tecnologia 3 do Programa de Pós Graduação em Arte da UnB. Processing
é uma linguagem de programação desenvolvida no MIT em que o objetivo é
proporcionar ferramentas de programação para todo o tipo de usuário,
principalmente para não-programadores, por isso tornou-se uma linguagem popular
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entre artistas, designers e músicos. Em arte e tecnologia, o Processing tornou-se
uma ferramenta utilizada em diversas obras devido o seu potencial para criação. A
proposta de criar uma obra com o Processing foi, sem dúvida, um desafio
enriquecedor para todos do grupo. Neste percurso, o trabalho colaborativo tornou-se
essencial para a construção da obra Mangueira, que consiste em uma instalação
interativa em que uma árvore da espécie Mangifera indica é usada como suporte
para uma projeção interativa, que reage às informações ambientais captadas
através de sensores.

Tanto o processo de elaboração quanto o de construção da obra podem ser


entendidos como uma experiência estética e, no que tange a arte como experiência,
John Dewey comenta:

Sua natureza e importância só podem expressar-se pela arte, porque


há uma unidade da experiência que só pode ser expressa como uma
experiência. A experiência é de um material carregado de suspense
e avança para sua consumação por uma série interligada de
incidentes variáveis. (DEWEY, 2010, p.121)

Sem dúvida o processo colaborativo de contrução de uma obra é “carregado de


suspense e avança para sua consumação por uma série interligada de incidentes
variáveis”. A arte como experiência não abrange somente a experiência do
espectador/interator com a obra, mas também o desenvolvimento do projeto por
parte da equipe, que no contexto deste estudo foi bastante produtivo.

A colaboração é comum a toda arte e tecnologia, em contraponto ao discurso do


artista como gênio solitário, cada vez mais contestado desde o modernismo. Existe
diferença entre uma equipe de artistas que trabalham juntos e assinam os trabalhos
como um grupo, e uma equipe composta por pessoas de diferentes áreas. Contudo,
ambos os modelos borram da mesma maneira a noção de um único artista criador.
Em arte e tecnologia também há grupos de artistas, porém é bastante freqüente
conter nesse grupo membros de outras áreas do conhecimento, pois é uma
necessidade da própria área. A discussão em arte e tecnologia não está tão calcada
no domínio da técnica, mas na equipe que, com frequência, conta com
programadores e engenheiros de áreas consideradas “duras”. Em uma equipe
interdisciplinar, áreas diversas trabalham em colaboração para um fim, a reificação
da obra de arte. Dependendo da proposta, outras áreas também são agregadas,
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como design, arquitetura e música. Em nosso grupo todos trabalham como artistas,
entretanto a formação e as habilidades são múltiplas, integrando conhecimento do
design, música, audiovisual, e programação. A produção em arte e tecnologia passa
a ser uma arte da somatória, adicionando as mais diversas disciplinas, uma arte em
consonância com o seu tempo.

O tempo é uma questão que permite ser explorada de diversas maneiras no


contexto da arte e tecnologia. Pode-se pensar o tempo como atualidade, tecnologia
recente/ nova, tecnologia considerada “de ponta”; tempo como velocidade de
reação, processamento e resposta do computador; e tempo como temporalidade
suspensa da galeria/ espaço expositivo. A relação de Mangueira com o tempo é a
oposição do tempo imediato da tecnologia com o tempo da natureza, pois a reação
dos sensores se dá pela variação de luz, temperatura e umidade do ambiente, e
essas alterações são percebidas lentamente.

O tempo
Não somente a tecnologia incita a velocidade e a troca imediata, mas o próprio estilo
de vida atual aponta para um tempo que se vive cada vez mais depressa. Esta
rapidez deveria gerar uma economia de tempo, afinal muitas das nossas atividades
cotidianas que outrora demandavam horas ou dias, hoje são instantâneas.
Economiza-se tempo, mas mesmo assim nunca se tem tempo. Ao falar do estilo de
vida contemporâneo que prima pela velocidade, mas que apesar da rapidez segue-
se sem tempo, Baudrillard comenta: “Em toda parte vemos uma lógica paradoxal: a
idéia é destruída por sua própria realização, pelo seu próprio excesso” (2001, p.53).
A lógica paradoxal de Baudrillard é o excesso em que estamos imersos, tudo é
rápido, instantâneo, tentamos ganhar tempo a todo o momento e seguimos sem ele.
A velocidade e a instantaneidade dos acontecimentos atuais conduzem Paul Virilio a
defender “átomo temporal”, o tempo extensivo é hoje intensivo:

Ao tempo extensivo, que tentava aprofundar o caráter integral do


“infinitamente grande do tempo”, sucede, hoje, um tempo intensivo
que, desta vez, aprofunda o infinitamente pequeno da duração, de
um tempo microscópico, última figura de uma eternidade
redescoberta para além da eternidade extensiva dos séculos
passados. Eternidade intensiva onde a instantaneidade permitida
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pelas últimas tecnologias comportaria o equivalente ao contido no
“infinitamente pequeno do espaço e da matéria” (1999, p. 58)

Nesta mesma linha, Baudrillard (2001) fala em “êxtase do tempo”, que seria o tempo
real, a instantaneidade “mais presente que o presente”. O tempo atual como
simulacro do próprio tempo. Baudrillard (1991) descreve o simulacro em quatro
fases: reflexo de uma realidade profunda; mascara e deforma uma realidade
profunda; mascara a ausência de uma realidade profunda; e, não tem relação com
qualquer realidade, ela é seu próprio simulacro puro. Esta “êxtase do tempo” que
seria “mais presente que o presente” poderia ser pensada como a segunda fase dos
simulacros, pois na instantaneidade há uma relação com o tempo real, pois ela
acontece em “tempo real”. O “tempo real”, o imediatismo, faz parte da interatividade,
da tecnologia, e diz respeito à velocidade entre a ação realizada e a resposta dada.

Edmond Couchot discorre sobre a interatividade, ou modo dialógico, e considera três


fatores que intervêm sobre ela:

(...) um fator complexidade no tratamento das informações trocadas


entre o computador e o manipulador ou entre os objetos simulados
no computador; um fator de diversidade na captura e na tradução
das informações pelas interfaces (analógico/ numéricas e numérico/
analógico) e um fator de rapidez no tratamento das informações.
Quando a rapidez da resposta é tal, que chega a parecer imediata
para o usuário, o modo dialógico se faz então em “tempo real”.
(2003, p. 167)

O fator de rapidez comentado por Couchot está na instantaneidade da troca das


informações, o que se convencionou chamar de “tempo real”, não que o tempo real
não fosse mais verdadeiro, é apenas outra relação temporal, que talvez pudesse ser
compreendida como um simulacro do tempo.

Na relação que mantemos com o tempo, o numérico provoca uma


ruptura radical. Enquanto no cinema, o intervalo de tempo separando
dois fotogramas só é ocupado pela breve e imperceptível duração de
tempo de abertura do obturador, o mesmo intervalo de tempo é
preenchido, no caso da imagem interativa em tempo real, por
milhões, milhares e até muito mais de operações lógicas que
resultam da intervenção do observador e que modificam a realidade
simulada. (2003, p. 168)

O tempo da interatividade não é apenas imediato, mas deve ser. É comum ficarmos
irritados quando acionamos um comando no computador e este não nos obedece.
Se clicarmos em um botão e o caixa eletrônico, por exemplo, não reage de imediato,
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já começamos a ficar irritados. Nesse sentido, espera-se que a mediação pela
tecnologia seja rápida, ou, ao menos, mais ágil. Insere-se neste contexto o “átomo
temporal” de Virilio e o “êxtase do tempo” de Baudrillard.

Mangueira vai de encontro à ideia de “êxtase do tempo”. Busca evidenciar o lapso


cada vez maior entre o tempo que o homem constrói socialmente, o "tempo real" das
interações digitais, e o tempo da própria natureza. Através da projeção, o trabalho
busca abrir possibilidades para desvelar o que Baudrillard classificou como o
mascaramento e a deformação de uma realidade profunda, no caso, nossa relação
com o tempo. As transformações geradas pelas variações climáticas e luminosas é
lenta e pouco perceptível quando observada rapidamente. Assim, o trabalho convida
à contemplação, suscitando uma fruição lenta, dissociada da noção de "tempo real"
que envolve vários trabalhos de arte e tecnologia. Para fins demonstrativosi, recorrer
à técnica de time-lapse colabora para acelerar a percepção da passagem do tempo,
numa forma de evidenciar para o espectador as mudanças lentas ocorridas no
sistema visual do trabalho.

Figura 1: Preparando o espaço

A interatividade de Mangueira se dá com o meio em que está inserida, ao público é


oferecido o papel de espectador. No contexto da arte e tecnologia o espectador com
frequência é visto como passivo em relação à obra, pois a maioria dos trabalhos
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oferece a possibilidade de interatividade, permitindo ao visitante ser também um
interator. Entretanto o espectador não precisa ter uma postura passiva, em toda a
tradição da arte o espectador nunca foi passivo, ele pode estabelecer as mais
diversas relações com a obra sem alterar a sua forma. Apesar de Mangueira ser
uma obra interativa, a possibilidade de interação é negada ao espectador/fruidor e
transferida aos eventos do ambiente.

Construção
A ideia inicial do grupo era realizar algum trabalho que tratasse de questões
referente ao clima da região, o cerrado. Com o amadurecimento das discussões, a
referência ao ecossistema transcendeu a questão regional do cerrado, buscando
refletir transformações baseadas em características gerais. Neste momento, o grupo
optou por trabalhar com três parâmetros variáveis: umidade, temperatura e
luminosidade. Para refletir as variações destes parâmetros, a construção poética se
propôs a representar as informações captadas do meio ambiente, projetando-as de
volta ao mesmo.

Após algumas experimentações, optou-se pela vegetação como suporte para a


projeção e, durante os estudos, árvores com copas mais densas apresentaram
melhores resultados, o que será discutido com maiores detalhes em breve. Com
isso, cria-se um sistema híbrido, onde as informações naturais alimentam a projeção
digital, que reage e retorna à paisagem como uma informação transformada.

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Figura 2: Mangueira recebendo projeção

Quanto às decisões formais e estéticas relacionadas a Mangueiras, os elementos


gráficos a serem projetados variaram ao longo de uma série de experimentações.
Inicialmente, foi criado um padrão gráfico simétrico, baseado em formas triangulares
com variações de curva em bezier em duas de suas faces. Contudo, a utilização de
elementos complexos na criação dos padrões visuais se mostrou inviável por
questões técnicas e de processamento. A partir deste momento, começamos a
buscar trabalhar com formas geométricas básicas, ganhando em capacidade de
processamento e contornando o problema inicial. Após várias experimentações, o
grupo optou pela forma geométrica básica mais orgânica, a circular, que passou a
evidenciar as mudanças no ecossistema, apresentando variações de tamanho,
posição, cor e opacidade.

Até o momento, o projeto Mangueira possui três desdobramentos possíveis: primeiro


enquanto intervenção, uma projeção mapeada em uma árvore em ambiente externo;
em segundo como instalação, projetando em uma planta em ambiente interno; e em
terceiro como vídeo/ registro, mostrando a transformação da projeção em lapsos de
tempo.

Dewey fala que a experiência da arte é também pensar com imagens, formas, cores,
com outros códigos que não são palavras:
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Pensar diretamente em termos de cores, tons ou imagens é uma
operação tecnicamente diferente de pensar em palavras. Mas
somente a superstição é capaz de afirmar que, pelo fato de o
significado dos quadros e sinfonias não poder traduzir-se em
palavras, ou da poesia em prosa, o pensamento é monopolizado pela
linguagem. Se todos os significados pudessem expressar-se
adequadamente em palavras, as artes da pintura e da música não
existiriam. Há valores e sentidos que só podem ser expressos por
qualidades imediatamente visíveis e audíveis, e perguntar o que eles
significam em termos de algo que possa ser posto em palavras é
negar sua existência distinta. (DEWEY, p.167)

Para a realização do projeto Mangueira foi necessário aprender a pensar não


apenas com os códigos visuais, mas com códigos computacionais, procurando gerar
significações nas possibilidades de articulação abertas em cada um desses códigos
e, também, entre eles.

Figura 3: Detalhe da projeção

Essa multiplicidade de formas que o projeto Mangueira pode adquirir vai ao encontro
do discurso de Pierre Lévy sobre a obra de arte virtual, que passa a ser uma
“máquina de fazer surgir eventos”.

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Tanto a criação coletiva como a participação dos intérpretes
caminham lado a lado com uma terceira característica especial da
ciberarte: a criação contínua. A obra virtual é “aberta” por construção.
Cada atualização nos revela um novo aspecto. Ainda mais, alguns
dispositivos não se contentam em declinar uma combinatória, mas
suscitam, ao longo das intervenções, a emergência de formas
absolutamente imprevisíveis. Assim, o evento da criação não se
encontra mais limitado ao momento da concepção ou da realização
da obra: o dispositivo virtual propõe uma máquina de fazer surgir
eventos. (LÉVY, 1999, p.136)

Mangueiras tem potencial para ampliar-se ainda mais. Este artigo aborda as
questões que originaram este projeto, entretanto as possibilidades futuras são
muitas.

Versões instalativas
Em Mangueira, cores, movimentos e dimensões de formas pré-estabelecidas são
influenciados pela interação com a umidade, temperatura e luminosidade captadas
no ambiente através de sensores arduíno. O vídeo projetado é oriundo, portanto, de
um conteúdo pré-fabricado, à espera de agentes externos que preencham com
informações ainda lacunares. A instalação tira dados do meio-ambiente e processa-
os para criar novos dados, representados visualmente. Esses dados meteorológicos
tornam-se visíveis. A copa das árvores passa a ser “portadora e transmissora de
informação mutável”, como nos ensina Lieser (p. 232).

A contribuição dos sensores para a instalação é possibilitar uma obra complexa,


imprevisível que, ao se auto-organizar, produz uma série de resultados mutáveis.
Inicialmente, estabelecemos os primeiros parâmetros que definem a obra, mas são
os sensores que a continuarão o trabalho, dando o sentido final, ou um sentido em
constante trânsito. Duchamp sugeriu que a obra de arte dependia do espectador
para que tivesse seu sentido completado. Ele mal poderia imaginar a que nível as
obras interativas poderiam chegar décadas depois. “Muitas obras dependem
literalmente do espectador, não apenas para completá-las, mas para iniciá-las e dar-
lhes conteúdo” (RUSH, p.165). Em Mangueira, quem completa a obra é o próprio
ambiente.

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Quando o agente interator é a metereologia, resta ao espectador contemplar.
Videoinstalações constumam preservar de forma evidente uma dimensão
contemplativa, herdada das artes de galeria mais tradicionais, como a pintura e a
escultura. É preciso que o fruidor desloque-se diante da árvore para perceber os
limites da projeção desenhados com mapping. O que se propõe, projetando imagens
em copas de uma árvore, portanto, é um novo hábitat para as imagens eletrônicas.
As imagens que preenchem as folhas, antes esvaziadas, pretendem dialogar com os
elementos do espaço da matéria, ressignificando a percepção do ambiente:

As tecnologias reconstroem o ambiente não somente do ponto de


vista técnico, mas, principalmente, por suas qualidades de sistemas
inteligentes interativos que colocam trocas de paradigmas, pois agem
em bases epistemológicas que alteram nossas relações com o
mundo. (DOMINGUES, p. 33)

Nesse sentido, é importante perceber o deslocamento da instalação Mangueira entre


um ambiente externo e natural e um ambiente interno, arquitetônico. Para Diana
Domingues, instalação é, sobretudo, um lugar (DOMINGUES, p. 137). Tornou-se
mais comum nomear obras instalativas em lugares públicos e a céu aberto de
intervenção, justamente quando a apropriação de uma sala préexistente de uma
galeria ou museu já se configurava, há mais tempo, como instalação. Para
Domingues, o que torna a obra instalativa, em ambas as situações, é “que um
espaço está sendo apropriado e que se está pensando um lugar que será habitado
pelo corpo em movimento” (DOMINGUES, p. 138).

O trânsito instalativo torna-se, nesse sentido, um subtema de Mangueira. Em sua


versão em ambiente externo, as imagens são projetadas em uma árvore em seu
contexto natural e os sensores estão expostos às mais diversas variações e
intempéries da natureza; em sua versão de cubo branco, a árvore tem suas raízes
prensadas contra um vaso e as variações de umidade, temperatura e luminosidade
podem ser tão ínfimas, que quase nulas. No contexto de galeria, “o mundo exterior
não deve entrar, de modo que as janelas geralmente são lacradas. As paredes são
pintadas de branco.” (O’DOHERTY, p. 15), nos lembra Brian O’Doherty no clássico
texto “No interior do cubo branco”. Nesse sentido, o tempo da natureza, como já
mencionamos no texto, torna-se um tempo da galeria, um tempo suspenso. Um
tempo de variações meteorológicas de ar-condicionado e lâmpadas fluorescentes.

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Caso os sensores não recebam interferência de outros dispositivos que provoquem
luz e calor, como lanternas e secadores de cabelo (como é proposto para a versão
de Mangueira em uma galeria), o tempo, na obra, poderia não mais existir.

Cinema nas árvores


Mangueira tem versões instalativas em ambientes interno e externo e ainda um
vídeo em time-lapse. Esse constante deslizar da obra por suportes faz percebermos
que Mangueira funciona como um estado, um material que, vibrando a
“temperaturas” diferentes, torna-se líquido, sólido ou gasoso. Tal analogia com a
física é sugerida por Philippe Dubois em seu livro “Cinema, vídeo, Godard”. Ao
pensar o cinema contemporâneo em suas versões expandidas, Dubois propõe que o
vídeo, atualmente, possui dois grandes grupos: um primeiro conjunto de obras é
semelhante ao cinema e televisão, roteirizados, gravados com câmeras,
posteriormente editados e, ao final, dadas ao espectador em uma tela grande ou
pequena; o segundo grupo, mais diverso, considera o vídeo um evento, instalação,
cenografia de telas, colocando o espectador em relações mais complexas do que o
fruir de imagens e sons. Nesse segundo grupo, percebemos obras que não
possuem imagens prévias, ou pré-gravadas. Essas imagens que não podem ser
desvinculadas do dispositivo, pois, como em Mangueira, foram, em parte,
produzidas por ele, evidenciam o que Dubois sugere como pensar o vídeo como um
estado e não como um produto.

O termo “cinema expandido” foi inicialmente utilizado por autores do cinema


experimental, como Jonas Mekas, a partir de uma radicalização no
experimentalismo no cinema com happenings e performances que incorporaram
projeções:

Tudo se passa como se o espetáculo do cinema desse um


movimento ao corpo do espectador, liberando-o da cadeira, como
ocorria com os shows de rock, as raves etc. Trata-se de um cinema
com funções comportamentais, que procurava intensificar os efeitos
perceptivos visuais e sonoros sobre o corpo do espectador.
(PARENTE, p. 38)

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André Parente ressalta, entretanto, que o cinema de exposição, cinema de museu
ou cinema de artistas tem mais a ver com a espacialização da imagem, com a
organização das imagens em um espaço expositivo, quando o cinema de atrações
se preocupa com a organização das imagens no tempo. O cinema de exposição
propõe uma ruptura com a sequêncialidade, com o encadeamento. Quando há
(sequêncialidade), ela é dada pelo percurso do visitante.

O cinema de exposição serve para designar um conjunto de propostas artísticas que


utilizam imagens em movimento numa obra plástica, subvertendo o ritual tradicional
de recepção do filme projetado em sala escura e espectador imóvel em uma
poltrona, que trata-se, vale observar, de uma instalação muito bem sucedida,
replicada em “cubos pretos” por todo o mundo durante quase cem anos. Agora,
expõe-se o cinema em telas desdobradas, em superfícies diversas, projetando-se
em objetos que podem ser planos, ou não. Novas posturas do espectador são
experimentadas, de pé, deitado, sentado, ou móvel. Projeções também subvertem a
duração da projeção, que pode ser muito breve ou infinita. “Portanto, o efeito cinema
se confunde com um efeito plástico, ao menos com o que supomos ser sensorial no
efeito plástico” (PAÏNI, p. 29).

O cineasta Jean-Luc Godard, principal objeto do texto de Dubois, já previa a


descentralização do registro como principal ato videográfico. Para ele, o ato de
projetar precede o registro fílmico. A projeção seria o ato ontológico do cinema. O
ato de registrar a imagem já é, sempre segundo Godard, um ato de projeção: a
projeção matemática, a projeção da perspectiva às quais a óptica remete. (PAÏNI, p.
34). O ato de filmagem, agora secundário, identifica-se com a visita da instalação.

Considerações finais
Em Mangueiras, procuramos articular elementos e questionamentos teóricos
pertinentes ao contexto da arte e tecnologia. Através da manipulação de códigos
computacionais, partimos em direção ao rompimento com o usual e corriqueiro
"tempo real", propondo a recuperação do ato contemplativo lento, cada vez mais
negado em nossa sociedade permeada pela tecnologia. Com o uso de projeções,
procuramos reforçar esse deslocamento do espectador/fruidor, permitindo que a
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obra seja adaptável a ambientes externos ao cubo branco das galerias, e abrindo a
possibilidade de transportar o ato contemplativo para os ambientes externos.

Nas palavras de Dewey:

A arte é a prova viva e concreta de que o homem é capaz de


restabelecer, conscientemente e, portanto, no plano do significado, a
união entre sentido, necessidade, impulso e ação que é
característica do ser vivo. A intervenção da consciência acrescenta a
regulação, a capacidade de seleção e a reordenação. Por isso,
diversifica as artes de maneiras infindáveis. Mas sua intervenção
também leva, com o tempo, a ideia da arte como ideia consciente – a
maior realização intelectual na história da humanidade. (DEWEY,
2001, p.93)

Enquanto artistas pesquisadores e estudantes de arte, pensamos que a arte, sem


tentar qualquer definição, parece frequentemente buscar persuadir o público a
experimentar o mundo de uma maneira distinta. É este pensamento que tomamos
como guia para este projeto, que vai ao encontro da proposição de Dewey de que a
arte é a união entre sentido, necessidade, impulso e ação do ser humano.

NOTAS
i
Para efeitos demonstrativos, um vídeo usando time lapse foi publicado e pode ser acessado em
https://vimeo.com/113635420.

Referências Bibliográficas

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COUCHOT, Edmond. A Tecnologia na Arte: da fotografia à realidade virtual. Porto


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DOMINGUES, Diana (org). Arte e Vida no século XXI. São Paulo: EdUNESP, 2003.

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LIESER, Wolf. Arte digital: novos caminhos na arte. Editora H. F. Ullmann, 2010.

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