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sábado, 4 de abril de 2009, 16:41

Depois dos seringais


Primeira parte do trajeto traz vilas com famílias de ex-seringueiros que hoje vivem da agricultura
Daniel Piza (texto) e Tiago Queiroz (foto)

SENA MADUREIRA (AC) - "De feito, o seringueiro é o homem que trabalha para escravizar-se.”
A definição contundente de Euclides da Cunha, depois de sua viagem de 1905 pelo rio Purus, hoje
não encontra eco nos grandes espaços naturais às suas margens. O seringueiro já não está presente
no trajeto. Os que encontramos estão aposentados há mais de dez anos, e seus filhos e netos não
vivem da borracha, mas da agricultura de pequeno porte; ou então, sobretudo no caso das mulheres,
partiram para cidades como Manoel Urbano, Sena Madureira e Rio Branco. O sonho euclidiano de
ver o látex brasileiro esticar o progresso até o Acre, com outro regime de trabalho e outra
mentalidade de produção, não se realizou.

Euclides tampouco viu as cidades que vimos. Partimos do porto de Sena Madureira, que já tem 40
mil habitantes e fica à beira do rio Iaco, e uma hora depois já navegávamos no Purus. Ali o rio traça
uma ampla curva por dentro do território do Amazonas, antes de retornar ao Acre à altura de
Manoel Urbano, cidadezinha de 7 mil habitantes batizada – assim como o batelão em que Euclides
viajou – com o nome de um dos desbravadores do estado. Ela vive do comércio feito
principalmente por rio, mas o asfaltamento da BR 364 – a rodovia transacreana que Euclides já
defendia – tende a ampliá-la quando estiver concluído nos próximos dois anos.

comércio de produtos agrícolas para cima de Manoel Urbano, onde começa propriamente o Alto
Purus, ainda é muito tímido. O domínio administrativo do município, para ter uma ideia, se estende
até a foz do rio Chandless, cerca de 300 km acima, onde começa o domínio de Santa Rosa do Purus,
cidade de 4 mil habitantes na fronteira com o Peru, outros 300 km acima. No trecho que vai até o
Chandless, os ribeirinhos do Purus são na maioria caboclos que um dia viveram da seringa e hoje
cultivam arroz, mandioca, milho, eventualmente gado e frutas como a banana para sobreviver – e
vender o pequeno excedente.

É o que fazem os ribeirinhos próximos de uma localidade chamada Silêncio de Cima, antes ainda de
Manoel Urbano. Com dificuldade para saber os nomes dos filhos ou responder se estão no no
Amazonas (o correto) ou no Acre, eles vivem isolados quase o tempo todo. Comem carnes de caça
(cotias, tatus, pacas, jabutis) e de criação (galinhas, porcos), peixes (mandi), frutas (como a cajarana
que nos ofertam), de vez em quando compram carne de boi do vizinho. Logo que chegamos, Miguel
Dias da Silva exibe a pele esticada de um maracajá, um gato selvagem que havia sido morto pelo
cão perdigueiro no dia anterior. Eles exibem também um pequeno televisor, que acessam por
parabólica com energia solar, equipamento que lhes custou cerca de R$ 1.000. Um dos familiares
está anêmico e perdeu o movimento de um dos braços, mas não foi ao médico diagnosticar se teve
um derrame ou algo semelhante.
Um pouco adiante, em Boa Vista, encontramos uma moça sozinha, Eliene da Costa, 26 anos. O
marido foi comprar mantimentos em Sena Madureira e só volta dali a alguns dias. Eles vieram de
Rondônia há seis meses, depois do casamento, para viver próximo do cunhado de Eliene. Ela diz
que o apelido do marido é Ramón, mas não sabe informar seu nome verdadeiro. Conta que tem dois
filhos de outro casamento, de 8 e 2 anos. “Choro de saudade dos meus meninos.” O milho é sua
principal alimentação e serve para trocar por roupas e outras comidas. Eliene conta que gostaria de
estudar na escola ao lado, em São Salvador, mas que o marido não deixa. “Tenho arrependimento.
Mas ele diz: ‘Pra que você casou, se quer estudar?’” Ela não sabe ler nem o próprio nome.

Em São Salvador, vila com nove famílias e um pouco mais de infraestrutura (que inclui uma calha
de telhas pela qual a água da chuva desemboca numa garrafa de refrigerante, improvisada como
coletor, e é usada no banheiro externo), vimos outra cena inexistente nos tempos de Euclides: um
culto evangélico. Na pequena igreja de madeira e palha, Jocinete Brandão de Oliveira, 33 anos, 5
filhos, comanda as orações do dia, entre gritos de “Obrigado, Jesus!”. Ela foi indicada pelo pastor,
que vive em outro povoado, Cachoeirinha, e só faz visitas mensais.

O pai de Jocinete, Carlos de Oliveira Filho, o “seu Carlito”, de 78 anos, é o único que se lembra de
quando tudo isto foi um seringal com centenas de trabalhadores. Durante 45 anos esse filho de
português com cearense cortou seringa, como diz, “oito dias por semana” (seis dias e duas noites),
perdendo ali a mocidade “sem forró no fim de semana”. Sorridente e proseador, com o rosto que
parece talhado debaixo de um chapéu panamá, medalhinhas de santos ao peito semiaberto, cicatriz
feita em seu braço pela queda de uma taboca (bambu com espinhos), Carlito mostra sua foto como
um sisudo soldado da borracha, título que lhe vale a aposentadoria de R$ 800 que recebe do
Funrural.

Conta histórias como a da lenda do mapinguari, um homem de um olho com umbigo de fora e “pés
de pilão” que assustaria as pessoas na floresta; e a do matador Cariri, que tinha “corpo fechado” em
que bala não entrava, nem mesmo as do coronel José Ferreira, visitado por Euclides em 1905. Diz
que o rio tinha muito tambaqui e pirarara, mas hoje raramente tem. Sobre os filhos, afirma que teve
14, ao que a esposa, Antonia, acrescenta: “Comigo foram 14, com outras por aí não sei não.” Carlito
dá uma risada e desabafa: “Eu não sei como é lá com vocês. Mas aqui a mulher é que governa o
homem. A mulher todo mundo quer, porque homem não tem moral. Toda morte matada é por causa
de mulher. E hoje ela tem mais dinheiro que o homem.” Ele se refere ao Bolsa Família.

Carlito tem um jeito bem-humorado de se autodepreciar. “Nunca fiz nada que prestasse. Todo
objeto que compro tem defeito. Todo negócio que faço dá prejuízo. Se vendo fiado, não recebo.
Mas para mim tá bom, e nunca fiquei endividado.” Ele também afirma que nunca foi valente nem
bonito e que tirava um quarto do leite da seringa que os outros tiravam. “Todo mundo quando fica
velho diz que foi isso, foi aquilo.” Alguns filhos e netos moram em cidades como Rio Branco e
Santa Rosa do Purus, mas Carlito não quis fazer como os outros seringueiros e ir embora. “Na
cidade moram escondido. Aqui eu tenho essa sala para fora”, explica, apontando para a varanda que
dá visão para o Purus, característica comum de todas as casas ribeirinhas.

Quando a conversa envereda para religião, Carlito, o único da vila que não se converteu à Igreja
Assembleia de Deus, não mostra menos convicção. “Deus não precisa de mim para nada; eu é que
preciso dele a toda hora e todo instante. Ele fez esse mundo, não precisa de mim.” Perguntado se
acredita que o homem tem a mesma ascendência que o macaco, ele diz achar que sim, mas dona
Antonia o interrompe: “Vixe, e alguém já viu macaco se transformando em homem?”
Depois de pernoitar no barco estacionado no porto de Manoel Urbano, em cuja prefeitura enfim
tivemos acesso a telefone e internet, seguimos rio acima. Em pouco tempo passamos por Paysandu,
onde se veem as obras da BR 364, num trecho que deverá ter até 2010 uma ponte de 400 metros – a
primeira ponte jamais feita sobre o Alto Purus. Outra parada feita também por Euclides é em
Liberdade, onde encontramos uma família, a Dias da Silva, que também vive de plantações e alguns
bois. Os seis filhos de Antonio, 32 anos, pelos quais a mãe recebe R$ 120 do Bolsa Família,
estudam apenas alguns meses por ano; apenas os dois mais velhos, Andrelino, 11 anos, e Juscelino,
10 anos, sabem escrever o nome. No bolso, eles carregam arroz quase cru, do qual de tempos em
tempos apanham um punhado e levam à boca.

Mais um pouco estamos em São João e vemos uma cena que diz muito sobre o modo de vida dos
ribeirinhos do Purus: quatro adolescentes às voltas com a tarefa de colocar um boi numa canoa para
vender em outro ponto do rio. Um deles o segura pelo rabo, mas o boi dá um coice e sai correndo,
despencando pelo barranco até a beira do Purus, onde um rapaz pula na água e outro sobe na árvore
para escapar do choque. Eles não desistem e conseguem derrubar o já ofegante boi, que cai deitado
sobre a canoa; cada um o segura por um lado enquanto o mais velho amarra suas patas – e eles
partem triunfantes.

Lá no alto, o avô, José Dimas de Melo, o “seu Deco”, 80 anos, orientava os meninos. Ele é mais um
seringueiro aposentado, mas com melhores lembranças dos seringais que as de Carlito. Na casa
decorada pela nora com recortes de revistas, bandeirinhas coloridas, cartazetes políticos e santinhos,
seu Deco conta que já matou “muita onça” e que gostava do seringal, mesmo que acordasse às 2
horas da madrugada todos os dias. “Pelo menos a gente trabalhava na sombra.” A lida com o plantio
e algumas cabeças de gado também é dura. E é debaixo do sol amazônico – ou da chuva quase
diária. A natureza da Amazônia, “adversária do homem”, segundo Euclides, não dá trégua.

Doze horas mais tarde, em Santo Antônio, ouvimos de Elói Marques Alves, 49 anos, um filho de
peruano que veio do rio Chandless, onde cortou seringa durante seis anos, opinião oposta: “Prefiro
agricultura, que já dá de comer.” A farinha d’água, feita com macaxeira (mandioca) fermentada
numa canoa, é sua principal fonte de renda. Presenciamos então outra cena forte, embora
corriqueira neste pedaço da Amazônia. O filho de Elói, de 14 anos, pega um jabuti, vira-o de casco
para baixo, apanha um facão e bate com força em suas fendas laterais. Arranca então o casco, como
se fosse uma tampa de lata, e corta fora as tripas do animal, reservando a carne do fundo para
defumar e comer. Separa o coração e o deixa pulsando em cima do banco.

A descrição da subida pode parecer mais movimentada do que de fato é. Quilômetros de rio cercado
por uma mata sem grandes variações de tamanho e cor, ou cerca de 30 minutos, se passam sem que
se veja um povoado sequer. De vez em quando uma canoa ou bote com motor de rabeira,
geralmente comprado usado por R$ 300, passa com alguma família de caboclos que pescam ou
procuram jabutis, veados, calangos e siris à margem. Imbaúbas, canaranas, mulateiros e, menos,
samaúmas são as árvores recorrentes. De vez em quando alguém grita “Boto, boto!”, que em geral
se vê num rápido salto ou borrifo, exibindo o dorso cinza para câmeras que na maioria das vezes
não os conseguem captar. Araras, harpias e macacos aparecem, mas o mais frequente mesmo são
garças e andorinhas. E, claro, os piuns – mosquitos parecidos com muriçocas que podem fazer um
estrago na vítima desprotegida, legando até duas semanas de coceira.
“Não se vê a Amazônia com mentalidade de TV”, diz Paolino Baltassari, de 73 anos, um
missionário que veio de Bolonha, na Itália, estudou teologia em São Paulo e há 40 anos atua nos
rios do Acre como uma mistura de médico, padre e político, capaz até de mandar fechar motel em
Sena Madureira. Com 82 malárias no currículo, hoje mais preocupado com a dengue, padre Paolino
diz que acompanhou o fim do ciclo da borracha, a qual “nunca trouxe progresso para o Acre”, e viu
a pobreza se alastrando principalmente a partir dos anos 90, quando a Malásia tomou o lugar do
Brasil como exportador mundial de látex. É nesse mundo pós-borracha que o Purus segue, sem
vocação clara, tão abandonado quanto Euclides o encontrou. E ao mesmo tempo tão diferente.

sábado, 4 de abril de 2009, 17:07

Nas aldeias do Alto Purus


A partir da boca de Chandless, domínio é das mais de 20 tribos das etnias kaxinawá e kulina, que
Euclides não viu
Daniel Piza (texto) e Tiago Queiroz (foto)
SANTA ROSA DO PURUS (AC) - A partir da metade do trecho acreano do rio Purus, à altura do
rio Chandless, a paisagem humana muda: as famílias de ex-seringueiros dão lugar às aldeias de
índios de duas etnias, a kaxinawá e a kulina. O rio segue com as mesmas dimensões e velocidade;
as aldeias, assim como as vilas, surgem a intervalos de quinze a trinta minutos, normalmente no alto
de barrancos à margem, em cima dos quais se tem uma vista tira-fôlego dos estirões (trechos
retilíneos) do Purus. Canoas, voadeiras (botes a motor abertos) e batelões (cobertos) ficam
estacionados na base enlameada do barranco raramente com degraus.

Curiosamente, os índios e os ex-seringueiros sobrevivem de maneira muito parecida. Plantações de


mandioca, milho e arroz são as mais comuns, e não é difícil encontrar algumas cabeças de gado.
Jabutis ficam amarrados em galhos de árvore, o futebol é jogado em gramados muitas vezes com
traves, o número de crianças é muito maior que o de adultos, as malocas têm o mesmo tipo de
telhado de palha caprichosamente trançada. E, tal como os vizinhos “brancos”, muitos deles
chegaram a cortar seringa em décadas passadas, embora em geral fossem discriminados como
preguiçosos.

A primeira aldeia que visitamos é a Santo Amaro, na forquilha do Purus com o Chandless, de etnia
kulina. Dali até a fronteira, em Santa Rosa do Purus, há quase trinta aldeias, na maioria kaxinawá.
Os kulinas são considerados mais ariscos, menos aculturados que os kaxinawás, dos quais vemos
indivíduos cursando faculdades ou fazendo carreira política. Talvez por isso, entre os kulinas há
mais problemas de saúde, como o alcoolismo. Em Santo Amaro, porém, não notamos essas
diferenças. Eles se mostraram felizes; como sempre, ficaram curiosos com as câmeras; depois
cantaram para os visitantes.

Ali como nas aldeias acima, é comum ouvir pedidos. O mais comum, vindo sobretudo de mães
adolescentes com bebês suspensos ao lado do corpo com ajuda de um pano ou toalha na diagonal, é:
“Tem bolacha? Me dá bolacha!” Os adultos costumam pedir combustível para o motor do barco, até
para que possam ir ao Projeto Cidadão, que acontecerá no dia seguinte em outra aldeia. As crianças,
mais uma vez, nos oferecem frutas ou amendoim, além de vender pulseiras, colares e tiaras de
miçangas coloridas. Quando partimos, vemos alguns botos cinzas à cata de peixes na boca do
Chandless.

No fim da tarde chegamos à Nova Aliança, aldeia kaxinawá com cerca de 150 habitantes, onde será
realizado o mutirão por dois dias, usando como sede a escola local, uma casa de madeira com duas
salas e uma varanda. Ao longo do dia seguinte, índios de diversas aldeias – como Novo Recreio,
Fronteira, Fortaleza, Novo Lugar e a própria Santo Amaro –, algumas a até 4 horas de distância, vão
chegando em filas. “Oi, txai” (oi, amigo, na língua kaxinawá, chamada de hatxa kuí) é o
cumprimento que imediatamente se universaliza. Nós, os brancos, somos os “kariús”. Homens de
cocar, uma menina com um macaco soim (espécie de sagui) na cabeça, bebês dormindo em cima de
folhas de bananeira sobre o gramado – as cenas se sucedem. A nosso pedido, ouvimos o mariri,
canto típico dos kaxinawás.

Famílias que somam quase 40 pessoas aparecem em busca de RG, CPF, título de eleitor, carteira de
trabalho, certidão de nascimento e de casamento. Filas se formam para tirar fotos e depois
preencher os formulários com ajuda de servidores do Ministério do Trabalho, do Incra, dos Correios
e do cartório de Santa Rosa do Purus. Entre eles, está um dos filhos de Chico Mendes, Sandino,
representando o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O coordenador do projeto, José Ferreira
Neto, o “Loiro”, um ex-sindicalista de 47 anos, informa o resultado final: foram 350 RGs, quase
1.500 documentos ao todo. Na aldeia Novo Marinho, quatro dias depois, mais 152 pessoas foram
atendidas.

Aos 14 anos, o projeto ajudou a derrubar o número de pessoas sem registro no Acre de 68% da
população para 11%. Uma delas é Aristodis Kuerino Bardero Kaxinawá, de 62 anos, que veio
caminhando da aldeia vizinha Nova Fronteira. Ele exibe satisfeito uma folha em branco dentro de
uma pasta em que se lê CERTIDÃO DE NASCIMENTO. É o primeiro documento de sua vida. Ele
também acabou de tirar RG e título de eleitor, que, por precisarem das fotos, serão entregues mais
tarde. Ele também queria pedir aposentadoria, mas o INSS exige que se vá até a cidade. Outras
procuras que não podem ser atendidas são as das mulheres por auxílio-maternidade e Bolsa Família,
programas oficiais que sustentam e multiplicam as centenas de índios da região. Elas também são
orientadas a ir até Santa Rosa do Purus.

Há cerca de 7 mil kaxinawás no Acre, quase 70% deles concentrados no Rio Tarauacá, ao norte. Foi
de lá que muitos dos habitantes do Alto Purus vieram. Ao tempo da viagem de Euclides da Cunha,
em 1905, eles não moravam aqui. Estavam “no centro”, como diz o padre Paolino; ficavam na mata,
distantes dos rios, porque na grande maioria haviam sido expulsos por bandeirantes em tempos mais
remotos e por seringueiros um século atrás. Daqui para cima, Euclides viu a tensão entre os
seringueiros brasileiros e seus rivais peruanos, os “caucheiros”, assim chamados porque extraíam
látex de outra espécie de árvore, o caucho. Hoje nem seringueiros nem caucheiros existem mais.

Deixamos a baleeira “Euclides da Cunha” em Nova Aliança e partimos em duas voadeiras. Apesar
do amplo predomínio de indígenas, encontramos ainda um ou outro ex-seringueiro, como Manuel
Pereira de Freitas, 67 anos, um filho de cearenses que se estabeleceu em Santa Rosa há cerca de 30
anos. Até 1995 ele cortou seringa, e sobre o fim da extração ele não tem dúvidas: “Foi ruim. Isso
acabou com nosso estado.” Segundo ele, a agricultura dá menos dinheiro, apesar dos vinte bois que
mostra com orgulho. Aposentado do Funrural, ele tem cinco filhos, mas três foram morar em
cidades. Seu Manuel diz que sempre se deu bem com peruanos, mas não com os índios, que
“roubam galinhas e caçam jacarés com tingui” (tipo de veneno vegetal).

Em outra comunidade, Santa Helena, encontramos José Antônio Cunha da Costa, 59 anos, 30 como
seringueiro. Este é o local onde Euclides viu um cemitério com lápide peruana que se referia a
“assassinados por brasileiros”. Não encontramos a lápide, apenas um pequeno cemitério de
brasileiros. Seu José tem doze filhos vivos, três dos quais morando em cidades. Um deles é
professor da vila, embora tenha parado na quarta série. Ao contrário de Manuel, seu José não tem
saudades da borracha. “Não quero nem sonhar. Deus me defenda!”

Nossa próxima parada, depois de Novo Marinho, é na fronteiriça Santa Rosa do Purus, cidade de 4
mil habitantes que tem 53% de indígenas; o vice-prefeito e três dos nove vereadores são kaxinawás.
Um dos vereadores é Edmar Domingos Kaxinawá, nome indígena Yubê, de 38 anos, que usa um
colete dado por um “parente” (índio) peruano e uma tiara de padrão geométrico preta e branca. Ele
tem oito filhos e sua mulher recebe R$ 120 do Bolsa Família. Como vereador, ele recebe R$ 1.800,
mas diz que vai propor aumento porque o prefeito e o vice ganham “bem mais”. A sessão de 12 de
março foi a primeira da Câmara no ano.

Na cidade é comum que as crianças repitam três ou quatro vezes a mesma série, e não há aula do 5º
ano em diante, embora haja unidade da Universidade Federal do Acre. O prefeito, Zé Brasil, diz que
a cidade tem baixa criminalidade, apesar do assassinato recente de um fazendeiro, e aponta como
maior problema a questão de saúde entre os índios do Purus. Verminoses são as doenças mais
comuns; a malária foi praticamente erradicada, mas agora a dengue começa a ameaçar; e a
mortalidade infantil ainda é muito alta.

Depois de dormir na pequena pousada à beira do rio – sem água quente, mas pelo menos com
lençóis limpos –, saímos para o Peru. São 6 horas a 40 km/h até a primeira cidade, Puerto
Esperanza; durante mais de metade da viagem, tomamos chuva, um toró de pingos grossos e
gelados que caem num ângulo de 45 graus. Chegamos a Esperanza desesperançados. O pequeno
porto estava tomado por peruanos serrando troncos de madeira. As ruas, sem pedras nem tijolos,
estavam enlameadas; o veículo que nos levou até a única e anti-higiênica pousada, um mototáxi ao
estilo vietnamita, só não caía pela perícia do piloto. Era início da noite, mas a iluminação das ruas é
restrita ao horário das 19h30 às 22h30.

Na manhã seguinte, tivemos a companhia do prefeito, Emilio Bardalos, da aldeia San Martín, para
ir até nosso ponto final, a forquilha do Purus com o rio Curanja, onde Euclides e os peruanos
lavraram acordo sobre a demarcação. Foram mais duas horas de viagem, também sob chuva, o que
deixou ainda mais claro o heroísmo da expedição capitaneada há 104 anos pelo escritor, que a esta
altura já tinha malária e tomou um caldo de macaco para se fortificar. A reduzida equipe de Euclides
ainda seguiu algumas semanas acima, até a foz do Cavaljani, perto do bosque onde hoje está
reconhecida a nascente do Purus. Pioneiro nas letras, Euclides também o foi na geografia.

Domingo, 05 de Abril de 2009

O futuro da floresta

O Purus é um enjeitado", escreveu Euclides da Cunha em À Margem da História. "Precisamos


incorporá-lo ao nosso progresso, do qual ele será, ao cabo, um dos maiores fatores, porque é pelo
seu leito desmedido em fora que se traça, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da nossa
expansão histórica." O progresso, para o escritor, consistia em construir uma rodovia, a
Transacreana, uma ferrovia e melhoramentos ao longo do rio como portos, pontes e varadouros
(atalhos por terra entre os rios e igarapés). Consistia, acima de tudo, em desenvolver o comércio da
borracha dando condições de trabalho dignas aos seringueiros, além de cultivos agrícolas.

Se voltasse hoje, Euclides não veria nada do que sonhou. O clima de abandono, de "colonização à
gandaia", de ocupação ao estilo nômade, paralisada no tempo quanto ao aspecto econômico,
prossegue. É uma região com IDH muito baixo, em função da mortalidade infantil, do
analfabetismo e de outros problemas sociais. Os seringais desapareceram. Há, é verdade, duas
pequenas cidades no Alto Purus, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus, e uma ponte será em breve
erguida na altura de Paysandu. O governo chega com programas assistenciais, e a maioria das
crianças está nas escolas, ainda que mal saibam ir além da escrita do próprio nome. Mas Euclides
certamente imaginava outro futuro.

Engenheiro, positivista e republicano, ele tinha a noção de progresso que sua geração e sua
formação exaltavam. Hoje essa noção tem mudado, em grande parte por causa da questão
ambiental. Isso, porém, não garante melhores condições de vida para dezenas de milhares de
habitantes que vivem na floresta ou à beira dos rios. De onde pode vir o desenvolvimento
sustentável da região? No zoneamento econômico-ecológico do Acre, há áreas para para exploração
da seringa - e até já existe fábrica de preservativos em Xapuri -, outras para produção de castanhas,
manejo de madeira certificada, pecuária, piscicultura e fruticultura. Todas dependem de uma
infraestrutura maior, apesar de avanços recentes. E na região do Alto Purus o que existe são reservas
naturais, como a que sobe pelo rio Chandless, e zonas de ocupação indígena. Cerca de metade do
território do Acre é hoje área de proteção ambiental.

Para alguns especialistas, a alternativa para esses locais será dada pela pesquisa. "Isto deveria ser
um grande laboratório", diz o biólogo Evandro Ferreira, professor da Universidade Federal do Acre,
em Rio Branco. Ele diz que o próprio Euclides fez contribuições científicas em sua expedição,
principalmente a de concluir que o leito do Purus é variável, com grandes alterações do curso - que
formam "lagos", ou braços de rio temporariamente fechados - e da profundidade, de acordo com as
cheias e secas. "É um leito encavado, que no ?verão? (de abril a setembro) pode baixar dois metros
por dia", explica. "Isso cria enormes bancos de areia, além dos galhos e troncos que descem pela
correnteza." Ferreira lembra também que o Acre é um estado sem pedra, o que dificulta ainda mais
a locomoção.

Ele conta que há várias espécies de flora desconhecidas ou pouco divulgadas, inclusive de
comestíveis como o amendoim. Cita também a taboca, um bambu com espinhos que poderia ter uso
em mobiliário ou produção de papel; a palmeira jarina, com uma semente que já vem sendo
aplicada na confecção de bijuterias; a andiroba, que dá um óleo com potencial para ser convertido
em biodiesel. A variedade de frutas inclui cupuaçu, graviola, cajarana, umbu, até mesmo melancia e
banana. "Infelizmente, em alguns lugares eles preferem cultivar plantas exóticas, como manga e
jaca."

Na fauna não é diferente. Outro professor, Moisés Barbosa de Souza, diz que há dezenas de
espécies, sobretudo de anfíbios e répteis, que nem sequer foram catalogadas. Um exemplo é o jacaré
açu, que pode chegar a 5 metros de comprimento, e que tem como ancestral o dinossauro
Purussaurus brasiliensis, cujo fóssil foi encontrado no Acre (Euclides chegou a escrever que não
existiriam fósseis). Souza destaca a variedade de peixes do Purus, como os saborosos matrinxã e
tambaqui.

Alimentos, remédios e cosméticos, enfim, existem ali, em estado potencial. O padre Paolino, que
utiliza folhas e cipós para fazer chás terapêuticos em suas missões pelo rio, resume: "Não
conhecemos nem 5% do que a Amazônia tem." Euclides concordaria de imediato.

Domingo, 15 de Março de 2009

Um paraíso ainda ignorado, mas não perdido


Região continua pobre, mas há acesso à educação e floresta pode ser explorada sem ser destruída

Daniel Piza, SANTA ROSA DO PURUS (AC)

Foram mais de mil quilômetros navegando pelo Rio Purus, desde Sena Madureira até o encontro
com o Rio Curanja no território peruano. Foram seis dias de baleeira, dormindo em redes e tomando
banho com água do rio, e mais dois dias de voadeira, dormindo nas pousadas sem conforto de Santa
Rosa do Purus e Esperanza. Em sete desses dias choveu, e quase sempre torrencialmente. Telefone
fixo só era encontrado nas prefeituras das três cidades do trajeto brasileiro (Sena, Manoel Urbano e
Santa Rosa), celular não pegava nunca e o satelital, só algumas vezes. Mas nada disso se compara
aos mais de dois meses que Euclides da Cunha levou para percorrer o mesmo trecho, sem contar
que partira de Manaus, em sua odisseia de 1905.

Euclides era o chefe brasileiro da comissão feita em parceria com o Peru para realizar as
demarcações do Alto Purus, o trecho do rio que começa onde hoje se situa Manoel Urbano. O
objetivo era verificar os primeiros mapas, feitos pelo explorador inglês William Chandless 40 anos
antes, e definir a relação hidrográfica com outros rios do Brasil e do Peru. Euclides teve percepções
inéditas sobre o rio - como sua característica de leito variável - e confirmou quase todas as
medições de Chandless. Mas a viagem foi cheia de percalços: encalhes, conflitos, malária, beri-béri
e outros males acometeram Euclides e os demais. Mais importante do que o trabalho como enviado
do chanceler Barão do Rio Branco, foi o impacto da floresta em sua mente.

Muitas das impressões que o abalaram continuam presentes. Ele chamou a Amazônia de "um
deserto" e descreveu sua combinação de grandiosidade com tristeza. O Alto Purus continua com o
clima de abandono, como se fosse quase inabitado, com longos trechos de rio sem manifestação
humana. Por isso, a natureza continua muito semelhante; a mata permanece quase toda intocada,
com suas imbaúbas e canaranas, seus botos e jabutis, suas garças e andorinhas, seus tambaquis e
pirarucus. As riquezas continuam pouco exploradas, quando não indescobertas, e a ameaça de
doenças - agora mais a anemia e dengue do que a malária e beri-béri - é uma constante por aqui.

As diferenças, porém, são significativas. Euclides se revoltou com a condição de trabalho dos
seringueiros ("Ele trabalha para escravizar-se") e quis escrever sobre ele o "segundo livro
vingador", ou seja, fazer por ele o que fizera pelos habitantes do semiárido em Os Sertões (1902).
Mas Euclides apostou na exploração da seringa; defendeu a criação de ferrovias e hidrovias para
escoamento da borracha para mercados externos; quis que a terra fosse desbravada, elogiando o
modo como os bandeirantes haviam expulsado índios. Se chamou a Amazônia de "um paraíso
perdido", foi porque se dizia "pessimista incurável", mas, engenheiro militar e positivista, tinha sua
receita para levar progresso ao paraíso.

Hoje o Alto Purus não tem mais seringueiros (nem caucheiros, seus equivalentes e rivais peruanos).
De Manoel Urbano até a Boca do Chandless o que mais encontramos foram ex-seringueiros que
estão aposentados e vivem, como seus filhos e netos, de plantar, caçar e pescar. Desse mesmo modo
vivem os índios da região, que Euclides não encontrou porque haviam sido corridos para longe dos
seringais.

Kaxinawás e kulinas são predominantes no rio, principalmente a partir da Boca do Chandless e até
o lado peruano. Também as três cidades, claro, são novidades no cenário - e, com o asfaltamento da
estrada (BR-364) que vai de Sena Madureira a Manoel Urbano, esta última de apenas 6 mil
habitantes, tendem a crescer bastante. Isso não vale para Santa Rosa, aonde só se chega de barco ou
avião.

Esta região da Amazônia continua muito pobre, como Euclides a encontrou, e a única vantagem
parece ser o acesso à educação: os netos dos seringueiros já não são analfabetos como seus avós,
ainda que tenham muitos anos de atraso escolar. A noção de progresso mudou nestes cem anos
desde a morte do escritor, e agora a floresta pode começar a ser explorada sem ser destruída, desde
que ela seja estudada em seu potencial agrícola, de cosméticos, remédios, madeiras certificadas e
outros produtos, inclusive derivados do látex. Resta saber se daqui a cem anos, na Amazônia, o
homem e a natureza continuarão a ser inimigos, como disse Euclides, ou se o paraíso perdido pode
passar a ser o paraíso desenvolvido.
Sexta-Feira, 13 de Março de 2009

Impulsionada pelo comércio, cidade toma lugar de mata

Daniel Piza, ALTO PURUS

O que Euclides da Cunha não viu em sua viagem pelo Rio Purus em 1905 foram cidades. Hoje,
depois da saída em Sena Madureira, passamos por Manoel Urbano e agora estamos em Santa Rosa
do Purus, a menor das três. Menor em termos de população - cerca de 4 mil habitantes. Mas em
dimensão Santa Rosa é bem grande: abrange até a Boca do Chandless, a mais de 300 km de rio,
com suas mais de 20 aldeias e outras localidades. Nenhuma estrada chega aqui, só há acesso por
barco.

inda assim, o que era só mata hoje se transformou numa cidadezinha que cresce ano a ano graças à
venda de produtos agrários. Do outro lado do Purus se vê o território do Peru. Brasileiros e
peruanos viviam em conflito nos tempos de Euclides por causa da borracha. Do lado brasileiro,
havia muitos seringais; os peruanos extraíam o látex de uma árvore chamada "caucho". Hoje a
relação na fronteira é amistosa. Já entre brancos e índios há algumas diferenças. Manuel Pereira de
Freitas, ex-seringueiro que veio do Ceará há 30 anos, diz que há queixa de furtos de animais
praticados por indígenas e também de caça de jacarés feita com tinguí (veneno de uma planta). "O
fim da seringa foi ruim. Acabou com o Acre", diz ele.

Quinta-Feira, 12 de Março de 2009

Índios pedem cigarros, bolachas e óleo diesel


Diário da viagem pelo Rio Purus, na qual os repórteres Daniel Piza e Tiago Queiroz refazem a
trajetória do escritor Euclides da Cunha

Ontem deixamos para trás a baleeira "Euclides da Cunha", que ficou na aldeia Nova Aliança para
completar a documentação dos kaxinawás, e partimos em duas voadeiras (botes a motor, sem
cobertura) em direção a Santa Rosa do Purus, na fronteira do Brasil com o Peru. Foram sete horas
de viagem, metade delas sob chuva intensa com inclinação contrária de 45 graus. O rio segue largo
e caudaloso até aqui.

No caminho, paramos em Santa Helena, em busca do cemitério onde o escritor Euclides da Cunha
viu, há 104 anos, uma lápide de cinco peruanos com inscrição que acusava brasileiros como os
assassinos. Mas só encontramos um pequeno cemitério sem nada parecido.

A parada seguinte foi em outra aldeia kaxinawá, Novo Marinho, com 152 pessoas, no alto de um
barranco do qual se vê um belo estirão do Purus. Eles aguardam o Projeto Cidadão para amanhã.
Cantam o mariri (música típica), oferecem jabutis, pedem por cigarros, bolachas e óleo diesel para o
motor de suas canoas. Mais três horas e chegamos a Santa Rosa, ansiosos pelo primeiro banho de
água encanada e por dormir na cama em vez da rede. Hoje é dia de seguir o Purus do lado peruano.

Quarta-Feira, 11 de Março de 2009

Aos 62, índio obtém certidão de nascimento


Daniel Piza, ALTO PURUS

No trecho entre São Brás e Santa Rosa, subindo o Rio Purus, há 22 aldeias indígenas dos mais
variados tamanhos. A maioria é da etnia kaxinawá e as demais, kulina. Há 104 anos, quando
Euclides da Cunha esteve aqui, não encontrou muitos índios, e sim peruanos que extraíam látex do
caucho, além de seringueiros brasileiros que com eles muitas vezes brigavam. O escritor e
engenheiro era, por nomeação do barão do Rio Branco, o coordenador brasileiro da comissão mista
com o Peru para a demarcação do rio, cujas nascentes ficam no país vizinho.

Aristodis Kuerino Bardaro Kaxinawá mostra, orgulhoso, sua certidão de nascimento. Ele tem 62
anos e acaba de tirá-la pela primeira vez. No documento, consta o nome de seu pai, Luis Carron,
peruano. Sua mãe era índia kaxinawá na região do Rio Tarauacá, ao norte do Acre, quando eles se
conheceram. Aristodis veio há 15 anos para a margem do Purus viver na aldeia Nova Fronteira. Esta
aldeia foi a escolhida pelo Projeto Cidadão, do governo acreano, por ser a mais numerosa (360
pessoas) e bem situada.

Anteontem estivemos com kulinas na confluência dos rios Purus e Chandless, que Euclides da
Cunha também navegou por um trecho. Ali, onde botos cinzas mergulham e imbaúbas se debruçam
à margem, as crianças jogavam futebol e os mais velhos cantaram para os visitantes. Não se viu o
menor sinal da hostilidade que é comum atribuir a eles na região. Ontem muitos vieram até Nova
Aliança, como Aristodis. Os índios de ambas as etnias recebem o projeto com ansiedade. O Acre
tem quase 11% da população sem registro - grande parte nas aldeias. "Mas agora", diz Aristodis,
"sou cidadão como os outros brasileiros".

Terça-Feira, 10 de Março de 2009

Seringueiros são raros, mas índios voltaram ao Purus


Diário da viagem pelo Rio Purus, na qual os repórteres Daniel Piza e Tiago Queiroz refazem a
trajetória de Euclides da Cunha
No caminho de Manoel Urbano para Santa Rosa dos Purus, o que mais encontramos são
seringueiros aposentados e seus filhos e netos, todos vivendo desde os anos 1990 do plantio, caça e
pesca, em casas isoladas ou pequenas comunidades. Se a paisagem natural não mudou muito desde
a viagem de Euclides da Cunha, em 1905, a humana mudou bastante. Os seringueiros são cada vez
mais raros e os índios voltaram a viver à beira do Purus.

À altura de Paissandu, vemos a balsa da estrada BR-364, que está sendo asfaltada no momento -
uma ponte de 400 metros será erguida, a primeira em toda a rota. Em Liberdade, um vilarejo a cerca
de 3 horas de Manoel Urbano, encontramos a família de Antonio de Almeida. As crianças andam
com arroz no bolso e de tempos em tempos comem um bocado. Apenas um sabe escrever o nome,
Andrelino, de 11 anos. A mãe recebe R$ 120 do Bolsa-Família para cuidar dos seis filhos.

Navegamos mais 24 horas e chegamos a São Brás, onde um dos batelões de Euclides da Cunha
naufragou. Depois fomos à boca do Rio Chandless, transformada recentemente em parque nacional.
No final da tarde, chegamos à aldeia dos índios kaxinawá, a Nova Aliança, onde tivemos acesso a
telefone por via satélite e passaremos duas noites. Se a primeira metade do trajeto foi marcada por
ex-seringueiros, a segunda é dos índios.

sábado, 7 de março de 2009, 21:20

A coragem de desvendar o Brasil


No centenário da morte do escritor, Grupo Estado celebra o ‘Ano de Euclides’ com projeto cultural
multimídia

Laura Greenhalgh, de O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO - Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em dezembro de 1906,
Euclides da Cunha concluiu a saudação falando do poeta Valentim Magalhães, a quem iria suceder
na cadeira de número 7, que também fora do poeta Castro Alves. Disse que faltava à obra de
Magalhães a necessária concentração intelectual, “segredo dos gênios e dos medíocres”. Que as
mundanidades e o gosto pela polêmica tiraram-no do foco literário. E terminou assim: “Entregou-se
de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência. Foi seu grande defeito, dizem. Mas
este defeito, o seu maior defeito, é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito do viver
demais.” Magalhães morreu aos 44 anos. Pois quando pronunciou este discurso, Euclides estava
bem perto de seu próprio fim – tombou aos 43 anos, em 15 de agosto de 1909.

O centenário de morte do autor de Os Sertões, celebrado pelo Grupo Estado a partir de hoje e ao
longo de 2009, relembra a trajetória do engenheiro, escritor, correspondente de guerra, colaborador
deste jornal por duas décadas e do homem que teve o “defeito do viver demais”, embora morresse
tão cedo. Não fosse abatido pelos tiros do amante de sua mulher, Euclides certamente envelheceria
propondo desdobramentos à sua obra.
Como fez ao voltar da expedição a Canudos (BA), em 1897, a convite de Julio Mesquita, diretor do
Estado: o plano de ação que vislumbrou para a cobertura de um dos conflitos mais sangrentos da
nossa história mudou no contato com o ‘Brasil profundo’. A ponto de Euclides assumir, quando
mais tarde publicou Os Sertões, um outro olhar sobre o País. O câmbio radical levou Monteiro
Lobato a comentar: “Admiro Euclides da Cunha por seus valores e sobretudo pela coragem moral
que sempre demonstrou. Foi ele quem nos ensinou a enfrentar a realidade e a não mentir a nossa
eterna mentira patriótica.”

POR RIOS DANTES NAVEGADOS

“O Ano de Euclides” é um projeto jornalístico, cultural e multimídia do Grupo Estado, que deu
início neste final semana com a ida do repórter Daniel Piza e do fotógrafo Tiago Queiroz ao Estado
do Acre, de onde partiram para refazer a expedição à região do Alto Purus, que o escritor
empreendeu entre abril e outubro de 1905. Hoje, quando os leitores estiverem com esta página nas
mãos, Piza e Queiroz já terão deixado o porto de Sena Madureira, a duas horas de Rio Branco,
iniciando a rota fluvial que os levará até o Peru. Vão atravessar seringais, visitar comunidades
ribeirinhas, fazer contato com tribos indígenas.

De enorme significado cultural e sociológico, a expedição amazônica de Euclides representa um


período ainda pouco conhecido na vida do escritor. Se em Canudos ele descobre a figura do
sertanejo, no Alto Purus depara-se com o seringueiro em sua concepção áspera da vida. “O
seringueiro rude, ao revés do artista italiano, não abusa da bondade de seu deus (...). É mais forte. É
mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza”, escreveu no livro póstumo À Margem
da História.

Traumatizado pela experiência de Canudos, Euclides combateu a ideia de o Brasil entrar em guerra
com o Peru pela posse do que seria hoje uma parte do Estado do Acre. Condenou o envio de tropas
à região, defendeu um acordo por via diplomática e acabou sendo incumbido pelo Barão do Rio
Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Sua missão: fazer o
levantamento cartográfico da região e determinar a nascente do rio que separa os dois países.

Ao refazer o mesmo trajeto 104 anos depois, Daniel Piza estabelecerá pontes entre passado e
presente. “O que terá mudado desde a ida de Euclides? O que permanece igual? O que restou
intacto? Encontraremos rastros da expedição?”, pergunta-se. Assessorados por pesquisadores e
gente da região, repórter e fotógrafo já percorrem rios acreanos. Passarão pelo município de São
Brás, onde o barco de Euclides naufragou, chegarão a Triunfo, localidade da primeira reunião da
comissão bilateral, cruzarão a fronteira e finalmente alcançarão o Rio Cujar, na cabeceira do Purus.
Há um século, Euclides e seu grupo atracaram em margens peruanas como náufragos. Estavam
famintos, extenuados, tomados pela malária.

A expedição poderá ser acompanhada em boletins pela Rádio Eldorado, notícias em tempo real no
portal estadao.com.br e matérias no próprio jornal (caderno Vida&). Serão relatos colhidos no
desenrolar da aventura, compondo um grande “diário de expedição”, depois transformado e
ampliado em publicações especiais.

NOS ARQUIVOS DA ‘CASA’

A partir do mês de abril, a celebração do centenário entra em outros domínios: o Caderno Cultura
inaugurará a seção “Euclides no Estado”, em que serão reproduzidos trechos de artigos do escritor
para o jornal, acompanhados de comentários críticos feitos por estudiosos.

A relação histórica entre o articulista e o periódico será realçada. Euclides da Cunha foi uma aposta
jornalística que Julio Mesquita, então diretor de A Província de São Paulo, fez em um jovem e
exaltado ativista republicano. Matriculado no curso de Estado-Maior e Engenharia da Escola
Militar, na Praia Vermelha (RJ), Euclides, ainda cadete, protagonizou uma cena de indisciplina que
ficaria famosa: jogou ao chão o sabre-baioneta, diante do ministro da Guerra, em protesto contra o
plano de carreira militar. Pelas leis do Conselho de Guerra, poderia ser condenado à forca (escapou
por intervenção de Pedro II, a quem atacava), mas foi expulso da escola. É nessa fase que veio a
São Paulo, para tratar uma colaboração com o jornal que se estenderia, com idas e vindas, por mais
de 20 anos.

Seu primeiro artigo para a Província, depois Estado, foi publicado em 22 de dezembro de 1888,
com ataques à família real. Semanas depois, assina “89”, artigo em que relaciona a Revolução
Francesa de 1789 ao movimento republicano no Brasil. Em “A Nossa Vendeia”, de março de 1897,
analisa a derrota da terceira expedição do governo contra os conselheiristas em Canudos. E logo se
prepara para acompanhar a quarta expedição, que enfim dizimaria o arraial nos sertões. Viajou
como correspondente do jornal.

Também a expedição amazônica foi tema de vários artigos. Em um deles, publicado em maio de
1904, Euclides escreveu, a caminho de Manaus: “A guerra iminente tem uma feição gravíssima. Se
contra o Paraguai, num teatro de operações mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas,
levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem, certo não se podem prever os
sacrifícios na luta contra a expansão vigorosa de um povo.” Deuses incas devem ter iluminado seu
pensamento: que cicatrizes deixaria para o Brasil uma guerra no coração da Amazônia?

Em agosto, mês do centenário, o Grupo Estado prevê, como parte do projeto, a realização em São
Paulo de um seminário internacional, com a participação de especialistas do Brasil e de fora. Não é
de hoje que a obra euclidiana tornou-se objeto de traduções e pesquisas em outros países, além de
inspirar o cinema e o teatro. É o ‘olhar estrangeiro’ rompendo barreiras com a cultura brasileira,
como fez Samuel Putnan nos anos 40, ao verter para o inglês Os Sertões ( com o título Rebellion in
the Backland). Neste seminário, entre os painéis temáticos, pretende-se focalizar Euclides da
Cunha, o poeta, cuja produção, também desconhecida, condensa um lirismo lúcido e trágico.
Talvez, a sua síntese possível.

O PROJETO

Para celebrar o centenário de morte do autor de Os Sertões, o Grupo Estado iniciou o projeto "O
Ano de Euclides" - um trabalho jornalístico, cultural e multimídia. No final de semana, o repórter
Daniel Piza e o fotógrafo Tiago Queiroz viajaram ao Estado do Acre. De lá, partiram para refazer a
expedição à região do Alto Purus, que o escritor Euclides da Cunha

empreendeu entre abril e outubro de 1905. A expedição pode ser acompanhada em boletins pela
Rádio Eldorado, notícias em tempo real no portal estadao.com.br e matérias no jornal.

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