Você está na página 1de 12

LUCKESI, C. L. Filosofia da educação.

São Paulo,
Cortez, 1994.
LUZURIAGA, L. História da educação e da pedago-
gia. 8°* ed., São Paulo, Companhia Editora Na- CONTRATO DIDÁTICO
cional, 1976.
PASTOR, J. R. e ADAM P. P. Metodologia de la ma-
tematica elemental. 2” ed., Buenos Aires, Ibero
Americano, 1948. Benedito Antonio da Silva
POPPER, K. A lógica da pesquisa cientifica. São
Paulo, Cultrix, 1974.
QUILLET, P. Introdução ao pensamento de Bachelard. Introdução
Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
REZENDE, A. M. Concepção fenomenológica da As idéias de Contrato Didático aqui apresenta-
educação. São Paulo, Cortez, 1990. das baseiam-se na definição devida a Guy Brousseau
e nas contribuições sobre o assunto encontradas nos
trabalhos de Régine Douady. Os leitores que preten-
dam se aprofundar na matéria, encontrarão subsídios
t' nas obras que constam nas referências bibliográficas
13m- (- NTEMATKA
"EbucAç/:ço apresentadas no final deste capítulo. Nelas também se
encontra uma ampla listagem de materiais que versam
UMA nuTílobuçÍ-a' sobre o assunto.
A relação professor-aluno está subordinada a
õx/Lvl/k
@mg «Lcímmzk !MW/WD (WW) muitas regras e convenções que funcionam como se
fossem cláusulas de um contrato. Essas regras, porém,
(eáaie ralLHM) Prwcoóiñâíi)
513m3 _sã quase nunca são explícitas, mas se revelam principal-
mente quando se dá a transgressão das mesmas. O
conjunto das cláusulas, que estabelecem as bases das
relações que os professores e os alunos mantêm com
o saber, constitui O chamado contrato didático.
Segundo Brousseau (1986),
Chama-se contrato didático o conjunto de comportamentos
do professor que são esperados pelos alunos e o conjunto de

42 43
comportamentos do aluno que são esperados pelo profes- sos contextos, tais como: as escolhas pedagógicas, o
determinam,
sor... Esse contrato é o conjunto de regras que tipo de trabalho solicitado aos alunos, os objetivos do
explicitamente mas sobretudo implícita-
uma pequena parte
mente, o que cada parceiro da relação didática deverá gerir curso, as condições de avaliação, etc. Se a relação di-
aquilo que, de uma maneira ou de outra, ele terá de prestar datica se desenvolve num ambiente em que o profes-
e
conta perante o outro. sor dá aulas expositivas, onde predominam defini-
çoes, exemplos e listas de exercícios para os alunos
A noção de contrato didático supõe a compreen- resolverem, a1 o COHJUUÍO de regras, explícitas ou im-
são da escola como instituição social responsável pela PÍICIÍHS. que regem o gerenciamento da atividade será
transmissão do saber escolar e, portanto, a idéia de muito .diferente daquele que direciona uma prática pe-
uma tradição cultural. Franchi (1995) enfatiza que dagogica em que os alunos trabalham, realizando ati-
onde deter- vidades propostas e, no final, o professor, em uma
a escola constitui um contexto característico,
minados esquemas de interação se fixaram social, histórica sessao coletiva, procura institucionalizar o conceito
e culturalmente como um conjunto específico de pressupos- trabalhado e propõe exercícios de fixação e/ou verifi-
tos, de atitudes, de normas e de representações. Também
aula, se estabe- caçao do aprendizado.
na interação que se dá no interior da sala de A prática pedagógica mais comum em Matemá-
lece o que cada parceiro tem a responsabilidade de gerir. O
professor é o responsável por garantir ao aluno o acesso ao tica parece ser aquela em que o professor cumpre seu
saber escolar e por definir a forma de sua participação no contrato dando aulas expositivas e passando exercí-
processo de aprendizagem. A ele cabe propor questões aces- cios aos alunos; em suas aulas ele deve selecionar par-
síveis aos alunos, bem como, determinar os passos em que tes do conteúdo que o aluno possa aprender e propor
recebem informações relevantes, dominam conceitos e ope-
rações necessários para as respostas. O aluno deve respon-
problemas cujos enunciados contenham os dados ne-
der a essas diretrizes e determinações, resolvendo as tarefas cessarios e tao-somente esses, cuja combinação racio-
propostas, ajustando-se aos moldes de comunicação social nal, aliada aos elementos da aula, permite encontrar a
convencionados para as diferentes atividades escolares. Seu soluçao do problema. O aluno, por seu lado, cumpre
acerto na resolução de uma tarefa é geralmente visto como
o indicador de ganho em seu repertório de
conhecimentos. seu contrato se ele bem ou mal compreende a aula
Ele tem até o direito de errar, desde que aceite as conse- dada econsegue resolver, corretamente ou não, os
qüências prescritas para o caso. Tanto o professor quanto
exercicios. Se ISSO nao acontecer, o professor deverá
imagem recíproca do papel que
os alunos constroem uma desejáveis, da ajuda-lo, dmgindo o seu trabalho através de indica-
devem desempenhar, dos comportamentos
de
expectativa suas respostas e reações, dos lances sucessi- çoes que esclareçam suas dúvidas ou de pequenas
vos do "jogo" que estão jogando. questoes elementares que conduzam ao resultado.
Há casos extremos em que o professor se refugia
Devemos notar que o contrato didático depende na segurança dos algoritmos prontos, fraciona a ativi-
da estratégia de ensino adotada, adaptando-se a diver- dade matematica em etapas pelas quais passa mecani-

44 45
camente, esvaziando o seu significado. Sua atuação se nentes à questão proposta assim como a verificação
resume em apresentar uma definição, dar alguns da validade dos resultados obtidos fazem parte do
exemplos e solicitar exercícios “idênticos” aos contrato didático.
dos exemplos dados. Aos alunos cabe memorizar as
regras para repeti-las nas provas repletas de questões Ruptura e renegociação
rotineiras que permitem a reprodução dos modelos
fornecidos pelo professor. Nesta situação de ensino, a O contrato didático se manifesta principalmente
construção do saber fica quase que exclusivamente quando é transgredido por um dos parceiros da rela-
sob a responsabilidade do aluno. É o que se dá, por ção didática. Em muitos casos é preciso que haja a
exemplo, quando o “estudo” de integrais se reduz ao ruptura e a renegociação do mesmo para o avanço do
treino de uma extensa lista de técnicas de integração, aprendizado. Um exemplo bastante elucidativo de
sem que se trabalhe efetivamente o significado do ob- ruptura do contrato didático, nesta situação, é o caso
jeto de estudo, nem mesmo se questionando a integra- em que o professor pretende introduzir um conceito
bilidade de funções. Pelo tipo de trabalho realizado novo por meio não de uma aula expositiva (definição,
(primitivação), o aluno, além de não construir o co- propriedades, exemplos, lista de exercícios), mas de
nhecimento de integral, ainda pode imaginar que to- atividades em que os alunos, partindo de urna situa-
das as funções sejam integráveis. ção-problema, resolvem questões trabalhando indivi-
Já na estratégia de ensino em que o aluno traba- dualmente ou em dupla e, no final, o professor faz
lha individualmente ou em duplas, seguindo as orien- com toda a classe o fechamento, visando a institucio-
tações contidas em seqüências didáticas organizadas nalização do conceito que se pretende construir. Os
pelo professor, e a institucionalização do saber se dá alunos recebem a ficha de atividade e aguardam que
através de sessões coletivas, o contrato didático é to- o professor inicie o trabalho. Quando este lhes diz que
talmente diferente. O professor se apóia nas produ- são eles que devem trabalhar, a primeira reação vem
ções pessoais ou coletivas dos alunos (resultados de imediatamente, através de questões do tipo: “não sei
atividades propostas através de um problema) para fa- fazer", "como começa?”, “a teoria não foi dada",
“você não vai explicar o enunciado?" ,"não entendi o
zer progredir o aprendizado de todae' classe. Nesta si-
tuação, o problema proposto não necessariamente que é para fazer”, e assim por diante.
resolúvel, no seguinte sentido: pode acontecer que Observamos que nesta prática pedagógica o con-
não se saiba que existe uma resposta; a resposta, se trato do aluno tem semelhança com o contrato de um
existir, pode não ser única; os dados podem não ser pesquisador e que sua ruptura não é mais necessária
adequados, isto é, podem não ser suficientes ou po- para avançar o aprendizado. O contrato já prevê a pro-
dem ser superabundantes. A procura de dados perti- gressão do saber, propondo o exame de concepções

46 47
provisórias e relativamente boas, rejeitando ou reto- se chegar a ela, todos os dados propostos devem ser
rnando umas e aprofundando outras, para formar no- utilizados sem que haja necessidade de nenhuma ou-
vas concepções. O erro não é mais uma falha que se tra indicação. A utilização pertinente dos dados se faz
deve evitar a qualquer preço. Ele pode contribuir para segundo um esquema de jogos familiares, tais como
a construção do conhecimento. Entretanto, convém operações aritméticas, regras de três, falsa posição,
notar que existem muitos tipos de erros e que nem to- etc., que constituem o campo de ação e a margem de
dos são, necessariamente, construtivos do conheci- manobra do aluno.
mento. Ao ser perguntado a um aluno, que respondera
Chevallard (1988) faz uma extensa análise didá- que a idade do capitão era 26 anos, o que ele achava
tica dos resultados de uma experiência realizada por do problema, ele disse que era born, mas que não via
uma equipe do Irem de Grenoble, que se tornou co- relação entre cameiros e um capitão. Essas duas atitu-
nhecida não só na França mas também no Brasil e em des contraditórias seriam suficientes para se pôr em
outros países. O trabalho da equipe se iniciou com a dúvida a capacidade do aluno? O autor citado é de
proposta do seguinte problema a 97 alunos do Curso opinião que os estudantes dispõem de duas "Iógicas”,
Elementar (7-8 anos de idade): uma que é a do contrato didático e uma outra que é
Num navio há 26 cameiros e lO cabras. Qual é a idade do abandonada fora da sala de aula, ao se transpor sua
capitão? porta. No quadro da interação didática, essas duas ló-
gicas assumem funções essencialmente diferentes. Os
Dos 97 alunos, 76 calcularam a idade do capitão comentários críticos que, às vezes, o aluno faz junta-
utilizando os números que figuravam no enunciado. mente com suas respostas não fazem parte de sua res-
Outros problemas semelhantes a este foram propostos posta no estrito senso. Somente a resposta do proble-
a alunos dessa e também de outras faixas etárias e os ma é exigida pelo contrato e somente ela poderá ser
resultados do estudo foram bastante difundidos entre objeto de uma avaliação. Ela se integra à lógica do
os profissionais do ensino de Matemática, com o contrato e se situa no registro didático propriamente
nome genérico de “A Idade do Capitão”. dito.
O autor citado, analisando as respostas dos alu- Querendo investigar o que acontece quando o
nos, desloca a questão da logicidade para a questão do contrato didático, vigente por muito tempo no decor-
contrato didático. Observa que a "lógica" que norteia rer da vida escolar dos alunos, é transgredido por um
as respostas dos alunos não é aquela que questiona a dos parceiros da relação didática (no caso, o profes-
pertinência dos dados contidos na questão proposta. A sor), propus o seguinte problema, em junho de 1998,
lógica que vigora é a do contrato didático segundo a a 2] alunos do primeiro ano de um curso de Ciências
qual um problema tem uma e uma só resposta e, para Exatas (18 anos de idade):
48 49
O elevador de um edifício de 10 andares parte do térreo com cia francesa (por isso a adaptação do problema pro-
4 pessoas: 2 mulheres, homem e l criança. Pára no 4" an-
1
posto), muitas respostas foram semelhantes. Por que
dar e aí sai l mulher e entram 3 homens. No 7°, saem 2 pes-
soas. Sabendo-se que houve apenas mais uma parada no
9° os alunos agiram desse modo, como se o ensino da
onde não desceu nenhuma criança e que o elevador chegou matemática os tivesse transformado em autômatos,
ao 10” andar com ll pessoas, pergunta-se qual é a idade do respondendo de modo absurdo a questões absurdas?
ascensorista. Qual a origem do grande respeito que eles demons-
tram por regras não compreendidas?
Dos 21 alunos, 10 operaram com os números do Esse comportamento por parte dos alunos revela
problema e apresentaram uma resposta, explicitando a que existem regras vigentes, ainda que implícitas,
idade do ascensorista; 4 responderam que os dados completamente internalizadas por eles, regras essas
apresentados não se relacionavam com a pergunta; 3 que, quando aplicadas, conduzem a uma grande quan-
responderam que o ascensorista era a criança; 2 indi- tidade de erros dos alunos e a incoerências no trata-
caram, pelas suas respostas, que perceberam a questão mento desses erros pelos professores. Retomando a
("O elevador não tem ascensorista, porque o condo- análise de Chevallard (1988), vejamos algumas dessas
mínio não tem dinheiro para pagar um" e "Não faço regras:
a mínima idéia”) e 2 não responderam. - sempre há uma resposta a uma questão mate-
Reproduzimos abaixo, a título de ilustração, mática e o professor a conhece. Deve-se sempre dar
uma das respostas apresentadas. uma resposta que eventualmente será corrigida;
- para resolver um problema é preciso encontrar
Térreo (4) - 2M - lH - lC os dados no seu enunciado. Nele devem constar todos
4° andar (6) - 1M - 4H - lC
7°andar(4)-M-H- C os dados necessários e não deve haver nada de super-
9°andar(?)-M-H-1C fluo;
10° andar (ll) - M - H - C - em matemática resolve-se um problema efe-
tuando-se operações. A tarefa é encontrar a boa ope-
Idade do ascensorista:
n” de pessoas que partiram do térreo x n” de andares - n” ração e efetua-la corretamente. Certas palavras-chave
de pessoas que chegaram ao 10” andar contidas no enunciado permitem que se adivínhe qual
é ela;
(4x 1o) . 11
11 - os números são simples e as soluções também
40- devem ser simples, senão, é possível que se engane;
:29 - as questões colocadas não têm, em geral, ne-
Apesar de os meus alunos terem idade e esco- nhuma relação com a realidade cotidiana mesmo que
laridade bastante diferentes das crianças da experiên- pareçam ter, graças a um habilidoso disfarce. Na ver-
50 51
dade elas só servem para ver se os alunos compreen- mentos adequados e proceder à verificação. Já no se-
deram o assunto que está sendo estudado. gundo contrato, os alunos deverão levantar hipóteses
O contrato didático existe em função do' apren- que permitam construir a figura de modo que uma
dizado dos alunos. A cada nova etapa da construção propriedade conhecida permita justificar sua resposta,
do conhecimento o contrato é renovado e renegocia- válida para qualquer figura que cada um dos alunos
do. Em geral essa renegociação passa despercebida tenha desenhado. (Na verdade, podemos dizer que
pelos parceiros da relação didática. Por exemplo, no aqui houve uma ruptura do contrato.)
ensino da geometria, na etapa de observação, os alu- Os alunos, em geral, encontram muita dificulda-
nos de aproximadamente 10-12 anos são solicitados a de em se adaptar a uma mudança de contrato. É certo
reconhecer as figuras e as configurações e também a
saber utilizar instrumentos de desenho para desenvol- que a renovação e a renegociação, bem como a trans-
gressão do mesmo, dependem não só do tipo de tra-
ver aptidões gráficas; nessa etapa, as figuras são ob- balho como também do meio onde se dá a prática pe-
jetos geométricos concretos sobre os quais se pode
dagógica. Por exemplo, ao se realizar uma atividade
exercer uma ação direta; elas são os significados dos
termos utilizados para designa-los. para se verificar a apreensão de um objeto e preten-
Aos 13-15 anos aproximadamente, os alunos dendo-se trabalhar em duplas, foram estabelecidas ex-
são solicitados progressivamente a dar um outro esta- plicitamente algumas regras, tais como:
tuto às figuras, a saber, elas passam a ser repre- - o trabalho pode ser realizado individualmente
sentações de objetos ideais e abstratos. Nesta fase, ou em duplas, à escolha dos alunos;
quando cada um dos quarenta alunos de uma classe - é permitida a consulta de todo e qualquer ma-
desenha um triângulo em seu caderno, não haverá terial (anotações, livros, calculadoras, etc.) da própria
mais quarenta figuras desenhadas, como na fase ante- dupla ou do indivíduo;
rior, mas sim quarenta desenhos representativos de - a produção da dupla deve ser apresentada em
um só triângulo, sobre o qual todos poderão buscar as conjunto, com os nomes dos dois participantes;
propriedades que o caracterizam. Aqui, as figuras de- - não é permitida a comunicação com alunos que
senhadas adquirem o estatuto de significante* não pertençam à própria dupla;
Ao se solicitar que os alunos verifiquem se dois - não é permitido o empréstimo de qualquer ma-
segmentos AB e MN são iguais, no primeiro contrato, terial de colegas alheios à dupla;
eles deverão fazer um desenho cuidadoso com instru- Durante a realização da atividade ocorreram fa-
tos que evidenciam que muitas vezes a negociação,
1. Para informações sobre os termos significado e significan- ainda que explícita, passa despercebida. Citemos al-
te, ver o capítulo: Registros de Representação, neste livro. gumas:
52 53
- pergunta: "Cada aluno deve entregar uma folha do aluno e este, por sua vez, limita seu trabalho à ima-
com as respostas?”; gem de si próprio que o professor lhe refletiu.
- comunicação entre alunos de duplas diferentes Desejando que seus alunos obtenham bons re-
e, quando alertado dessa transgressão, são bastante sultados, o professor tende a facilitar-lhes a tarefa de
comuns respostas do tipo: "Mas eu estou apenas per- variadas maneiras como, por exemplo, fornecendo-
guntando se ele vai estudar depois da aula”; (aqui lhes abundantes explicações, ensinando pequenos tru-
também está presente implicitamente a regra que diz ques, algoritmos e técnicas de memorização ou mes-
que o aluno sempre deve justificar, a qualquer custo, mo indicando-lhes pequenos passos nos problemas.
toda intervenção do professor e que este deve achar Às vezes o tiro pode sair pela culatra, pois, ao contrá-
que toda justificativa do aluno é satisfatória.) rio do que o professor pretende, as explicações exces-
- aluno que escolheu trabalhar individualmente, sivas podem na realidade impedir a compreensão.
durante a realização da atividade, se dirige a outro Tais práticas, movidas pela sensação de que o esforço
aluno, trabalha um pouco com ele e retorna ao seu lu- exigido dos alunos esteja sendo grande demais, po-
gar para continuar executando sua tarefa sozinho. dem propiciar uma revisão dos objetivos da aprendi-
Quando alertado que seu trabalho não poderá ser acei- zagem, ocasionando um rebaixamento dos mesmos.
to, justifica-se candidamente: "Mas eu só fui pedir O parágrafo anterior descreve o fenômeno que
uma ajudazinha". (Regra implícita: "desde que o alu- Brousseau (1986) denomina “efeito Topázio”. Esse
no apreenda um conceito, tudo é permitido, mesmo nome provém da peça de teatro homônimaf cuja pri-
com prejuízo dos aspectos formativo-educacionais", meira cena se passa em uma sala de um colégio inter-
que também pode ser traduzida por “desde que o no. Seu protagonista, Topázio, faz um ditado a um
centro-avante faça o gol para o Brasil, nada mais im- aluno, que demonstra muita dificuldade em executar a
porta") tarefa. Ele não pode aceitar um excesso de erros gros-
seiros, mas também não deve dizer abertamente ao
Efeitos do Contrato Didático aluno qual é a ortografia correta. Começa, então, a su-
gerir-lhe a resposta, dissimulando-a sob códigos didá-
Grande parte das dificuldades dos alunos é cau- ticos cada vez mais transparentes. Aqui e em outras
sada pelos efeitos do contrato didático mal-colocado situações de ensino, tais códigos evidenciam que "a
ou mal-entendido. Este traz no seu bojo a marca da resposta que o aluno deve dar já está determinada de
expectativa do professor em relação à classe ou mes-
mo a um aluno em particular. Este fato pode estabe- 2. Esta obra, lançada em 1928, tornou-se célebre em poucas
lecer um acordo tácito entre ele e o aluno: o professor semanas e com ela Marcel Pagnol começou sua verdadei-
limita sua exigência à imagem que fez da capacidade ra carreira de autor dramático.
54 55
antemão: o professor escolhe as questões às quais essa pretensamente, já teria sido alcançado. Cada parceiro
resposta pode ser dada. Evidentemente os conheci- da relação didática se satisfaz ao livrar-se da situação
mentos necessários para produzir tais respostas mu- sem grandes problemas. Aqui ocorreu uma ruptura de
dam, assim como a sua significação. Escolhendo contrato ocasionada pelo professor.
questões cada vez mais fáceis, ele tenta obter signifi- Outro efeito do contrato didático é o de se tomar
cação máxima para o máximo de alunos. Ocorre o como objeto de estudo uma técnica que se presume
“efeito Topázio" quando os objetivos anteriormente seja útil para a resolução de um problema, perdendo-
visados desaparecem por completo. se de vista o verdadeiro saber a ser desenvolvido. O
Em nome do que se costuma ter como máxima exemplo mais extremo deste efeito talvez seja o dos
da relação didática: “o professor deve ser amigo do diagramas de Venn que representam conjuntos e que
aluno”, sacrificam-se, muitas vezes, os principais ob- são estudados como se eles fossem a própria teoria
jetivos do ensino. O professor passa a ensinar apenas dos conjuntos.
aquelas “pai-tes" do assunto que os alunos aparente- Por último, cítaremos o efeito do uso abusivo da
mente têm mais facilidade de "aprender" e colocar analogia. As metáforas são sempre úteis para ajudar a
como objetos de estudo suas próprias explicações e compreensão, mas seu abuso pode limitar o conceito
seus meios heurísticos, em vez de ter como objeto o em questão. Resolver um problema procurando as
verdadeiro conhecimento matemático. Como o aluno respostas num contexto análogo é uma boa prática
tem sucesso nas provas e avaliações, ele acha que esse heurística, mas, no entanto, limitar a conclusão à fa-
é o bom professor, pois sabe explicar bem e é amigo mosa frase: “caímos de novo no problema anterior”
dos alunos. pode fazer com que o aluno evite abordar o problema
O desejo de inserir o conhecimento em ativida- colocado diretamente. Um exemplo típico é fornecido
des familiares pode conduzir o professor a substituir quando se estudam números relativos, fazendo refe-
rências exclusivas ao jogo de perdas e ganhos. O uso
a problemática real e específica por outra, talvez me- abusivo de analogias produz o efeito anteriormente ci-
tafórica, mas que não confere sentido correto à situa-
ção. Chega-se a ouvir professores dizendo enfatica- tado em que o professor fornece dicas e desenvolve
mente que uma pessoa sem nenhuma escolaridade, ao técnicas para "ajudar” o aluno a resolver a questão
fazer café, está aplicando o conceito e propriedades proposta.
de proporção. Ao interpretar um comportamento ba- Em Franchi (1995) encontramos, dentre outros,
nal do aluno como sendo a manifestação de um saber um episódio bastante ilustrativo do modo como o pro-
culto, o professor evita debater seus conhecimentos fessor conduz a correção de um problema verbal roti-
com o aluno e, eventualmente, constatar um fracasso. neiro, que resumimos a seguir. A autora, trabalhando
Isto permite evitar a aprendizagem de um saber que, em sua pesquisa sobre a compreensão das situações
56 57
multiplicativas elementares, atuava em uma classe da dir”. E efetua 10.000 - 2 = 5. (A aluna acerta. Mas
4° série do Ensino Municipal de São Paulo juntamente isso não é explicitamente reconhecido. A comparação
com a professora da classe, que propôs aos seus alu- do problema com a igualdade proposta penrzitiria à
nos o problema: “Camila foi à loja levando Cr$ aluna interpretar 2 e I 0. 000 como dados do problema
2.000,00; comprou 4 canetas e voltou com Cr$ 200,00 e 5. 000 como a solução. 0 procedimento da aluna se-
de troco. Qual o preço de cada caneta?". (As expres- ria valorizado.)
sões que figuram entre parênteses são as anotações da Este protocolo ressalta os aspectos anteriormen-
autora.) te apontados no "efeito Topázio" sobre a natureza das
Quando o tempo para a resolução da tarefa se questões colocadas pelo professor e a mudança de sig-
esgota, uma aluna (Paula) vai à lousa e não consegue '
nificação do objeto de estudo, assim como a utiliza-
resolver o problema. A professora tenta ajudá-la, di- ção indiscriminada da analogia. Um recurso heurísti-
zendo: "Se sei o preço de muitos, quando quero saber co, a saber, a relação entre a multiplicação e a divisão
o preço de um, que conta faço?”. (Esta fala constitui (o significado de operação inversa parece não ser cla-
uma "muleta" ao pensamento do aluno.) Diante do ro para a aluna), acaba se transformando no objeto de
silêncio da aluna, formula um problema análogo ao estudo.
anterior, com números menores: “5 pirulitos custam Em sua análise deste e de outros protocolos, a
Cr$ 5.000,00. Qual o preço de 1?". Silêncio. (O re- autora ressalta aspectos relativos à natureza do discur-
curso à analogia ficou prejudicado.1 Sabe-se que mul- so escolar nas atividades de sala de aula que é, de cer-
tiplicaçães e divisões, incluindo o como um de seus to modo, “ritualizadd”. O núcleo discursivo é forma-
termos, trazem dificuldades para os alunos.) Segue-se do de interrogações e respostas. O professor faz ques-
então o seguinte diálogo entre a professora e a aluna: tões para as quais já conhece a resposta, e o objetivo
P: “Zzpirulitos custam Cr$ 10.000,00. Qual o preço de do aluno passa a ser o de dar uma resposta “certa",
1?”. A: "Cr$50.000,00". P: "Que conta você fez 7". enquanto o do professor é avaliar essa resposta e cor-
A: “10 - 2”. P: “10 - 2? Quanto que dá ?”. A: “10 - rigir o caminho de uma resposta “errada”.
2 = 8". P: “Você disse que custava 5. Agora é 8 ?". Por seu lado, o aluno não fica indiferente a esse
(A seqüência de perguntas e respostas privilegia
a processo: esforça-se para encontrar a "conta que é
"conta" a ser feita como o critério básico de verifi- para fazer”, não entendendo as operações matemáti-
cação do acerto. Além disso, desvia a aluna da ques- cas propostas nos problemas, por tratá-los não como
tão a ser resolvida.) A professora repete a questão e um texto com propósitos específicos a compreender,
a aluna agora efetua: 2 x 5.000 = 10.000 e a profes- mas como um "sina ” para a tarefa a resolver. Busca
sora pergunta: “Qual a operação inversa da mpltipli- indicações provindas de palavras-chave ou da forma
cação? o contrário?? A aluna responde: “E divi- habitual da estruturação dos textos verbais dos proble-

58 59
mas, inclusive desviando-se do caminho da resolução, de relação didática (que não e a tão famosa "relação pro-
fessor-aluno") ...as cláusulas do contrato organizam as rela-
na ânsia de interpretar essas “dicas” no sentido cor- ções que os alunos e professores mantêm com o saber. O
rente de sua linguagem coloquial. Utiliza-se de seme- contrato rege até os detalhes do processo. Cada noção ensi-
lhanças superficiais entre problemas para transportar a nada, cada tarefa proposta está submetida à sua legislação.
solução de uns para outros em um processo mecânico.
Busca a solução dos problemas pela leitura de indica- Essencialmente, o contrato didático é o conjunto
ções didáticas e não por investimento em uma ativi- das condições que determinam, quase sempre implíci-
dade de descoberta. tamente, aquilo que cada um dos dois parceiros (pro-
Podemos sintetizar os efeitos do contrato didáti- fessor e aluno) da relação didática tem a responsabi-
co analisados neste item em: lidade de gerenciar, e do que tem que prestar conta ao
- resolver a questão no lugar do aluno, quando outro. Ele depende da estratégia de ensino adotada,
este encontra uma dificuldade; adaptando-se a diferentes contextos, tais como: as es-
- acreditar que os alunos darão naturalmente a colhas pedagógicas, o tipo de trabalho proposto aos
resposta esperada; alunos, os objetivos de formação, a história do profes-
- substituir o estudo de uma noção complexa por sor, as condições de avaliação, etc.
O contrato estabelece as atribuições dos parcei-
uma analogia;
- interpretar um comportamento banal do aluno ros da relação didática no processo de aquisição do
conhecimento pelos alunos. Entretanto, esta tarefa é
como uma manifestação de um saber culto; bastante pesada e, muitas vezes, impossível de ser
- tomar como objeto de estudo uma técnica que
realizada somente pelo estudante. Encarar o ensino
se presume seja útil para a resolução de um problema,
perdendo de vista o verdadeiro saber matemático a ser como a transferência ao aluno da responsabilidade do
desenvolvido. uso e da construção do saber pode dar origem a uma
situação paradoxal. O professor deve conseguir que o
aluno resolva problemas que ele lhe propõe a fim de
Conclusão constatar, e fazer com que o próprio aluno constate,
Segundo Chevallard (1988), que ele cumpriu sua tarefa. Mas se o aluno produz sua
resposta sem ter feito ele mesmo as escolhas que ca-
o contrato didático reúne (criando-os como tal) três termos racterizam o saber conveniente e que diferenciam esse
(três instâncias) e não duas como se acredita algumas vezes. saber de conhecimentos insuficientes, sua produção
O aluno (o sujeito a quem se ensina), o professor (o sujeito
não é aquela indicada para o objetivo da construção
que ensina) e o saber, considerado como o "saber ensina-
do". O contrato rege, portanto, a interação didática entre do conhecimento. Isso se dá, em particular, quando o
professor e alunos a propósito do saber -isto é o que chamo professor foi levado a dizer ao aluno como resolver o
60 61
problema proposto. O aluno, não tendo feito nem es- mas que ele a considere provisória e se esforce para-
colhas nem tentativas de métodos, nem modificações “caminhar com seus próprios pés". Para isso muito
de seus próprios conhecimentos ou de suas convic- contribuirá o desempenho do professor, não só duran-
ções, não deu a prova esperada da apropriação dese- te a execução das atividades, como também na elabo-
jada. Ele apenas tem a ilusão de que cumpriu a tarefa ração e reelaboração de situações/problemas que pos-
proposta e que apreendeu o objeto que o professor sam estimular e instigar esses seus alunos.
pretendia lhe ensinar. A maior parte das regras do contrato didático
O professor tem a obrigação social de ensinar está implícita, mas nem por isso deixa de ser coerci-
tudo o que é necessário sobre o saber. O aluno, so- tiva e seguida. A renegociação contínua do contrato
bretudo aquele que está tendo dificuldades em resol- propicia uma revisão dos objetivos do ensino-aprendi-
ver a questão, solicita sua interferência, sua “ajuda”. zagem, podendo contribuir para um rebaixamento de
Quanto mais o professor cede às solicitações do alu- tais objetivos. Ao mesmo tempo que o professor de-
no, desvendando aquilo que almeja, quanto mais ele seja que seus alunos obtenham bons resultados, ele
diz precisamente aquilo que o aluno deve fazer, mais pode achar que o esforço deles exigido é grande de-
arrisca perder suas chances de obter e de constatar ob- mais. Assim, tende a facilitar-lhes a tarefa de diferen-
jetivamente a aprendizagem que ele realmente deve tes modos: ora com explicações abundantes, que po-
visar. O contrato didático coloca o professor diante de dem impedir a compreensão, ora com “pequenos pas-
uma verdadeira injunção paradoxal: tudo aquilo que sos” nos problemas, ora com o ensino de algoritmos
ele empreende para fazer produzir no aluno os com- e técnicas de memorização.
portamentos que ele espera tende a privar este último Contratos didáticos mal-adaptados ou malcom-
das condições necessárias para a aprendizagem da no- preendidos podem originar muitos mal-entendidos e
ção desejada. O aluno, por seu turno, também se vê sensação, por parte dos alunos, de terem sido engana-
diante de uma injunção paradoxal: se ele aceita que, dos. Por um lado, os alunos desejam se adaptar às re-
de acordo corn o contrato, o professor lhe ensine os gras e, de outro lado, a versatilidade de um professor
resultados, ele próprio não os produz e daí ele não pode gerar a idéia de que nunca se sabe o que esse
aprende Matemática, ele não se apropria dela. Se, ao professor quer. Esses descontentamentos podem de-
contrário, ele recusa toda informação do professor, a sembocar em recusas ou, até mesmo, em verdadeiros
relação didática se rompe. fracassos escolares.
Isto não constitui uma contradição, porém, o sa-
ber e o projeto de ensino não devem avançar sob esse
“faz de conta", sob uma máscara. Aprender implica,
por si mesmo, que o aluno aceite a relação didática,
62 63
Referências bibliográficas
BROUSSEAU, G. Fondements et méthodes de 1a
dídactique des mathématiques. Recherches en SITUAÇÕES DIDÁTICAS
Didactique des Mathématiques, vol. 7, n” 2,
pp. 33-115. Grenoble, 1986.
. Le contrat didactique: le milieu. Recherches en

Didactique des Mathématiques, Vol.9, n° 3, José Luíz Magalhães de Freitas


pp. 309-336. Grenoble, 1988.
CHEVALLARD, Y. Sur Fanalyse didactique: deux
études sur les notions de contract et de situation. Introdução
Publication de FIREM d'Aix Marseille, 14.
1988. O que descrevemos neste capítulo é uma análise
DOUADY, R. De la didactique des mathématiques à das diferentes formas de apresentação do conteúdo
Pheure actuelle. Cahiers de Didactique des matemático ao aluno através da chamada teoria das
Mathématiques n° 6. IREM de Paris 7, 1985. situações didáticas. Trata-se de uma descrição forte-
FRANCHI, A. Compreensão das situações multipli- mente inspirada no modelo teórico desenvolvido na
Cativas elementares Tese de doutoramento. França por Brousseau (1986), com o qual procuramos
PUC-SP, 1995. melhor compreender o fenômeno da aprendizagem da
HENRY, M. Didactíque des mathématiques: une matemática principalmente no que diz respeito à nos-
presentation de la didactique en vue de la for- sa realidade educacional. Nosso interesse por essa
mation des enseignants. IREM de Besançon, análise se deve ao fato de que, entre as várias teorias
1991. pedagógicas, desenvolvidas nas últimas décadas, a
grande maioria aborda aspectos excessivamente ge-
rais que não contemplam a especificidade do saber
matemático.
No entanto a teoria desenvolvida por Brousseau
representa uma referência para o processo de aprendi-
zagem matemática em sala de aula envolvendo pro-
fessor, aluno e conhecimento matemático. Todo esse
procedimento didático visa principalmente realizar
uma educação matemática mais significativa para o
64 65

Você também pode gostar