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Rio de Janeiro – RJ
2015
Arte, Corpo e Criação
Vibrações de um modo de ser Yawanawa
Renan Reis de Souza
Orientadora: Professora Doutora Els Lagrou
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Els Lagrou
_________________________________________________
Profa. Doutora Luisa Elvira Belaunde – PPGAS/UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Laura Pérez Gil – UFPR
RIO DE JANEIRO – RJ
2015
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Rio de Janeiro – RJ
FEVEREIRO – 2015
Este trabalho é dedicado a Daniel, meu querido e amado sobrinho.
Agradecimentos
Agradeço também ao meu esposo, Kleper Reis, pelas eternas conversas sobre arte
e estética que abriram possibilidades de pensamento. Por estar ao meu lado, por
construirmo-nos, pela partilha da vida e por dar mais sentido à ela.
Agradeço à minha orientadora, Els Lagrou que, desde 2010, vem me dado todo o
suporte e apoio na pesquisa etnológica, sendo uma das minhas principais inspirações
teóricas e também no fazer antropológico ligado a experiência com os povos Pano.
Abstract:
The research presented here is the result of many transformations of objectives, thematics
and also hypothesis. Taking as a starting point the capture of our attention to Hushahu´s
artwork, from Yawanawa people of Gregorio´s river (Acre/Brazil), we hope to bring to
an ethnological compreension the criative processes in which images are made capable
to teach and also to build bodies. Here, we realize that the construction of images and
bodie are directly related, as well as many other elements from the Yawanawa culture.
The shamanism appears here as a backdrop that guides various relationships between the
Yawa and the non-Yawa, since the White people until the spirits called Yuxi. The relation
with the “other” appears here in a structural way, establishing relations and
communications between the way of the old and the contemporaneous to do the things in
the Yawanawa standard. We believe, therefore, that we can bring our ethnographic case
to support the anthropological notions that comprise the culture transformability as a sine
qua non quality of building bodies and modes of existence.
2 OS TEMPOS YAWANAWA 21
5 BIBLIOGRAFIA 134
Índice de Ilustrações
Figura 1- Pintura em tela com tinta acrílica. Mulher do conhecimento e fractais. Autora: Hushahu ___ 17
Figura 2 - Exemplo de grafismo corporal. _________________________________________________ 18
Figura 3 - Exemplo de grafismo corporal _________________________________________________ 19
Figura 4 - Exemplo de Shapanati (saia de palha). Foto por Renan Reis _________________________ 23
Figura 5 - Imagem publicitária de luminária do jacaré. Créditos: AGT - A gente transforma. ________ 42
Figura 6 - Foco em colar de miçanga. Motivo: Awa Vana e Runu Mapu. Foto por Renan Reis _______ 44
Figura 7 - Hushahu soprando Rapé em Matsini com um Tipi. Foto por Renan Reis. _______________ 46
Figura 8 - Trabalho feito a partir de imagens trazidas por Hushahu. À esquerda o Runu Mapu
(cabeça da cobra – sem detalhe do olho) e à esquerda uma forma possível do Awa Vana. Foto por
Renan Reis __________________________________________________________________________ 47
Figura 9 - Foto do acervo pessoal de Hushahu de pintura em tela com jenipapo e urucum de Tata
feita por ela mesma. ___________________________________________________________________ 47
Figura 10 - "Mulher cobra", pintura em tela com tinta acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa. Foto
por Renan Reis _______________________________________________________________________ 49
Figura 11 - "Mulher borboleta", pintura em tela com tinta acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa.
Foto por Renan Reis __________________________________________________________________ 50
Figura 12 - Exemplo de colar (de tipo muito procurado pelos Nawa). O grafismo é um composto
criado com os motivos da cobra (corpo e cabeça), borboleta e escamas de peixe com geométricos.
Artista: Hushahu Yawanawa. Foto por Renan Reis __________________________________________ 53
1
1 INTRODUÇÃO
1
Nesta pesquisa buscarei sempre usar esta terminologia na intenção de aproximar os termos
antropológicos aos que os Yawanawa usam em seu cotidiano. Aqui, "pajelança" trata do "xamanismo",
termo largamente usado pela antropologia ocidental. A vantagem da palavra pajelança é que ela aponta,
mais do que a palavra xamanismo, para o contexto de relações interétnicas, campo este no qual se
desenvolve minha pesquisa.
2
Orientado por Oscar Calavia Sáez (UFSC).
3
Orientada por Esther Jean Langdon (UFSC).
4
Orientada por Oscar Calavia Sáez (UFSC).
2
Nova Esperança durante uma semana cantor, contar histórias, realizar rituais, fazer
comidas e brincadeiras “tradicionais” como uma forma de “resgate” da cultura
considerada quase perdida. A partir deste grande encontro, de 2002 em diante passaram
a organizar o Festival Yawa. Em suma, o festival nos chamou a atenção por ser um
mecanismo usado para divulgar a cultura deste povo. O festival singulariza a cultura e
só é possível uma vez que os Yawanawa tenham aprendido as técnicas fundamentais
para sua execução a partir da relação com a cultura do branco. O mesmo ocorreu com a
educação Yawanawa que, através do projeto de formação de professores indígenas da
CPI-AC, fortalece sua identidade e assim toda a sua sociabilidade. Naquele momento
inicial de minha pesquisa, anterior à experiência etnográfica, conectamos tais questões
às noções de Manuela Carneiro da Cunha, que nos diz que a pajelança prolifera com o
englobamento de perspectivas. Esta ideia foi uma das fontes inspiradoras desta
pesquisa.
3
participarem das cerimônias de Ayahuasca entre os Yawanawa e também dos
resguardos de formação na pajelança.
A partir deste momento, decidi reconfigurar a minha pesquisa e centra-la em
Hushahu. Ao longo das minhas pesquisas pela internet e material antropológico, percebi
que havia nenhum trabalho sobre Hushahu. Segui acompanhando-a a distância na
intenção de construir um novo projeto de pesquisa centrado na arte e na transformação
da cultura. Esta proposta foi se consolidando com o passar do tempo e firma-se, de certa
forma, com uma pequena incursão que fiz no universo das artes contemporâneas dos
povos indígenas.
Este fenômeno, que suscita importantes reflexões com relação à redefinição dos
papeis de gênero nesta sociedade indígena, também ocorre entre os Shipibo (grupo pano
peruano, Colpron, 2005) e em menor escala entre os Kaxinawa dos Rios Jordão e
Tarauaca (Lagrou, comunicação pessoal5) e envolve também as relações de contato com
movimentos religiosos e alternativos e urbanos que têm a ayahuasca como elemento
central. Assim, nossa análise busca se concentrar na relação entre o processo criativo
artístico e a redefinição de práticas xamanísticas em diálogo com novos fenômenos e
movimentos urbanos para que possamos compreender, em diálogo com a antropologia
americanista, o papel destes dois domínios nos processos de atualização da cultura.
5
Onde não surgiram mulheres assumindo o papel de xamã, mas onde as mulheres também tomam
ayahuasca, sopram rapé e cantam nos rituais de nixi pae, algo que tradicionalmente era reservado aos
homens. (Comunicação pessoal de Lagrou, 2014).
4
Nos últimos anos, os Yawanawa têm procurado diversas formas de retomarem
costumes em risco de esquecimento e vêm estudando, pesquisando e registrando seus
costumes e práticas. Devido aos novos tempos, muitos destes costumes acabam sendo
readaptados e diversas transformações se manifestam. Lagrou (2014) sugere que os
quadros figurativos de artistas que, como Hushahu, que se referem à visão com
ayahuasca , atendem a novos fins de “explicar uma visão”, complementar e de modo
diferente dos Kene. Porém, desejamos investigar aqui se, além de sua finalidade
pedagógica, carregam agência e como se inserem em um contexto mais geral da
pajelança Yawanawa. Compreender estas novas formas de fazer nos possibilita expandir
nossas noções sobre a transformabilidade da cultura, de como se formula novas
maneiras de fazer ver conceitos centrais de uma cosmologia (Viveiros de Castro, 2002;
Vilaça, 2006; Lagrou, 2007; Carneiro da Cunha, 1998 e Wagner, 2010), e coloca em
debate os novos contextos nos quais é possível à antropologia compreender o fenômeno
de atualização da cultura. A pesquisa busca contribuir com o debate sobre as noções
indígenas de si mesmo, que no contexto da interação com os movimentos neo-
xamânicos são traduzidas em termos ocidentais e urbanos, e que acabam influenciando
o modo dos indígenas de realizarem seus projetos e de se mostrarem para o mundo.
6
Esta noção caracteriza as potencialidades espirituais/xamânicas que pessoas, coisas e seres não-humanos
podem possuir e assim efetuar ações na sociocosmologia circundante.
5
Uni e Kawa na língua Yawanawa), aquelas vivenciadas durante os sonhos e, talvez, os
quadros pintados em tela por Hushahu Yawanawa que traduzem experiências
provocadas pela Ayahuasca (também chamada de Uni em Yawanawa). Me pergunto, o
que é necessário para que sejam produzidas imagens dotadas de “força”? Seria possível
considerar os quadros figurativos de Hushahu como veículos de “força”?
Fomos muito bem recebidos por todas as lideranças políticas e pelos pajés. Neste
período, tivemos a oportunidade de saber um pouco mais sobre estes processos e nos
ficou claro que, do ponto de vista nativo, para tornarem seus cantos, desenhos, rezas e
outras ações veículos de “força”, era imprescindível a realização das dietas próprias
para isso. A eliminação do doce, a abstinência sexual, a alimentação racionada e o
consumo de substâncias amargas como a Ayahuasca, o Rapé e o “Meyu” 7, são a base
das dietas. Nossa hipótese é que, tal como ocorre entre os Kaxinawa (Lagrou, 2007), os
Marubo (Cesarino, 2008) e os Katukina (Coffaci de Lima, 2000), as técnicas da
pajelança são realizadas após um processo de construção corporal que perpassa as
noções nativas de ser e estar no mundo. Deste modo, seriam as novas qualidades obtidas
pelos corpos submetidos a dietas que conferem “força” aos cantos, imagens ou outros
produtos do trabalho individual.
7
Chá feito da casca de uma árvore não identificada extremamente amargo e com propriedade de
desintoxicação do sangue.
6
consubstancialidade são aplicadas também para compreender este processo de
transferência de “forças”, apontando para um processo análogo à noção de “abdução de
agência” descrito por Alfred Gell (1998), aplicado à antropologia da arte e das
substâncias que fabricam o corpo por Els Lagrou (2003) e presente de modo geral nas
teorias da corporeidade ameríndia. Em diálogo com esta literatura ameríndia e pano
visamos analisar estes processos criativos de construção de corpos perceptivos no
recente contexto de intercâmbio xamanístico entre os Yawanawa.
7
este processo de transformações que se dão no corpo e se refletem nas imagens que este
corpo é capaz de produzir.
Como sabemos, a construção de um corpo pode atender aos mais diversos fins
que circundam a pajelança yawanawa. Processos de cura, tratamentos aos recém
nascidos, feitiços, dentre outros, demandam a realização de resguardos específicos,
usualmente guiados por um tipo de substância (resguardo do jenipapo, caiçuma,
ayahuasca, Kapum e etc.). Porém, aqui estamos querendo tratar de imagens que, dentre
tantas outras funções possíveis, são capazes de carregar forças capazes de gerar
transformações em corpos e na realidade circundante. São mirações que trazem
ensinamentos, sonhos que desvendam perguntas ou os Kene que são usados em alguns
trabalhos de cura. Entre os Yawanawa, uma pessoa produz este tipo de imagem somente
após diversos processos de construção corporal por meio da abdicação e introdução de
determinadas substâncias no contexto das dietas.
Minha análise busca, portanto, compreender melhor o papel das artes e imagens
no cotidiano Yawanawa e sua importância na reelaboração de relações com o mundo
externo. Com esse material, acredito ser possível analisar, ainda que brevemente, como
a arte pode influenciar o processo de atualização cultural e como estas imagens operam
nas diversas redes relacionais. Compreender a participação dos Yawanawa em um
universo neo-xamânico e artístico no qual participam diversas entidades urbanas é
imprescindível para que eu possa gerar algum entendimento sobre estas atualizações da
cultura que são expressas nas artes e pelas mulheres que as produzem e se envolvem
diretamente com a pajelança.
9
filho mais novo. Neste meio tempo, fui direcionado a ficar no Centro Cerimonial de
Terapias para iniciar o resguardo da Ayahuasca junto à antropóloga Alice Haibara, que
já tinha amizade com os Yawanawa. Depois de poucos dias, ficamos sabendo que
Hushahu havia adoecido de forma grave, com suspeita de ter contraído algum tipo de
ameba. Foi a primeira vez na vida de Hushahu que a mesma teve que ser internada em
um hospital, o que provocou grandes preocupações sobre a sua saúde. Como resultado,
praticamente todos os Yawanawa que seriam meus informantes foram para a cidade
acompanha-la. Acabei ficando, junto a Alice, quase sozinhos no Centro Cerimonial com
exceção de Matsini e Txana, na época casado com Kenewama (filha da liderança
Mariasinha). Não podíamos ficar saindo muito do Centro para ir à aldeia devido ao
resguardo e à necessidade de isolamento do cotidiano da aldeia. Por conta disso, fiquei
extremamente preocupado com o decorrer de minha pesquisa, uma vez que só tive
condições de ficar aproximadamente um mês em campo. Porém, como meu objetivo de
pesquisa era focado nos processos criativos de construção de imagens, me fora indicado
conversar com Txana, uma vez que ele era o único que fazia desenhos junto a Hushahu.
Segui os aconselhamentos e decidi me dedicar ao resguardo e com o passar do tempo
comecei a perceber que minha pesquisa estava sendo descentralizada das questões sobre
a arte e direcionada para as do resguardo. Não consegui “ver” as questões da arte e da
criatividade, tudo o que me fora ensinado tratava de resguardo, corpos, relações com
seres espirituais etc. Este fora meu momento de crise metodológica e de experiência do
famoso “anthropological blues”, já não sabia os destinos aos quais a minha pesquisa
estava submetida.
Com esta preocupação em mente, busquei formas de ir à cidade para
acompanhar o caso de Hushahu. Ao chegar na cidade, ela já estava com um quadro de
saúde positivo. De acordo com a mesma, ela não tinha todos os sintomas comuns aos
casos de ameba e, por conta disso, usou das técnicas da pajelança sobre as quais sua
filha, Hukena, já tinha domínio. Com a técnica do sopro usada sob efeitos do rapé, teria
realizado a cura de Hushahu, o que lhe valeu um reconhecimento maior de seu poder.
Na cidade de Tarauacá, pude ter muitas conversas que não consegui na aldeia, pois lá
estava Júlia, que conhece muito bem a história dos Yawanawa, Hushahu e Hukena.
Acredito que este momento me foi fortuito para mostrar minhas intenções de pesquisa e
de alianças, pois ali dei início a relações afetuosas de amizade e companheirismo.
Porém, também fui vítima de infortúnios (furto) cometidos por um dos Yawanawa.
Todavia, o apoio e a consideração à minha situação puderam me trazer mais fatos que
10
dissertavam sobre o modo deles de se relacionarem com as influências negativas que o
contato com as culturas ocidentais lhes traziam. A condição de pobreza, os interesses
consumistas de alguns e a discrepância que estes teriam com os valores de solidariedade
e colaboração com os que vêm de fora que sempre me foram mostrados pelas lideranças
yawanawa.
Com o passar do tempo, e chegando ao fim do meu período de campo, percebi
que ainda necessitava de muitas informações para dar continuidade aos meus objetivos
de pesquisa. Esta primeira inserção foi importante para criar as bases da relação e
entender, de fato, o que poderia ou não estudar entre eles. Por conta disso, já sabia que
seria de extrema importância retornar à aldeia, pois me causava extremo desconforto
falar com uma autoridade de pesquisador sobre um contexto do qual sabia entender nem
o básico.
Ao retornar, me dediquei totalmente à sistematização dos dados que havia
coletado. Ainda que tenha tido enormes dificuldades em conversar com Hushahu,
consegui realizar muitas horas de entrevistas e muitas conversas com aqueles que
possuem alianças de longa data com os yawanawa, principalmente com aqueles que
faziam parte do projeto Mão da Terra (financiado pelo Fund Intent da Rússia) que já
possuíam longa estrada na pajelança e conheciam muito dos yawanawa, além da
inestimável contribuição de Matsini, que é uma das principais e mais influentes
lideranças espirituais dos yawanawa. Sem sua contribuição, esta pesquisa não teria sido
possível.
Depois de ter os dados sistematizados, fiquei extremamente descontente com a
enorme dificuldade que teria para retornar ao Mutum. Isso porque mesmo para a minha
primeira ida a campo, tive grandes gastos e perdas financeiras que dificultavam a
realização da pesquisa de campo. Todavia, ao localizar uma passagem possível para
retornar ao Acre, me articulei para tal retorno independente do que isso poderia me
custar. Desta forma, retornei ao Mutum no mês de Fevereiro de 2014, momento no qual
Hushahu estaria na aldeia e poderia dar continuidade à minha pesquisa.
Infelizmente, só pude ficar por três semanas na aldeia por motivos financeiros, já
que custeei toda esta parte da pesquisa com minha verba pessoal (a outra parte contou
com o apoio do PPGSA, UFRJ). Porém, o momento foi extremamente fortuito, pois
neste período posso considerar que fundamentei as bases de uma relação de amizade e
troca que considero serem fundantes para uma pesquisa antropológica. Digo isso por
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considerar este tipo de relação imprescindível para uma pesquisa que implique o
antropólogo nos objetivos políticos daqueles quem ele estuda.
1.2.1. O resguardo
Nas duas ocasiões que fui ao Mutum, participei do resguardo da Ayahuasca
como forma de aprendizado dos processos de transformação corporal que objetivavam
me fazer “ver”. Ao nível pessoal, sempre tive o que consideram um bloqueio para as
visões. Por conta disso, tomei minha experiência pessoal como forma de estudo e
compreensão destes processos. Os aconselhamentos, os ensinamentos e as explicações
para tal problema me ensinaram muito sobre tal processo criativo. Modos de
alimentação, regras de comportamento, dedicação ao estudo, resistir às dificuldades da
dieta (como fome e isolamento na mata). Aqueles que lá estavam em resguardo ou os
guiando se surpreendiam, de certo modo, com a quantidade de Ayahuasca e a
dificuldade que tinha para “entrar na força”. O que me era aconselhado era sempre
observar as mudanças corporais que sofria, além também de sempre refletir sobre os
pensamentos que me vinham durante a cerimônia. As mudanças corporais estavam, pelo
que pude observar, no peso de meu corpo e nas substâncias escatológicos. Era fácil
perceber como meu estado mental, mesmo em estados ordinários de consciência, fora
alterado ao longo de todo o processo. Clareza de pensamento, esse era um dos principais
benefícios que me disseram que teria, e isso se concretizava. Pude ter esta percepção,
principalmente, nos dias em que estava mais em conflito com as dificuldades do campo
e que, durante as cerimônias, encontrava uma resolução para estes conflitos na atividade
mental provocada pela Ayahuasca. Em conversas com Matsini e Hushahu, estes me
explicavam como esse processo pelo qual passei era comum e inerente aos modos de
ensino da pajelança Yawanawa. Na minha primeira ida ao campo, houve duas
cerimônias nas quais tentamos “forçar” as visões em mim. Na primeira cerimônia,
consumimos a Ayahuasca feita com o cipó que possui uns caroços em seu caule, que é
considerado muito mais potente do que o cipó comum, que é liso. Nesta ocasião acabei
dormindo durante a cerimônia. Porém, durante este período, comecei a ter muitos
sonhos (o que normalmente nunca tenho) que envolviam elementos e personagens da
pajelança, como o pássaro txana, a cobra e as araras. Me fora dito que ainda que eu
tivesse dificuldades de ter as visões da Ayahuasca, a clareza de pensamento, a magreza
e a atividade dos sonhos eram evidências das transformações provocadas pela
Ayahuasca. No último dia desta primeira ida ao Mutum, Hushahu retornou à aldeia e
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participou da última cerimônia que tive lá. Preocupada com a minha dificuldade de ver,
me fez beber um copo cheio (mais ou menos cinco vezes uma dose comum) de
Ayahuasca e, ainda não conseguindo ter as visões, me fez beber outro na mesma
quantidade. As visões não surgiam da forma como eram esperadas, mas os processos de
confusão entre a realidade material e sonhos, além de intensas limpezas escatológicas,
ocorreram. Ao pedir que me explicassem tal situação, contaram-me que era claro para
eles que eu deveria passar por um processo de cura, pois tal bloqueio teria relações com
a minha espiritualidade que precisava ser trabalhada. Isso se refletiria no meu corpo e,
como era nele que as transformações ocorriam primeiramente, se refletiria nas minhas
capacidades espirituais de contato com os espíritos. Infelizmente este diagnóstico foi
dado no meu último dia na aldeia, o que fortaleceu meu desejo de retornar ainda durante
minha pesquisa de mestrado.
Durante a minha segunda estadia, busquei dar continuidade, em conjunto à
coleta de dados, aos meus processos de transformação. Pude ser acompanhado por
Hushahu de mais perto e assim aprender muita coisa. Nesta estadia, tentei, ainda que
sem sucesso, participar do resguardo do kapum (descrito posteriormente). Como não
havia caiçuma para que realizasse a dieta nos moldes adequados, dei continuidade, por
duas semanas, ao resguardo da Ayahuasca que já havia feito na primeira ida ao Mutum.
Ainda me observando durante tais processos, ficou claro como tais transformações
corporais e mentais refletem na percepção mesmo durante estados ordinários de
consciência. Relatavam-me diversas coisas que deveriam ocorrer comigo, uma vez que
eram esperadas durante este mesmo processo independente de quem o faça. Do
surgimento de sonhos com elementos da pajelança e clareza de pensamento, vivenciei,
inicialmente, a visão de sombras, o escutar de cantos, o compartilhamento coletivo de
sonhos e visões dentre outras coisas. O envolvimento com este campo da realidade
perceptível, ao ser explicado pelos yawanawa, atestaria como estas transformações me
levariam a ter visões que carregam “força” e ensinamento, ainda que deveria ter ficado
ao menos mais um mês para que o processo fosse concluído. Esta experiência empírica
me possibilitou comparar o que percebia de concreto e o que era dito sobre o que
deveria ocorrer. A correspondência entre estes dois domínios me possibilitou participar
da experiência de campo de uma forma próxima que seria muito inferior caso somente
observasse e relatasse o que supostamente ocorre durante tais processos.
Assim sendo, minha intenção em relatar tal experiência remonta à necessidade
de explanar que aquilo que aqui relato também é baseado em observações empíricas
13
sobre a transformação corporal à qual as pessoas, sejam elas yawanawa ou não, se
submetem durante o resguardo. Por fim, esperamos que o relato possa de fato contribuir
com o saber antropológico, principalmente no que diga respeito à uma etnografia que
busque implicar uma experiência envolvida com a realidade que se propõe explicar.
Aqui, acredito, em consonância com autores como Favred-Saada e Arnaud Halloy, que
o antropólogo deve assumir-se não somente enquanto um campo de construção de um
saber científico desconexo dos problemas que nossos “objetos de estudo” vivenciam,
mas como um ator que propõe se submeter a problemas parecidos, ou seja tenta ver
como as situações nas quais se colocam os nativos podem afeta-lo para deste modo
melhor entender de que falam os nativos quando falam de pajelança, feitiço ou
possessão8.
8
Ver Favred-Saada (1990) e Arnaud Halloy (2012) para abordagens teoricamente parecidas: Favred-
Saada propõe deixar-se afetar pelo sistema da feitiçaria em um vilarejo no Sul da França quando aceita a
posição de enfeitiçada que precisa de cura e Arnaud estuda os efeitos da experiência da possessão em um
Candomblé de Recife para se aproximar de uma compreensão vivido do que poderia ser a experiência dos
nativos. É crucial ter em mente que nenhum dos dois autores afirma ter conhecimento sobre o que sentem
os nativos. Ninguém pretende entrar nem na cabeça nem na pele do nativo. O que se propõe é
experimentar um aumento de compreensão ao se deixar afetar. Ver também Goldman (2005).
14
ao dualismo entre corpo e alma do modelo ocidental (ou naturalista, conforme a noção
descolaniana), o corpo ameríndio é feito por meio dos olhares externos e não-
essencialistas. A proposta de modelo oferecido por Seeger, da Matta e Viveiros de
Castro (que, em associação com as teorias de Carneiro da Cunha e Lagrou, abre o
campo teórico desta pesquisa) dialoga com o modelo de ontologia animista (que seria
característico de muitos povos indígenas) de Descola (2005) e perspectivista de viveiros
de castro (1996), no qual os corpos diferem-se a partir da perspectiva do outro que tem
como papel objetificar o corpo. A noção indígena de corpos isolados não existe, mas
sim um aspecto coletivo onde corpos constroem corpos e fluem energia e são, ao
mesmo tempo que matéria e conhecimento (Kensinger, 1995; McCallum, 1996; Lagrou,
1998, 2007).
Assim sendo, cada pessoa é um feixe de relações e sua existência não resume-se
ao corpo. Portanto, a tensão entre a pessoa e, se pudermos assim falar,
personagem/persona não existe para os ameríndios, pois a pessoa define-se a partir de
suas redes de relações. A concepção que veio a se consolidar em toda a antropologia
brasileira e internacional, coloca ênfase no modo relacional baseado na predação” onde
impera a regra da troca de substâncias/perspectivas. Esta relação, no entanto é
complementada pela relação de produção que ocorre por meio das relações de
comensalidade e consubstancialidade (Overing, 1991; Lagrou, 2007; McCallum,
1996;Gow, 1999 Belaunde, 2006).
As diferenças ontológicas entre modelos animista e naturalista podem ser
consideradas implicações teóricas, e observáveis, da teoria levistraussiana sobre a
distinção entre natureza e cultura. Na sua busca de desfazer as noções que isolam estes
domínios em campos distintos, Lévi-Strauss propõe que a cultura seja um resultado da
natureza. A capacidade de opor e racionalizar, partilhada por todos os humanos (1976)
estaria na própria natureza na forma do cérebro. Consequentemente, a diversidade
cultural é resultado manifesto da natureza, pois dela depende. Assim, a vida social deixa
de ser um artifício por ser operadora de estruturas além do controle da consciência.
Inicia-se, assim, uma tendência de análise lógica e estética do pensamento humano.
Dando continuidade ao trabalho de Lévi-Strauss, a teoria perspectivista
desenvolvida por Viveiros de Castro preconiza que a cultura é dada e a natureza é
construída. De forma análoga ao modelo de Roy Wagner (2010), onde a cultura engloba
a tudo, considera-se a necessidade da troca para a construção de alguma coisa. Na
ontologia perspectivista o Outro (animal, espírito ou inimigo), com quem se troca, é
15
diferente por possuir um corpo que possui outra natureza e habitar deste modo em outro
mundo determinado pelo seu ponto de vista. Assim, o problema (ver Viveiros de Castro,
2004) da tradução é inerente ao pensamento cosmológico nomeado como
"perspectivismo". Esta linha teórica representa uma introdução anticolonialista do
pensamento nativo no conhecimento antropológico. Viveiros de Castro afirma que toda
cultura se compara com outra através de si, não havendo realidade objetiva, pois toda
realidade seria contextual e relacional.
Ao aplicarmos esta linha de saber ao campo da estética temos questões
específicas que nos fazem chegar ao estudo aqui apresentado. Estas questões foram
muito bem evocadas no debate em Manchester de 1993 em torno do uso transcultural do
conceito de estética (Ingold, 1994; Ver discussão Lagrou, 2007, 2009). Na crítica de
Overing (1996) ao uso do conceito de estética, este nos é apresentado como um
movimento explicitamente modernista. No debate Overing e Gow mostram, como o
julgamento da beleza e do gosto, são um claro fenômeno do modernismo europeu.
Neste debate, Howard Morphy, que defende o uso transcultural do conceito, trata a
estética como as capacidades sensoriais dos humanos que o tornam capaz de construir e
dar forma aos estímulos. Weiner e Morphy consideram a estética como uma categoria
transcultural que deve ser pensada nos termos da sociedade que a pensa. São estas
outras formas de pensar a estética que a confeririam sua capacidade transcultural.
16
de agir do objeto estaria em todos os objetos, e não somente alguns escolhidos pelas
afeições pessoais dos antropólogos.
informantes, que salientam que o Awa Vana é Figura 1- Pintura em tela com tinta acrílica.
Mulher do conhecimento e fractais. Autora:
mais um símbolo do “revival cultural” do que Hushahu
um instrumento de ação xamânica, como são os kene da cobra e tantos outros.
17
os seus saberes. Esta imagem nos proporciona mais um exemplo da transformabilidade
do mostrar-se ao outro que corresponde, ao menos no campo do estético, a certas
expectativas representacionalistas do ocidente. Aqui falamos sobre as culturas “nova
era” (Losonscy & Mesturini, 2010a, 2010b; Cavalcante, 2011). Estas são formas
estéticas reconhecidas pela sua representação dos encontros psicodélicos com as plantas
de poder e ícones ameríndios que atestam a conexão da imagem com todo o referencial
enteogênico (Langdon, 1992) ao qual se refere. Consideramos, assim, estas imagens
como exemplos claros dos efeitos da transformabilidade da cultura. Reconhecemos, de
forma imprescindível, que não representam e falam de toda a cultura yawanawa (o que
seria impossível para uma pesquisa deste porte), mas sim deste aspecto específico.
Como se percebe, as técnicas utilizadas para fazer imagens falam da sociedade que a
produz (Severi, 2012). Assim, estilos diferentes de representações apontam para uma
ontologia específica, ou ainda, dissertam sobre um complexo cultural, como podemos
ver nos trabalhos de diversos antropólogos da arte como Els Lagrou, Peter Beysen,
Lucia van Velthem e Luisa Belaunde.
18
sobreposição da imagem sobre o fundo, e não com uma mera substituição. No caso
kashinawa estudado por Lagrou, é o pucntum9 que torna a imagem cognitivamente
captável e saliente. Porém, este não é o caso yawanawa, uma vez que a relação entre
linhas e espaços não contempla todas as imagens produzidas por eles. Dizemos isso por
haver diversos grafismos corporais e pinturas plásticas, todos feitos por Hushahu, que
contam com claras figurações. No caso de Hushahu, muitas das figurações são resultado
ou resultam em formas abstratas. Conforme Lagrou, no caso da arte kaxinawa a
figuração ilustrativa e explícita só ocorre depois do movimento de obviação, quando a
figuração surge para explicitar aos brancos o que eles não sabem. Na figuração, os
ameríndios buscariam obviar aquilo que poderia por iniciados ser visto na sugestão, na
arte quase e portanto quimericamente abstrata, que sugere a figura mas não a mostra
totalmente e este fenômeno seria recorrente em muitas artes gráficas ameríndias
(Lagrou, 2011, 2012, 2014). O desenho abstrato abre para a percepção da figura, sendo
a imagem o mediador entre o visível
e o invisível.
9
Lagrou identifica no grafismo kashinawa pontos que destoam da trama utilizada na imagem e que
acabaram conferindo uma diferenciação única ao objeto em si.
19
Desta forma, sustenta-se a ideia de que as relações operadas nos processos
criativos de percepção das imagens yawanawa são análogas aos processos de construção
corporal, pois ambos são partes/metades do mesmo movimento cíclico. Foi assim que a
pesquisa que objetivava analisar o campo estético da pajelança yawanawa acabei
desenvolvendo um estudo sore o corpo dotado de forças xamânicas e criativo
esteticamente.
20
2 OS TEMPOS YAWANAWA
Neste primeiro capítulo, queremos trazer ao conhecimento do leitor um breve
panorama do trançado de relações que os Yawanawa do Rio Gregório realizaram com o
“branco” desde o início do contato. Aqui, focaremos nas principais estratégias de
relação estabelecidas conforme determinadas intencionalidades e os produtos desta
relação com o outro. Buscamos mostrar como foram articuladas estas estratégias
relacionais no período da seringa, dos missionários, da FUNAI e em outras três etapas
que achamos serem úteis para uma análise comparativa de alguns momentos de
relevantes transformações culturais. Estes são os períodos “da Aveda”, “das festas” e
“da abertura do Mutum”. Para fechar o capítulo, traremos um panorama sobre a
contemporaneidade dos Yawanawa e uma contextualização centrada na artista aspirante
a Pajé Hushahu Yawanawa.
21
coisas. Para ele, tudo que fosse bem feito era belo: “Se você tiver que fazer uma coisa
que o outro já faz, faça melhor, faça bonito”10.
Assim como a ideia de Rauti fala de beleza, aquilo que compreendem como
“arte” também está atravessado por este valor. Todavia, trata-se de uma noção de arte
que, em primeiro lugar, abrange tudo aquilo que produzem e, principalmente, o que é
decorado com os Kene. São jarros de barros, cestarias, Tipi, Kuripi, tecidos13 e, porque
não, corpos14. Não seria a toa que a arte Yawanawa, nessa segunda perspectiva, é vista
como “o que tem aqui”, em referência aos Kene, aos quadros de Hushahu, aos Saiti, às
brincadeiras e ao Rauti – no qual tem-se um corpo enquanto suporte. Os Yawanawa
dizem que nunca andaram nus. Uma saia de algodão, chamada de Vati, era usada pelas
mulheres. A enrolavam na cintura de modo a fixar-se, e era todo decorado com Kene15.
10
Julia parafraseando Raimundo Luiz. Maria Júlia Yawanawa é neta de Antônio Luiz e filha de
Raimundo, responsável pela educação na aldeia e liderança política. Além de substituir Mariasinha
quando ausente, costuma ser a responsável por diversos projetos desenvolvidos pelos Yawanawa
(incluindo-se o projeto sobre a língua Yawanawa desenvolvido pelo Museu do Índio e coordenado e
coordenado por Livia Camargo Tavares.
11
O conceito dauti possui parentesco com o conceito dau em kaxinawa que agrega o mesmo universo
significativo, além de enfeite significa também remédio e veneno (Lagrou, 1998, 2007).
12
Uma saia feita de palha.
13
Atualmente os Yawanawa do Mutum não tem trabalhado com tecido, mas planejam trabalhar com o
algodão com os Kene. Além disso, desenvolveram no ano de 2013 um projeto cooperativo na criação de
roupas para lançamento em desfile. Um dos principais estímulos ao esquecimento da confecção do tecido
foi a introdução das redes e saias industriais na época da seringa.
14
Desta lista, somente os Tipi e os Kuripi são produzidos atualmente. Os trabalhos com argila e palha só
são lembrados por algumas pessoas. Vista esta situação, enviaram projeto aprovado pelo Prêmio das
Culturas Indígenas do ano de 2013 para realizar um workshop em trabalhos com argila, palha e algodão.
15
Utilizavam estas saias do mesmo modo que as Shipibo hoje em dia e Kaxinawa antigamente. Porém
não chegaram a me dizer com precisão se as Yawanawa do tempo dos antigos teciam os desenhos nas
saias, como fazem os Kaxinawa, mas com certeza as pintavam. Os Shipibo por sua vez tendem a bordar
os desenhos sobre panos comprados e previamente tingidos.
22
Os seios eram cobertos por
colares feitos de sementes,e
ossos de pequenos animais e
dentes.
Os Yawanawa desejam
manter seus traços diacríticos
firmes na lembrança e nos
modos de ser. Um deles, e que é Figura 4 - Exemplo de Shapanati (saia de palha). Foto por
uma de suas características que, Renan Reis
segundo afirmam mais sofreu alteração com o contato com os brancos foi o
casamento16. É comum ocorrerem casamentos com outros povos e, através do convívio,
o(a) cônjuge passa a ser reconhecido(a) como Yawanawa ao passo que vai vivendo e
pensando conforme se identificam os Yawanawa. Julia Yawanawa me exemplificou
isso através do seu caso particular, no qual sua avó patrilinear era Katukina e seu avô,
Antônio, era Yawanawa. Sua avó matrilinear era Rununawa e seu marido Arara. O
bisavô matrilinear era Ushunawa. Julia conta que seu avô proibiu que sua avó falasse
aos seus filhos que ela era do povo Katukina, para que seus filhos não perdessem sua
identidade Yawanawa vivendo com outro povo. Antes de morrer, Raimundo, por sua
vez, pediu a sua esposa, mãe de Julia, que jamais levasse seus filhos para outra terra
dizendo que possuem parentes por lá. Nunca permitiu que sua mãe, Arara, falasse isso
para seus filhos.
16
Ainda que o parentesco sempre tenha sido abalado pelas relações com o branco, na época dos
missionários representava um dos principais alvos destes.
23
Yawa) recebem nomes de pessoas falecidas ou de personagens dos Shenipahu17. São
certas características que as marcaram e que as tornam pessoas de valor. É por conta das
características e da história por trás do nome que se dá certo nome à uma pessoa. Ainda
que a pessoa tenha um conjunto de nomes associados e correlacionados em termos
relacionais e de parentesco, também é possível a pessoa receber outros nomes ao longo
da vida. Pode receber um no nascimento e outro devido às características pessoais
demonstradas. Sendo assim, um nawa, depois de passar algum tempo com os
Yawanawa, estudando, fazendo dieta, participando de cerimônias, etc. Já está apto a
receber um nome. Será por este nome que a pessoa irá usar em cantos (que não são os
do Muka) para se identificar aos espíritos e quando for necessário em alguma reza e etc.
Com o nome em Yawanawa a pessoa já se torna algo mais próximo do Yawanawa
(ainda que este processo nunca se complete, um nawa nunca deixa de ser um nawa18).
Meus interlocutores afirmam que muitas pessoas brancas desejam e recebem o nome
sem saber nada de seu significado. Quando é assim, a pessoa receberia um nome sem
inspiração de modo que acabaria falando nada do que a pessoa é de fato. Receber um
nome, é análogo a uma dádiva dos espíritos. Ele fala de uma qualidade, representa uma
relação entre a pessoa e o universo cosmológico dos Yawanawa.
17
“História’, traduzido a grosso modo da língua Yawanawa.
18
Podemos perceber que o mesmo não vale para os Yura. (Naveira, 1999: 55-59)
24
os filhos e as filhas das irmãs de seu pai ou dos irmãos da mãe. Já os irmãos e as irmãs
são os filhos e as filhas dos irmãos de seu pai ou das irmãs de sua mãe. O oposto ocorre
quando o ego é masculino19. O casamento aos moldes da cultura Yawanawa não
ocorrem mais com frequência. Os Yawanawa enumeram juntos vários elementos
importantes que teriam caído em desuso: As dietas foram quase que totalmente
abandonadas, o Txichã20 deixou de ser feito, dentre tantos outros objetos de uso
cotidiano. Infelizmente não temos registros, e nem me mostraram em campo, dos Kene
que os antigos usavam. Porém, sabemos que o Kene da Runua e o Turu, que é baseado
na tecelagem do algodão, são usados desde estes tempos. Os homens utilizavam o Kene
da Runua em seus rostos e as mulheres o Turu, todos os demais supostamente caíram
em esquecimento. Também estão nesta listagem diversos outros utensílios como cestas,
peneiras e, principalmente, tudo o que era feito com tecido. Hoje já não há nenhum
Yawanawa que domine a técnica da tecelagem e somente uma idosa ou outra ainda
sabem mexer com a palha e a cerâmica. Conforme Julia Yawanawa, tudo o que eles
produzem hoje foi parte deste trabalho chamado de “revival cultural”, que só teria sido
possível recorrendo à memória de Raimundo Luiz e outros velhos. Neste processo,
conseguiram retomar diversos costumes adaptando-se às novas condições. O uso do
Shapanati que, por exemplo, era restrito aos trabalhos realizados pelo Rumeya (aquele
Pajé que realiza trabalhos para matar ou adoecer) em isolamento na floresta. Neste
contexto, buscava-se chamar os espíritos por meio do som produzido pelo Shapanati ao
ser rodada. Hoje em dia, a saia vem sendo utilizada em eventos voltados para um
público que vem de fora da aldeia. São desde as festas realizadas na aldeia do Mutum e
da Nova Esperança que recebe pessoas de diversas regiões do Brasil e do globo, a
eventos no “mundo dos nawa” em escala internacional.
Por mais que talvez não circulem publicamente muitos conhecimentos de caráter
esotérico21, o grande aumento de pessoas fazendo a dieta e o desenvolvimento de
19
Pela fala de alguns Yawanawa, eles aparentam realizar uma demarcação que diferencia os irmãos de
pai e/ou mãe e os da cultura (como falam), que seriam os primos e primas (conforme entendido
ocidentalmente) paralelos.
20
É uma peneira usada para fazer a caiçuma. Hoje dizem que somente uma idosa, de uma pequena aldeia,
sabe faze-lo ainda. Os demais já faleceram.
21
Aqui me refiro à noção de esoterismo enquanto um saber resguardado a iniciados de algum tipo. No
caso, estamos nos referindo a informações de perigo tal que só são passadas a pessoas de grande
confiança e somente em processos avançados. Seriam as dietas relacionadas a Runua estes processos
avançados, uma vez que a dieta do Muka é o passo inicial para tornar-se Pajé. O conhecimento do tipo
exotérico, mais inerente às manifestações new age é bem apresentado na tese de Tiago Coutinho (2011)
ao tratar das cerimônias guiadas por indígenas e que são ditas neo-xamânicas também por ocorrerem
contextos urbanos
25
diversos trabalhos e ações que busquem a retomada de costumes culturais aparentam
estimular um reconhecimento coletivo daquilo que é entendido como “cultura” e
“tradição” yawanawa. Nota-se esta diferença entre os termos em alguns momentos nos
discursos nativos. Aparenta ser possível pensar a noção de “cultura” de forma distinta a
de “tradição”. Entre os Yawanawa, como também comentado por Manuela Carneiro da
Cunha (2009: 363), o entendimento de cultura a relacionaria com aquilo que não é
somente público, mas também publicitado. Já a ideia de tradição, ainda que pública –
todos supostamente têm acesso - costuma ser evocada para falar de características e
qualidades que, para não serem interferidas ao longo do tempo, necessitam ser operadas
sem que seus preceitos mais elementares sejam alterados. Como poderemos demonstrar
a frente, supomos que estes preceitos sejam definidos na relação entre a correta
operação dos saberes tradicionais e a obtenção do resultado esperado. Este tipo de
relação aparenta possibilitar a contínua recriação da cultura e a continuidade da
tradição.
26
yura utsa foi atrelado à noção de Nawa. Uma vez que agora, aparentemente, outros
povos indígenas são chamados pelo termo yura. Em campo, devido ao pouco tempo de
estudo da língua, não pudemos coletar dados que dissertem sobre uma possível
atualização do termo êwê yura. Porém, o uso do termo Yawa tem aparentado ser sua
espécie de substituto. “Nós somos Yawa, nem Nawa e nem Yura”. Essa era uma
denominação que ouvia em alguns momentos.
27
alimentos, como o macarrão e o arroz, eram usados em abundância. Hoje podemos
perceber vários efeitos deste processo de evangelização que veio acompanhado de um
engajamento cada vez maior com o mundo dos brancos. Além da continuidade dos
costumes protestantes24, há ainda consumo substancial de diversos produtos alimentares
industriais. Não é à toa que a diabetes seja um problema recorrente na aldeia (Raimundo
Luiz morreu por conta da diabetes; Mariasinha ficou muito doente por conta da
diabetes; dentre outras pessoas). Segundo meus interlocutores yawanawa, ao passo que
os missionários introduziam mais e mais coisas, os costumes e as práticas yawanawa,
que eram motivo de escárnio para os seringueiros, passaram a denotar “coisas do
demônio”. Afirmam que, na época dos missionários, tinham medo e/ou vergonha de
expressarem aquilo que era de sua cultura. Entretanto, Antônio Luiz nunca deixou de
contar as histórias. Além disso, continuava o cotidiano usual da aldeia, somado à
contínua adição de produtos industriais no cotidiano yawanawa.
A expulsão dos Missionários das terras dos Yawanawa se deu após a ida de
Biraci para Brasília. Lá, soube da existência da FUNAI, dos direitos indígenas e que
existiam muitos nawa querendo ajudar os Yawanawa. O relato abaixo de Mariasinha
Yawanawa mostra as razões da revolta, que acabou levando à expulsão dos missionários
sem que fosse necessário o uso da violência (por exigência de Raimundo).
Não teve violência não. Não teve violência porque meu pai não
deixou. Meu pai falou que... Eu não entendi na época porque eles
tiveram que ir embora. Alguma coisa. Sim. Parece que houve um
comentário grande, que quando os missionários vieram pra cá... os
missionários sabiam que tinha FUNAI.
Vocês já sabiam?
Eles nunca falaram pra nós que existia FUNAI. Eles nunca
falaram que nós tinha o direito de ter a terra. Eles nunca disseram pra
nós, que nós tinha o direito de entender alguma coisa. Eu acho que
essa foi uma das revoltas do povo. E o meu pai deu razão.
E meu pai falou: vocês querem... aí meu pai pegou a canoa,
carregou as coisas dele, mudou uma turma e não deixou eles ir embora
até eles ir embora pra pegar o avião. Todo mudo... alguns ficou triste,
choraram, mas concordaram... Por isso não houve discórdia, por isso
não houve briga entre a gente. Ao contrário. Sentimos falta dele, mas
concordamos que tinha que ir embora. (Mariasinha Yawanawa –
gravação em campo)
24
Histórias e valores protestantes foram postos em comparação pelos Yawanawa, de modo que um não
elimina o outro, faz-se um uso complementar das noções protestantes e nativas. Assim como as formas de
medicina dos brancos são apropriadas pelos Yawanawa (Pérez Gil, 1999), o mesmo aparenta ocorrer com
outras filosofias e teologias.
28
Ainda que os missionários tenham sido expulsos, alguns Yawanawa me
contavam que precisavam “reaprender” a ser Yawanawa. Isso envolvia a retomada de
diversos costumes e práticas, dentre eles o “casamento da cultura”, como falam, ou seja,
o casamento entre primos cruzados, cuja perda causa muito tristeza. Foi desde o contato
com os brancos, primeiro com os seringalistas, que os casamentos começaram a mudar.
Antigamente era comum a poligamia, mas hoje já não o é. O homem, com capacidade
de sustentar mais mulheres com produtos da roça, caça e pesca poderia ter mais de uma
esposa. Ao se casar com a irmã mais velha, sendo um bom marido, ele podia casar com
as demais irmãs. Teria que trabalhar muito mais para isso. Hoje, ainda que este tipo de
casamento ainda ocorra, tem se tornado cada vez mais raro. Este fato se deu por causa
da enorme influência dos missionários, que alteraram as formas de casamento ditas
tradicionais e as suplantaram com um modelo cristão e binário.
Com sua expulsão, contaram-me que houve uma espécie de epidemia de surtos
nas pessoas. Me contaram que quase todos na aldeia passaram por algum momento de
descontrole durante os primeiros 30 dias após a expulsão dos missionários. Fora um
momento marcado por um conflito ideológico entre a aliança afetiva com os
missionários e o desejo de retomada do modo de ser Yawanawa dito tradicional. Com a
ajuda dos velhos, os surtos foram superados e deram continuidade aos seus trabalhos
pela retomada dos costumes antigos.
25
Kaxi era o modo abreviado como falavam da “Aldeia Sagrada”, o antigo seringal Kaxinawa.
29
do Acre. Nesta mesma época, no final dos anos 80, Terri levou Biraci, Antônio e
Raimundo à Rio Branco e Brasília. Outros também foram, alguns ficaram pela cidade e
os demais retornaram à aldeia. Biraci foi um dos que ficou morando em Rio Branco,
participando dos encontros e eventos dos movimentos indígenas.
26
São cursos superiores e técnicos nas áreas da medicina, letras, enfermagem, ciências sociais,
informática, microscopista (para detectar o vírus da malária), dentre diversas outras
27
Esta é a principal dieta para quem decide se aprofundar na prática da pajelança Yawanawa.
30
especificamente para a Califórnia). Depois de seis meses Nedina retorna e inicia seus
estudos em letras para se aprofundar seu trabalho com a educação. Tashka ainda ficou
por pelo menos dois anos nos E.U.A, se casando com uma indígena de origem mexicana
e participando do movimento indígena nos EUA. Ao retornar, desejou trabalhar com os
projetos feitos em aliança com os brancos. Suas primeiras atividades se deram com a
empresa Aveda. A aldeia Nova Esperança também foi aberta para atender a estes
objetivos, uma vez que a terra de sua alocação anterior, chamada de Kaxinawa, era
considerada velha e não própria para um grande roçado. Poucos anos depois do retorno
de Tashka, ocorre um conflito no interior da aldeia Nova Esperança e Biraci desiste de
continuar a trabalhar com a Aveda, ficando Tashka responsável por isso através da
Associação SocioCultural Yawanawa, sediada na aldeia do Mutum.
Na época da abertura, Raimundo Luiz era casado com três mulheres e possuía
quinze filhos ao total. Considerando o tamanho de sua família28, decidiu abrir a aldeia
do Mutum29. Entre as aldeias Yawanawa, existem outras que foram abertas pelo mesmo
motivo. É costume abrir uma aldeia nova por iniciativa do pai que, já com muitos filhos
e filhas casados, escolhe uma terra que seja boa para as roças e próxima à boas rotas de
caça e pesca.
28
Ao pensar na sua família, também considera que suas filhas irão se casar, ter filhos e o mesmo ocorrerá
com suas netas.
29
Isso ocorreu aproximadamente em 2005.
31
costuma sempre ser citado como um divisor de águas. Aparenta que para os Yawanawa
a realização daquela festa simbolizou uma espécie de “reapropriação” e autonomização
de um modo de existência propriamente Yawanawa, aos olhos dos que assim se
denominam.
30
Samaki refere-se ao lugar onde faz-se as dietas. A palavra possui muito proximidade com a noção
Kaxinawa onde, para estes, dietas são Samaki.
32
tanto do Muka quanto de tantas outras. Aparentemente, a entrada de Hushahu e Putany
para a dieta provocou diversos movimentos nos mais jovens em direção a pajelança,
aumentando exponencialmente a quantidade de pessoas nas dietas após sua
participação. Alguns Yawanawa me falaram que, antes delas terem entrado, ainda havia
certos receios de muitos em passarem pelos sufocos das dietas. Porém, ao terem duas
mulheres entrando e finalizando o Muka com sucesso, muitos se sentiram instigados a
iniciaram as dietas.
Existe uma clara rivalidade entre as duas aldeias, porém esta não se traduz em
violência ou enganações. Cada associação desenvolve seus projetos individualmente,
unindo-se somente por ocasião de questões que envolvem a todos (como a demarcação
de terras, a questão do carbono e etc.). Dessa forma, acabam buscando se diferenciar
uma da outra sob diversos vieses.
Ainda que não possamos afirmar nada sobre Nova Esperança, podemos dizer
que lá há mais aliança com segmentos do mundo dos Nawa32. Inserem-se em uma rede
de alianças muito mais ampla que envolve todo um universo religioso e artístico. O
tempo de existência da aldeia Nova Esperança (cerca de 30 anos) e o de atuação de sua
liderança, Nixiwaka Yawanawa (Biraci), são determinantes neste sentido. No tempo de
abertura do Mutum, Tashka ainda era muito novo e só possuía alianças firmes com a
Aveda. Os projetos que a ASCY desenvolve centralizam-se na Aveda mas, atualmente,
tem se direcionado ao campo da pajelança encabeçados pelo Centro de Cura, o Mariri
Yawanawa e a participação em cerimônias externas.
31
Este registro que engloba a aldeia Nova Esperança foi muito bem catalogado por Aline Ferreira, em sua
dissertação de mestrado em 2012. Sua contagem foi até o ano de 2012. Na minha pesquisa de campo
havia duas pessoas fazendo a dieta do Muka (a filha de Hushahu (Hukena) e um nawa (Txana) que
habitava o Mutum.
32
Este contexto em torno da aldeia Nova Esperança é melhor comentado na dissertação de Aline Ferreira
(2012).
33
maracás, a vestimenta branca, o convite a entidades por meio de estalos de dedo (tal
como na Umbanda), o canto de hinos e a presença de entidades caboclas, ainda que em
poucas cerimônias, são marcantes naquilo que alguns do Mutum afirmam ser contrário
aos modos Yawanawa. Todavia, o problema não aparenta estar nas práticas em si, pois
no contato e nas alianças que possuem fora do Mutum também participam grupos que
praticam ou simpatizam com religiões como o Santo Daime e a Barquinha.
34
beneficiar de toda a estima que muitos grupos sociais pelo globo, engajados em
questões ecológicas e religiosas, possuem pela cultura indígena. Sendo um povo muito
interessado em criar alianças que lhes tragam benefícios, possuem acesso a um público
interessado em conhecer e vivenciar a pajelança Yawanawa. Todavia, este “boom” da
pajelança não tira de cena a presença do protestantismo e de religiões ayahuasqueiras no
contexto Yawanawa. Como comentado, realizei minha pesquisa de campo entre os
Yawanawa da aldeia do Mutum e não estive na aldeia Nova Esperança. Por este motivo,
minhas informações sobre esta segunda aldeia não são primárias. Utilizo-me destas
informações para pensar como se dá a diferenciação entre estas duas aldeias, tendo
como ponto de vista os Yawanawa do Mutum. É importante notar que as lideranças da
aldeia do Mutum calcam-se em valores culturais que não aceitam de bom grado
transformações muito radicais nos seus costumes. Contaram-me, assim, com certa
reprovação que na aldeia Nova Esperança ocorrem rituais que envolvem certo
sincretismo religioso com o Santo Daime e, possivelmente, com a Barquinha33.
Todavia, o novo não deixa de ser muito presente no Mutum, sendo, inclusive, uma de
suas características que os Yawanawa consideram mais demarcar a boa relação com os
brancos.
33
Suspeitamos disso, pois contaram-me sobre “chamados” de entidades não-ameríndias, assim como a
possessão por elas
35
católicos. Posteriormente, durante um longo período sob a ação dos missionários, quase
todos os Yawanawa se converteram ao protestantismo. Mais à frente traremos dados
mais específicos sobre estes dois períodos como a “época da catequização” e a “época
da evangelização”. Todavia, mesmo que lideranças como Raimundo e Tata tenham se
tornado “crentes”, isso não significou um fim para os costumes da pajelança (ainda que
estes costumes tenham sido muito prejudicados). Contaram-me que as respostas cristãs
a diversas questões não era o suficiente. Isso ocorria por haver um entendimento de
“coisas de índio” e “coisas de branco”, como as doenças que podem ser curadas de uma
forma ou de outra (Pérez Gil, L., 1999).
Quando perguntados sobre o que desejavam para o seu futuro, era muito comum
ouvir sobre o desejo de todos da aldeia de serem fluentes na língua Yawanawa, questão
de igual importância quanto o conhecimento sobre as suas origens e sua identidade
cultural. Um dos mecanismos mais evocados para contribuir na continuidade de sua
cultura são o Mariri, as dietas e os cantos, as danças, as brincadeiras, a espiritualidade e
outros costumes, como os alimentares, que compõem estas festividades e processos de
ensino e aprendizagem. Atualmente têm desenvolvido um “Plano de Vida Yawanawa”,
sendo coordenado pela liderança do Mutum Tashka Yawanawa. Este plano, irá conter
tudo o que for considerado mais marcante da sua cultura, incluindo o que desejam para
o futuro de retomada dos costumes e o que precisam desenvolver para que seus planos
sejam postos em prática. O Plano possui uma linguagem de projeto, uma vez que será
utilizado como um guia para a implementação de diversos outros projetos ao longo dos
próximos anos. Estão incluídas questões sobre a língua e manifestações culturais, como
34
Conforme nos foi contado de diversas maneiras, a pessoa só é reconhecida enquanto Nii Peya,
Tsimuya, Xinaya, Rumeya etc. uma vez que tenha posto o saber em prática tendo êxito na empreitada.
Essa característica é melhor dissertada por Pérez Gil que estudou o sistema médico Yawanawa em 1999.
36
danças, brincadeiras, manejo do meio ambiente e também articulações com Yura e
Nawa.
35
Que podem ser cantos, danças, histórias, formas de se guiar cerimônia e tantas outras coisas que seriam
apresentadas como propriamente Yawanawa.
37
também adotava esta forma de estímulo em sua política interna, valorizando a
continuidade das práticas culturais dos Yawanawa. Desde o início das atividades da
Aveda, diversos Yawanawa buscaram entrar para as dietas, uma vez que as condições
de vida na aldeia passaram a melhorar, muito por conta do crescimento da ‘autonomia’
e visibilidade da cultura Yawanawa. O crescimento vespertino da independência
financeira aparenta ter estimulado o sentimento de orgulho, pelas conquistas de seus
esforços, em detrimento da subserviência. Este contexto só foi possível porque
conseguiram, já nos anos 80, a homologação de suas terras. Não possuem problemas
como invasão de terras e nem doenças de dificultoso tratamento como a malária e
coqueluche (ambos foram erradicados da região36). Quando, nos anos 90, Raimundo
Luiz sai da aldeia e vai à Brasília, as relações com os Nawa passaram a ter uma
qualidade de aliança muito distinta daquelas nas quais já haviam vivenciado. Se em um
dado momento os Yawanawa eram dominados ou precisavam dos Nawa, passaram a ter
relações menos verticalizadas, quando estas não chegaram a ser invertidas. O acesso a
um público Nawa interessado em contribuir para que os “índios continuem a ser
índios”, permitiu aos Yawanawa a consolidação de uma sustentabilidade pautada na
continuidade de seus costumes. Quando isso se torna uma realidade concreta, passa a
ser mais interessante adentrar-se nos estudos da pajelança. Isso devido ao fato de que o
“manter-se índio”, tanto na perspectiva Yawanawa quanto na Nawa, envolve as práticas
da pajelança.
Independente das acusações de futilidade que muitos teriam que enfrentar para
iniciar a dieta, é comum referirem-se, tanto os mais idosos quanto os mais jovens (e
todos envolvidos com a pajelança), ao aumento da procura pelas dietas por conta de
motivos e efeitos muito positivos relacionados a elas. Mas nem sempre elas são
consideradas dessa forma. Principalmente por parte das pessoas mais velhas, os jovens
estariam fazendo as dietas para terem certos benefícios pessoais. Ouvi alguns
queixarem-se de que teria muitos jovens que não são Pajés indo à cidade como se
fossem pajés e realizando supostas curas. Entretanto, também não ouvia por parte dos
mais jovens uma autoidentificação enquanto Pajés. Muito pelo contrário, em muitos
comentários sobre cerimônias nas cidades, queixavam-se sobre como, para muitos
Nawa, a noção de Pajé teria uma tradução díspare da noção Yawanawa. Para estes, o
status de Pajé não é conferido só a quem fez a dieta do Muka ou da Saliva. Pelo que
36
Relato de Mariasinha e Julia.
38
pudemos ser informados, quando realizada a dieta do Coração a pessoa se torna
“automaticamente” um Pajé37. Porém, isso não ocorre quando realizadas as demais,
justamente por conta de necessitarem de longos anos de experiência (antigamente, as
pessoas tornavam-se Pajé já na terceira idade) para conferirem à pessoa o status de Pajé.
Uma outra forma disso ocorrer, que possivelmente não ocorre mais hoje, é a pessoa se
tornar Pajé após ter colhido mel da altura das árvores durante uma dieta38. Assim sendo,
temos hoje um contexto no qual os Yawanawa enviam às cidades jovens em formação
para Pajé39 enquanto estes participam das cerimônias guiadas pelos Pajés em suas
respectivas aldeias.
Toda essa profusão das práticas da pajelança só foi possível porque ainda tinham
diversos idosos que lhes garantiam uma memória cultural fundamental para este
“revival”. Ainda que contassem com os Pajé Yawa e Tata, Raimundo Luiz era o
informante principal. Não nos sentimos hábeis para dizer quem possuía mais ou menos
poder no que tange às práticas da pajelança. Entretanto, diferentemente de Tata e Yawa,
Raimundo, além de Pajé, também era Shanai Ihu (líder ritual)40. Por conta disso, era ele
quem negociava as relações com os Nawa. Com seu falecimento, muitos saberes foram
perdidos e somente dois anos antes de sua partida a geração de seus filhos iniciou os
registros linguístico, histórico e cultural. Neste período já ocorriam gravações feitas
pelo Museu do Índio através do ProdoClin, projeto voltado para o registro das línguas
indígenas. Neste projeto, que está para ser concluído41, realizaram gravações,
transcrições e traduções de autobiografias, histórias e narrativas nativas. Hoje o Museu
do Índio conta com um acervo de aproximadamente 32 DVDs com as histórias, as
brincadeiras, costumes alimentares, formas de sustento, objetos produzidos, cantos,
desenhos e diversas autobiografias das principais lideranças políticas e/ou espirituais
yawanawa.
37
Pedimos paciência ao leitor, mais a frente iremos descrever o máximo possível as distintas dietas e
aquilo que influenciam.
38
Nesta situação, realizada durante a dieta do Muka, ao conseguir derrubar a colmeia do alto de uma
Sumaúma e descer em segurança, a pessoa pode tornar-se um excelente Pajé, caçador ou flechador –
ninguém que tenha perguntado sobre isso em campo se lembrava de alguém que tenha realizado esta
provação.
39
Ainda que não ocorra muitas vezes, os Pajé Tata e Yawa já foram por diversas vezes às cidades realizar
cerimônias.
40
As lideranças de menor influência, normalmente atuantes nos assuntos domésticos da aldeia, são
chamadas de Caiania. O termo Chanai Ihu lembra o termo txana ibu, líder do canto, especialista ritual (ou
dono dos japins) dos Kaxinawa (ver Lagrou, 1998, 2007).
41
Na sessão dos Yawanawa do site do ProdoClin (http://doc.museudoindio.gov.br/prodoclin/yawanawa/)
é possível buscar mais informações sobre o projeto. A pesquisadora responsável pelo projeto de línguas
yawanawa, coordenado por Bruna Francetto, é Julia yawanawa, filha de Raimundo.
39
Como comentado anteriormente, umas das principais atuações contemporâneas
dos Yawanawa refere-se ao ensino da língua e dos costumes. Segundo Mariasinha
Yawanawa, na época em que a FUNAI (Biraci já era adulto nesta época, nos anos 80)
contatou os Yawanawa havia entre eles somente 60 pessoas. Junto a diversas ações
realizadas por Biraci, investiram, em caráter emergencial, no aumento da população42 e
retomada da fluência na língua nativa. A parte da memória sobre os costumes, além
daquelas pertinentes ao cotidiano43, que mais recebeu atenção envolvia principalmente
informações sobre a Pajelança. Assim sendo, estas ações que realizaram para darem
continuidade ao seu estilo de vida tiveram um foque inicial na questão da língua e da
espiritualidade. Hoje já existem outros objetivos, como a autonomia financeira e o
desenvolvimento de projetos culturais (que, por sinal, centralizam-se na pajelança).
42
Hoje, somente Biraci, conta com 35 filhos.
43
Como o preparo de certas refeições, o tipo e o modo como a madeira deve ser preparada para cada
finalidade,
44
A CPI-AC é uma conhecida ONG que atua há décadas com as populações indígenas nos setores da
educação e políticas públicas. Foi por meio da CPI-AC, nos anos 80, que a língua Yawanawa foi
transliterada.
45
Nedina era uma das responsáveis quando fui ao Mutum no ano de 2013. Entretanto, em meu retorno em
2014 ela havia se mudado por motivos de casamento. Desta forma, somente Júlia estava à frente da escola
naquele momento.
40
Na época que fiz a primeira viagem ao campo, Nedina e Julia se queixavam da
política estadual de educação. Anteriormente, a “Comissão Pró-Índio – Acre” realizava
cursos para formar indígenas em professores, sob uma perspectiva que englobasse a
cultura nativa na educação. Entretanto, conforme Nedina me falou, já havia quatro anos
que o governo do estado tomou para si todo o direito para formar professores indígenas,
ainda que nestes quatro anos nenhum novo professor fora formado. Já na minha
segunda viagem esta situação aparentou ter mudado um pouco, novos professores
estariam sendo contratados. Todavia, não temos certeza se há cursos mais longos para
estes novos professores, mas sim a execução de alguns módulos básicos de ensino.
Suspeitamos disso porque a escolha dos professores era totalmente baseada na
disponibilidade da pessoa em si, e não na sua formação.
Porém, a cada vez que dedicam esforços para uma ação, parecem sempre
começar a investir em outros campos. Isso se dá por conta da clara interligação entre os
elementos diacríticos dos Yawanawa. Falar de língua é falar de Shenipahu, que é falar
de Saiti, que é falar de Kene e assim sucessivamente. Hoje, por exemplo, os Yawanawa
têm tido um grande destaque pela sua produção artística. Desde o tempo dos
missionários, e antes, eles possuem o conhecimento da existência das miçangas e
sempre desejaram possuí-las. Nesta época, recebiam muito poucas, pois estas
funcionavam como moeda de favores. Hoje eles possuem um acesso muito maior e
demandas claras por miçangas da marca Jablonex (produzidas na República Tcheca),
em detrimento das chinesas (que quebram com muita facilidade e são irregulares na
forma). Os yawanawa vêm desenvolvendo este trabalho há mais de uma década, porém
ele foi muito intensificado após Hushahu ter entrado nas dietas. Conforme Julia me
contou, foi Hushahu quem trouxe duas grandes inovações no que tange o trabalho com
as miçangas. Primeiro em relação aos novos desenhos, principalmente o Awa Vana, que
hoje está em alta, e segundo, em relação à variedade das cores. Segundo Julia, os
Yawanawa usavam somente miçangas pretas (estas eram as principais). Nas mirações e
sonhos, Hushahu, via diversos Kene pintados com as cores mais variadas, contando
inclusive com “dégradés” (que hoje também estão em alta, mas é um elemento
totalmente novo). Hushahu nos contou, como lembraremos a frente, que em suas
mirações e sonhos a sua percepção destas formas e cores acompanhava o entendimento
41
do que queriam transmitir. A partir
de Hushahu, os Kene por ela
descobertos passaram a ser muito
procurados por diversas mulheres.
O sucesso foi tanto que hoje os
Yawanawa aparentam se distinguir
dos demais povos Pano, ao lado
dos Kaxinawa e Shipibo-Conibo,
Figura 5 - Imagem publicitária de luminária do jacaré. pelo seu trabalho com os Kene.
Créditos: AGT - A gente transforma.
Como o trabalho dos seus parentes
Kaxinawa e Shipibo-Conibo, hoje em dia os trabalhos dos Yawanawa têm tido alcance
internacional. Um dos elementos que marcam este sucesso internacional, fora tudo o
que envolve a Aveda e que temos registro é o projeto de luminárias “AGT Yawanawa –
A Força da Floresta”. Desenvolvido pelo arquiteto e designer Marcelo Rosenbaum e
exposto em Milão46, que contava com diversos objetos de lightning design revestidos
com os kene yawanawa feitos com Miçangas. Foi um trabalho feito em conjunto aos
Yawanawa, que faziam as malhas de Miçangas com os Kene a serem aplicados nos
objetos de design. As luminárias fizeram bastante sucesso e suas poucas unidades são
vendidas pela internet para o público internacional ou pessoalmente, na cidade de São
Paulo. Nossa pesquisa não se estenderá aos empreendimentos realizados pelos Nawa
com colaboração dos Yawanawa. Porém, não é difícil encontrar diversos exemplos
divulgados pela web. São negócios gastronômicos, de turismo, de moda e também
outros que envolvem o uso do Urucum (Aveda) e a Pajelança (cerimônias nas cidades).
O leitor poderá encontrar as referências de alguns destes empreendimentos na
webliografia desta pesquisa.
46
A exposição ocorreu na sessão “Espaço Brasil S/A” do Palazzo dei Giureconsulti em Abril de 2012.
42
Observando discrepâncias entre o que já conquistaram e o que precisam para
garantirem a continuidade de seu estilo de vida, criaram, a exemplo de análise, a
Cooperativa das Mulheres Yawanawa, a fim de gerar visibilidade e renda pelos
trabalhos desenvolvidos por elas. Partindo das principais queixas que as mulheres
tinham sobre o cotidiano, sobre coisas que desejavam possuir para facilitarem
determinados trabalhos, Julia desenvolveu a ideia da cooperativa que veio a ser apoiada
pelo governo do estado do Acre. Por meio desta cooperativa, as mulheres produziriam
artigos característicos do povo Yawanawa a serem vendidos aos nawa. Seus principais
trabalhos são feitos com Miçanga.Já realizaram cursos promovidos pela Casa do
Artesanato, ligada a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo do Acre, de
beneficiamento de sementes. Infelizmente só metade do projeto foi executado, faltando
o fornecimento da infraestrutura para o início do beneficiamento. Planejam também
trabalhar com roupas decoradas com os Kene. O tecido seria de origem industrial, uma
vez que, dizem, todos os que sabiam produzir os tecidos de algodão já faleceram. Para
Julia, a troca seria por produtos Yawanawa “tradicionais” e, assim, abasteceriam a
cantina com objetos básicos do dia-a-dia. A cooperativa não iria vender frango,
sardinha, produtos de conserva etc. dentro da aldeia. A ideia visa estimular a retomada
de produção de certos objetos no cotidiano, como o kuki (paneiro) e o txichã (peneira
para coar caiçuma), assim como as lanças, artesanato com miçangas e sementes, vasos
de barro e outros itens tradicionais feitos com produtos naturais.
47
Para irem à cidade, as famílias devem custear a gasolina (R$170,00 para descer e subir o Rio Gregório),
pagar a diária para que o barqueiro espere em Vila São Vicente, no encontro do rio com a BR364
(aproximadamente duas horas de distância de Tarauacá). Além disso, também há o custo de alimentação
na cidade. Em média, as famílias levam uma semana para irem e voltarem. Claro que esse valor total pode
ser dividido, com mais de uma família usando o mesmo barco (voadeira, com motor de poupa).
43
não poderia, conforme as lideranças,
descaracterizar o modo de ser yawanawa e
também Pano. Ou seja, um modo de ser
pautado por relações de captura da
alteridade. Reconhecendo os novos tempos,
a cooperativa busca oferecer às famílias
itens básicos para a continuidade da vida
aldeã que só são obtidos nas cidades. A
distribuição destes produtos não visa
ocorrer por meios financeiros, mas sim pela
troca de produtos. Vender-se-ão produtos
da cultura Yawanawa por meio da
cooperativa que irá, por sua vez, utilizar o
fundo gerado para comprar estes itens de
necessidade básica do cotidiano. Pelo que Figura 6 - Foco em colar de miçanga. Motivo:
Awa Vana e Runu Mapu. Foto por Renan Reis
pude entender nas conversas, as famílias
Yawanawa não iriam comprar os alimentos e os itens da cantina, mas fariam um uso
coletivo, conforme a demanda e a necessidade. Esta lógica não é nova, uma vez que os
costumes das grandes pescarias e caçadas implicam na partilha comunitária do que foi
angariado na empreitada. O mesmo aparenta ocorrer no âmbito da cooperativa.
Ora, fica muito fácil perceber como tudo entre os Yawanawa implica no todo
Yawanawa. Dois polos, a pajelança e o cotidiano48, imbricam-se continuamente
completando ao longo do tempo diversas amarrações entre pontos e caminhos que
estabelecem uma rede que se projeta na alteridade. O fortalecimento das dietas, por
exemplo, promove, de certa forma, a realização positiva de cerimônias nas cidades. Isso
abre as possibilidades de criação de alianças que, por sua vez, podem gerar
investimentos (financeiros/serviços e também de ação prática) em diversos pontos desta
rede, fazendo surgir a necessidade de criação de outros pontos (pois a trama nunca se
fecha). Veremos mais à frente que este tipo de movimento entre elementos diacríticos é
estrutural no sentido de estar presente em diversas ações Yawanawa, podendo ser na
criação de Kene e de Saiti até a construção de relações de afinidade e parentesco
48
Aqui não deixamos de considerar o cotidiano enquanto um campo de ação da pajelança. Realizamos
esta distinção pautados na diferenciação entre os modos de ação. Aquelas conscientemente projetadas
para a alteridade dos Yuxi e aquela voltada para as ordens práticas da vida cotidiana.
44
2.3.3 A arte Yawanawa contemporânea
Em campo, as alusões à arte sempre deram a mostra da sua importância para a
cultura Yawanawa. A arte, como contam diversos informantes, é um marcador
diacrítico dos Yawanawa desde o tempo dos antigos. Diferenciando seus corpos dos
demais povos, os antigos Yawanawa distinguiam-se com a ocultação do nu por meio
das obras de arte. Aqui, desejamos aplicar a noção de “arte” àquilo que me fora citado,
em diversos momentos, como “arte Yawanawa”49. Obviamente, a variedade de objetos
que os antigos produziam se perdeu e hoje restam alguns registros e a memória dos
mais velhos para recorrerem a imagens que lhes possam servir de inspiração para
criação de objetos ou reproduções das imagens. Podíamos ver em campo diversas
amostragens de artigos artísticos que buscavam aproximar-se às produções dos antigos.
Entretanto, este movimento contemporâneo de novas criações e experimentações
artísticas é resultado das ondas provocadas pelos movimentos de Hushahu no contexto
sociocosmológico. Tal como alianças são feitas com pessoas de outras sociedades o
mesmo ocorre com a produção das imagens. Veremos na sessão das dietas e dos Kene
que as imagens são resultados de relações com a alteridade. Tratando-se dos Kene, esta
relação se dá com o campo de existência dos Yuxi. Neste momento, traremos
informações sobre outra espécie de imagem, que se centra em pontos de importância
substancial para o desenrolar desta pesquisa e para a sustentação de nossas hipóteses.
49
Veremos que “arte” pode ser qualquer coisa feita da melhor forma possível, sendo uma noção associada
ao belo e ao bom. Ver Overing (1991) e Lagrou (1996, 1998, 2007, 2009) para uma discussão deste tipo
de estética do cotidiano.
45
Contaram-me que o preto não vinha sendo usado por outros povos, somente para fazer o
contorno de alguns desenhos. O preenchimento de formas com miçangas negras seria
uma marca dos Yawanawa que, junto a tantos outros marcadores, estaria sendo copiada
por outros povos. Além do preto, que sempre fora utilizado pelos Yawanawa, Hushahu
traz de suas experiências visionárias com o Uni50 o uso de diversas outras cores que
nunca foram usadas, além da introdução do “dégradé”. Não somente os novos Kene,
mas também a utilização de uma gama muito maior de cores e formas de dispô-las na
malha são inovações muito valorizadas e incorporadas aos marcadores Yawanawa.
missionários eles tinham acesso Figura 7 - Hushahu soprando Rapé em Matsini com um Tipi.
Foto por Renan Reis.
a poucas miçangas cedidas por
estes. Hoje demandam miçangas de qualidade e já conseguem movimentar um mercado
de pessoas interessadas em investir neste tipo de mercadoria51. Entre suas produções
atuais, destacam-se as pulseiras, caneleiras, colares e tiaras. Além destes, Hushahu tem
criado diversos Tipi52 decorados com Kene em miçangas, dentre diversos outros objetos
decorados com os Kene. Com a intenção de refletir sobre como ocorre a relação entre os
desenhos figurativos e não-figurativos dos Yawanawa, este vem a atender nossa
demanda por exemplos que possam ser elucidativos acerca de formas ontológicas
características dos Yawanawa. Hushahu nos apresenta duas fontes de imagens para que
possamos pensar este tipo de relação.
50
Ayahuasca, em Yawanawa.
51
No projeto “No caminho da miçanga, um mundo que se faz de contas”, coordenado por Els Lagrou no
Museu do Índio, que implica na constituição de grande acervo qualificado de arte em miçanga pelos
povos indígenas brasileiros, Julia Yawanawa foi responsável pela constituição e qualificação do acervo de
arte em miçanga yawanawa (comunicação pessoal Els Lagrou).
52
Aplicador de Rapé.
46
Figura 9 - Trabalho feito a partir de imagens trazidas por Hushahu. À esquerda o Runu Mapu (cabeça da
cobra – sem detalhe do olho) e à esquerda uma forma possível do Awa Vana. Foto por Renan Reis
Durante o campo, pude observar diversos Kene que jogam com a percepção do
observador, mostrando e ocultando formas53. A fama de Hushahu no campo dos Kene se
firmou quando trouxe o Awa Vana e o inseriu na confecção dos trabalhos com miçanga.
A partir da forma da borboleta, Hushahu consegue incorporar as formas da Runua
(cobra) e do Washushaka (peixe). O jogo de percepção ocorre quando o olhar é focado
nos motivos da Runua ou do Washushaka e a forma do Awa Vana é ocultada, ocorrendo
o oposto quando focado na Runua ou Washushaka. Intensificando este jogo, as partes,
tanto da cobra quanto do peixe, podem ser separadas e espelhadas. Parece que o
“abstrato”, enquanto “não-figuração”, está mais para os processos cognitivos do que
para as formas específicas dos Kene. Em suma, a figuração é sempre presente em
diversos Kene. Entre os Yawanawa, os Kene aparentam sempre inspirar-se em formas
encontradas na natureza e, ainda que
possam ser totalmente não-figurativas
aos olhos não-Yawanawa, para os
mesmos são estas relações específicas
entre traços e preenchimentos que os
comunica uma forma ou outra. É
justamente na operação coordenada entre
53
Esta pesquisa dialoga de perto com a pesquisa de Els Lagrou sobre a dinâmica relação entre ocultar e
mostrar nas artes indígenas ameríndias (ver particularmente Lagrou & Severi, 2014 e Lagrou, 2011, 2012,
2014).
47
somando-se em complexidade e detalhes. É possível encontrar diversos trabalhos com
miçangas e jenipapo nos quais estão presentes diversas “partes” de Kene completos. A
asa da Awa Vana pode ser usada sem o corpo, que pode, por sua vez, ser o corpo da
Runua. Também é possível dividir toda a cobra, e colocar a Runu Mapu (cabeça), o
Kate Yuve (costas) e o Shanu Pana (rabo). Ou então o peixe, em escamas e rabo. Estas
figuras também podem aparecer todas misturadas com formas geométricas e gerar um
embaralhado que confunde todas as formas, colocando-as em relação de composição
recíproca. Em outras palavras, uma forma compõe uma outra ao terem seus traços-
periféricos em contato. Ora, vejamos, se é a partir de elementos de menor complexidade
que se contata elementos externos, podemos perceber esta mesma “relacionalidade”
para além do universo dos Kene, como na narrativa das histórias, na construção de
novos Saiti e também de alianças. Ao passo que uma proximidade formal ou de
interesse convirjam, a possibilidade de criação de algo novo a partir de coisas dadas
vem à tona. Veremos que entre os Yawanawa também podemos pensar uma relação
muito íntima entre a produção estética e seu modo de pensar.
É com esta nova profusão de motivos que hoje os Yawanawa têm tido muito
sucesso na receptividade de seus trabalhos pelos Nawa. Durante o Mariri realizado no
Mutum em 2013, praticamente todas as pulseiras, colares e tiaras foram vendidas aos
poucos Nawa que lá estavam. Além disso, eles estão presentes em algumas lojas virtuais
e em certos setores comerciais especializados. Também estão sendo usados trabalhos
com miçanga junto a artigos de moda e alguns desenhos já vêm sendo pintados em
tecido de forma experimental. Veremos que estes trabalhos com os Kene, assim como
com os cantos, as danças, as histórias, os costumes e tantas outras coisas características
do modo de vida dos Yawanawa, são operados por corpos que devem ser Yawanawa,
ou aproximados. Lembremos que os Nawa também podem fazer coisas de Yawanawa,
como cerimônias e dietas. Todavia, aparenta haver um limite para ser ultrapassado para
“tornar-se” Yawanawa, pois assim como a pajelança, as relações de parentesco e de
relacionamentos afins também complementam o que vem a ser um Yawanawa, não
bastando somente saber fazer coisas. Tem que saber fazer gente Yawanawa também!
48
Além dos trabalhos feitos com miçanga, Hushahu também vem criando muitas
pinturas de jenipapo no corpo. Sua utilização atende a diversas finalidades, que podem
ir desde a cura até a identificação do corpo pintado. Em um dado momento, quando
somente algumas idosas pintavam as pessoas (época em que Hushahu ainda era
criança), eram utilizados apenas os motivos da Runua (majoritariamente em homens) e
o Kayania em crianças. Hoje, Hushahu utiliza-se de diversos Kene que compõem
outros. Além disso, ela já vem utilizando figurações humanas e de animais (borboletas e
cobras) em quadros pintados com material industrial e também com urucum e jenipapo
(foto ao lado, com imagem de Tata). Grande parte da força de Hushahu é associada aos
seus desenhos. Entre os Yawanawa, quando o Kene é pintado no corpo humano lhe
transmite sua força. Além disso, os Kene também servem para que os Yuxi identifiquem
estes corpos enquanto não-ordinários,
como corpos dotados de agências da
pajelança. Aqui, como marcadores de
identificação e provedores de agência,
os Kene e os trabalhos figurativos são
movimentadores de relações e saberes.
Em suma, tanto a obtenção de um
saber (seja ele técnico ou não) quanto a
de formas a serem trabalhadas, são
ações projetadas na alteridade que,
aqui, apresenta-se enquanto um campo
de captura de elementos constitutivos e
diacríticos.
49
mulheres na pajelança Yawanawa.
O ativismo de seu irmão, Tashka
Yawanawa, contribuiu para
colocar suas obras em circulação
na cidade de Rio Branco e também
na cidade de Belo Horizonte e
Brasília, pela exposição MIRA!.
Esta ocorreu no Centro Cultural da
UFMG, na Casa da Cultura da
América Latina da UnB e também Figura 11 - "Mulher borboleta", pintura em tela com tinta
acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa. Foto por Renan Reis
no Museu dos Correios de Brasília.
Houve um seminário na abertura da exposição em Belo Horizonte e também na Casa da
Cultura da América Latina/UnB. O seminário levantou diversas questões comuns aos
nossos objetivos acadêmicos. A relação entre figura e ação, sempre debatida nas mesas
que dialogaram sobre a pajelança, é relacionada ao caráter “visionário” destas obras e,
assim, a suas capacidades de transmissão de conhecimento.
Hushahu possui três quadros expostos nas referidas exposições, nos quais mostra
personagens femininos associados às identidades da cobra e da borboleta. O início da
criação de seus desenhos figurativos, como veremos melhor na sessão da breve
biografia de Hushahu, se deu quando realizava a dieta do Muka e ela os utilizou como
forma de mostrar ao seu pai os espíritos que estava vendo. Uma vez identificados,
Raimundo Luiz ensinava a Hushahu o que precisava saber sobre as suas visões.
Todavia, criados os três primeiros quadros, seu pai veio a falecer, levando-a a dar uma
pausa em suas criações. Atualmente, Hushahu retomou as atividades e vem criando
diversos outros quadros. Conforme me dizia em campo, estes trabalhos com pinturas em
tela surgiram para mostrar às pessoas com que tipo de forças e aprendizados ela esteve
se relacionando durante seu processo de dieta. Claramente a marca do feminino é
central nas atividades de Hushahu. Sua produção imagética, de cantos e inclusive de
Nawe (rapé), são sempre identificadas pela sua variação feminina.
50
que empregou na conquista de seus sonhos. E não é só o seu caso que se faz presente no
imaginário Yawanawa de exemplo da força da mulher. Manshivake, uma Yawanawa do
tempo dos antigos que sofria abusos de seu marido e acabou fugindo de sua aldeia
também é outra figura feminina de referência. Pelo caminho que seguiu durante a sua
fuga, foi deixando os Kene gravados nas madeiras, marcando o seu caminho ao longo
da floresta. Esta mesma mulher, era reconhecida pela beleza de seus desenhos e adornos
que fazia. Seu nome sempre é comentado ao falarem da história da beleza da arte
Yawanawa, sendo um grande exemplo de Rauti. Entretanto, diferentemente dos Kene de
Hushahu, os seus não continham força, uma vez que ela não havia realizado as dietas do
Muka e dos Suya.
51
Runua exige do observador concentrar seu olhar em determinado motivo, assim ele verá
a Runua ou a Awa Vana misturadas com motivos geométricos54. Se não focalizar o
olhar, somente verá um conjunto de formas geométricas, apesar de suspeitarmos que o
olhar sempre será capturado por determinado conjunto de linhas ao buscar um centro
organizador.
Existe uma queixa comum dos Yawanawa em relação a certas posturas dos
nawa. Em suas andanças pelas cidades e outros países, costumam encontrar diversas
pessoas praticantes de espiritualidades que dialogam com a pajelança55. Estas, na sua
maioria, entenderiam a cultura indígena sob um prisma não-nativo e incorporariam
elementos da pajelança à sua espiritualidade. Ocorreria, muitas vezes, de usarem
miçangas e substância de formas muito distintas do uso nativo. Um dos casos
emblemáticos utilizados para exemplar isso foi o de Tata, na cidade do Rio de Janeiro.
No local que estava, havia um Nawa com um colar de dentes de onça. A pessoa pediu
para que Tata fizesse uma benção no colar, para torna-lo mais poderoso (supostamente o
colar teria sido benzido por outro pajé). Tata negou fazer isso porque a pessoa que usava
o colar não era pajé e assim desconhecia a força que um colar feito de dente de onça
poderia ter. Diferentemente, o Awa Vana, e mesmo as borboletas in natura não
ofereceriam risco algum. Diferente da cobra e da onça, a borboleta não é considerada
um predador. O que Hushahu conta sobre sua força é que a borboleta seria o único
animal que pousa na cabeça da Runua enquanto ela está levemente submersa para
respirar. Aqui, o que aparenta ser mais frutífero é sua aproximação segura a uma
entidade altamente predatória. Não à toa o Awa Vana, ao que parece, está diretamente
relacionado às noções de belo compreendidas sob a categoria de Rauti. Como dito, estar
Rauti significa estar belo sob o ponto de vista dos Yuxi. Nesta condição, relações de
54
Esta formação entre os Kene não está presente em todos os trabalhos feitos com a Awa Vana e a Runua,
mas sim em determinados trabalhos que observamos em campo.
55
Ver: Aline Ferreira 2012
52
reciprocidade podem ocorrer da sua forma mais positiva buscando, inclusive, afastar
aqueles Yuxi carregados de coisas inapetentes aos Yawanawa. Nestes casos, que
destoam do uso dos Kene em contextos urbanos, o conhecimento sobre o que tratam os
Kene permite a compreensão da composição coletiva. Se a pessoa que observa for
alguém com estudos mais aprofundados na pajelança, fará correlações distintas das que
se poderia ter observando os Kene meramente pelos seus traços simbólicos e
representacionais.
narração mítica também deve ser resguardado, e não Figura 12 - Exemplo de colar (de
tipo muito procurado pelos Nawa).
somente o seu significado mais metafórico. Como se O grafismo é um composto criado
com os motivos da cobra (corpo e
pode perceber, isso vale para os Shenipahu, os Kene, cabeça), borboleta e escamas de
os Saiti e demais cantos, de cura ou não. Isso se dá peixe com geométricos. Artista:
Hushahu Yawanawa. Foto por
porque em um contexto mais aprofundado da Renan Reis
pajelança Yawanawa, os termos utilizados adotam outras espécies de significados e
correlações. Tanto que, no caso de certas histórias e conversas sobre os Yuxi e outros
assuntos pertinentes à pajelança, seriam conversadas, preferencialmente, em Yuve – que
seria a língua da Runua. Hoje, dizem os Yawanawa, somente alguns idosos dominam a
“língua”, que está correndo o risco de desaparecer.
53
Além dos Kene e dos quadros pintados, Hushahu e sua irmã, Putany, também
inovaram na forma de cantar os Saiti. Anteriormente, a sonoridade dos cantos era mais
baixa e fraca do que aquela, alta e forte, cantada, principalmente pelas mulheres, nos
Saiti contemporâneos. Esta mudança rítmica, quando introduzido o violão, gerou certos
tipos de barreiras rítmicas aos Saiti, fazendo com que adaptassem o canto à melodia do
violão. Mas isso não ocorre com os cantos de cura (Muka, Shuinti e Yuve). Estes são
aqueles usados em momentos específicos e para ações diretas. Os Saiti podem variar
entre mero entretenimento até “chamador de força”. Porém, os supracitados cantos de
cura não variam desta forma. Só podem ser entoados ou no estudo ou no trabalho. A
seriedade de seu uso reflete-se também nas prescrições de sua aplicação. Altura, força,
ritmo, andamento e tom são qualidades que não variam. Não se utiliza o Saiti Vanaya,
por exemplo, acompanhado do violão (o mesmo acontece com os outros cantos de
cura). Porém, é por meio destes cantos de maior poder que se aprende e se provocam
efeitos que geram saberes.
Dentre estes efeitos, podem ocorrer curas, visões, limpezas e também alterações
dos estados oníricos e ordinários. Isso só é possível justamente devido àquela lógica
relacional que começamos a dissertar anteriormente. As formas e as coisas constroem-se
simbioticamente à medida que se encontram. Os Saiti, os cantos de cura, os Kene, o Uni
e tantos outros elementos de poder na pajelança Yawanawa sempre caminham juntos,
ao passo que seus “traços-periféricos”, ou seja, seus encontros com outro elemento, são
compatíveis operacionalmente na construção de determinada finalidade. Aqui, aquilo
que é informado pela cultura Yawanawa irá operacionalizar estas relações. Desta forma,
haverá um modo de fazer arte, de cantar, de guiar as cerimônias, de pescar, de casar, de
se ter relacionamentos qualitativamente yawanawa etc. conectados via ensinamentos
xamanísticos Yawanawa. O que se pode perceber, é que todas estas manifestações
artísticas estão imbricadas umas nas outras na mesma forma que tudo está imbricado a
tudo, revelando-se uma estrutura fractal no fazer-se estar no mundo.
54
desta introdução importa-nos, neste momento, pensar a introdução do violão no que
concerne à sua aceitação e viabilidade dentro do espaço cultural Yawanawa. Tal como
ocorreu com o Awa Vana, com a dieta de Hushahu e seu reconhecimento, estas
novidades aparentam ser processadas pelo ponto de vista Yawanawa e distinguidas
entre o que é viável de ser englobado e o que não é. Para se-lo, tem que operar conforme
as normas de qualidade e efetividade nativas. De nada adiantaria utilizar o violão se ele
não somasse nada aos Saiti56. Quando outros objetos musicais vieram a se manifestar
em cerimônias, ou então quando falavam de casos deste tipo, falavam que há um certo
momento em que se poderia utiliza-los ou não, de caráter experimental. O problema
destes outros objetos é sua relação rítmica com o canto. O violão já gerou mudanças
deste tipo nos Saiti, ainda é parte da alteridade e não se relaciona com o tradicional de
forma plena. O mesmo não vale para outros instrumentos, apesar de que hoje há uma
lenta introdução do uso da flauta.
56
O mesmo não ocorreu com o Maracá nas cerimônias e festividades dos Yawanawa da aldeia do
Mutum, porém ele já se faz presente em Nova Esperança.
57
Na edição de 2013 do Prêmio das Culturas Indígenas os Yawanawa, sob representação de Matsini,
foram premiados para realizarem uma oficina de cerâmica e palha.
55
manifestações que buscam criar relações que lhes permitam continuamente construir
marcadores diacríticos para os Yawanawa. Assim, tal como também ocorre nos quadros
de Hushahu, a presença dos Kene aparentam ser a principal forma de marcar a
identidade Yawanawa no corpo em questão.
Não nos fora ensinado em nenhum momento sobre a possibilidade dos quadros
curarem ou adoecerem alguma pessoa, nem provocar-lhe alguma sorte ou azar. Muito
pelo contrário, o campo de ação dos quadros de Hushahu equipara-se àquele que
consideram à própria noção de arte em si. A arte aparenta ser o belo, mas isso não a
preenche de força automaticamente. Estas imagens são saberes e encontros relatados
figurativamente. Todavia, Hushahu realiza suas pinturas sob o efeito do Uni como
forma de fazer formas e caminhos que levam às imagens. Ali ela busca passar sua força
às imagens por meio de sua intenção e desejo para, assim, conferir força às imagens e
poder comunicar ao observador algo a mais que uma combinação estética. Entretanto,
pelo que me relatou Hushahu, acessar esta força e saber associados a estas imagens,
aparenta depender de observa-la em contexto e meios adequados. Por exemplo, sua
exposição em galerias urbanas não ofereceria as condições necessárias para que o
encontro com a força da mulher-cobra (personagem de muitas das suas obras) se
concretize, mas sim para que o observador saiba que a mulher-cobra faz parte da
cosmologia Yawanawa. Em determinado momento perguntei a Hushahu o que os
quadros poderiam fazer ou interferir se estivessem no Shuhu durante uma cerimônia.
56
Para ela, poderiam oferecer um caminho, para se encontrar com aquela força ali
representada. Mas, ainda assim, não bastaria tomar Uni e olhar para a imagem. Seria
também necessário saber o que é esta imagem entre os Yawanawa e o histórico das
visões de Hushahu.
Conta-se que um antigo Pajé falava sobre o surgimento de um povo que viria de
longe para criar boas relações, que ajudariam os Yawanawa a crescerem. Matsini me
contara que estes “bons humanos brancos” não foram nem os patrões e nem os
missionários (os primeiros a conhecerem), mas sim aqueles que criam relações que
estimulam o próprio modo de ser dos Yawanawa.
57
de alianças (Ibid., pp:51). Entretanto, nem todas as alianças existentes partem de um
princípio religioso e/ou espiritual. Isso não eliminaria a possibilidade de que o tema
“pajelança” atravessasse, em determinado momento, as relações criadas.
58
cantos, assim como diversos outros costumes rotineiros no tempo dos antigos, já não
seriam fortes o suficientes para suplantar os desejos e costumes provocados pelo contato
com a cidade e os brancos. Conforme a grande maioria daqueles com quem conversei,
isso ocorreu porque durante muito tempo a identidade indígena fora considerada motivo
de vergonha resultando em auto resignação, fazendo com que os Yawanawa desejassem
ser aquilo que lhes fora apresentado como ideal pelos diversos agentes do mundo dos
brancos (intencionados em acumular dinheiro, converter almas e subordinar pessoas
humanas). Hoje o que ocorre é o extremo oposto! Somente as relações que valorizem e
fortaleçam a identidade Yawanawa são de seu interesse. São os marcadores Yawanawa,
compreendidos pelos Yawanawa sob a noção de tradição, que recorrem
estrategicamente ao relacionarem-se com a alteridade, o diversificado mundo dos
“brancos” (e não tão brancos).
58
Ainda que o pai de Raimundo, o Antônio Luiz, tenha vivido entre os antigos, essa vivência foi curta, de
certa forma. Conforme conta Miguel Carid (1999), Antônio Luiz tornou-se liderança por ter sido a pessoa
a contatar o branco pela primeira vez. O fez aos seus onze (11) anos de idade
59
estar fazendo sucesso em diversos nichos59). Gravaram CDs, apresentaram-se para
grupos estrangeiros, além das performances realizadas nas aldeias. Os Kene já fazem
parte de coleções em design de moda, de lightning design e merchandising em
novelas60. Os Yawanawa também estão presentes em ensaios fotográficos61, campanhas
socioambientais da sociedade civil e vêm sendo considerados um caso exemplar na
promoção da cultura, conforme o linguajar da sociedade civil organizada. Isso ficou
muito claro já na primeira semana de campo, durante o Mariri Yawanawa62 de 2013. Lá,
vimos que representantes da mídia acreana, do governo do Estado do Acre 63, de
instituições de fomento, equipes comerciais e grupos culturais de Rio Branco criam
alianças de reciprocidade com os Yawanawa.
59
Em campo tive acesso aos arquivos de dois CDs gravados aproximadamente em 2008.Também tinha
outro CD (Kanaro), gravado em 2013 por Shaneihu Yawanawa, que conta com videoclipe para a música
Kanaro.
60
Respectivamente, Yawanawa por Laetícia (conheci a empresária responsável durante o campo),
LaLampe (São Paulo) e Ancelmo Gois (colunista O Globo). O link está disponível na webliografia.
61
A exposição da série “Ritos e Ancestrais – Um Fragmento Yawanawa”, da fotógrafa brasileira Talita
Rennó, realizada no espaço artístico Galeria Koi (São José dos Campos/SP) e a exposição “No Coração
da Floresta”, de Marcos Lopes (um dos participantes do projeto da LaLampe na confecção de luminárias
coordenado por Marcelo Rosenbaum, realizada no Galpão Ação Cidadania (Rio de Janeiro/RJ) fazendo
parte da programação oficial da Rio+20.
62
Mais à frente teremos uma sessão específica para falar deste evento. Diferentemente do que o termo
“Mariri” possa denotar em outros contextos, aqui, ao falar “Mariri Yawanawa” estaremos nos referindo
ao evento que os Yawanawa, por meio da Associação Sociocultural Yawanawa, realizam no mês de
Agosto para receber Nawa e mostrar a sua cultura para eles. É um evento etno-turístico.
63
Representado do Cocita Maia, responsável pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Apesar da
notável visibilidade deste movimento yawanawa vale destacar que estes não são os únicos grupos
indígenas acreanos a atraírem a atenção da imprensa nacional e internacional. Os Ashaninka e os
Kaxinawa atraem igualmente muita atenção, apesar de utilizarem estratégias muito diferentes.
64
Claro que há diversas formas de projetos e nem todos são protagonizados pelos Yawanawa, contando
que sua concordância e beneficiamento sejam garantidos.
60
seria o grupo Shãku Bena de Curitiba, nomeado por Fabiano Kaxinawa65 (que já
trabalha no Rio de Janeiro tem alguns anos) e o “Guardiões Huni Kuin” do Rio de
Janeiro (também existem grupos do mesmo tipo em Florianópolis, Porto Alegre e São
Paulo).
A ideia de rede Yawa-Nawa foi trabalhada por Aline Ferreira, que esteve entre
os Yawanawa da aldeia Nova Esperança em 2012. Sua dissertação de mestrado trata
justamente das redes de troca e aliança criadas pelos Yawanawa através do interesse dos
Nawa pela pajelança e dos Yawanawa pela criação destas alianças. Fariam parte desta
rede diversos grupos que possuem em comum o reconhecimento da importância da
cultura indígena para o mundo e buscam criar laços para sua continuidade e também
65
O grupo criado por Fabiano fora estudado por Tiago Coutinho (2011) no contexto do xamanismo
urbano.
61
beneficiamento próprio (como curas). São várias as formas de se pensar e trabalhar com
isso. Consequentemente, são diversos os grupos e as intenções projetadas nas ações de
aliança e parceria empreendidas com os Yawanawa.
66
Esta leitura encontra confirmação na bibliografia sobre neo-xamanismo ou xamanismo urbano
(Losonsczy, 2010; Cavalcanti, 2011; Oliveira, 2012) e também nas informações obtidas durante nossas
incursões em cerimônias urbanas e por meio das conversas com parte do público do Mariri de 2013.
62
do governo, o encontro com desejos comuns às partes. No caso da aldeia do Mutum,
chamada às vezes de “aldeia das mulheres”, muito de sua visibilidade é gerada pela
atuação das mulheres Yawanawa.
67
Que significaria “mãos de muitas mulheres trabalhando”.
68
Este é o nome dele em Yawanawa, que lhe fora dado enquanto estava no campo. O mesmo desejava ser
chamado desta forma.
63
fim de terem vivências espirituais nativas destas regiões. Não buscamos aqui tratar do
interesse das pessoas que investiam neste empreendimento. Além de a comunicação ser
totalmente dificultosa (não falavam nem o português e nem o inglês), buscavam
vivenciar momentos de isolamento e pouca atividade coletiva.
Pudemos perceber que, a Fund Intent trabalha com dois grupos diferentes. Um
deles vai ao Mutum para participar do festival, contando com uma semana de
programação. Estes só participam das festividades e não das dietas. O segundo grupo,
por sua vez, fica um ou dois meses na aldeia fazendo a dieta do Nane69. Em conversa
com o coordenador do projeto, me fora informado que os participantes pagam por um
pacote, que inclui translado para a aldeia, alimentação, guia para as cerimônias e
cotidiano e os próprios benefícios da dieta (que não poderia, por sinal, ser traduzível em
cifras). Em geral, seriam pessoas que se identificam com a pajelança enquanto uma
possibilidade de desenvolvimento pessoal e espiritual, que acreditam, de alguma forma,
que os saberes dos povos indígenas ocupam um papel central na constituição de sua
pessoa.
A aliança criada aparenta ser muito benéfica aos Yawanawa, pois permite que
haja o interesse dos mais jovens a se aprofundarem nos estudos da Pajelança. O
interesse dos Nawa pela pajelança faz movimentar toda esta rede Yawa-Nawa, gerando
outros movimentos no contexto da aldeia de modo a dar continuidade ao tecer desta
rede. Percebemos que a criação do centro de cura pode ser vista, justamente, como um
dos resultados destes movimentos internos gerados pelas relações externas à aldeia.
69
Dieta do jenipapo. Esta e outras dietas serão dissertadas no capítulo 2.
64
O ensinamento dos saberes da Pajelança não são públicos. A dieta oferecida aos
russos é a do Suya do Nane, associada aos ‘verdadeiros conhecimentos’ e ao
desenvolvimento dos sonhos. Todavia, aparentemente tudo o que aprendiam dialogava
mais com as capacidades pessoais do que com técnicas que possam fazer o mal para
alguém ou controlar grandes forças. Conforme é ensinado, principalmente por Matsini e
Hushahu, a vivência, em si, é uma busca por uma conexão com as forças da floresta.
Passar por um regime alimentar, pelo isolamento e ser ensinado diretamente pelos
velhos Pajés já possibilitaria um conjunto de transformações pessoais que valeriam toda
a empreitada.
O retorno financeiro é gerado pela venda dos produtos mais usados durante as
cerimônias70 e pelos valores cobrados pelo serviço. Estas “taxas” geram uma renda para
todos aqueles que trabalham para as cerimônias e para as atividades referentes às dietas
e às curas realizadas, sejam para os russos ou não. Além daqueles que trabalham com a
Pajelança, a Associação Sociocultural Yawanawa também recebe uma taxa para que
possa haver um maior retorno coletivo, uma vez que os saberes ali ensinados não são de
propriedade individual, mas coletiva.
70
Em geral costumam comprar rapé, Ayahuasca, Kapum, Sipa, Tipi, Kuripi e artesanatos com miçangas.
65
em diversos momentos, como uma personagem pioneira na retomada de imagens e
meios de sua produção. Portanto, neste momento buscaremos contextualizar o leitor na
trajetória percorrida por Hushahu nos seus estudos na Pajelança Yawanawa salientando
todo o seu processo de aprendizagem durante a dieta do Muka o que a tornou uma
importante liderança espiritual entre os Yawanawa do Mutum.
Como dito anteriormente, no tempo dos antigos existia uma mulher, chamada
Manshivake, que era casada com um homem muito ciumento, não podia se pintar, se
embelezar e perfumar-se. Contam que depois de uma briga, na qual Manshivake fora
espancada por seu marido por motivos de ciúme, ela fugiu da aldeia e foi deixando os
Kene nos paus caídos pelo caminho que seguia. Esta foi considerada uma característica
marcante e preservada na memória Yawanawa, sendo esta passagem sempre resgatada
para ilustrar a beleza dos antigos, no uso dos Kene, do urucum, adornos e perfumes (que
era a cera do Sipa passada no rosto). Devido ao trabalho de Hushahu de trazer novos
Kene e fortalecer a memória dos mais antigos esta é, algumas vezes, comparada a
Manshivake. Todavia, Hushahu seria ainda mais influente, uma vez que Manshivake
não possuía os conhecimentos da pajelança e nem o controle sobre estas forças que
Hushahu “inseriu” em seus desenhos e objetos produzidos.
O interesse pelo Uni já vinha desde sua infância e nunca cessou. Como
descreveremos mais a frente, Hushahu se preparou por muitos anos para poder entrar
nos processos de iniciação na Pajelança. A fim de participar e ter seus esforços
reconhecidos, Hushahu recorreu à tradição para legitimar seu processo e conquistas.
66
Todavia, não conseguia aprofundar os estudos e trabalhar com as cerimônias
entre seu povo. O principal impedimento fora a resistência masculina e o respeito aos
modos antigos de fazer as coisas. “Se nunca houve mulher pajé, não é para ter”, relatava
Hushahu. As coisas mudaram quando seu irmão, Tashka Yawanawa, retornou dos
Estados Unidos onde foi estudar. Em determinado momento, a esposa de Tashka, Laura,
intercedeu por Hushahu falando com seu marido sobre seu interesse em fazer as dietas e
estudar a pajelança. Sabendo disso, Tashka comunicou a seu pai que ficou surpreso
pelos interesses de Hushahu mas ofereceu apoio. Depois houve uma conversa com toda
a família para que pensassem sobre a questão.
Queriam saber de Hushahu se ela queria mesmo mexer com a planta sagrada
(que é o Muka) e fazer o processo da dieta de um ano. Respondeu que sim. Então
perguntaram: “mas com qual objetivo?” Isso, Hushahu não sabia, mas tinha curiosidade
e vontade de saber das coisas espirituais, da cultura de seu povo, de como curava e
através de seu estudo retomar o que foi perdido. Depois desta conversa, levou-se cerca
de cinco anos para que Hushahu pudesse iniciar a dieta do Muka. Esse tempo era
necessário para seu preparo e para observarem seu comportamento para que não
houvesse dúvida quanto a sua vontade de passar pela dieta do Muka.
Quando chegou a época de iniciar a dieta, foram organizar o lugar onde ela
ficaria reclusa, distante da aldeia. Foi a dona Mariasinha, seu Raimundo Luiz e demais
parentes que organizaram o lugar onde Hushahu ficaria durante todo o processo da
dieta. Neste momento, seu pai anunciou o processo de Hushahu para todas as aldeias,
gerando também conflitos. Umas das importantes lideranças Yawanawa se opôs
fortemente a isso, porque permitir a entrada de mulheres na dieta seria uma forma de
desafio, uma vergonha pra ele e os demais homens. Porém, ainda assim, seu pai sempre
confirmava com Hushahu o seu interesse e seguia com os processos necessários.
Na semana em que Hushahu iria entrar na dieta, sua irmã Putany, após retornar
de Nova Esperança, também manifestou seu interesse em entrar na dieta. Seu marido
mandou devolve-la e quando a mesma chegou ao Mutum quis participar da dieta junto
com Hushahu. Sua irmã teve que negociar com seu Raimundo Luiz e também sua mãe,
que dizia que ela não estava entrando por gosto, mas por raiva. Então, Hushahu, em
defesa de sua irmã, pediu ao Tata para que ela entrasse, pois é ele quem dá a palavra
final sobre quem participa ou não desta dieta. Após diversas conversas entre os parentes
mais próximos, aceitaram a participação de sua irmã.
67
Nessa época, Hushahu não sabia diversos cantos, principalmente aqueles
cantados só nas cerimônias, e não tinha gravações ou anotações para poder aprendê-los
e memorizá-los. Tradicionalmente, tanto os cantos quanto as rezas são aprendidos
estando junto a quem os canta. Hushahu sempre entrava na roda em que as mulheres
iam cantar, junto a Dona Nega71, Lena e Iraci. Quando Hushahu entrava na roda,
algumas das mulheres mais velhas retiravam sua mão e a mandavam ficar com as
meninas pequenas. Elas diziam: “por que tu não vai ficar lá, com as meninas jovem
como você? Deixe só a gente”. Hushahu dizia que queria e precisava estar ali, mas
ainda assim sua presença era negada. Isso não ocorreu durante sua dieta, mas sim
durante a sua juventude. Pelo que pude entender, durante a dieta Hushahu já sabia
alguns dos cantos, os mais cotidianos, simples e fracos de poder, porém aprendeu novos
e desenvolveu um estilo de canto durante o processo (dissertado mais a frente). Dizia às
mulheres mais velhas que ela mesma iria buscar os cantos e que um dia teriam orgulho e
se sentiram honradas por estarem perto dela cantando.
Na época que entrou para a dieta, sua irmã pintou todo o seu corpo, sua mãe
preparou um grande banquete de almoço e fizeram um grande evento que, de acordo
com Hushahu, tinha clima de despedida. Achavam que ela poderia ter muitas
dificuldades para lidar com a dieta, mas diziam que mesmo se morresse teriam uma
história para contar sobre o que ela tentou e não conseguiu, se ficasse viva iria trazer um
tesouro para a espiritualidade Yawanawa. O próprio Tata foi quem abriu os caminhos,
fez o pedido e cavou a batata do pé do Muka. Pegou umas folhas, começou a fazer os
pedidos, depois ajoelhou-se diante do pé do Muka e do pai de Hushahu que estava em
pé com toda a família ao redor. Começou a fazer os pedidos e a cavar a terra no morro,
arrancou a batata e a deu à Hushahu que a comeu e fez seu pedido. Após isso, foram
embora. Deste momento em diante, Hushahu não olhou mais pra trás, para quem a
estava ou não acompanhando. Só sabia que Tata e seu pai, Raimundo Luiz a estavam
acompanhando.
Ao chegarem ao local no qual passaria o tempo de sua dieta, seu pai ficou de
frente a ela e Tata dizendo as palavras em Yawanawa. Porém, Hushahu ainda não
71
No meu campo Dona Nega já havia falecido devido a um câncer. Porém, nas dissertações de Laura Gil
e Miguel Naveira vemos relatos que dissertam de sua importância na comunidade. Dona nega era uma
especialista, uma Nii Peya, das plantas. Esse tipo de especialistas são comuns entre os Pano, entre os
Katukina, que são os mais aproximados linguística e culturalmente dos Yawanawa (além de
compartilharem o mesmo rio) são os Rau (Coffaci de Lima, 2000), entre os Kaxinawa são dos dauya
(Lagrou, 1998, 2007).
68
entendia nada da língua, que era um dos seus maiores desafios na dieta. Já desde o
começo do dia, antes mesmo de comer da batata, não tocou mais na água, no doce e
cortou as relações sexuais. Só podia comer uma banana verde cozida e um peixe bem
pequeno (urucutum) por dia.
Até este momento, Hushahu só conhecia o Uni, mas não o Rapé. Quando se
passou uma semana, Tatá perguntou se ela queria o Rapé e então foi fazer um pra ela.
Não tinha Kuripi72 e nem Tipi73. Para poderem usar o Rapé, Hushahu e sua irmã
quebraram uma caneta para usar como Tipi. Quando Tata soprou em Hushahu a cabeça
doeu, se levantou, começou a correr e a rodar. Hoje, todavia, já tem completo domínio
sobre o uso do Rapé fazendo, inclusive, um que é considerado de excelente qualidade.
O horário em que elas deveriam acordar era às três horas da manhã, depois não
podiam mais dormir. Nesta hora, iam ouvir “histórias”75 e os “cantos sagrados” (modo
de falar sobre os Saiti e outros cantos) até o amanhecer. Quando o dia amanhecia,
levantavam o fogo, faziam uma pequena queimadura na pele com um graveto e usavam
72
É um aplicador individual de Rapé, na forma de um “V”. A extremidade mais fina vai ao nariz e a mais
grossa na boca para soprar.
73
O Tipi é o aplicador no qual uma pessoa sopra o rapé na outra.
74
As pequenas paredes da casa (que só iam até a metade da altura do telhado) eram feitas de palha de
palmeira, ambiente que atrai aranhas, lacraias, cobras e escorpiões.
75
Como forma de valorização e reconhecimento da autonomia e do saber nativo, usaremos os termos
dados pelos Yawanawa a coisas chamadas por outros termos pela literatura etnológica (quando houver
conflitos). No caso, o termo “história” aparece-se como a tradução feita pelos Yawanawa de Shenipahu,
que são o que os antropólogos conhecem como “mito”.
69
a resina do sapo. Depois iam para baixo de um pé de Meyu76, o raspavam e
machucavam a casca. Tomavam o líquido de Meyu bem cedo para que nada pudesse
tocar o corpo, para que não ficassem doentes, para abrir os sonhos e deixar a pessoa
mais forte.
Depois de aproximadamente um mês, seu pai levou uma Mana Runua (jiboia)
para que Hushahu tomasse de sua saliva e fizesse, em conjunto ao Muka, a dieta da
saliva. Ficaram, Hushahu e sua irmã, vinte e quatro horas sem bebida e/ou comida,
somente o Rapé. Nos dias seguintes introduziu-se uma pequena quantidade daquilo que
a cobra come. São pequenas espécies de peixe e roedores, como a cutia. Porém,
alimentos bem pequenos como o curumatã (espécie de peixe) são para serem comidos
em um dia, a cutia deve durar quase uma semana. Fome e sede atravessam toda a dieta,
e são controlados, principalmente, pelo uso do rapé e do Uni em momentos de crise.
70
de pessoa para pessoa conforme suas inclinações pessoais e envolvimento com as forças
da alteridade.
Nesta época, os trabalhos com adornos eram muito pouco realizados. Hushahu
que também se dedica muito a esta atividade, ia à mata com um pequeno pote, pegava
uns pedacinhos de madeira e juntava sementes para fazer adornos. Ia perguntando ao
Tata como eram os colares e pulseiras dos antigos e tentava reproduzi-los.
Nos primeiros quatro meses, Hushahu e sua irmã não eram vistas por ninguém.
Quando ocorria por acidente de alguém os ver, as pessoas jogavam um pano por cima
delas para se cobrirem. Neste período, muitas crianças e adultos começaram a ficar
doentes por ataque dos espíritos que, conforme Tatá, era como uma provação dos
espíritos para ver se Hushahu e sua irmã tinham a capacidade de curar. Começaram a
realizar curas nas pessoas e sempre tinham sucesso, muitas vezes as crianças com febre
ficavam curadas de imediato com o Racuche78.
Depois da ocorrência destas curas, o pai de Hushahu pediu a ela e sua irmã para
que realizassem uma cerimônia no terreiro. Entretanto, devido à fraqueza física
provocada pela dieta, Hushahu acabou desmaiando no caminho. Seu pai ficou receoso e
então falou para Hushahu que não voltasse pro terreiro enquanto não terminasse a dieta.
Porém, a curiosidade da comunidade era muito grande, muitos queriam vê-las e saberem
da dieta. Então Nixiwaka (Biraci) marcou um encontro para que elas fizessem uma
cerimônia na casa delas. Este foi o primeiro encontro com Nixiwaka durante os seis
primeiros meses da dieta. Ao cantarem, Nixiwaka teria ficado muito impressionado,
78
O Racuche é uma técnica de cura na qual o aplicador realiza uma reza enquanto massageia o corpo do
adoecido, depois sopra no alto da cabeça, costas e peito. É usado de forma geral para afastar o que haja de
ruim (físico ou não), caso não funcione utiliza-se de técnicas mais fortes. Em trabalhos com Uni há uma
variação na qual a pessoa que for receber o Racuche sopra, com força, Rapé no aplicador da ténica. Isso é
feito para que o aplicador “veja” o que está atrapalhando e/ou adoecendo a pessoa. Desta forma ele
melhor direciona sua ação, tornando-a mais eficiente (principalmente com a força do Uni).
71
principalmente com o rapé que fizeram79 e perguntou a elas como conseguiram fazer
um Rapé como aquele. A resposta foi simples: “mistério de mulher!”.
Já desde sua infância Hushahu tinha demonstrado aptidões para os Kene. Ainda
que não soubesse, seu pai guardava todos os seus desenhos, mesmos os rabiscos. Após
seu falecimento, quando foram cuidar das suas coisas materiais, encontraram uma pasta
com tudo o que Hushahu havia desenhado. A morte de seu pai a fez questionar todo o
seu trabalho com a espiritualidade e a deixou desgostosa em continuar a praticá-la e a
fazer os Kene. Foi justamente após sua morte que Hushahu fez suas primeiras pinturas
figurativas em tela. As fez para poder mostrar a seu pai, em espírito, aquilo que havia
aprendido. Ainda, por meio dos sonhos, seu pai esteve sempre manifesto. Em um deles,
79
Em campo, Hushahu me contou que o rapé que tinha na aldeia não era muito bom, Foi ela junto a sua
irmã que começaram a coar o Rapé em uma malha muito fina de algodão (como camisas de um tecido
muito fino). O produto final fica de alta qualidade, muito fino e com bastante força. O Rapé Yawanawa é
feito metade com fumo de rolo tostado e macerado com a outra metade de cinzas de Tsunu.
80
Entre os Yawanawa as mulheres tem gosto em cantar em alto volume, utilizando-se majoritariamente
de tons agudos e mais melódicos em relação aos homens.
81
Em campo não vi estas distinções. Nos desenhos corporais os da cobra eram majoritários e não cheguei
a ver nenhum de borboleta. Este era muito presente nos trabalhos com miçanga em conjunto aos desenhos
das cobras.
82
Não conseguimos identificar a espécie da planta.
72
Hushahu estava em sua casa e seu pai chegou e falou: “filha, eu não me despedi de
você, então eu quero vim me despedir de você, você cuide dos seus irmãozinhos e vem
cá, que eu quero te mostrar uma coisa”. Pegou na mão de Hushahu e a retirou de sua
casa. Do lado de fora, tinham pessoas brincando que usavam umas lanças pequenas para
brincar de furar. Seu pai lhe disse: “olha, o que tá vindo pra você”. Daí surge uma bola
de jenipapo translúcida. Novamente, ele disse: “pega e queime, porque é seu”. Hushahu
correu, a queimou e acordou. Disso, Hushahu entende que seu pai não queria que
parasse o que começou. Ele foi embora e deixou Tata para continuar a ensinar a
Hushahu e aos demais interessados em fazer a dieta. Hoje, todos os Kene que Hushahu
faz estão pintados nos corpos das pessoas, sejam eles homens ou mulheres. Para os
Yawanawa, todos os Kene atuais teriam sido redescobertos, de alguma forma, por
Hushahu. Ainda, quando pinta as pessoas com estes Kene, estando na força do Uni,
Hushahu efetua curas e lida com a força nas pessoas, podendo aumentá-las
exponencialmente. Como Hushahu diz, pinta-se em “você”, na “tua” mente e a partir daí
ocorrem as modificações desejadas e sentidas pelo corpo.
Tata chegou a brigar com Hushahu quando via que ela escrevia e desenhava o
que aprendia: “você não pode colocar os nossos segredos no papel, para as pessoas
ouvirem.”, dizia Tata. Todavia, Hushahu continuou a desenhar as imagens que surgiam.
Conforme alguns comentários, Hushahu tinha a necessidade de expor sua intenção, sua
força. Numa postura considerada “feminina” por alguns Yawanawa, Hushahu precisava
falar, cantar e gritar para que as pessoas tivessem contato com a “espiritualidade que ela
trazia83”.
O Awa Vana, que faz muito sucesso nos dias atuais, já é aceito como marcador
da identidade Yawanawa. Ainda assim, enquanto a cobra, a onça, a arara e o japó
possuem forças muito grandes, a borboleta já não os possuiria tanto. Mas a força que
Hushahu recebeu na dieta mostrou a ela o poder e importância deste Kene da borboleta.
Neste período, Hushahu começou a buscar nos sonhos sua fonte principal de inspiração
na feitura dos Kene. Sonhava ser pintada, via Kene em seus sonhos, formas da natureza
e espíritos. Tudo isso lhe servia de inspiração para os Kene. Acreditamos que seja neste
momento da dieta que Hushahu utiliza-se dos resultados deste processo como fonte de
inspiração e criação. Seus quadros são marcados pela presença do feminino, num desejo
83
Esse termo era usado algumas vezes para tratar das coisas que Hushahu trouxe de novo do seu trabalho
na dieta do Muka e da Saliva. Principalmente a forma de cantar e os novos Kene são vistos por alguns
como o lado feminino da tradição Yawanawa.
73
de mostrar ao outro (e principalmente seu pai) o poder desta força que desenvolveu em
sua dieta. Como podemos perceber na sua trajetória pessoal, a questão do feminino
sempre moveu Hushahu no desenvolvimento de seus saberes, como no enfrentamento
do monopólio masculino na relação com o xamanismo, na necessidade de mostrar a sua
força particular, na estilização feminina, assim como nos Saiti, nos Kene e, inclusive, no
beneficiamento do Nawe84.
84
Hushahu conta que na primeira cerimônia de Uni que ela e sua irmã guiaram após entrar no Muka
surpreenderam algumas lideranças com o Nawe que haviam feito. Comentaram que a razão disso se dá
pelo “toque feminino”, que tornou o Nawe bem fino. Antigamente, o Nawe só era usado pelos pajés (num
contexto onde somente homens de aproximadamente 40 anos entravam para a dieta do Muka, muito antes
de tornarem-se pajé - que exige a dieta da saliva e anos de experiência) e hoje, além de ser usado por
pessoas de ambos os sexos a partir dos 13 (treze) anos aproximadamente, também é produzido por
mulheres (os de Hushahu e Hukena são conhecidos como de excelente qualidade, devido as suas forças
aplicadas ao Nawe).
85
Com a Runua se aprende a língua do Rane, o canto de cura Shuinti, o mundo dos yuxi, recebe-se
poderes e estabelece-se uma relação de reciprocidade com..., que sempre envolve uma associação entre
“poder” e “saber”.
74
imagens rende mais do que por palavras. Hushahu diz que estando na força e possuindo
conhecimento, entende-se os Kene de forma mais aprofundada e próxima ao domínio
dos saberes dos Yuxi. Nos quadros são pintados momentos de encontro com entidades
espirituais do gênero feminino.
Hushahu pediu ao Muka para ter conhecimento sobre a força e o mundo. Dentre
um dos resultados do seu processo, Hushahu desenvolveu o trabalho com o Kene. Nas
mirações, os Kene se desenvolveriam e, de seus próprios padrões, fariam surgir outros
Kene e assim sucessivamente86. Para ela, o que a distingue perante outras pessoas, é que
os Kene aparecem em forma e significado. Uma “pessoa comum”, como diriam, mira
com formas abstratas que ao se aprofundar na prática ayahuasqueira, pode mirar com os
Kene propriamente ditos. Entretanto, isso não automatiza a captação dos seus
significados e forças. Aqui, sucede um processo de objetivação que necessita, conforme
dizem muitos Yawanawa no Samaki, do conhecimento da tradição Yawanawa. Como
exemplo desta confluência entre “miração” e “saber” tem-se o entendimento das
conversas em Yawanawa87, dos saiti vanaya e dos Shenipahu. Tudo isso influencia na
significação dos Kene “mirados”.
86
Ver Lagrou (1998, 2007, 2014) para a análise dos kene kaxinawa onde opera uma lógica similar de
motivos que fazem surgir e se transformam em novos motivos, assim como de padrões geométricos de
onde surgem figuras num progressivo processo de aprender a ver através da ingestão da ayahuasca.
87
As conversas que ocorrem durante as cerimônias sempre discorrem sobre o campo da pajelança
Yawanawa. Podem ser conversas de assuntos importantes, ou só recordações de momentos engraçados
vividos em outras cerimônias. Assuntos do cotidiano não são conversados durante as cerimônias de Uni.
75
3 PREPARANDO E APRENDENDO O CORPO
Veremos que durante as dietas as maneiras nas quais se ensina algo perpassam
diretamente pelos mesmos processos corporais de construção (ou fixação) deste
conhecimento. O próprio local, destinado aos que estão fazendo alguma dieta, envolve
regras sobre contato com determinado tipo de coisa ou entidade que pode atrapalhar,
mas nem sempre, todo o processo e, inclusive, a saúde do outro.
76
algum problema que esteja ocorrendo, a busca por respostas às questões pessoais sobre
a vida, espiritualidade etc., a busca por algum conhecimento de cura, o desejo de
conhecer Kene, Saiti e Shenipahu, dentre tantas outras coisas. O Uni, assim, é capaz de
guiar os caminhos pessoais, mostrando as possibilidades futuras e lhe deixando o poder
de escolha e direcionamento da vida. Porém, ainda que uma pessoa possa ter visões
mais diversas e tenha escolhido um caminho pela sua determinação pessoal, não
significa que ela possuirá força. Para tal, deve-se seguir o caminho ofertado pela Runu.
É a cobra quem é a dona deste poder que pode ser gerado na ação do Uni em conjunto
com as dietas.
88
As dietas vêm, aqui, justamente produzir esta reação.
77
Para os Yawanawa, a Runu é vista sob diversas facetas, assim como tudo o que
faz parte do mundo. Quando perguntei à Hushahu sobre a cobra, sobre os modos como
ela se comunica, nos ensina e age em nós ela foi bem enfática em diferenciar a cobra-
bicho e a cobra-espírito. Um dos mecanismos mais utilizados para mostrar esta
distinção é a comparação entre o modo usual dos Nawa se relacionarem com esta ideia
de cobra. Para Hushahu, os Nawa se confundem e acabam sacralizando o próprio
animal, que para os Yawanawa não é sagrado. A cobra em si, esta que vemos na mata,
ela ataca e mata. Não será ela quem irá ensinar as pessoas. Ao mesmo tempo, também
não é, necessariamente, aquela cobra que pode ser vista nas mirações do Uni.
Por diversas vezes fui chamado à atenção para não acreditar no que via, pois “é
tudo miração, não é real”. O mesmo ocorre com visões de cobra em sonhos, se não for
o “sonho de conhecimento”, como se referem diversas vezes, é só uma imagem que
quer falar de alguma coisa89 - e não necessariamente a interação com algum ser
espiritual. Entretanto, ainda que a cobra da mata e a cobra da miração não sejam uma
manifestação explícita do espírito, a Runu não deixa de existir. Ocorre em sonhos e
mirações o encontro com as forças da Runu, mas tudo depende da experiência e do
entendimento sobre os elementos que a compõem. Acessando o saber Yawanawa sobre
a Runu, os seus modos de agir e as formas de se comunicar com ela, cada experiência é
avaliada de modo a entender se a comunicação fora, de fato, com a Runu.
Esta forma Nawa de lidar com a cobra é, para alguns Yawanawa, irresponsável,
uma vez que este pensamento leviano levaria muitos a acreditarem que o uso de adornos
com motivos de cobra tornaria possível a conexão direta com a Runu. Tornar estes
mecanismos da Runu demasiadamente públicos e conhecidos faria sua força dividir-se
89
Quando eu tive um sonho com uma cobra e fui perguntar o que aquilo poderia significar me disseram
se tratar de traição.
78
e, assim, enfraquecer-se. Rotineiramente, de fato, não há problemas em usar os Kene da
cobra em miçangas ou pintados no corpo, mas se isso for feito de forma leviana, fora
dos contextos rituais, ela (a cobra) irá cobrar e colocar a pessoa em provação. O
encontro real com a cobra envolve obrigatoriamente alguma forma de aprendizado, seja
na forma de visão, na forma de poderes e ou na forma de saberes concretos.
Todavia, alguém que não entende a língua e não estiver se esforçando nesse
estudo e na Pajelança, ainda assim poderia até sentir/perceber coisas que são cantadas.
No caso das pessoas que não entendem a língua e participam das cerimônias
esporadicamente, estas podem direcionar seu trabalho conforme sua intenção e
pensamento nos momentos de canto. Mesmo que Tata, Shineya, esteja falando da água
em seu canto, mas a pessoa esteja pensando no fogo, será com a força do fogo que ela
irá dialogar. Um canto que fala de forças malignas, cantado em uma cerimônia para
Nawa projetada para as forças do bem, provocaria experiências com estas forças do
bem. Assim, se a pessoa não entende as palavras, aquilo que elas estão chamando
poderá não interferir na experiência da pessoa. O que interfere é o que se está pensando
e, quanto mais se sabe do assunto menor é a chance de estar tomando Uni sem realizar
uma cerimônia coletivamente direcionada para determinada coisa90. Quanto mais souber
da língua e das histórias, mais poderá contribuir para a realização das cerimônias e
curas.
Como dito anteriormente, não é somente por meio da linguagem falada que
ocorrem os ensinamentos, mas também imageticamente. Em determinados momentos,
questionava Hushahu sobre como ocorria o momento exato no qual o Kene ensinava
algo para ela. Me descreveu que o Kene em si não é o saber passado, mas sim um
caminho para este conhecimento. A relação entre traços, preenchimento e cores destes
Kene, que se manifesta nas mirações, seria capaz de guiar a mente da pessoa por
caminhos determinados a certos lugares do “astral91” que, só por se estar neste local,
aprender-se-ia tudo o que ele é e o significado de todas as suas partes constituintes. É a
própria experiência que ensina, não somente uma informação passada entre dois
agentes.
90
Seria justamente por meio deste “coletivo de intenções” que alguns processos de cura são realizados.
Enquanto o Pajé trabalha, os demais são indicados a direcionar suas intenções à cura do enfermo.
91
O termo é tomado de empréstimo dos Yawanawa que o empregam para falar sobre o mundo espiritual,
da Ayahuasca. Ainda que não tenhamos registro de sua origem no contexto Yawanawa, existe a
possibilidade de influência do Santo Daime.
79
Ainda assim, não basta entender a língua, conseguir “ver”, ouvir cantos e
histórias para dar continuidade aos estudos pessoais na Pajelança. Sempre (ou quase
sempre) será necessário que haja um professor, um guia, que possa lhe passar seus
conhecimentos, o que nem sempre envolve ensinar tudo o que se sabe. Aquele que não
precisa mais ser ensinado será quem ensinará. Tal como ocorre em diversos grupos
Pano (Cesarino, 2008; Erikson, 1990; Lagrou, 1998, Coffaci de Lima, 2000), existe uma
multiplicidade de especialidades nas quais as pessoas podem se apoiar.
***
Em campo conheci Seu Luiz, que é um Nii Peya de idade avançada e muito
reconhecido pelo que entende. É especialista em plantas medicinais e mora na aldeia
Sete Estrelas. Era de um tipo mais reservado e não queria se envolver muito com as
políticas da pajelança. Assim como Antônio e Raimundo, que esperavam alguém pedir
para aprender, o mesmo fez Luiz. Isso não é à toa e não envolve nenhuma forma de
mesquinharia ou egoísmo, mas sim uma forma de resguardo a saberes muito caros aos
Yawanawa que não poderiam ser tratados levianamente.
80
Se por um lado temos a confiança entre professor e aluno, de outro temos a
retidão na relação entre o aluno e o conhecimento. Fazer uma dieta poderosa é como ir
buscar o casamento com uma mulher. Isso porque os Yawanawa consideram que o
conhecimento é uma mulher que deve ser lisonjeada, bajulada e desejada com esforço
pelo iniciando. O praticante deve concentrar sua energia nas atividades da dieta, até que
esta mulher-conhecimento reconheça seus esforços e apareça em um sonho para ter
relações com a pessoa na rede. Esse acontecimento marca o fim da dieta do Muka.
81
apropriação de suas forças na forma de cura ou feitiço não são determinados
morfologicamente, mas sim relacionalmente. Veremos que as relações com seres da
alteridade é prescrita por uma ética de relacionamento e por uma necessidade de
utilização de formas e objetos em contextos múltiplos. Como dissertamos
anteriormente, a utilização do novo para recriação do antigo também se manifesta na
Pajelança tradicional. Nossa hipótese considera possível que um contexto mais rotineiro
da Pajelança Yawanawa não traz, somente, coisas (objetos, cantos, desenhos, saberes
etc.) da alteridade, mas retoma aqueles que deixaram de ser usados devido à mudança
no contexto cultural dos Yawanawa. Dentre elas, o registro e uma espécie de retomada
coletiva no interesse de gerar a continuidade de diversos saberes, antes resguardados na
memória dos mais idosos, salientam os distintos especialistas e, assim, a gama de
saberes de cura e espiritualidade dos Yawanawa. Aqui faremos uma apresentação de
alguns especialistas que nos falaram sobre isso, ao longo do capítulo eles serão
continuamente retomados para elucidarem outras características da pajelança
Yawanawa
Há um tipo de pajé, chamado Rumeya que é conhecido como aquele que tira
e/ou coloca pedra (Rume) na pessoa. Não existem mais Rumeya entre os Yawanawa.
Estes falam que somente entre os Kulina ainda há (os mesmos foram estudados por
Pollock, 1992). A introdução do Rume provoca doenças ou introduz saberes/poderes,
mas pode-se remover a doença (mas não o saber/poder). Tata não é Rumeya mas, ainda
assim, consegue remover a pedra, pois aprendeu isso de um amigo Kulina de seu pai.
Raimundo Luiz nos fora apresentado como “quase” Shineya, enquanto Tata já o
seria completamente. Aparentemente, Shineya é aquele que realiza e finaliza a dieta do
Muka e da saliva da cobra. Todavia, o título só é conferido àqueles que realizam curas e
dominam as técnicas por muito tempo (Raimundo teria feito quase todo o processo, mas
por ter quebrado o resguardo acabou tendo pasma, que é quando as rezas não possuem
efeito). Na aldeia do Mutum somente Tata era considerado Shineya, e o mesmo ocorria
com Yawa em Nova Esperança. Ainda que não tenhamos ouvido falar sobre regras
hereditárias92 do reconhecimento do Shineya, a transmissão entre gerações aparenta
92
Uma pessoa pode ser iniciada por qualquer pessoa, ainda que se priorize parentes. No caso dos
Yawanawa, a transmissão se deu dentro no núcleo familiar de Antônio Luiz (avô de Hushahu). Depois do
falecimento do pai de Hushahu, Tata e Yawa centralizaram a responsabilidade em iniciar as pessoas na
pajelança.
82
ocorrer devido à diferença de idade entre a liderança espiritual e seus alunos mais
avançados (que provavelmente poderiam ser os Shuintia, se dominar as técnicas).
O Shineya, por exemplo, faz a reza na caiçuma para que possa curar doenças
descobertas nas narrativas oníricas. Enquanto o Shuintia está mais restrito em sua
atuação, podendo realizar curas com sopro e guiar cerimônias, apoiando a ação do
Shineya. Também existe o especialista identificado como Yuvehu, que significa “aquele
que possui o amargo”93. Ao realizar a dieta, a pessoa já passa a possuir o conhecimento
que precisa conforme surge a necessidade.
O Yuvehu também seria capaz de ser possuído por Yuxi e falar da origem das
doenças de quem vinha lhe consultar. Conforme a descrição de Pérez-Gil, este é o
especialista nos cantos do Muka, enquanto o Shuintia e o Shineya utilizam-se da reza
chamada Shuanka. Todavia, em campo nos falaram deste especialista, mas nos
informavam que Tata (um Shineya) poderia fazer o canto do Muka (de cura) junto a
outras quatro pessoas. Aparentemente, o Yuvehu não possui esta necessidade, sendo
autônomo. Aquele conhecido como Tsimuya também conseguia o que descreviam
como “receber94” os Yuxi (existe a possibilidade de ser uma prática assemelhada às
realizadas pelos Marubo95), porém suas habilidades envolviam, além dos cantos
também usados pelos Yuvehu, conhecimentos extensos sobre toda a floresta, tanto no
prisma material quanto no cosmológico. João Grande (Pérez-Gil, 1999: 31) fora um
famoso Tsimuya, e o próprio Raimundo teve a oportunidade de presenciar os momentos
de possessão e conhecimento sobre os Yuxi dono de “lotes da floresta” e coisas da
natureza. João conseguia realizar, no mundo dos Yuxi, assim como os xamãs entre os
Kulina (Pollock, 1992), uma projeção e trazer da floresta varas de queixadas para serem
caçadas.
93
Entre os Kaxinawa o xamã, “aquele que possui o amargo”, que pode lançar e extrair dardos invisíveis
patogênicos, é chamado de mukaya (muka significando amargo (ver Lagrou, 1998, 2007; Kensinger,
1995, e.o.). Yube, por outro lado, é o nome tanto do espírito da jibóia/anaoncda (duanuã), quanto da lua.
Vemos deste modo que o universo xamanístico pano possui muitas correspondências e variações
interessantes (ver Lagrou, 1007; e Coffaci, * para o universo xamanístico Katuquina).
94
Aqui o sentido deste “receber” ainda nos é confuso, pois em alguns momentos descrevem tal como uma
“possessão” e em outros explicam que os Yuxi falam por meio do Pajé, mas não “possuindo” seu corpo e
comportamento.
95
Ver Cezarino, 2011).
83
falecimento de todos o papel de Pajé aparentemente foi direcionado ao Shineya. Como
Pérez-Gil suspeita (ibid.: 38), o título Pajé parece ser conferido àqueles com maiores
poderes e conhecimento. Contemporaneamente, trata-se de Tata e Yawa, antigamente
eram João Grande e Antônio Luiz.
***
O momento que marca o fim das dietas do Muka e da Runu é o sonho que se tem
com a Vana. Existem diversas formas de se referenciar a este ser da cosmologia
Yawanawa. Vana da Runu ou Vana do Muka, ambas são a mesma entidade, porém
diferenciam-se na sua manifestação durante a dieta do Muka ou da Runu. Durante o
desenvolvimento das dietas, a Vana se agrada com a beleza (conforme as noções
Yawanawa, o belo está associado ao tradicional), vista como marca da “verdadeira
espiritualidade”. Se a pessoa fica a vida inteira fazendo dieta mas nunca tem o seu
encontro com a Vana, é como se nada no processo tivesse tido efeitos profundos.
Porém, o encontro pode vir até mesmo antes do previsto, em alguns casos especiais.
Hushahu descreve esse encontro da seguinte forma:
96
Uso aqui um neologismo cunhado por Lagrou (1991) no seu estudo sobre os Kaxinawa.
85
água e comida, substituídas pela força e luz do Uni, que se enfraquece o corpo e
fortalece o espírito.
***
Aparentemente, ter o Muka é uma condição para a obtenção de todo saber e toda
técnica de grande abrangência e eficácia. Em conversas com Matsini, fui informado que
97
Na primeira ida a campo, Hushahu passou muito tempo doente. Ficou internada na cidade de Tarauacá
e só deixou de sentir as dores que tinha quando sua filha, Hukena, utilizou o Racuche na região do baço.
86
todas as medicinas e rezas foram recebidas durante diversas dietas, mas aquelas que
envolvem as forças do mundo da Pajelança perpassam o Muka (o amargo já perpassa
todas as dietas, variando em grau). Qualquer pessoa que esteja em alguma espécie de
dieta e utilizando-se de plantas de poder (Rapé – Nawe – e Uni – o sapo também é
usado sazonalmente) fica, momentaneamente, com o corpo fraco e o Yuxi forte. Ainda
assim, o que se acumula durante a dieta do Muka nunca se esvanece.
No contexto das dietas, há uma importante regra que diz respeito à partilha de
itens e alimentos e que tange todo esse processo de acumulação de substâncias. Não é
permitido aos que fazem dieta compartilhar comida com pessoas que não estejam
fazendo dietas. Além da comida, o mesmo ocorre com o Nawe e o Kuripi. Dividir a
comida durante certas dietas pode fechar os sonhos e, por ser a fonte primária de estudo,
a dieta seria prejudicada. Pode ocorrer de não fechar totalmente, mas atrapalhar e gerar
confusão no aprendizado. Isso se dá pela partilha das energias pessoais. O caso da
comida e do Nawe podem ser relativizados em alguns momentos, quando
compartilhados com outras pessoas que fazem a dieta. Já no caso do “Kuripi da dieta”
não, somente aquela pessoa pode usá-lo. Compartilhar com outra pessoa meche com o
seu Muka, e assim seus sonhos e efeitos do Nawe. Usado para dar força à intenção,
como para estudar, para curar, para tirar pensamento ruim, para trabalhar e assim
sucessivamente, não pode ser compartilhado indevidamente, pois perde seu efeito
impulsionador e funcionaria somente em seu espectro fisiológico.
98
O nome do mito é Puya Hunihu. O mito se encontra também entre outros grupos pano, como os
Kaxinawa, onde se chama de xanka huni, “o cipó leve” (Lagrou, 1998).
99
Explicar esta noção nos conformes ayahuasqueiros.
87
diarreia. No tempo dos antigos, conta-se que as pessoas que exageravam caiam no chão
e saia sangue de todos os seus orifícios. Quando isso ocorria, os pajés faziam um
trabalho para dominar e retirar esta força que provocava o desmaio e o sangramento.
Todavia, mesmo que a pessoa retornasse à consciência ainda estaria “diferente,
transformada”.
Tendo o seu corpo devidamente preparado para esse tipo de ação e realizado
muitos estudos, a pessoa que está mais avançada na dieta consegue direcionar a força do
Uni conforme sua intenção e realizar os trabalhos que deseja durante a cerimônia.
Podem ser as rezas do Suya, os cantos do Muka ou, até mesmo, para poder sentir e
aprender com a força da lua, estrelas ou qualquer outra coisa. Para os Yawanawa, tudo o
que existe no mundo possui Yuxi, e é daí que vêm as forças e com elas o aprendizado.
Até mesmo os objetos dos Nawa possuem Yuxi e podem ter suas respectivas forças
usadas por quem a canta.
Ultrapassar estes limites do corpo, que são estendidos ao longo da dieta, poderia
provocar o falecimento, porque o corpo não possuiria esta estrutura, por isso a
necessidade de prepará-lo. Este processo implica conhecer a si mesmo e assim saber
sobre o mundo e como agir nele. Conforme Matsini:
100
Noção de Pierre Vernant apropriada pela etnologia, primeiro por Manuela Carneiro da Cunha (1978) e
depois usado com frequência para dar conta do conceito indígena de espírito/alma. Ver p.e x. Lagrou
(1998, 2007) para uma análise do conceito yuxin na sua relação com o conceito de duplo.
88
“Porque o corpo, o nosso corpo, as coisas que têm dentro, elas não são
coisas simples. Uma coisa entrou dentro de você, por alguma coisa.
Outra saiu, por causa de alguma coisa. E o corpo humano é uma... é
uma... é muito forte pra trabalhar com ele. Nós mesmo, pra trabalhar
com nós mesmo. E dentro de nós... alguns sábios, que estudaram. Eles
falam, que nós, nós somos nosso maior adversário, nós mesmos. Nós
temos que vencer nós mesmos, pra nós poder entender as coisas.
Como é que nós vamos vencer nós mesmo? Como é que vamos
estudar nós mesmo? É ver todas as... a forma e na força você pode
fazer isso. “
Beleza e limpeza também aparecem associadas no processo de adaptação do
corpo para o universo sociocosmológico Yawanawa. As ditas limpezas podem ocorrer
durante as cerimônias em diversos momentos de extrema profundidade subjetiva para a
pessoa, fazendo-a experienciar diversos tipos de sentimentos, reviver momentos do
passado e se encontrar com “verdades” e domínios extra-humanos. Algumas vezes, as
pessoas podem ter estas experiências de forma negativa, ficarem presas em pensamentos
racionalistas, ter sensações físicas de enjoo e/ou doença ou ter sentimentos de ordem
negativa, como o medo e a loucura. Nestes momentos a pessoa pode recorrer a algumas
coisas, como um Racuche, se concentrar e cantar os Saiti, defumar o Sipa, usar Nawe ou
então, de forma involuntária, realizar limpezas. Estas, por sua vez, podem ocorrer por
diversas vias e sempre se relacionam com a escatologia do corpo humano. A forma mais
comum (e aparentemente a mais eficiente) de limpeza é o vômito101. Sua finalidade é
colocar coisas ruins para fora, um momento onde energia e materialidade imbricam-se
sem anular suas distinções. O que se põe para fora pode ser uma cura do corpo, a
liberação de um sentimento ou sensação ruins, efeito muito forte do Uni, ação de algum
Yuxi ruim, a libertação de pensamentos desviantes e assim sucessivamente. Na
esmagadora maioria dos casos de vômitos, as pessoas se sentem muito melhor depois
que ele ocorre. A limpeza por vômito e defecação é mais comum com o Uni, mas pode
ocorrer também com o Nawe. Para isso ocorrer com o Nawe, seus efeitos devem ser
intensos, no qual a força do Nawe obriga a pessoa a ficar de repouso, esquenta seu
corpo e provoca sensações de tonteira, principalmente mantendo-se de pé102. Já com o
Uni não depende da sua força. Eu mesmo tive limpezas sem ao menos estar sentindo o
efeito do Uni, que vim a sentir após ocorrer o vômito103. Por fim, espera-se que a
101
A limpeza também pode ocorrer por meio da defecação e flatulência.
102
Na aldeia falavam “cair no rapé”, “derrubado pelo rapé”, que é um modo para se falar da pessoa que
usa o rapé e não consegue mais se levantar devido à tonteira e sensações fisiológicas de seus efeitos.
Além da tontura, ocorre muita expectoração e um calor muito grande no corpo. Em geral, quem “cai no
rapé” fica deitado no igarapé até que o calor e a tontura se esvaneçam.
103
Mais um efeito da limpeza, que retira aquilo que atrapalha a entrar na força.
89
limpeza torne o trabalho ainda mais belo, pois é assim que são identificados os
trabalhos que mais dão certo.
Na língua Yawanawa, Tsimu significa amargo105 e está, como, por exemplo, para
os Kaxinawa, Marubo e Katukina (respectivamente, Lagrou, 2007: 320; Cesarino, 2011:
53; Coffaci de Lima, 2000), associado ao poder próprio da pajelança e aos Yuxi. Há,
portanto, um tipo de pajé chamado Tsimuya. Diz-se que este pajé “possui amargo”, que
seu “pensamento é amargo”, que “ele é amargo”. É um tipo de pajé especializado em
fazer coisas ruins com a própria força do pensamento. Estes pajés conseguem, dizem
Hushahu, Tata, Matsini e tantos outros, matar uma pessoa só pensando em como ela vai
morrer. Comem da pimenta para dar mais força à sua intenção e pensam no que querem
fazer. Ele também pode realizar rezas, como para retirar alma. Um antigo pajé chamado
Shanupahu, muito reconhecido pelo seu poder, tinha a capacidade de retirar a alma de
uma pessoa com canto. Seu poder era famoso, pois conseguia realizar seus trabalhos
mesmo sem comer da pimenta. Não à toa aquele tipo de Pajé reconhecido como o mais
poderoso está diretamente associado ao amargo e suas substâncias, pois são as
substâncias de poder por excelência.
104
Sabemos que o conhecimento possui relações com o sangue. Infelizmente não pude aprender sobre
esta relação, nem qualquer outra coisa sobre o sangue além de sua materialidade. Este conhecimento,
suspeito, está resguardado aos iniciados. Sendo o sangue um veículo de conhecimento, e este é análogo a
poder, com toda a certeza possui poderes de importância, é ele quem tem que ser amargado. Ver Lagrou
sobre conhecimento e sangue entre os Kaxinawa (2007) e Belaunde (2006) para um estudo comparativo
da relação entre sangue e pensamento entre os povos ameríndios amazônicos.
105
Meyu também significa amargo. Mas, nesse caso, só trata do aspecto gustativo.
90
distinguem. Ainda, estas substâncias só poderiam ser assim por serem amargas. Nunca
haveria alguma bebida doce que pudesse carregar força106.
3.2.1. As substâncias
Considerando-se as substâncias removidas do corpo, fica fácil perceber que
pensa-las enquanto força é cabível entre os Yawanawa. Em todas as dietas abdica-se
totalmente de qualquer coisa que for doce e, com exceção das dietas do Uni e do
Kapum, a água também é totalmente vetada. Somente se consume um pouquinho de
caiçuma na parte da manhã. Além disso, também interrompe-se qualquer intercurso
sexual e diminui-se drasticamente a quantidade de comida. Objetiva-se secar o corpo,
deixa-lo bem magro. Estar neste estado implica que no campo espiritual desenvolve-se
muita força em seu Yuxi (veremos mais à frente que este Yuxi potencializado pela forças
das substâncias amargas configurará o Muka da pessoa em questão). Todavia, não basta
à pessoa estar muito magra, pois um gole sequer de água a torna comum, o sexo coloca
para fora a força acumulada ao longo da dieta, a comida atrapalha os sonhos, os
trabalhos nas cerimônias e faz o corpo cheirar ainda mais mal para os Yuxi e, o doce,
106
Ainda que o mel seja largamente referido nos mitos, não encontramos referências sobre seu poder para
os Yawanawa. Na verdade, durante uma conversa, descobri que o mel pode deixar alguém “na força”.
Neste caso, não é força da Pajelança, mas sim embriaguez após um grande consumo de mel (como faziam
antigamente nos Mariri).
91
por sua vez, retira a força daquilo que foi pedido que se desenvolvesse. As rezas não
surtem efeitos, o Racuche não cura, os Kene não geram força e assim sucessivamente.
Durante as dietas, por estar envolvido com as forças das substâncias, a pessoa
consegue produzir, por exemplo, um Nawe diferente. São as forças projetadas pela
intenção de quem o faz que podem distingui-lo de outros que veio ou virá a fazer
quando não estando em dieta. O Nawe pode ser feito de diversas maneiras. Conta-se que
nunca se faz o mesmo Nawe, e o que mais importa na sua confecção é a quantidade do
tabaco e do tsunu associados ao seu pensamento e intenção na hora de fazê-lo. Quando
fiz um, seu efeito não aparecia imediatamente após o sopro, mas sua força vinha
momentos após, de forma progressiva. Ouvi de algumas pessoas que esse tipo de Nawe
não é fácil de fazer, que alguns tentam mas não conseguem. Entretanto, nestas mesmas
falas percebe-se não se tratar de um domínio ou jeito técnico, mas sim que nunca se faz
um mesmo Nawe. É provável que os próximos Nawe feitos por mim não sejam iguais e
que eu tenha muitas dificuldades em fazê-lo novamente. Porém, o fato de estar fazendo
a dieta no momento que fiz o Nawe pode, para os Yawanawa, ter influenciado neste
resultado.
92
participam das cerimônias que ocorrem, preferencialmente, dia sim e dia não. Há
também a possibilidade de se tomar Uni fora das cerimônias, de forma privada para
estudar ou informalmente em grupo. Aqui, estudar é cantar, aprender a língua, conhecer
Shenipahu e aprofundar o saber sobre a força. O papel do Uni aparenta tornar físico este
saber imaterial quando o torna visível e possível de ser sentido durante as experiências
“sinestésicas”.
3.2.2. As dietas
As dietas são processos nos quais os praticantes preparam seu corpo para
determinadas finalidades. Elas podem ser as mais plurais, atendendo aos objetivos de
obtenção de conhecimento, poderes e também para a cura de doenças inerentes ao
universo da pajelança. As conclusões de Laura Perez Gil (1999) sobre o sistema médico
Yawanawa nos parecem corretas, uma vez que as práticas da pajelança não são capazes
de curar todas as formas de doença. Em suma, qualquer sistema de cura, seja ele
oriundo da biomedicina ocidental, das práticas protestantes, do universo da pajelança,
assim como também conhecimentos originados pelos seringueiros, são usados para se
obter a cura das doenças inerentes ao sistema médico em questão. Entretanto, existe um
certo movimento de introdução de saberes no mundo da pajelança. Podemos tomar
como exemplo diarreias patológicas107, mas pode ser curada com a utilização do Rapé (e
sua diarreia de limpeza).
Para os que fazem dieta pela primeira vez, os primeiros resultados aparecem
muito devagar. Não basta entrar na dieta para se ter visões e aprender com elas. Ainda
107
Provocadas por alimentos, adoecimento, feitiçaria, etc.
108
Outro termo utilizado pelos Yawanawa ao se referirem às práticas tradicionais da pajelança.
93
que não ocorram, isso não significa que o Uni possa estar sem efeito, pois nem todos
são sensoriais. Este primeiro momento demanda que se estude a si mesmo, o que se
deseja e também a reflexão das ações que cometeu ao longo do dia. Para os Yawanawa,
o Uni dá conhecimento àqueles que merecem pelo seu trabalho, que tem como um dos
seus resultados o conhecimento de si mesmo. Considera-se que a pessoa em si não
perceberá o seu progresso durante a dieta, mas sim outra pessoa. Será o outro quem verá
o quão magro se está e o quanto funcionam os seus aprendizados (afinal, do que
adiantaria saber uma reza se não há cura?). Importante lembrar que, aparentemente, não
há uma espécie de conteúdo programático prévio em relação aos estudos dentro da
dieta. Existem sim coisas específicas que sempre devem ocorrer, mas o direcionamento
do estudo varia tanto quanto variam as intenções para a realização da dieta.
94
será colhido sempre. Para tal, o que o Muka exige é a boa feitura de sua dieta. Nenhuma
força virá cobrar alguma coisa.
Relembrando a história das cobras pajé, Matsini compara a busca das cobras
(evento contado em Shenipahu) nas suas dietas para ilustrar a possibilidade de haver
múltiplas finalidades para a realização das dietas. Em seus processos, as cobras
desenvolveram a força do veneno e, como era de se esperar, o resultado fora expresso
no corpo e nas suas capacidades fisiológicas. Esse caso salienta o poder da intenção
entre os Yawanawa, uma força capaz de criar uma realidade conforme seus
direcionamentos. E não é justamente isso que ocorre na relação substância-corpo?
Partindo de um pensamento “substancialista”, cria-se aqui um corpo conforme os seus
campos de atuação. Ao fim da dieta é normal a pessoa se sentir fraca. Todavia, o
conhecimento e o poder fixam-se no corpo da pessoa e nunca mais saem dali. A partir
do fim da dieta pode-se consumir carne vermelha, doce, água e ter relações sexuais.
Ainda, há muitos relatos de pessoas, desde os tempos antigos, que mesmo após a dieta
não voltam a consumir doce e até mesmo água. São pessoas que se tornaram
reconhecidos Pajés (ao que tudo indica eram Yuvehu). Aqueles que se aprofundam nas
práticas da Pajelança costumam se preocupar com o excesso de coisas doces. Mesmo
fora das dietas, o amargo ainda é a substância guia de poder. Ter um corpo amargo
permite que a pessoa seja circundada pelas forças da Pajelança109.
109
Também é possível compensar o doce, por exemplo, com bastante uso de Nawe e pimenta.
110
Como do Uni, Kapum, Nane etc.
95
serem uma etapa na formação de um Pajé. Já a dieta do coração da cobra, também
entendida como um sacrifício, exige que a pessoa cace a cobra, coma de seu coração e
inicie a dieta que irá durar um ano111. Esta dieta não é prerrogativa para tornar-se
Yuvehu.
111
A dieta do coração da cobra foi igualmente descrita por Lagrou para os Kaxinawa (1998, 2007) como
sendo uma dieta que inicia homens e mulheres que querem se tornar mestres respectivamente nas
capacidades agentivas específicas para seu gênero.
96
consequências das quebras dos resguardos recaem sobre a própria pessoa. Na fala de
Matsini:
- Você quer ter sonho. Você quer se encontrar com o quê? Então,
tudo você escolhe, pra você estudar. E a partir de quando você tá
estudando, num objetivo, aí você é todo esse... esse... esse teu
sacrifício, que você tá fazendo, ele tá te ajudando dentro de você. Pra
você entender. O.. eu... eu já conheço várias, várias dietas. Eu já
participei de alguns encontros, onde as pessoas falam de dieta. A
nossa dieta... e já vi também, que tem pessoas que usam a força, tipo,
você não estuda o que você faz, mas você fica ali... não escravo, você
fica dependente de uma força, por exemplo, tem pessoas que
sacrificam animal, tem pessoas que tem um horário pra encontrar com
essa força espiritual, pra você crescer mais. O nosso Yawanawa, você
não... você, tipo não... todo sacrifício que você faz é durante a dieta,
só. Depois que você terminou a dieta, você é uma pessoa livre, você
pode fazer o que você quer. Se você fizer uma coisa errada, você é
consciente do que você tá fazendo. (Matsini; gravação de campo)
Atualmente, a dieta do Muka tem estado em alta. A procura por ela, tanto pelos
Yawanawa quanto pelos Nawa, aumentou muito desde a época que Kuni entrou pra
dieta (Oliveira, 2012: 100). Kuni iniciou sua dieta junto com um americano
representante da Aveda e desde então diversos Yawanawa e Nawa procuraram a dieta
do Muka pelos motivos mais diversos. Em campo, contaram-me que na média os Nawa
que entraram para o Muka não buscaram o aprendizado e as técnicas da pajelança112.
Ocorre de aprenderem os Saiti e a fazer o Racuche. Todavia, não costumam aprender as
coisas mais profundas da pajelança, como as línguas e rezas de profundo poder. Na
contemporaneidade, as razões para se fazer a dieta do Muka se tornaram plurais e, junto
a isso, trazem questões distintas ao contexto Yawanawa. Aceitar ensinar a pajelança
envolve uma relação de confiança, uma vez que a conferência de poder à outra pessoa a
torna um adversário em potencial. Por conta disso há uma preferência em ensinar tais
coisas aos parentes. Suspeitamos que as dietas feitas com pessoas de menos confiança,
como Nawa que estão somente de passagem113, sigam o procedimento ritualístico do
cotidiano, mas não necessariamente envolvem as transferências de poder e
conhecimentos de maior importância. Muito devido ao longo contato e a atualização de
diversas atividades tradicionais, os Yawanawa acabam colocando em diálogo certas
experiências que no tempo dos antigos nunca poderiam ter ocorrido. São novos
contextos que devem ser compreendidos e trabalhados.
112
Txana e Shuhunawa são claras exceções. O desenvolvimento da dieta de ambos, assim como os
saberes demonstrados, foram reconhecidos por todos os envolvidos em seu aprendizado.
113
Este quadro muda, no entanto, quando há alianças duradouras e casamentos interétnicos em jogo.
97
Os antigos só comiam o Muka com cinquenta anos pra cima. A pessoa já havia
tido toda uma experiência de vida e já teria realizado tudo o que precisava para a
continuidade da vida de sua família114. Diversas vezes nos fora comentado que é comum
que as pessoas entrem nas dietas por sentimentos de raiva, e isso é de certa forma visto
positivamente. Quando carregado por esta vontade, espera-se que a pessoa se empenhe
ainda mais na execução da dieta.
114
Nesta idade, espera-se que os filhos e filhas estejam casados e com filhos. Entre os Yawanawa, quanto
mais velha a pessoa for, de mais trabalhos pesados ela será privada. Em suma, não há mais outra pessoa
que dependa totalmente dele.
98
minha dieta e fui acompanhado pela filha de Hushahu, Hukena. Naquela época, ela
estava fazendo a dieta do Muka e ir à cidade envolvia, obrigatoriamente, um problema.
O mais imediato tem relação com a alimentação e a bebida (como álcool e refrigerante,
por exemplo), pois neste contexto estão mais sujeitos à tentação alimentícia da cidade e
não é possível produzir caiçuma115. Além disso, há interferências no campo relacional.
Idealmente, a pessoa que faz a dieta do Muka deve ter o mínimo possível de contato
com outras pessoas, pois é um momento de maior sensibilidade às forças externas e
também de menor controle sobre a ação pessoal na alteridade. Quando se está na cidade,
torna-se muito mais difícil estudar os Shenipahu, os Saiti¸ e os Kene. Os saberes falam
da natureza envolvente e dos seres que nelas habitam. O contato entre o meio
envolvente e as formas Yawanawa de ser é o “setting” necessário para a continuidade
das dietas. Nelas, aprende-se que o que se coloca no corpo (seja material ou não)
influencia todo o processo.
Isso só fortalece a hipótese de que a realização de uma dieta não tem como
finalidade única o desenvolvimento de conhecimentos e saberes aprofundados na
Pajelança Yawanawa. Existem vários tipos de dietas e sua grande maioria são
destinadas a resguardos para cuidados especiais com os filhos, como parte de um
processo de cura ou do que podemos compreender como construção corporal116. Ainda
que todas aparentem buscar alterações corporais (e assim mentais), nem todas se voltam
à compreensão do contexto sociocosmológico que explica e dá sentido a estes
processos.
99
criou (como ocorre no caso de Hushahu). As dietas mais simples podem ser feitas
diversas vezes e, em geral, buscam atender a desejos mais amplos, além de ser uma
forma introdutória de praticar a Pajelança Yawanawa.
118
A pessoa empanemada é aquela que não tem disposição de fazer nada, fica o dia inteiro na rede sem
vontade para cuidar da roça e fazer nada além de ficar deitado. Em campo cheguei a ouvir comparações
entre panema e depressão (na leitura da biomedicina).
100
Em campo, aprendemos sobre três tipos de dietas “do Suya”, como falavam.
Infelizmente estamos longe de explorar em profundidade os significados do Suya.
Todavia, conseguimos compreender que uma pessoa possui o Suya quando é passado
por alguém que já o possuía. Essa passagem do Suya é feita pelo Shineya (no caso do
Mutum, pelo Tata), ele realiza uma reza em um pote que contém a substância da dieta
que virá a ser, na manhã seguinte, consumido e assim concretizada a passagem do Suya.
Poderíamos arriscar dizer que o Suya é o que diferencia aquelas dietas onde se obtém
saber e poder e aquelas que não. Seria, portanto, algo compreendido como estando entre
uma substância e uma força, e que trata da especificidade da substância central da dieta
e suas capacidades (forças?) específicas. Porém, se em um dado momento percebemos
que se pode fazer estas dietas sem receber o Suya, vemos que isso ocorre justamente
porque elas devem ser feitas durante a dieta do Muka. Assim sendo, acreditamos ser
possível considerar que o Suya é passado somente àqueles que as fazem durante o
Muka. Como o termo Muka pode ser traduzido como “poder” (“batata” é “iraru”)
vemos que Suya trata de outra coisa, mas que só pode ser obtida por aqueles que
possuem “poder”. Veremos mais à frente, quando falarmos mais sobre a dieta do Muka,
que os aprendizados do Muka são passados ao se realizarem estas dietas do Suya.
Portanto, não parece impossível considerar que, ainda que saber e poder sejam a mesma
coisa e diferentes ao mesmo tempo, o Suya seja o saber específico, dotado de poder pelo
Muka.
119
Tinham feito cerca de duzentos litros de Caiçuma para o Mariri Yawanawa que ocorreu na minha
primeira semana de campo. Depois do festival os trabalhos foram cessados e só algumas pessoas tinham
Caiçuma: A filha de Hushahu por estar fazendo a dieta do Muka, e os russos que estavam fazendo a dieta
do Nane (a caiçuma não foi produzida especificamente para eles, era um excedente do que havia sido
produzido).
101
dietas do Suya não se pode cozinhar para dividir com pessoas que não estejam na dieta,
muito menos comer restos dos outros. Em geral, são alimentos feitos com mandioca,
banana, peixe, arroz, macarrão e feijão de praia.
No dia seguinte à cerimônia, a pessoa tem todo o seu corpo coberto pelo Nane e
bebe de seu sumo. De acordo com Hushahu, quando a pessoa se pinta após receber o
Suya do Nane, os espíritos não conseguem vê-la e outras pessoas não podem olhar
diretamente em seus olhos. Pelo olhar, pode-se jogar algo de ruim independente da
intenção. Desta forma, esta pintura total do corpo com o Nane buscaria proteger a
120
Hoje já não são produzidos em quantidade pelos Yawanawa, somente algumas mulheres velhas ainda
conhecem a técnica.
121
Que seria a “casa de reza” composta por um grande telhado de palha sustentado por algumas pilastras
nas quais as redes são amarradas, com uma fogueira próxima ao centro onde fica um grande tronco para
sustentação do telhado.
122
Nestes momentos conversa-se muito sobre os acontecimentos da cerimônia.
102
pessoa dos ataques de espíritos ruins retirando-se da vista. A pessoa se faz perceber
pelos espíritos quando canta os Saiti e se utiliza de Kene nas cerimônias de Uni. Ainda
que não desapareça da visão de outras pessoas, o corpo fechado com o Nane também
aparenta buscar controlar forças internas ao corpo. É como se neste momento da dieta (a
primeira semana ou enquanto durar a pintura) a pessoa não possuísse controle sobre a
projeção de suas forças para o mundo externo. Quando se inicia o Suya do Nane
começa o desenvolvimento do entendimento e controle de todas as forças, além dos
sonhos também serem muito trabalhados durante esta dieta. Dentre os três Suya dos
quais tivemos conhecimento, o do Nane seria o mais poderoso em comparação ao da
Caiçuma e da Pimenta123. A ele é associada a entrada na vida espiritual em termos de
conhecimento sobre as forças, Yuxi e o mundo sociocosmológico dos Yawanawa.
Assim como a dieta da pimenta, esta só pode ser feita durante ou após a do Muka.
Acreditamos ser possível que a necessidade do Muka se dê pelo fato de que não se pode,
na pajelança Yawanawa, separar “saber” e “poder” que, por estarem imbricados, devem
ser desenvolvidos conjuntamente.
Além destas primeiras dietas citadas, a dieta do Muka é uma das principais e hoje
em dia tem sido uma das mais procuradas por diversas pessoas. O Muka é uma espécie
de batata muito amarga e que é procurada devido ao seu poder no universo da Pajelança
Yawanawa124. Não se trata de uma entidade, mas sim um “poder”, no sentido da força
que todos os que se aprofundam na Pajelança devem obter. Esta dieta é dividida em
duas partes. Nos primeiros três meses come-se menos do que nos outros nove meses. As
regras mudam em intensidade, e não em coisas que se pode ou não fazer e/ou comer. No
primeiro período obtém-se o poder do Muka e na etapa seguinte desenvolve-se o poder,
o conhecimento e o coloca em prática125. A obtenção deste poder torna a pessoa a
melhor naquilo que faz durante a dieta. Também é durante esta dieta que se acessa
conhecimentos não públicos, como certas histórias e saberes126 de poder. Nesta dieta,
seguem-se as mesmas regras alimentares do Suya, porém nos três primeiros meses só se
come um pouco na parte da manhã. A quantidade de alimento aumenta parcialmente ao
longo do tempo. Saber especificamente no que o Muka age envolve conhecimentos
123
O Suya da caiçuma é usado para efetuar curas, enquanto o da pimenta para dar força à intenção.
124
Entre os Kaxinawa, onde ela é chamada de dade esta batata também é conhecida e associada à
iniciação xamânica (Lagoru, 1998, 2007),
125
Conforme Laura Pérez Gil (2001), e o que foi confirmado em campo, o reconhecimento do
conhecimento e poderes daqueles que fazem as dietas mais importantes só se dão quando postos em
prática. Somente o estudo não confere reconhecimento da sociedade.
126
Não pude ouvir as histórias/mitos de maior importância para os Yawanawa justamente por conta disso.
103
esotéricos127 por serem conhecimentos de valor cosmopolítico (para o uso em contexto
ameríndio do conceito cosmopolítico ver Sztutman, 2005).
Na dieta do Muka, a pessoa que a faz pode ter a opção de somente receber o
Muka e não necessariamente aprender a pajelança Yawanawa. Nesta dieta, uma vez que
se passaram os três primeiros meses (que são os mais intensos), a pessoa recebe o seu
Muka e pode, se quiser, abandonar o processo de aprendizagem, mas não o resguardo.
Entretanto, logicamente há a preferência por aprender as rezas e as histórias para que se
possa utilizar o Muka. Nos nove meses seguintes a pessoa terá que fazer as dietas do
Nane, Caiçuma e Pimenta. Neste período, se a pessoa se fura, corta ou queima, isso irá
continuar acontecendo posteriormente. Mas isso também ocorre com atividades e
costumes. Se a pessoa ficar estudando, roubando, andando na mata, aprendendo canto,
aprendendo reza, Kene ou qualquer outra coisa, ela se tornará “a melhor” naquilo. O
pedido que se faz ao Muka nunca poderá ser revertido128. Durante a dieta a pessoa pode
fazer outros pedidos que tenham relação direta com o pedido primeiro. É desta forma
que a pessoa pode direcionar a força do Muka e do Uni para as direções que deseja agir
com o seu Muka. É na dieta do Muka que ocorre o principal investimento em saberes.
Diversas coisas, tal como o canto, os desenhos, as rezas e tantas outras coisas
que fazem parte do contexto ritual podem ser desenvolvidos através da captura da
alteridade. Ouvimos relatos sobre o consumo de determinados tipos de animais, de
carne vermelha inclusive, que deveriam ser comidos em determinado momento. Pelo
que pudemos entender, capacidades de certos animais e plantas são aprendidas pelas
pessoas ao consumir um certo animal e/ou planta129. Relações de consubstancialidade
fazem parte do contexto das dietas e também do cotidiano130, são responsáveis pelas
trocas de substâncias, conhecimento e poder e pela construção de corpos amargos.
Por fim, existem outras duas dietas sobre as quais os Yawanawa do Mutum
falam muito: a dieta da saliva e a do coração da cobra. Estas são as mais difíceis e, desta
forma, as que mais conferem poder e conhecimento. Por exigirem maior esforço, são
127
Entendemos enquanto “conhecimento esotérico” aqueles nos quais se precisa estar em um nível mais
avançado do estudo da Pajelança. Impreterivelmente isso exige relações de confiança, pois alguém só
aceitará te guiar em uma destas dieta ou te conferir certos ensinamentos quando confiando na pessoa. Isso
se dá por conta dos poderes conferidos a pessoa.
128
Interessante notar as semelhanças com a dieta da cobra entre os Kaxinawa (ver Lagrou, 1998, 2007).
129
Ver Lagrou (1991, 1998, 2007) para discussão de práticas rituais similares entre os Kaxinawa, dizendo
respeito a ingestão do yuxin do japim e da jiboia através da ingestão de sua carne não cozida, mostrando
como a presença do sangue veicula uma consubstancialização com o animal ritualmente ingerido.
130
Por exemplo, algumas espécies de macaco – e tantos outros animais – são proibidas por passarem
características negativas da espécie, como “loucura”.
104
muito pouco realizadas. Em campo só soube de três pessoas que moram na aldeia e que
já as realizaram, que são Hushahu, Matsini e Tata. Para a dieta da cobra, não serve a
sucuri. Tem que ser a jiboia. Ao final desta dieta, a pessoa tem um sonho com ela em
que é ensinado o que precisa saber131. Não se pode tomar água, comer doce e comer
qualquer coisa que não faça parte do cardápio natural da cobra. Ou seja, comem-se
ratos, pacas, capivaras etc132. Na primeira semana come-se somente uma piaba (um
pequeno peixe de escama) que deve durar todo esse tempo. Isto é feito durante um mês.
No mês seguinte já se pode comer uma paca por semana. Ao passar do tempo, começa-
se a comer as presas maiores da Runu. Outras formas de alimento estão vetados.
Entretanto, a caiçuma entra para ajudar contra a sede, mas não como substituta da água,
pois ainda é muito escassa (dois goles de manhã ao longo de um dia inteiro).
131
Aquilo que se precisa saber não é compreendido como uma unidade. A pajelança Yawanawa é
marcada pela centralidade da intenção e da força do pensamento. Ao realizar dietas faz-se pedidos que a
direcionam. Relataram-me que ao comer do coração da cobra e finalizar a sua dieta ela lhe confere um
grande poder na a caça, na pesca, no canto, no kene e na reza (ver Lagrou para Kaxinawa onde se adquire
as mesmas capacidades, 1991, 1998, 2007).
132
Nem todos estes animais podem ser consumidos por quem faz a dieta da Saliva, pois ela dura um mês
(leva-se meses até poder consumir animais de porte médio ou grande, como a anta) e, pelas descrições
que ouvi sobre algumas dietas da Saliva que foram feitas, não há consumo rotineiro de carne vermelha.
Come-se todos os dias um pouco pela manhã.
105
são substâncias autônomas, mas de um tipo que veicula a agentividade de uma entidade,
a Runu. Uma outra aproximação entre as dietas do Muka e da Runu é que esta última é
voltada para as rezas e cantos do Muka. Aquele que realiza a dieta do coração, como
falamos anteriormente, é o Yuvehu, capaz de realizar o canto do Muka sozinho
(enquanto o Shineya precisa de cinco pessoas cantando juntas)133. Tata sabe os cantos
do Muka e provavelmente está aguardando para ensiná-los. Porém, para realiza-lo, são
necessárias cinco pessoas que tenham realizado as dietas do Muka e da Saliva. Nesta
última, por sua vez, é quando se aprendem as rezas feitas na Caiçuma, Nane, e Pimenta
(os cantos do Suya).
133
Confessamos certa inexatidão quanto a isso, considerando que estas associações entre especialistas e
técnicas não é fixa e sua descrição em campo é múltipla.
134
Ver Lagrou para uma discussão sobre a impossibilidade de separar substância e yuxin entre os
kaxinawa (1998, 2007).
106
Como já acreditamos ter deixado claro, as dietas possuem um conglomerado de
regras e prerrogativas para que se tenha sucesso. Das histórias e do exemplo de quem já
as fez, se sabe o que se pode ou não comer e fazer. Estas mesmas fontes também
informam regras comportamentais, duração das dietas e, por fim, o que ocorre quando
realizadas de forma correta ou não. Já tratamos anteriormente dos objetivos finais das
dietas, agora iremos falar brevemente das consequências que ocorrem quando se
quebram as regras alimentares e comportamentais da dieta.
135
A água limpa a força acumulada, o doce corta e dá “pasma” e as relações sexuais desperdiçam a
energia acumulada.
107
dieta, esta se tornaria muito mais difícil. Os efeitos adversos seriam intensificados, e
isso desencorajaria a retomada.
108
longo destes dois capítulos, falamos das diversas dietas que realizam a fim de construir
um corpo dotado de capacidades agentivas no meio circundante. Pudemos perceber que
ao introduzir e remover determinados tipos de substância do corpo há reflexos no
campo espiritual (aqui, no Yuxi ou “duplo” (Lagrou, 2007; Cesarino, 2011; Vernant,
1990), a pessoa se tornaria capaz de conferir esta capacidade de agentividade à cantos,
desenhos, sopros e rezas (incluindo as que narram eventos míticos), além de possibilita-
la a habitar o mundo dos Yuxi por meio dos sonhos e mirações. Desta forma, traremos
mais algumas informações sobre estas técnicas.
***
Entre os Yawanawa, a música, assim como entre outros povos Pano (Cesarino
2011, Lagrou 1998, Coffaci de Lima 2000), possui um papel central para a Pajelança e
também para pensarmos a sua arte. Entre os Yawanawa, existem diversos tipos de
cantos, e alguns podem passar por mudanças estilísticas, mas nunca em sua totalidade.
Possuem funções diversas e dividem-se em ordem de importância e efeito.
O Saiti é um tipo de canto usado nas rodas de Uni, nas danças, nas brincadeiras e
também para controlar a força do Uni. Canta-se para aumentar e/ou diminuir a força.
Para isso, deve-se cantar direcionando o canto para algo, seja para as árvores, lua, sol,
animais ou o que for. Já o Saiti Vanaya é usado para chamar “grandes forças”. Este
canto inicia-se com um Saiti comum e depois começa a fala cantada, no estilo de uma
narrativa136. É aprendido já na dieta do Muka e cantam sobre as histórias dos Yawanawa
e narram os eventos que estão acontecendo no momento presente da dieta. O Shuinti é o
canto usado para a reza da Caiçuma, tanto para curar as pessoas quanto para iniciar a
dieta. Este canto é feito exclusivamente em outra língua, com o nome de Rane. Esta é
uma língua usada somente nestes contextos. A Runu é a dona tanto do Shuinti quanto do
Rane. Diz-se que todos os Yuxi entendem Rane, mas somente os que partilham da
mesma mata que os Yawanawa entendem Yawanawa137 (com algumas exceções).
O canto que aparenta ser de maior poder é o canto do Muka (ou Yuve), que é o
canto usado em trabalhos de cura específicos. São cantados em Yawanawa e
parcialmente em Rane. Infelizmente não pudemos presenciar a utilização deste canto,
136
Pode-se cantar um Shenipahu, uma miração ou uma narrativa livre. Este canto é feito na língua
Yawanawa, e não na língua ritual do Rane.
137
O mesmo ocorre para os espíritos que habitam cidades, centros urbanos etc., entendem a língua local e
o Rane. Fui informado que quando presentes nas cerimônias os Yuxi dali entendem nada do que é cantado
em português.
109
somente em alguns Racuche feitos em mim, em pessoas que estavam fazendo dieta e no
público do festival que levou uma “lambada”138 do Uni. Não presenciamos trabalhos de
cura para doenças (somente Shuinti em trabalhos preventivos).
Outro tipo de canto é o chamado Shuinti. Este, por sua vez, é a reza de cura por
excelência. Utiliza-se dos saberes sobre os poderes das plantas, animais e tudo o que
habita o cosmo para usar de sua força na cura da pessoa. Em campo, tive a oportunidade
de acompanhar esta reza feita para um tratamento preventivo. Para realizá-la, o Shineya
reza o Shuinti sobre um pote de caiçuma a ser consumida pela pessoa doente. Depois
deverá ficar três dias de dieta.
Além de informar sobre o que se pode fazer ou não, ou quanto tempo se deve
ficar em uma dieta, os Shenipahu são fonte imprescindível para o conhecimento sobre o
mundo dos Yuxi. Muitas histórias são ocultas e só são contadas a certas pessoas de
confiança. Existem três histórias que não podem ser contadas em sua completude às
pessoas que não comeram o Muka. Elas tratam da origem dos povos, em uma época
onde animais e humanos se comunicavam, dos antepassados que subiram aos céus com
o corpo seco e, por fim, uma outra que fala sobre um homem que viajou a três diferentes
mundos com o japó140. Conta-se no Shenipahu da origem das medicinas, que diz que o
Uni surge depois da criação, somente no momento em que ele foi necessário. A história
138
Esse termo é muito utilizado para se referir às pessoas que não aguentam a força do Uni.
139
Considerando-se a aldeia Nova Esperança, com toda a certeza há pessoas o suficiente para fazerem
esta reza.
140
Japó é uma espécie de peixe. Por motivos óbvios, não pude saber o conteúdo explícito de cada uma
destas histórias. Cheguei a ouvir algumas partes e relatos sobre estas histórias, mas somente dando a
minha palavra de que não iria publicar isso ou contar para terceiros.
110
em detalhes de seu surgimento é contada no Shenipahu que fala da origem dos povos
Pano e dá-se pela brotação da folha Kawa (psychotria viridis) e do cipó Uni
(banisteriopsis caapi)141. Em outro, no Awara Nane Putane, conta-se como os
Yawanawa descobriram o segredo do poder das cobras (o próprio Uni)142. Infelizmente
não temos a narrativa da história, mas no canto em que se fala sobre o surgimento do
Uni (ou seja, quando ele foi necessário), fala-se também sobre como a “necessidade”
que precede a geração do Uni insere-se na relação com a morte, já que surge da tumba
do primeiro a morrer143. Uma vez que se está sujeito à ação da morte (por meio de
doenças) ela é evitada com técnicas de cura. Aqui, neste contexto, cura e Uni são
praticamente sinônimos, não fosse o conhecimento dado pela Runu. E é justamente pela
ação do Uni que a morte é superada e os vivos passam a ser imortais que habitam o
mundo dos céus.
Para os Yawanawa, tudo o que existe no universo foi criando quando o Nuke
Shuvimani precisou que existissem. Tive a oportunidade de ouvir o início de uma
história que fala sobre a geração do mundo. A história conta que no princípio de tudo só
havia água e escuridão. Da pressão entre os dois, surge Nuke Shuvimani que gerava as
coisas conforme precisava delas. Queria ficar em pé e criou a terra, queria comer e criou
os animais e assim sucessivamente. Seu poder não viria do Muka e nem do Vana (que
são as fontes de poder dos humanos), mas somente dele mesmo. Todos os Yuxi e suas
forças, portanto, teriam surgido após a geração de Nuke Shuvimani. Diz-se nos
Shenipahu que no passado todos os animais falavam e eram humanos de uma outra
qualidade. Teriam assumido as formas de animais aqueles que se equivocaram ou
quebraram resguardos. Por exemplo, as cobras venenosas que tomavam Kapi para
obtenção de poder. As histórias contam os casos de sucesso e fracasso, que explicam
141
Neste trabalho iremos nos referir à folha e ao cipó somente nos termos nativos. Mas para facilitar a
identificação ao leitor leigo, a folha Kawa é conhecida no contexto das religiões ayahuasqueiras (como o
Santo Daime) como “Rainha”. Neste mesmo contexto o Uni é conhecido ou como “cipó” (termo em
português adotado para traduzir Uni) no contexto pano ou “Jagube” no contexto daimista. Estas
informações foram retiradas de conversas com diversas pessoas que se consideram “ayahuasqueiras” e
também de conversas em espaços não-indígenas dedicados ao consumo religioso da bebida.
142
Neste mito, um homem é levado por duas irmãs cobra à sua aldeia no fundo do rio. Lá ele passa a
viver com as cobras como se fossem humanos parentes, que consumiam a Ayahuasca sem que ele o
pudesse também. Todavia, em certo momento ele tomou do chá e viu a verdadeira forma das cobras.
Retorna para sua aldeia e leva consigo o segredo das cobras, que são os conhecimentos sobre os poderes
do Uni.
143
Ver o mito de origem kaxinawa para motivos de comparação: do corpo de Yube que conheceu o cipó
no mundo aquático das anacondas surge o primeiro cipó e a folha kawa, o seja, é tomando cipó que se
tem acesso à experiência do primeiro homem que conheceu o mundo das anacondas e do cipó (Lagrou,
1991, 1998, 2007).
111
porque certas cobras são venenosas e outras não. Em um exemplo dado durante os
estudos sobre os efeitos da água durante a dieta, conta-se que as cobras d’água
venenosas, quando em dieta, teriam sofrido muito com a sede mas conseguiram resistir.
Uma outra cobra, chamada Txau, que não possui veneno, não aguentou a sede e pulou
na água e dela bebeu. Foi nesse momento que se transformou em cobra e perdeu todo o
seu poder. A força espiritual lhe disse: “Você nunca vai ter sucesso de poder, você vai
usar sua força, mas, quando você ferir alguém, as pessoas vão rir de você, teu poder não
vai fazer efeito”. Essa seria justamente a pasma, que também ocorre com aqueles que
consomem doce e têm relações durante a dieta. As cobras que resistiram são as que são
venenosas e/ou valentes (como a jiboia).
***
***
113
floresta e agradecer. No contexto da dieta eles são uma proteção. Os espíritos veem as
pessoas sem Kene como se estivessem doentes. Já quando pintados, veem pessoas
fortes, guerreiras e prontas para tudo, pois estariam protegidas plenamente. Neste
contexto, usar o Kene da Runu, Awa Vana, Pasipi, Runu Mapu, Washushaka ou
Yumashou145 serve para chamar estas forças para o trabalho individual projetado para a
coletividade146. Aqui, novamente, a alteridade integra e faz movimentar as ações
desenvolvidas no interior das cerimônias e das pessoas que delas participam.
As formas apresentadas nos trabalhos com Kene trazem uma questão referente à
significação, figuração e abstração. Os Yawanawa aparentam considerar que os Kene
sejam, plenamente, formas figurativas que só seriam ocultadas ao observador
desavisado. Estando na força do Uni cada traço do Kene possuiria um significado e
modo de se relacionar com outros Kene. Além de haver alguns Kene específicos que de
fato não são figurativos, os arranjos feitos pelas novas combinações de Kene em um
único objeto podem exigir do olhar um esforço maior para se perceber os Kene
entrelaçados. Nota-se que, se para os Yawanawa a não-figuração não possui significado
e consideram seus Kene como formas figurativas, podemos perceber claramente um
movimento significante que parte do ocultamento das formas nas combinações de Kene
e na distinção entre seus traços, cores e, consequentemente, significados.
Este jogo de pensamento é entendido por meio das visões de Kene durante as
mirações. Nestes momentos, como relatam diversas vezes, os Kene surgem a partir do
que é cantado e guiam a pessoa aos lugares onde terá os aprendizados, vivenciados por
meio das mirações. Aqui acreditamos ser possível correlacionar as visões de Kene e
mirações durante as experiências do Uni nas dietas. O Kene é um veículo de força e
conhecimento por excelência. Conferem forma aos cantos e assim guiam a experiência
visionária (ver Lagrou, 2007; Gebhart-Sayer, 1986). Em outra “etapa” podem ser usados
não como um canal, mas um provedor de movimento para a abdução da alteridade
circundante e assim de seus benefícios. Como falamos anteriormente, os Kene podem
ser aprendidos durante a dieta do Muka, da Saliva e também a específica do Kene. As
duas primeiras, aparentemente, são capazes de gerar na pessoa estas habilidades no uso
do seu Muka que conferem força e ações de abdução nos Kene. Já a dieta do Kene não,
só faz aprender a vê-los e a criá-los. Não são capacidades hierarquizadas verticalmente.
145
Respectivamente: cobra, borboleta, andorinha, cabeça da cobra, peixe e espinha do peixe.
146
Como salientado diversas vezes por Hushahu e Matsini, durante as cerimônias realizam-se os pedidos
mais diversos e, para tal, canta-se para alhures. Pode ser para o grupo, parentes, animais, plantas, astros,
Yuxi ou o que for (uma vez que tudo possui Yuxi e tem nome na pajelança).
114
Aprendê-los é o suficiente para aprofundar os aprendizados durante as cerimônias,
enquanto usar do Muka implica especializar-se nestas técnicas xamânicas, o que não é o
desejo/vocação de todos.
Trata-se aqui do mesmo desrespeito do uso nativo dos conceitos dos quais
abordagens tradicionais podem ser acusadas. Aqui você não se deu o tempo de entender
o uso Wagneriano da metáfora que fiz de um conceito nativo do campo da reflexão
sobre processos cognitivos de percepção e enquadramento.
147
O uso do conceito “miração” se insere num contexto intercultural ayahuasqueiro e é um conceito
nativo importante na religião do Santo Daime para falar do estatuto particular da experiência visionária
vivida. Os Yawanawa usam o conceito na mesma direção, o de distinguir entre tipos de visões mais e
menos “verdadeiras”, ou portadoras de “força da espiritualidade”.
148
O termo “enteógeno” é popularmente conhecido como referindo-se às substâncias provocadoras de
estados alterados de percepção e consciência em um contexto orientado para tal.
149
Vale lembrar que nem todas as substâncias enteogênicas provocam mirações, tal como o Rapé e o
tabaco em contextos passados (Pérez Gil, 1999).
150
Aqui a percepção é integrada à consciência. Para os Yawanawa, a mente de uma pessoa é dada
conforme seu contexto, sua cultura. Adotamos aqui uma noção perspectivista (Viveiros de Castro, 1996)
de “ponto de vista” na qual, ao passo que varia, a percepção sobre o mundo percorre a mesma variação e
assim forma um todo de elementos constitutivos da consciência da pessoa. Estes elementos se movem
conforme o ponto de vista da pessoa.
115
já é outro. Perceber o mundo de forma extraordinária não se limita a visões de formas e
seres. O processo pelo qual a pessoa passa para se ter mirações (principalmente as mais
fortes) segue o percurso: Efeitos Físicos → Efeitos Sensoriais e Sinestésicos →
Mirações. São processos e resultados do aprendizado e controle de forças. Mas outras
pessoas podem passar por todo esse processo de forma muito rápida com a ação do Uni.
As mirações, por serem mais “simbólicas” e narrativas nunca são interpretadas como os
efeitos visuais sem força ou saber, mas sim efeitos das transformações geradas pelo
Uni.
Para que se tenha as visões, é preciso uma longa caminhada sem erros, ou erros
já redimidos, e que se tenha passado por diversas cerimônias e também dietas. Dizem
que é neste momento que “o Uni se abre pra você”. Nas mirações e nos sonhos também
podem ocorrer entregas de itens em momentos chave. São exemplos, os sonhos de
Hushahu após a morte de seu pai que lhe reencaminhou para a linha da espiritualidade e
o de Matsini que recebe um arco sujo de sangue que saiu do canto de uma
mulher/espírito presente na cerimônia. Ambos marcam um momento de reconhecimento
de seus conhecimentos e poderes por parte dos Yuxi e antepassados. A entrega de
presentes por parte dos Yuxi é entendida como forma de confirmação. Mais
marcadamente, temos o esperado sonho com a Vana no fim da dieta do Muka. Neste, a
Vana aparece e tem relações com a pessoa em sua rede. O ato marca o matrimônio entre
a pessoa e a Vana, lhe garantindo a sua companhia nas cerimônias realizadas. Possuir a
Vana significa ter muito poder, é um certo tipo de assistência espiritual para a reza e
outras formas de se trabalhar com a força no outro e de si mesmo.151
151
Ver Pérez Gil, 2001.
116
O ideal de alimentação durante a dieta é que se coma pouco antes de dormir,
pois tanto o excesso quanto o contrário são prejudiciais aos sonhos. Neste horário deve-
se comer coisas leves que não necessariamente saciem toda a fome, pois isso ajuda os
sonhos a se desenvolver. Na concepção Yawanawa existem três tipos de sonhos. O
sonho das 19h às 22h seria um sonho “normal”, sem aprendizados, mensagens ou
reflexões. O das 22h à 1h trata de aprendizados oriundos do mundo dos Yuxi. São os
sonhos da pajelança propriamente ditos, no qual o diálogo com os Yuxi e com os mortos
pode ocorrer. O sonho a partir de 1h é de um tipo que trata dos aprendizados ocorridos
durante a dieta e o cotidiano da pessoa. Se o sonho é ruim, trata dos erros cometidos que
devem ser corrigidos. Se for um sonho bom, trata dos acertos que devem ser
continuados.
Baseando-se nestes sonhos a pessoa irá planejar o que fazer, pensando sobre
seus erros e acertos, o que fará no futuro e o que fez de errado no passado para que
possa fazer melhor. Esse é o tempo em que se estuda durante a dieta. O ideal é acordar
aproximadamente às 4h para fazer esta reflexão junto ao uso do Nawe e, então, assim
que o sol raiar, tomar banho, comer e seguir o dia conforme o que fora planejado.
Todavia, a usabilidade mais importante dos sonhos, em seu aspecto mais pragmático, é
a descoberta das causas de doenças e seu tratamento. A cura pelos sonhos realizada pelo
Shineya é usada somente para doenças espirituais, para pessoas que tiveram sonhos
muito ruins, que acordaram cansadas, “empanemadas” e/ou doentes. Assim, este sonho
precisa ser contado ao Shineya para ser interpretado e a cura efetuada. Quando sonha-se
coisas ruins o Shineya segue o espírito da pessoa através deste sonho e, ao resgatá-lo,
efetua a cura. Obviamente, é preciso ter muitos saberes e décadas de experiência para
dominar isso, não é à toa que entre os Yawanawa só existem dois Shineya (Tata e
Yawa) reconhecidos por todos.
Como foi bem observado por Laura Gil (1999), os processos de cura Yawanawa
consideram uma multiplicidade de variantes para realizar um diagnóstico e assim se
iniciar um tratamento ideal. Determinadas doenças comuns só serão tratadas entre os
Yawanawa pelos seus especialistas. As doenças são estudadas para averiguar se podem
ser tratadas com a medicina do outro ou se se trata de alguma doença já conhecida pelos
117
Yawanawa152 e se possuem seu próprio tratamento. Os sonhos são a principal fonte para
descobrir a origem de uma doença. Considera-se que o “eu” do sonho seja uma
metáfora, ou um “duplo” do espírito da pessoa, uma vez que foram categóricos em dizer
que o espírito da pessoa não sai do seu corpo nestas viagens.
152
A diarreia, ainda que dita em alguns cantos que foi trazida pelo branco, pode ser tratada com o
Racuche (quando se trata de limpezas durante as cerimônias) e a dieta da Caiçuma, além dos métodos
aplicados às causas fisiológicas.
153
No capítulo seguinte, buscaremos realizar uma tradução em termos antropológicos de algumas noções
usadas pelos Yawanawa. Veremos que a ideia de força e agência (Gell, 1998) aparentam ser análogas,
naquilo que concerne a capacidade de determinada coisa em agir sobre outra.
118
4 OS YAWANAWA E A ANTROPOLOGIA
Neste último capítulo, buscamos trazer ao leitor uma confluência de dados entre
as etnografias existentes sobre os Yawanawa que nos permita complementar o que os
distintos autores já trouxeram à antropologia e problematizar algumas implicações tendo
como pano de fundo o escopo desta pesquisa. Entendemos que o contexto sociológico
no qual nossa questão está inserida compreende a presença e atuação de diversos
agentes sociais e culturais que estabelecem relações de reciprocidade em um contínuo
processo de atualização e definição do ponto de vista Yawanawa. O contexto ao qual
nos referimos tem como base as práticas espirituais e a retomada de costumes ditos
tradicionais. A antropóloga Aline Ferreira estudou mais especificamente a presença dos
Yawanawa em contexto urbano, que integra as redes de relações dos Yawanawa. A
autora denomina esta rede como “Yawa-Nawa”, e a define da seguinte forma:
119
termos para poder aproximar as noções nativas e as ocidentais. O que pudemos perceber
de mais imediato é que esta demanda por ressignificação de certos termos e/ou noções
influencia também o seu uso na aldeia.
Entendemos que quando nos falam sobre o “pajé”, ainda que o antropólogo
possa estar interessado nas definições na língua nativa, o modo como nos apresentam a
noção é o mesmo, ou no mínimo muito aproximado, como o fazem para todos os
“nawa”. Tata era comumente referenciado como um Pajé entre os Yawanawa.
Instigava-nos ouvir de Tata que ele mesmo não seria Pajé, porque para tal deveria
“tomar tabaco”. Aqui, ele está falando do Nawene, que hoje não é mais feito pois se
perdeu a espécie de tabaco (a substituição pelo fumo de rolo não é uma opção, como é
para o rapé). Assim, como também observara Gil (1999: 115), o termo Pajé seria
reservado ao Tsimuya (que possui o amargo – Tsimu) e ao Yuvehu (que toma Nawene).
A conclusão a que chegamos é que esta denominação é a mesma entre nós e a referida
antropóloga. O que nos resta a explorar são os usos urbanos do termo pajé que vem
sendo associado aos Shineya e, inclusive, aos Shuinti (Hushahu, Matsini e demais que
fizeram o Muka e a dieta da cobra). Usados frequentemente pelos Nawa ao se referir aos
indígenas que possuem controle sobre forças espirituais, o termo passa a ser aplicado a
pessoas que não seriam Pajé na aldeia, mas somente nestas zonas de contato. Nossa
hipótese considera que essa ocorrência se dê como forma de classificação usada pelos
Yawanawa para ensinarem, de forma simplificada e figurativa, o campo de atuação do
qual estes estudantes de pajelança fazem parte. Assim, recorrem a um conceito criado
no contexto interétnico brasileiro (pois pajé é uma palavra de origem tupi) que, por se
voltar a pessoas não-indígenas envolvidas com a pajelança, simplifica e as vezes nem
considera os sistemas de classificações nativos.
120
fenômeno novo, mas sim de algo também presente nos Mariri realizados antes do
contato e voltados a receber Yura154 (Naveira, 1999).
Logo após a primeira festa, Hushahu e Putany entraram para a dieta do Muka e
isso gerou polêmicas por não ser da “tradição Yawanawa”. No meio de todo esse
momento de celebração e efervescência de trabalhos e projetos a serem realizados, as
irmãs passam a ser a primeira geração de mulheres (que se tem registro) a se tornarem
lideranças espirituais entre os Yawanawa. Em 2008, Hushahu se muda para o Mutum
que, ainda que seja conhecido pela sua fidelidade à “tradição”, passou ao longo do
tempo a ser conhecido pelo público Yawanawa devido ao papel das mulheres nas
práticas espirituais, artísticas e políticas no contexto da aldeia. No Mutum, a liderança
local é Mariasinha que, quando ausente, é substituída por Júlia156). Matsini também é
uma liderança de grande importância e, além de ser responsável pelos assuntos
espirituais da aldeia (consultando Tata), costuma organizar e gerenciar muitas
atividades coletivas como pescas, idas à cidade, construção de casas e espaços coletivos
154
Índios não-Yawanawa.
155
Saia de palha
156
Responsável pela escola e integrante do projeto de documentação de línguas executado pelo Museu do
índio e coordenado por Bruna Franchetto.
121
e etc. Acreditamos que esta performatividade da mulher entre os Yawanawa se dá em
decorrência de movimentos internos aos Yawanawa em diálogo político/cultural/social
com os Nawa. Com boas relações com o governo e organizações privadas, nacionais e
internacionais, podemos sustentar a ideia de que não fosse este equilíbrio entre
concepções nativas e não-nativas muitas coisas que hoje são reconhecidas pelos
Yawanawa como conquista talvez não tivessem contribuído com tal “resgate cultural”.
Alguns fatos sustentam este diálogo: a secretária de Políticas para as Mulheres
representou o governador do Acre no Mariri do qual participamos; Hushahu e sua filha
participam de um circuito neo-xamânico voltado para as mulheres; o governo criou a
Cooperativa das Mulheres Yawanawa, o destaque aos cantos femininos e as habilidades
das mulheres com o campo artístico e criativo complementam a importância e a criação
deste tipo de aliança justamente por “valorizarem a mulher”. Aqui a questão da mulher
não é somente um tema, mas um marcador diacrítico.
122
restrito de Nawa. No Mutum, aparenta que, uma vez que a pessoa tenha sido aceita para
fazer a dieta, teria o mesmo acesso às informações do que qualquer Yawanawa que
esteja fazendo a dieta. Para nós ficam claras diversas variações, que envolvem o tempo
que se conhece o Nawa, o tipo de parceria que vem desenvolvendo, a familiaridade com
a Ayahuasca e Rapé, companheirismo no cotidiano, enfim, tudo aquilo que é importante
para se ter confiança em uma pessoa. Obviamente o acesso dos Yawanawa, ou de Nawa
que há muitos anos conhecem os Yawanawa do Mutum, é muito facilitado pelo tempo.
Os Yawanawa estão abertos a amizades e alianças, mas antes a pessoa deve mostrar que
está ali para isso.
157
Ainda assim, inclusive observado por Naveira (1999: 79), aparenta ser mais útil ao chefe político obter
os saberes da pajelança do que o contrário.
123
Ainda que o papel daqueles considerados Pajé seja central em todo um sistema
de relações com a alteridade, as técnicas e rituais de pajelança não limitam a existência
ou não da Pajelança em si - como observado por Lagrou no caso Kaxinawa em sua tese
e por Gil na sua dissertação sobre os Yawanawa. Aqui, tratamos de uma realidade
sociocosmológica. “Nesse mundo, o corpo, a identidade e o problema da alteridade não
são questões categoriais ou classificatórias, mas questões relacionais” (Lagrou,
2007:29). O modo adequado de se estar em relações com a alteridade, seja ela advinda
do mundo visível ou d invisível, opera mais como um sistema coletivo e prescritivo
acerca destas relações do que de um modo representativo de estar para o mundo. A
prática da pajelança, as dietas, os aspirantes a Pajé e aqueles assim considerados são
atores capazes de lidar com este sistema de relações. É quase como traduzirmos
pajelança ou xamanismo como a concepção antropológica de “sociocosmologia”
(Viveiros de Castro, 1996: 124). O mundo, em si, é anterior a qualquer pessoa e é ele
quem prescreve o modo como as coisas funcionam. Os estudos da Pajelança (e também
os acadêmicos e escolares) são considerados pelos Yawanawa como entendimentos da
realidade circundante. Se determinado saber ou técnica foi esquecido, a sua aplicação e
o estudo criarão outros saberes pois, afinal de contas, o mundo é permeado de entidades
dotadas de conhecimento e capacidades de ensino. Importante considerar que esta
sociocosmologia não aparenta corresponder somente ao que é visto ou não. Em suma,
ainda que possamos ver os produtos da floresta, sua influência no organismo e
capacidades agentivas das pessoas corresponde a um saber que disserta sobre esta
realidade invisível. Porém, não se trata de um “outro lado da realidade”, mas sim de
outros seres que também habitam este “entre-mundos” da realidade visível e da
invisível. Assim, a esfera da Pajelança Yawanawa não é acessada, inclusive em suas
técnicas, somente em estados alterados de consciência (Gil, 1999: 52). Seria o caso
somente se o considerarmos em um espectro extremamente amplo. Consideramos desta
forma porque o encontro com animais158, as coincidências climáticas e momentos do
cotidiano se refletem no mundo invisível, e vise versa. Sim, a Pajelança é uma forma de
se relacionar com a realidade invisível, mas ela também é percebida no mundo visível,
mas somente por aqueles que desenvolveram a sua consciência e estudos para esta
compreensão. Como explicam, mesmo sem Uni pode-se ver os espíritos.
158
Matsini contou de um episódio onde, na janela de sua casa, fora beijada por um beija-flor. O evento
fora interpretado como uma confirmação da conexão de Matsini com as forças da natureza.
124
4.2 O QUE PODEMOS DIZER
Ainda que reconheçamos que as categorias rauti e sharai até aqui trazidas estão
longe de serem entendidas em profundidade, o contexto no qual elas se inserem é o da
relação, que por si só abarca também o nawa (seja antropólogo(a) ou não). Ao
reconhecermos, portanto, que estas fazem parte da “cultura”, observar/estar/pensar o
domínio da estética entre os Yawanawa é frutífero para compreendê-los, ainda que em
pequena escala, no que diz respeito ao modo como se relacionam ao se fazerem vistos.
125
modo relacional e dinamizam seu movimento de forma cíclico, sempre criando novos
corpos agentivos e criadores de agências.
Diversos antropólogos nos trazem relatos e análises de processos deste tipo entre
outros povos Pano. Resguardos que devem ser feitos durante determinados processos da
pajelança são parte da cultura Marubo, Kaxinawa, Katukina e Kulina (Cesarino, 2011;
Lagrou, 1998, 2007; Coffaci de Lima, 2000; Pollock, 1992). Na literatura etnológica,
tais processos de transformações corporais são entendidos como consequências das
relações de “consubstancialidade” com outros seres. Neste contexto, as pessoas trocam
substâncias ao se relacionarem e, ao passo que se tornam mais próximas, mais seus
corpos se assemelham. Esta chave de compreensão da etnologia deve muito a teoria
perspectivista, desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima e que
pode ser aplicada a diversos outros contextos amazônicos.
Especificamente sobre arte e povos Pano, Els Lagrou realiza diversas análises
sobre como os movimentos gerados pela sedução do olhar são estruturantes no processo
criativo Kaxinawa. As imagens geradas pela Ayahuasca e o Kene ensinado por meio
dela buscam capturar o olhar do outro e assim estabelecer uma relação. Esta forma de
relação, conforme a teoria perspectivista, buscaria trocar pontos de vista com o outro.
Ver-se através do olhar do outro permite aos Kaxinawa, e também aos Yawanawa,
aprender com ele e entender como ele os vê. É para dotar-se deste conhecimento que
tanto os Kaxi quanto os Yawa entram em relação com o outro e trocam. Percebemos ao
longo desta pesquisa que se em um momento de isolamento, consumindo-se substâncias
de poder e estando em relação com yuxi e forças, ao passo que se aprofundam as
relações com a alteridade, mudam-se os objetivos da troca. Em um contexto de relações
com o branco, troca-se “cultura” mas com os yuxi trocam-se substâncias.
126
Ao longo da exposição da pesquisa salientamos algumas diferenças entre os
significados dos termos “cultura” e “tradição” para muitos dos Yawanawa. O primeiro
estaria associado a algo em constante mudança e o outro a algo permanente. Para fins de
pesquisa, consideramos frutífero analisar estas duas categorias por meio das
contribuições de Manuela Carneiro da Cunha. Para a autora, a concepção de Cultura é
vista em termos de continuidade, enquanto a “cultura” é sua projeção consciente frente
ao olhar do branco. A “cultura”, enquanto uma representação da Cultura, aparenta
compor todos os jogos relacionais e por meio deles gera movimentos na Cultura.
Todavia, se para os Yawanawa a tradição está para o constante assim como a cultura
está para o inconstante, não encontramos esta mesma analogia no trabalho de Carneiro
da Cunha. Para a autora, “cultura” seria cultura para os Yawanawa, enquanto Cultura
seria tradição. Entretanto, e isso não demonstra nenhum descompasso em relação à
concepção de Cunha, a Cultura é uma constante relacional e produtora de diferenciações
e transformações, e não um englobamento fixo de elementos diacríticos.
O que diferencia um elemento que tem força de um que não tem é a capacidade
do primeiro de provocar os efeitos esperados na sua concepção. Todavia, é importante
salientar que estes objetivos finais das relações e coisas produzidas remontam à
sociocosmologia yawanawa. O conceito de “agência”, aplicado à antropologia por Gell
(1998) e cunhado no contexto amazônico por Lagrou em sua tese sobre a arte kaxinawa,
127
aparenta traduzir com muito sucesso esta ideia de força usada pelos yawanawa.
Tratando-se do campo da pajelança, acreditamos ser possível que a capacidade de
agência seja fundamental para que um objeto ou uma atividade seja estruturante para
que seu poder e eficiência sejam considerados. Todavia, o conceito de agência é
estritamente relacional, enquanto a ideia de força nem sempre o é. As capacidades de
uma determinada planta, por exemplo, não dependem da relação na qual ela se encontra
com humanos. Cabe aos humanos relacionarem-se com a realidade circundante e dali
retirarem o saber que lhes permita usar esta força específica. Já a “agência”, aqui,
aparenta depender do contexto relacional no qual se insere. Por conta disso, estamos
inclinados a considerar a “agência” como sendo o elemento gerado pelo sucesso de uma
relação possibilitando assim o alcance de seus objetivos. Assim sendo, a “agência” entre
os yawanawa aparenta ser latente ao objeto ou corpo em questão, e se manifesta quando
em relação, seja com espíritos, com o meio ambiente ou com organismos do governo.
Ainda que o que seja apresentado enquanto “cultura” para determinado campo
relacional exterior à aldeia (como nas cerimônias no Santo Daime, no exterior ou
performatisadas em eventos) possa não ter a mesma “distância cultural” que outros
campos da alteridade. Em cada local diferente em que os Yawanawa estejam, seja
realizando cerimônias, seja conhecendo algum local ou participando de atividades com
outros povos ou até mesmo trabalhando e morando na cidade, o que seria considerado
propriamente yawanawa, conforme a perspectiva que nos foi mostrada em campo,
impossibilita que qualquer tipo de relação entre “Cultura” e Cultura yawanawa
configure uma identidade e um poder yawanawa. Conforme o que me foi apresentado
enquanto marcador yawanawa no Mutum, existe um limite de inclusão de elementos da
alteridade ao campo Yawanawa sem que se perca, primeiro, a identidade e, segundo, a
força. Isso permite que diversas ações (como apresentações, cerimônias etc.) realizadas
no exterior não deixem de ser propriamente yawanawa. A preocupação de muitos
yawanawa é que estes eventos venham a ser de maior interesse das gerações mais
jovens (devido à possibilidade de ganhar dinheiro com isso) do que as ações que de fato
envolvem poderes e forças. A preocupação ocorre, principalmente, porque quanto maior
for a distância entre a “cultura” e a Cultura, menor será a continuidade e eficiência dos
saberes, técnicas e modos que tenham como raiz o saber da Cultura.
128
mesmos. Os povos indígenas seriam pragmáticos no uso da ideia de "cultura"
comunicando-se e relacionando-se com a lógica metropolitana que, quando em relação
com esta alteridade, que inclui esta lógica metropolitana em um processo de captura,
digestão e transformação e recorrente no contexto amazônico. Diversos povos indígenas
como os Katukina, Huni-Kuin, Matsés, Marubo, Baniwa, Araweté (Coffaci de Lima,
2000; Lagrou, 1998; Cesarino, 2008; Viveiros de Castro, 1986) dentre tantos outros, são
exemplos do contexto amazônico no qual o conhecimento está diretamente associado às
experiências vivenciadas no surgimento deste saber, e não a fontes de informação. São
estas experiências e modos de se perceber a realidade que constituem o saber. Falando
de formas de percepção, Carneiro da Cunha corrobora com Viveiros de Castro na
afirmativa de que, no contexto amazônico, diferentes mundos coexistem. A realidade
experienciada é organizada conforme a cultura em questão, que é compartilhada pelos
diferentes seres. É justamente a natureza que é idiossincrática. "Os referentes da
percepção são relativos à espécie, mas sua organização - a cultura - é universal"
(Carneiro da Cunha 2009:367). Assim, fazem parte da percepção o equívoco e a
contradição, ao passo que é fonte imprescindível de conhecimento.
129
Carneiro da Cunha, o que o pajé (tradutor por excelência) busca são as sínteses
originais, novos códigos que multiplicam as relações e os sentidos de modo a construir
um mundo.
É preciso não esquecer no entanto que a tradução pode representar uma tentativa
fracassada de mediação, e que, portanto, este se insere no campo do equívoco Losonczy,
2010b; Coutinho, 2011; Viveiros de Castro, 2004). Aqui, operamos com uma noção de
concepção limitada por uma temporalidade ontológica, que classifica o outro a partir do
equívoco acerca daqueles com quem mal se comunica. O equívoco pode ser a resposta
dada à instância do "frame cultural", ou seja, a resposta da síntese gerada pela mediação
entre cultura e “cultura”. Assim, o equívoco assume uma forma epistemológica, uma
vez que a cosmologia ameríndia já prevê a presença da alteridade em sua estrutura
cosmológica/ontológica (Vilaça, 2005). Desta forma, aparenta existir uma grande
diferenciação entre o não-entendimento e a não-conceitualização. No caso ameríndio, o
equívoco não denota uma ignorância sobre o outro, mas uma distinção conceitual sobre
a realidade para um e para outro, como por exemplo para o nativo e para os não-
indígenas simpatizantes que carregam suas próprias questões para a experiência.
130
contexto amazônico e se projeta nas novas formas de se fazer ser visto. Na relação com
o mundo ocidental são considerados, em muitos casos já observados (Losonczy &
Mesturini Cappo, 2010b: 165), enquanto detentores de qualidades ancestrais e
atemporais.
131
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo de todas as pesquisas e análises que desenvolvemos, acreditamos ter
conseguido mostrar ao leitor diversas características da tranformabilidade da cultura
ameríndia a partir do exemplo yawanawa. Como se pôde perceber, não queríamos
realizar aqui um grande comparativo regional e nem teórico, mas sim trazer a
experiência de transformação vivenciada pelos yawanawa do Mutum (nos seus termos).
A partir dos exemplos trazidos pela experiência na aldeia, inserimos nossos dados em
um contexto relacional e de constantes transformações. As linhas teóricas aqui
analisadas nos serviram como pano de fundo de análise, pois ajudam a entender nosso
objeto de estudo como mediador por excelência entre o campo mais elementar da
cultura e os produtos da lógica relacional gerados no campo da “cultura”. Percebemos
que a figuração do grafismo, ou a tendência do uso de figurações na arte indígena
contemporânea (Lagrou, 2013; Belaunde, 2013), atende aos objetivos finais de
comunicação e, consequentemente, à captura do olhar do outro. É justamente esse
movimento, que atestamos no caso yawanawa, o responsável por tornar objetos, corpos
e imagens mediadores, pois são indubitavelmente construídos nos processos relacionais.
Desta forma, acreditamos ter contribuído com o saber antropológico com dados
e exemplos que sustentam essa abordagem teórica tão usada entre povos Pano e outros
amazônicos. O recorte teórico, que percorre desde Lévi-Strauss até Lagrou, da relação
entre natureza e cultura à relação entre grafismo e figuração, nos forneceu insumos
extremamente frutíferos para atestarmos que, de fato, o campo estético é um mediador
por excelência entre os domínios da cognição e da construção de identidades dividuais
e/ou coletivas.
132
Concluímos aqui este estudo, e esperamos que ele possa não somente responder
a certas indagações antropológicas, teóricas e/ou etnográficas, mas também suscitar
questões para a continuidade dos estudos da arte, da cognição, dos corpos, das
identidades. Enfim, da pessoa ameríndia. Claro que existem muitas questões que
poderiam ser abordadas, mas que não foram devido ao nosso recorte etnográfico,
metodológico e teórico. Somos sinceros em considerar que a pesquisa nos trouxe mais
questões do que respostas. Assim sendo, implicamos uma continuidade futura desse
estudo para um aspecto mais amplo e sociológico, uma vez reconhecida a aplicabilidade
das noções aqui trazidas para pensar o modo de construir-se ameríndio, o modo
ocidental de construção desse ameríndio e as consequências deste encontro no que diga
respeito à construção de corpos “indiginamente” enquadrados e “adoecidos” pela
colonização.
133
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