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contemporâneas
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Sendo assim, as questões que pretendemos abordar neste trabalho partem da condição
de que há um gesto do olhar, movimento dos olhos que constitui a visão, pois “Só se vê o que
se olha”, nos ensina Merleau-Ponty (2004, p. 16); mas também partem de uma outra
condição, desdobrável da anterior, que estabelece que tal gesto não se dá como um
movimento gratuito, uma ação aleatória, mas sim como uma antecipação da própria visão no
olhar, como uma possibilidade que se sugere ao olho antes mesmo que ele se fixe no seu
objeto. Dessa forma, olhar e visão se fundem como “partes totais do mesmo Ser” (Ibidem, p.
16), ser vidente que se incorpora no ser visível, imbricada dialética que recobre aquilo que é
visto com a descoberta daquele que vê. Daí a possibilidade de pensarmos em fronteiras,
margens, limites onde as condições se invertem, onde o que vê torna-se o que é visto e o que
é visto torna-se o que vê, frestas afiadas que, acreditamos, são também uma condição de
poesia, ou de alguma poesia, e através das quais se insinuam também algumas imagens e
algumas memórias, definindo assim certas perguntas a serem exploradas: Onde afinal se
situam tais frestas? O que escondem e o que deixam vislumbrar em suas múltiplas condições
de imagem, memória e poesia?
Uma primeira hipótese, que alimenta todas as outras, sugere que se busque tais frestas
em um poema, esse lugar fronteiriço, extremo, propício às condições das quais partimos e às
quais retornamos insistentemente. Nossa exploração começa, então, por um poema de Sérgio
Alcides, poeta, ensaísta e professor que tem se destacado no contexto da poesia e da crítica
literária brasileiras contemporânea. O poema intitulado “Está caindo” se aproxima das
questões inicialmente levantadas sobre a visão e o olhar e as lança adiante, em novos
desdobramentos que buscaremos indicar a partir dos versos transcritos a seguir:
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– através – a poesia.
Já no primeiro verso nos deparamos com um olhar que se conjuga com um querer,
uma ação atrelada a uma vontade ou desejo que se antecipa nela, determinando-a e
moldando-a. A visão já conhece seu objeto, já o pressente antes mesmo dele se concretizar no
olhar, é capaz de medi-lo e especificá-lo entre as variáveis possíveis. E as variáveis se
apresentam, pois o objeto em questão é o que poderíamos chamar de um objeto complexo
para a visão, não algo que se coloca no mundo natural “da circunstância”; não algo que
“naturalmente” se coloca “do outro lado da vista”, reforça o poema; mas algo que constitui a
própria visão, ou se situa dentro dela, ou mesmo a precede: a lente, imagem que se abre a
figurações igualmente ricas em desdobramentos.
Uma delas, de natureza metonímica, nos faz pensar na parte de uma câmera, na lente
como ponto de convergência de um olhar e de um objeto, fronteira onde ambos se encontram
e implicam, submetidos a esse artefato que acentua suas delimitações: o olhar recortado pelo
enquadramento da imagem; o objeto também recortado nesse mesmo enquadramento. Tal
lente, fotográfica ou cinematográfica – e tal diferenciação não nos parece particularmente
relevante no momento, e nem pretendemos explorá-la aqui, apenas confessar desde já que o
olhar detido e concentrado que prevalece no poema e a atenção voltada à “circunstância”,
com sua natureza momentânea e particular, definem uma predileção pela fotografia –, tal
lente, concentração da câmera em sua máxima potência ótica, introduz novas questões dentre
as quais escolho uma: sua natureza técnica, instrumental, associada a uma ação consciente e
planejada; questão que, introduzida, nos faz pensar em Walter Benjamin e seus escritos sobre
o tema, sobre sua natureza técnica, mas também – e uma nova questão brota da anterior –
mágica; escritos dos quais destacamos o trecho a seguir, que se detém na imagem fotográfica
e no dispositivo que a produz:
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para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre
inconscientemente. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como
só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1994, p. 94)
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Mas de onde vem essa inevitável poesia? De que fresta ela surge, sem poder ser
ignorada? De que fenda ou fissura? Afinal, como o verso destaca, a poesia não é a ranhura,
mas no entanto se deixa surpreender através dela; como a magia que se revela no
chamuscamento da foto, na sua falha, na sua falta, mais do que no detalhe imperceptível da
imagem. E é preciso insistir nessa negatividade, nesse caráter de perda que parece presidir as
ações e objetos desta leitura, e que sugere uma chave para uma compreensão profunda desses
fenômenos: a instituição de presenças incontornáveis a partir de ausências, positividades que
se impõem a partir de negatividades, o caráter falível de um instrumento que se afirma
justamente pela sua precariedade. E o poema em questão não se furta a essa reviravolta
dialética que lhe confere essa condição ambígua, paradoxal, de uma negatividade positiva.
Afinal, à impossível invisibilidade da poesia que se revela através da ranhura se soma a
poeira-poesia (feliz paronomásia) que cai e cobre, por fim, as mercadorias, sendo ao mesmo
tempo uma adição e um resto; índice da passagem do tempo, mas que se assenta sobre essa
lapso e assume seus contornos, destacando sua forma.
Nos deparamos assim com um objeto que revela, mais do que sua forma acabada, a
forma do instrumento que lhe deu acabamento, e que se desenha no vazio que resta após a
lapidação ou escavação. Pensamos aqui na leitura que Georges Didi-Huberman (2009) faz da
obra do escultor italiano Giuseppe Penone, cujas mãos se imprimem nos vazios que
provocam na matéria prima com que o artista trabalha, como um rio que se pode entrever nas
formas do leito lapidado pelo fluxo das águas, como a marca que resta após o contato, como a
cicatriz que denuncia o formato da lâmina. Ouçamos o que diz o próprio escultor:
A partir da lição de Penone podemos concluir, então, que, se o olhar deseja a ranhura,
encontra a poesia, o fantasma incontornável de uma presença que se manifesta como
ausência, de uma potência que se afirma como falha, de uma linguagem que se constitui
como um silêncio, um sacrifício. E daí talvez certa dimensão sagrada dessa poeira-poesia que
“cobre as mercadorias”, oriunda do sagrado que Georges Bataille (2003) associa às artes que
procuram formas verbais ou figurativas para traduzir as inquietudes do “espírito moderno”,
livres dos limites da representação; formas não substanciais que se caracterizam pela
impossibilidade de permanência, que fogem assim que aparecem, e que não se deixam
apreender totalmente; formas cujos objetos se revelam justamente ao revelarem a
incapacidade dessas mesmas formas para apreendê-los, ponto extremo ou “instante
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Mas as questões levantadas pelo escultor nos lançam outro problema: E se, no lugar
da imagem metonímica da lente que figura a câmera, nos deparássemos com a imagem
metafórica da lente que figura o olho? Um olho com suas ranhuras, como um corpo com suas
cicatrizes, imagens e memórias através das quais brotam outras imagens e outras memórias?
Algo como se a ranhura da lente, as frestas e imperfeições da linguagem, se reproduzissem ou
fossem a reprodução de uma falha prévia que se projetasse no olhar como a visão, e o
movimento metapoético se revirasse sobre si mesmo para encontrar um sujeito que vê e se
projeta no visível. Ou, se insistirmos no paradigma da precariedade, se aprofundarmos seu
corte, algo como se a ranhura do olho, sua falha ou fresta, marcasse justamente a exclusão
desse sujeito de uma linguagem que se quer autônoma, tal como a define Michel Foucault
(2009), para quem a literatura moderna, desde Sade e Hölderlin, se caracteriza pelo seu
trânsito em direção ao exterior, espaço instaurado pelo próprio discurso e que se configura
como um vazio, uma abertura ao infinito por onde se propaga a própria linguagem, ao mesmo
tempo em que o sujeito se fragmenta até o desaparecimento. Diz o pensador francês:
Mas será mesmo tão estável essa condição do eu na linguagem? Afinal, não falamos
de uma dialética tensa, de uma ausência-presença? Por que não pensarmos então em um jogo
anadiômeno, como o que propõe Didi-Huberman (1998) a partir das dialéticas do olhar, de
avanços e recuos, de aparecimentos e desaparecimentos, de superfícies e profundezas? Por
que não pensarmos a partir de um outro poema, diferente do primeiro com o qual iniciamos
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nossa leitura, mas no qual é possível identificarmos rastros das questões que percorreram
aquele e tantos outros? E por preferir pensar assim, a partir da materialidade paradoxal dos
versos, transcrevemos a seguir o poema “Reflexos”, do também poeta, ensaísta e professor
Alexandre Rodrigues da Costa, cuja produção se destaca por explorar as fronteiras entre a
literatura e outras artes:
Sem acontecimentos
que a dissimulem, sem
presença
que a obstrua,
apenas
eu,
e me fere.
Aqui não temos o olhar nem a visão, pelo menos não explicitados no poema, mas
podemos dizer que sobrevive uma condição precária que hesita entra a presença e a ausência.
Afinal, não há acontecimentos nem presença que dissimulem e obstruam algo que, entretanto,
não está; algo que joga aquele jogo de avanços e recuos, aparecimentos e desaparecimentos
do qual falamos há pouco; algo que não aparece mas que, contudo, é inevitável, como a
poesia que “não se podia deixar de ver”. Algo que se mostra de viés, através da máscara
incerta com a qual se nomeia, a máscara da forma poética a que tantos poetas recorrem, “a
fim de fazer do homem só uma multidão, da identidade negativa a multiplicidade positiva ou
a universalidade do ser”, destaca Michael Hamburguer (2007, p. 107): esse eu que retorna
como uma cicatriz na linguagem, a marca de um corpo extirpado, o rastro de sua exclusão;
que retorna como memória, como sobrevivência. Talvez um corpo coletivo, um sujeito
universal que, a despeito de nossas idiossincrasias e de nossa historicidade, concretiza na
palavra nossa humanidade incerta, vacilante e precária, mas um corpo que mais uma vez se
abre a esse dilaceramento, a essa dissolução, reintroduzindo em nossa leitura a questão do
sacrifício, que consiste, segundo Marcel Mauss e Henri Hubert (2005), em um ato religioso
que modifica o estado de quem o efetua ou dos objetos a ele ligados. Aplicada à linguagem,
tal modificação faz nascer a poesia; aplicada ao homem, ou ao nome do homem, ou mesmo
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ao seu pronome, não realizaria uma transformação análoga? Não consagraria sua
individualidade à universalidade de uma condição exemplar, registro de um tempo e um
espaço que devem ser preservados, de impressões que se somam a outras para fundar o
edifício de nossas memórias?
Não falamos aqui das personalidades conhecidas ou das massas anônimas que
pontuam os livros de história, mas daquilo que sobrevive ao mesmo tempo em nossa
individualidade e em nossa coletividade, a memória de vivências e experiências acumuladas
ao longo do tempo e a partir do tempo, da sua passagem e das marcas deixadas por ela, a
despeito da sobrevivência ou não das civilizações.
Assim, desfeitas as máscaras, mais uma vez nos deparamos com uma poesia que se
mostra através: ela que não pode ser dissimulada; ela que não pode ser obstruída; ela que se
nomeia com o pronome para ferir. Mas ferir quem? Inútil responder: o jogo anadiômeno nos
conduzirá pela ferida aberta entre a visão e o olhar, entre eu e me, aberta entre a linguagem e
o corpo, entre o indivíduo que fere a página com a escrita e a humanidade que o atravessa em
direção ao texto; feridas que se sobrepõem umas às outras, que se penetram e implicam;
ranhuras nas lentes, nos olhos, nas peles; recordações por onde brota e resta, inelutável, a
poesia.
Referências
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130Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (2008). Atualmente é professor adjunto da Universi -
dade do Estado de Mato Grosso e Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás sob orientação do Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo.
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