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I Congresso Internacional de Língua Portuguesa: experiências culturais e linguístico-literárias

contemporâneas

COSTA LIMA, Luiz. "Letras à míngua". In: Folha de São Paulo, 27/08/2006. disponível em:
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texto. In:MEDINA, Cremilda Araújo. Sonha mamana África. São Paulo: Editora Epopéia;
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SANTIAGO, Silviano. "O entre-lugar do discurso latino-americano". In: Uma literatura nos
trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, pp. 9-26.
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Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/09/1511606-a-literatura-
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no. 38, 1999. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/
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TAVARES, Ana Paula. "Contar Histórias". In: Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento,
2008, pp. 39-50.

Gestos do olhar, fronteiras da visão: imagem, memória e poesia

Rodrigo Garcia Barbosa


Universidade Federal de Lavras (UFLA)
rodrigobarbosa@dch.ufla.br

Neste trabalho propomos analisar as relações entre literatura e memória a partir de


figurações e configurações do olhar presentes em dois poemas da literatura brasileira
contemporânea, identificando neles um gesto constituinte que engloba diversos aspectos,
como uma subjetividade projetada e incorporada no visível, uma historicidade definida como
uma condição compartilhada tanto pelo que vê quanto pelo que é visto e uma poeticidade
construída a partir dessa dialética do olhar, de suas condições de visibilidade e invisibilidade,
de descobrimento e recobrimento. Tal gesto dá origem a estruturas poemáticas que se

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desdobram em centros de tensões, ou pontos de convergências e divergências, formas que


tangenciam o informe, enfim – como a lembrança e o esquecimento, a luz e a sombra, o som
e o silêncio –, e a partir dele pretendemos refletir sobre as possíveis implicações entre sujeito,
mundo e poesia a partir daquilo que identificamos como um paradigma mútuo da imagem e
da memória; paradigma inquieto, fronteiriço, feito de rastros, restos, vestígios: ausências e
presenças entrelaçadas nos poemas.

Sendo assim, as questões que pretendemos abordar neste trabalho partem da condição
de que há um gesto do olhar, movimento dos olhos que constitui a visão, pois “Só se vê o que
se olha”, nos ensina Merleau-Ponty (2004, p. 16); mas também partem de uma outra
condição, desdobrável da anterior, que estabelece que tal gesto não se dá como um
movimento gratuito, uma ação aleatória, mas sim como uma antecipação da própria visão no
olhar, como uma possibilidade que se sugere ao olho antes mesmo que ele se fixe no seu
objeto. Dessa forma, olhar e visão se fundem como “partes totais do mesmo Ser” (Ibidem, p.
16), ser vidente que se incorpora no ser visível, imbricada dialética que recobre aquilo que é
visto com a descoberta daquele que vê. Daí a possibilidade de pensarmos em fronteiras,
margens, limites onde as condições se invertem, onde o que vê torna-se o que é visto e o que
é visto torna-se o que vê, frestas afiadas que, acreditamos, são também uma condição de
poesia, ou de alguma poesia, e através das quais se insinuam também algumas imagens e
algumas memórias, definindo assim certas perguntas a serem exploradas: Onde afinal se
situam tais frestas? O que escondem e o que deixam vislumbrar em suas múltiplas condições
de imagem, memória e poesia?

Uma primeira hipótese, que alimenta todas as outras, sugere que se busque tais frestas
em um poema, esse lugar fronteiriço, extremo, propício às condições das quais partimos e às
quais retornamos insistentemente. Nossa exploração começa, então, por um poema de Sérgio
Alcides, poeta, ensaísta e professor que tem se destacado no contexto da poesia e da crítica
literária brasileiras contemporânea. O poema intitulado “Está caindo” se aproxima das
questões inicialmente levantadas sobre a visão e o olhar e as lança adiante, em novos
desdobramentos que buscaremos indicar a partir dos versos transcritos a seguir:

Querer olhar para a lente,


verificar a ranhura
da lente, não a que arranha
do outro lado da vista
o mundo menos real
– mas real – da circunstância.

Sem poder deixar de ver

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– através – a poesia.

Poeira que está caindo,


cobrindo as mercadorias.

(ALCIDES, 2012, p. 11)

Já no primeiro verso nos deparamos com um olhar que se conjuga com um querer,
uma ação atrelada a uma vontade ou desejo que se antecipa nela, determinando-a e
moldando-a. A visão já conhece seu objeto, já o pressente antes mesmo dele se concretizar no
olhar, é capaz de medi-lo e especificá-lo entre as variáveis possíveis. E as variáveis se
apresentam, pois o objeto em questão é o que poderíamos chamar de um objeto complexo
para a visão, não algo que se coloca no mundo natural “da circunstância”; não algo que
“naturalmente” se coloca “do outro lado da vista”, reforça o poema; mas algo que constitui a
própria visão, ou se situa dentro dela, ou mesmo a precede: a lente, imagem que se abre a
figurações igualmente ricas em desdobramentos.

Uma delas, de natureza metonímica, nos faz pensar na parte de uma câmera, na lente
como ponto de convergência de um olhar e de um objeto, fronteira onde ambos se encontram
e implicam, submetidos a esse artefato que acentua suas delimitações: o olhar recortado pelo
enquadramento da imagem; o objeto também recortado nesse mesmo enquadramento. Tal
lente, fotográfica ou cinematográfica – e tal diferenciação não nos parece particularmente
relevante no momento, e nem pretendemos explorá-la aqui, apenas confessar desde já que o
olhar detido e concentrado que prevalece no poema e a atenção voltada à “circunstância”,
com sua natureza momentânea e particular, definem uma predileção pela fotografia –, tal
lente, concentração da câmera em sua máxima potência ótica, introduz novas questões dentre
as quais escolho uma: sua natureza técnica, instrumental, associada a uma ação consciente e
planejada; questão que, introduzida, nos faz pensar em Walter Benjamin e seus escritos sobre
o tema, sobre sua natureza técnica, mas também – e uma nova questão brota da anterior –
mágica; escritos dos quais destacamos o trecho a seguir, que se detém na imagem fotográfica
e no dispositivo que a produz:

[...] Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim,


percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata
pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá
para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de
planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade
irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e
agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar
imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há
muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando

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para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre
inconscientemente. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como
só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1994, p. 94)

As questões levantadas por Benjamin sobre a câmera e a reprodução fotográficas


sugerem reflexões valiosas para a leitura desse primeiro verso. A começar pelo
reconhecimento de uma dimensão extrema, análoga ao que chamamos de fronteira, margem,
limite, e que se caracteriza pela convivência pouco pacífica entre dois elementos distintos,
condição dialética que percorre as imagens benjaminianas e reforça sua ligação com outra
dimensão também dialética – a da memória. Na verdade, podemos reconhecer na passagem
mais de uma dialética posta a funcionar: técnica e magia, consciente e inconsciente,
planejamento e acaso, olhar e câmera. E essa condição dinâmica nos permite perguntar então:
O que deseja este olhar do poema? Deseja ver a imagem que se forma duplamente, um pouco
a partir do seu mecanismo calculado e lúcido, um pouco a partir da circunstância imprevisível
e incontrolável? Deseja gozar esse espaço móvel, tenso e instável em que sua visão se atira e,
inevitavelmente, se perde, tornando-se tanto a visão da câmera quanto a visão do espectador?

As respostas a tais perguntas surgem a partir dos versos seguintes, quando


descobrimos que este olhar desejoso não se interessa exatamente por aquilo que a lente vê ou
permite visualizar, nem pela própria lente em sua totalidade, mas particularmente por sua
ranhura. E aqui cabe ressaltar: não as ranhuras do mundo que a lente reflete e reproduz, mas a
ranhura da própria lente, sua marca, sua imperfeição, sua cicatriz; ranhura real porque não
mimética, porque não a representação de outras, alheias, ainda que estas sejam reais em suas
condições específicas (“menos reais – mas reais”, diz o poema). Ranhura real porque em si
mesma, com suas próprias implicações de ser a ranhura da lente, artefato ou instrumento em
que visão e olhar se materializam. E se estamos decididos a pensar a lente como câmera,
somos levados a pensar no acaso de que fala o filósofo ao comentar as reproduções
fotográficas, também uma falha na ação consciente e planejada do fotógrafo; acaso que fere a
imagem, chamusca sua superfície, desfaz sua integridade para fazer emergir a magia que
conecta os afetos passados, presentes e futuros, movimento de memória que atravessa o texto
benjaminiano. E então já não é possível ignorar o poder dessa falha, dessa falta, desse
obstáculo à visão, poder de magia, nos diz Benjamin, e de poesia, nos dizem os versos
destacados; força centrípeta que produz um movimento auto-reflexivo que já se insinuava
como um metaolhar ou uma metavisão, dobras e desdobras das ações e objetos sobre si
mesmos, e que abre caminho para uma metapoesia, ou uma poesia que busca ver a si mesma,
se reconhecer em seu próprio olho ou em sua própria lente, atraída pelo poder irresistível do
seu abismo intrínseco.

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Mas de onde vem essa inevitável poesia? De que fresta ela surge, sem poder ser
ignorada? De que fenda ou fissura? Afinal, como o verso destaca, a poesia não é a ranhura,
mas no entanto se deixa surpreender através dela; como a magia que se revela no
chamuscamento da foto, na sua falha, na sua falta, mais do que no detalhe imperceptível da
imagem. E é preciso insistir nessa negatividade, nesse caráter de perda que parece presidir as
ações e objetos desta leitura, e que sugere uma chave para uma compreensão profunda desses
fenômenos: a instituição de presenças incontornáveis a partir de ausências, positividades que
se impõem a partir de negatividades, o caráter falível de um instrumento que se afirma
justamente pela sua precariedade. E o poema em questão não se furta a essa reviravolta
dialética que lhe confere essa condição ambígua, paradoxal, de uma negatividade positiva.
Afinal, à impossível invisibilidade da poesia que se revela através da ranhura se soma a
poeira-poesia (feliz paronomásia) que cai e cobre, por fim, as mercadorias, sendo ao mesmo
tempo uma adição e um resto; índice da passagem do tempo, mas que se assenta sobre essa
lapso e assume seus contornos, destacando sua forma.

Nos deparamos assim com um objeto que revela, mais do que sua forma acabada, a
forma do instrumento que lhe deu acabamento, e que se desenha no vazio que resta após a
lapidação ou escavação. Pensamos aqui na leitura que Georges Didi-Huberman (2009) faz da
obra do escultor italiano Giuseppe Penone, cujas mãos se imprimem nos vazios que
provocam na matéria prima com que o artista trabalha, como um rio que se pode entrever nas
formas do leito lapidado pelo fluxo das águas, como a marca que resta após o contato, como a
cicatriz que denuncia o formato da lâmina. Ouçamos o que diz o próprio escultor:

Todo inquérito sobre os vazios pressupõe o cheio. Esse cheio é o próprio


escultor, porque com seu cinzel, com suas mãos, ele exerce a pressão que
cria os volumes. O vaso pode ser visto como um substituto das mãos do
oleiro, como uma soma de impressões, como uma matriz capaz de recriar
(quando se pega o vaso) a pele do oleiro. (PENONE apud CELANT apud
DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 55)

A partir da lição de Penone podemos concluir, então, que, se o olhar deseja a ranhura,
encontra a poesia, o fantasma incontornável de uma presença que se manifesta como
ausência, de uma potência que se afirma como falha, de uma linguagem que se constitui
como um silêncio, um sacrifício. E daí talvez certa dimensão sagrada dessa poeira-poesia que
“cobre as mercadorias”, oriunda do sagrado que Georges Bataille (2003) associa às artes que
procuram formas verbais ou figurativas para traduzir as inquietudes do “espírito moderno”,
livres dos limites da representação; formas não substanciais que se caracterizam pela
impossibilidade de permanência, que fogem assim que aparecem, e que não se deixam
apreender totalmente; formas cujos objetos se revelam justamente ao revelarem a
incapacidade dessas mesmas formas para apreendê-los, ponto extremo ou “instante

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privilegiado” em que, entre o objeto inapreensível e a forma precária, se desnuda um abismo.


Assim, imagem, memória e poesia se entrelaçam nessa fresta afiada – ranhura – em que mais
se apuram à medida que se impõem uma falta, um vazio, uma perda.

Mas as questões levantadas pelo escultor nos lançam outro problema: E se, no lugar
da imagem metonímica da lente que figura a câmera, nos deparássemos com a imagem
metafórica da lente que figura o olho? Um olho com suas ranhuras, como um corpo com suas
cicatrizes, imagens e memórias através das quais brotam outras imagens e outras memórias?
Algo como se a ranhura da lente, as frestas e imperfeições da linguagem, se reproduzissem ou
fossem a reprodução de uma falha prévia que se projetasse no olhar como a visão, e o
movimento metapoético se revirasse sobre si mesmo para encontrar um sujeito que vê e se
projeta no visível. Ou, se insistirmos no paradigma da precariedade, se aprofundarmos seu
corte, algo como se a ranhura do olho, sua falha ou fresta, marcasse justamente a exclusão
desse sujeito de uma linguagem que se quer autônoma, tal como a define Michel Foucault
(2009), para quem a literatura moderna, desde Sade e Hölderlin, se caracteriza pelo seu
trânsito em direção ao exterior, espaço instaurado pelo próprio discurso e que se configura
como um vazio, uma abertura ao infinito por onde se propaga a própria linguagem, ao mesmo
tempo em que o sujeito se fragmenta até o desaparecimento. Diz o pensador francês:

[...] em suma, não é mais discurso e comunicação de um sentido, mas


exposição da linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta; e o
sujeito que fala não é mais a tal ponto o responsável pelo discurso (aquele
que o mantém, que através dele afirma e julga, nele se representa às vezes
sob uma forma gramatical preparada para esse efeito) [...] (FOUCAULT,
2009, p. 220)

Dessa maneira, se autodesenvolvendo, a linguagem literária escapa à representação,


não para identificar-se consigo mesma, mas para distanciar-se cada vez mais de si, colocando
em evidência seu próprio ser, revelado nesse distanciamento, nessa dispersão, nessa ausência.
E esse vazio em que a literatura se enuncia constitui seu próprio sujeito como a ausência de
um eu, uma “experiência nua da linguagem” (Ibidem, p. 221), nas palavras de Foucault, que
faz desaparecer o sujeito, experiência do exterior que faz apagar-se o interior. E assim, como
quer que tomemos a imagem da lente, imagem cujas possibilidades de abertura demarcam
também sua precariedade, o que resta é um vazio ou uma falta através da qual a poesia ainda
se manifesta como um vestígio, ou seja, uma memória.

Mas será mesmo tão estável essa condição do eu na linguagem? Afinal, não falamos
de uma dialética tensa, de uma ausência-presença? Por que não pensarmos então em um jogo
anadiômeno, como o que propõe Didi-Huberman (1998) a partir das dialéticas do olhar, de
avanços e recuos, de aparecimentos e desaparecimentos, de superfícies e profundezas? Por
que não pensarmos a partir de um outro poema, diferente do primeiro com o qual iniciamos

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nossa leitura, mas no qual é possível identificarmos rastros das questões que percorreram
aquele e tantos outros? E por preferir pensar assim, a partir da materialidade paradoxal dos
versos, transcrevemos a seguir o poema “Reflexos”, do também poeta, ensaísta e professor
Alexandre Rodrigues da Costa, cuja produção se destaca por explorar as fronteiras entre a
literatura e outras artes:

Sem acontecimentos
que a dissimulem, sem

presença
que a obstrua,

apenas
eu,

esse pronome incerto


com o qual se nomeia

e me fere.

(COSTA, 2008, p. 53)

Aqui não temos o olhar nem a visão, pelo menos não explicitados no poema, mas
podemos dizer que sobrevive uma condição precária que hesita entra a presença e a ausência.
Afinal, não há acontecimentos nem presença que dissimulem e obstruam algo que, entretanto,
não está; algo que joga aquele jogo de avanços e recuos, aparecimentos e desaparecimentos
do qual falamos há pouco; algo que não aparece mas que, contudo, é inevitável, como a
poesia que “não se podia deixar de ver”. Algo que se mostra de viés, através da máscara
incerta com a qual se nomeia, a máscara da forma poética a que tantos poetas recorrem, “a
fim de fazer do homem só uma multidão, da identidade negativa a multiplicidade positiva ou
a universalidade do ser”, destaca Michael Hamburguer (2007, p. 107): esse eu que retorna
como uma cicatriz na linguagem, a marca de um corpo extirpado, o rastro de sua exclusão;
que retorna como memória, como sobrevivência. Talvez um corpo coletivo, um sujeito
universal que, a despeito de nossas idiossincrasias e de nossa historicidade, concretiza na
palavra nossa humanidade incerta, vacilante e precária, mas um corpo que mais uma vez se
abre a esse dilaceramento, a essa dissolução, reintroduzindo em nossa leitura a questão do
sacrifício, que consiste, segundo Marcel Mauss e Henri Hubert (2005), em um ato religioso
que modifica o estado de quem o efetua ou dos objetos a ele ligados. Aplicada à linguagem,
tal modificação faz nascer a poesia; aplicada ao homem, ou ao nome do homem, ou mesmo

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ao seu pronome, não realizaria uma transformação análoga? Não consagraria sua
individualidade à universalidade de uma condição exemplar, registro de um tempo e um
espaço que devem ser preservados, de impressões que se somam a outras para fundar o
edifício de nossas memórias?

Não falamos aqui das personalidades conhecidas ou das massas anônimas que
pontuam os livros de história, mas daquilo que sobrevive ao mesmo tempo em nossa
individualidade e em nossa coletividade, a memória de vivências e experiências acumuladas
ao longo do tempo e a partir do tempo, da sua passagem e das marcas deixadas por ela, a
despeito da sobrevivência ou não das civilizações.

Falamos de uma transcendência que se realiza na imanência, de uma sagração do


concreto e material que transborda seus limites para gozar a vertigem do extremo, sem
abandonar, no entanto, a concretude e a materialidade, agarrando-se, no limite, ao que resta
no vestígio, ao que sobra na ruína, falha ao avesso, desdobrada em sua condição dialética,
que se contrapõe a toda metafísica, a toda espiritualidade, como técnica e magia convivem
nas diferentes leituras benjaminianas da arte e da cultura na modernidade.

Assim, desfeitas as máscaras, mais uma vez nos deparamos com uma poesia que se
mostra através: ela que não pode ser dissimulada; ela que não pode ser obstruída; ela que se
nomeia com o pronome para ferir. Mas ferir quem? Inútil responder: o jogo anadiômeno nos
conduzirá pela ferida aberta entre a visão e o olhar, entre eu e me, aberta entre a linguagem e
o corpo, entre o indivíduo que fere a página com a escrita e a humanidade que o atravessa em
direção ao texto; feridas que se sobrepõem umas às outras, que se penetram e implicam;
ranhuras nas lentes, nos olhos, nas peles; recordações por onde brota e resta, inelutável, a
poesia.

Referências

ALCIDES, Sérgio. Píer. São Paulo: Editora 34, 2012.


BATAILLE, Georges. La conjuración sagrada: ensayos 1929-1939. Selección, traducción y
prólogo de Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2003.
BENJAMIM, Walter. Pequena história da fotografia. In: ______. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-107.
COSTA, Alexandre Rodrigues da. Peso morto. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Tradução de
Augustin de Tugny e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

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FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção


de Manoel Barros de Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009. (Ditos e escritos, III)
HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde
Baudelaire. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Tradução Paulo Neves. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as
vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

A escrita de transição em Júlia Lopes de Almeida

Romair Alves de Oliveira130


Unemat/UFG
romairoliveira@gmail.com

Resumo: a autoria feminina, em geral, reflete na personagem a experiência do ser mulher e


como ser mulher. As personagens vão se revelando não somente como elementos do enredo,
mas como seres femininos que têm vontades, desejos, anseios e são capazes de expor sua
humanidade faltosa e, ao mesmo tempo, inteira pela exposição que fazem de si. Tendo a
mulher como centro da narrativa, as escritoras levam suas personagens a transitarem em
cenas mais verossímeis e condizentes com a condição feminina junto à sociedade e ao seu
meio. Nessa perspectiva, temos, na obra Júlia Lopes de Almeida, em pleno século XIX, uma
ficção romanceada que tem a mulher como centro da narrativa. Através das personagens,

130Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (2008). Atualmente é professor adjunto da Universi -
dade do Estado de Mato Grosso e Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás sob orientação do Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo.

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