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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Arte, Corpo e Criação


Vibrações de um modo de ser Yawanawa

Rio de Janeiro – RJ
2015
Arte, Corpo e Criação
Vibrações de um modo de ser Yawanawa
Renan Reis de Souza
Orientadora: Professora Doutora Els Lagrou

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Sociologia e
Antropologia.

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Els Lagrou

_________________________________________________
Profa. Doutora Luisa Elvira Belaunde – PPGAS/UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Laura Pérez Gil – UFPR

RIO DE JANEIRO – RJ
2015
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

RENAN REIS DE SOUZA

Arte, Corpo e Criação


Vibrações de um modo de ser Yawanawa

Dissertação apresentada à Universidade Federal do


Rio de Janeiro – UFRJ, junto ao Programa de Pós-
Graduação Strictu Sensu em Sociologia e
Antropologia, como quesito para obtenção do Título
de Mestre em Sociologia e Antropologia.
Orientadora: Els Lagrou

Rio de Janeiro – RJ
FEVEREIRO – 2015
Este trabalho é dedicado a Daniel, meu querido e amado sobrinho.
Agradecimentos

A realização desta pesquisa só foi possível com a colaboração e apoio de muitas


pessoas que atravessaram diversos momentos do estudo.

Agradeço primeiramente ao Programa de Pós Graduação em Sociologia e


Antropologia da UFRJ e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior pela possibilidade de realização deste Mestrado e pelo apoio financeiro que
tornou a pesquisa possível.

Agradeço ao povo Yawanawa, em especial Tashka, Matsini, Hushahu, Kenewma,


Mariasinha, Tata e Hukena, por todo o conhecimento, por todas as vivências e pelas
amizades que nesta experiência afloraram. Nunca poderia agradecer o suficiente ao povo
Yawanawa pelo conhecimento que me possibilitaram acessar, faço para todos a minha
eterna consideração.

Agradeço a minha mãe, Maria Cristina, por toda a demonstração de amor e


preocupação, por todo o carinho nos momentos difíceis. Agradeço, especialmente, por
este amor que supera o ódio e a discriminação que cultivas-te em mim.

Agradeço também ao meu esposo, Kleper Reis, pelas eternas conversas sobre arte
e estética que abriram possibilidades de pensamento. Por estar ao meu lado, por
construirmo-nos, pela partilha da vida e por dar mais sentido à ela.

Agradeço à minha orientadora, Els Lagrou que, desde 2010, vem me dado todo o
suporte e apoio na pesquisa etnológica, sendo uma das minhas principais inspirações
teóricas e também no fazer antropológico ligado a experiência com os povos Pano.

Agradeço também a ajuda e hospitalidade do povo acreano, em especial a cantora


e companhia de caminhadas na floresta e na cidade, Larissa Pontes, às atrizes dançarinas
Mel Dantas, Regina Maciel, todo o elenco da Companhia Guaratuja e à todos os demais
que estiveram comigo durante o Mariri Yawanawa de 2013 e me receberam em suas casas
e me mostraram um outro lado da cultura do Acre. Ao Txana, agradeço por todo o
conhecimento compartilhado e pela companhia nas cerimônias.

Também agradeço aos amigos. À companheira de carreira e casa, Flora Lucas,


pelas conversas e pela ajuda na dissertação. À Jarina agradeço pela amizade e pela ajuda
na “ambientação” na aldeia. À antropóloga Alice Haibara, agradeço pela companhia e
partilha dos momentos da dieta.
“Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei
arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e
aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não
ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho,
com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um
modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras
refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu
seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu
caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir
plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada.”

Clarice Lispector, in “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”


(1980:59)
Resumo:

A pesquisa aqui apresentada é o resultado de diversas transformações de objetivos,


temáticas e também hipóteses. Tendo como ponto de partida a captura de nosso olhar para
as obras de arte plástica de Hushahu, do povo Yawanawa do Rio Gregório/AC, buscamos
trazer à compreensão etnológica os processos criativos nos quais são criadas imagens
capazes de ensinar e também de construir corpos. Aqui, percebemos que a construção de
imagens e corpos estão diretamente associadas, assim como a diversos outros elementos
da cultura Yawanawa. A pajelança aparece aqui como um pano de fundo que norteia
diversas relações entre os Yawa e os não-Yawa, desde os brancos aos espíritos chamados
Yuxi. A relação com o “outro” aparece de forma estruturante, fazendo tecer-se relações e
comunicações entre o modo dos antigos e os contemporâneos de fazer as coisas nos
padrões Yawanawa. Acreditamos, assim, conseguir trazer o nosso caso etnográfico para
dar suporte às noções antropológicas que compreendem a transformabilidade da cultura
ameríndia enquanto uma qualidade sine qua non da construção de corpos e modos de
existência.

Palavras-Chave: Arte; Corpo; Xamanismo

Abstract:

The research presented here is the result of many transformations of objectives, thematics
and also hypothesis. Taking as a starting point the capture of our attention to Hushahu´s
artwork, from Yawanawa people of Gregorio´s river (Acre/Brazil), we hope to bring to
an ethnological compreension the criative processes in which images are made capable
to teach and also to build bodies. Here, we realize that the construction of images and
bodie are directly related, as well as many other elements from the Yawanawa culture.
The shamanism appears here as a backdrop that guides various relationships between the
Yawa and the non-Yawa, since the White people until the spirits called Yuxi. The relation
with the “other” appears here in a structural way, establishing relations and
communications between the way of the old and the contemporaneous to do the things in
the Yawanawa standard. We believe, therefore, that we can bring our ethnographic case
to support the anthropological notions that comprise the culture transformability as a sine
qua non quality of building bodies and modes of existence.

KeyWords: Arts; Body; Shamanism


SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 2

1.1 AS PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES 2


1.2 A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA 9
1.3 UM PERCURSO TEÓRICO 14

2 OS TEMPOS YAWANAWA 21

2.1 COMO OS YAWANAWA SE VEEM 21


2.2 UMA BREVE PASSAGEM HISTÓRICA SOBRE OS YAWANAWA 27
2.2.1 O TEMPO SOB DOMÍNIO 27
2.2.2 O TEMPO PÓS-ECO-92 29
2.3 A CONTEMPORANEIDADE YAWANAWA 34
2.3.1 OS YAWANAWA E OUTRAS RELIGIÕES 34
2.3.2 A CONSTRUÇÃO DA “CULTURA” E A INFLUÊNCIA DO ESTADO/CIDADE. 37
2.3.3 A ARTE YAWANAWA CONTEMPORÂNEA 45
2.3.4 O MUNDO DAS ALIANÇAS COM O OUTRO 57
2.4 HUSHAHU YAWANAWA: UMA ARTISTA ASPIRANTE A PAJÉ 65

3 PREPARANDO E APRENDENDO O CORPO 76

3.1 PAJELANÇA, CORPOS E FORÇA 76


3.2 ACUMULANDO E APARTANDO 87
3.2.1. AS SUBSTÂNCIAS 91
3.2.2. AS DIETAS 93
3.2.3. VEÍCULOS DA FORÇA 108
3.3 UMA ETNOGRAFIA DO CORPO 118

4 OS YAWANAWA E A ANTROPOLOGIA 119

4.1 O QUE FORA DITO 121


4.2 O QUE PODEMOS DIZER 125
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 132

5 BIBLIOGRAFIA 134
Índice de Ilustrações

Figura 1- Pintura em tela com tinta acrílica. Mulher do conhecimento e fractais. Autora: Hushahu ___ 17
Figura 2 - Exemplo de grafismo corporal. _________________________________________________ 18
Figura 3 - Exemplo de grafismo corporal _________________________________________________ 19
Figura 4 - Exemplo de Shapanati (saia de palha). Foto por Renan Reis _________________________ 23
Figura 5 - Imagem publicitária de luminária do jacaré. Créditos: AGT - A gente transforma. ________ 42
Figura 6 - Foco em colar de miçanga. Motivo: Awa Vana e Runu Mapu. Foto por Renan Reis _______ 44
Figura 7 - Hushahu soprando Rapé em Matsini com um Tipi. Foto por Renan Reis. _______________ 46
Figura 8 - Trabalho feito a partir de imagens trazidas por Hushahu. À esquerda o Runu Mapu
(cabeça da cobra – sem detalhe do olho) e à esquerda uma forma possível do Awa Vana. Foto por
Renan Reis __________________________________________________________________________ 47
Figura 9 - Foto do acervo pessoal de Hushahu de pintura em tela com jenipapo e urucum de Tata
feita por ela mesma. ___________________________________________________________________ 47
Figura 10 - "Mulher cobra", pintura em tela com tinta acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa. Foto
por Renan Reis _______________________________________________________________________ 49
Figura 11 - "Mulher borboleta", pintura em tela com tinta acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa.
Foto por Renan Reis __________________________________________________________________ 50
Figura 12 - Exemplo de colar (de tipo muito procurado pelos Nawa). O grafismo é um composto
criado com os motivos da cobra (corpo e cabeça), borboleta e escamas de peixe com geométricos.
Artista: Hushahu Yawanawa. Foto por Renan Reis __________________________________________ 53

1
1 INTRODUÇÃO

1.1 AS PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES


Na minha trajetória durante o bacharelado em ciências sociais pela UFRJ, fui,
desde o começo, orientado por Els Lagrou nos dois períodos de iniciação científica dos
quais fiz parte. Meus interesses antropológicos e primeiros impulsos de pesquisa sempre
tiveram a ‘pajelança’1 como pano de fundo daquilo que buscava estudar. Da pajelança
Kulina à presença de indígenas em festivais de música eletrônica em contexto neo-
xamânico, me interessava pelo tema por ele ser transversal a toda a sociabilidade
ameríndia. Todavia, decidi tomar novos rumos para a pesquisa do mestrado. Ainda
querendo debater a pajelança ameríndia, descobri em minhas pesquisas pessoais e
andanças pelo mundo virtual a existência do "Festival Yawa”, que ocorre sempre em
outubro na aldeia Nova Esperança onde habita uma grande concentração do povo
Yawanawa do Rio Gregório/AC. Sobre os Yawanawa existem três pesquisas de
mestrado, uma de Miguel Alfredo Carid Naveira2, outra de Laura Pérez Gil3 (Carid e
Gil realizaram suas respectivas pesquisas de campo em conjunto, no ano de 1999 –
antes da ocorrência do primeiro Festival Yawa) e uma de Aline Ferreira Oliveira4 no
ano de 2012. Sabia que este tema ainda não tinha sido estudado. Desta forma, reconheci
aí uma boa oportunidade de contribuir com o saber antropológico com mais um estudo
sobre os Yawanawa. Desta forma, damos continuidade aos estudos sobre tal povo que,
em termos cronológicos, iniciam-se com estudos sobre as festas, as guerras e o sistema
médico, considerados tradicionais, seguido de um estudo sobre uma contemporânea
rede de pajelança (neo-xamânica) para enfim, com a minha contribuição, chegar num
estudo sobre a transformabilidade da cultura.

O Festival Yawa aparenta ser considerado pelos Yawanawa como um marco


histórico, pois é considerado como uma celebração dos “novos tempos”. O que sabemos
é que entre 1992 (quando ocupam o Rio Gregório) e o ano de 2001, os Yawanawa
trabalharam pelo “resgate cultural” e independência em relação a organizações externas,
como ONGs, FUNAI e afins. Em 2001, todo o povo Yawanawa se reuniu na aldeia

1
Nesta pesquisa buscarei sempre usar esta terminologia na intenção de aproximar os termos
antropológicos aos que os Yawanawa usam em seu cotidiano. Aqui, "pajelança" trata do "xamanismo",
termo largamente usado pela antropologia ocidental. A vantagem da palavra pajelança é que ela aponta,
mais do que a palavra xamanismo, para o contexto de relações interétnicas, campo este no qual se
desenvolve minha pesquisa.
2
Orientado por Oscar Calavia Sáez (UFSC).
3
Orientada por Esther Jean Langdon (UFSC).
4
Orientada por Oscar Calavia Sáez (UFSC).

2
Nova Esperança durante uma semana cantor, contar histórias, realizar rituais, fazer
comidas e brincadeiras “tradicionais” como uma forma de “resgate” da cultura
considerada quase perdida. A partir deste grande encontro, de 2002 em diante passaram
a organizar o Festival Yawa. Em suma, o festival nos chamou a atenção por ser um
mecanismo usado para divulgar a cultura deste povo. O festival singulariza a cultura e
só é possível uma vez que os Yawanawa tenham aprendido as técnicas fundamentais
para sua execução a partir da relação com a cultura do branco. O mesmo ocorreu com a
educação Yawanawa que, através do projeto de formação de professores indígenas da
CPI-AC, fortalece sua identidade e assim toda a sua sociabilidade. Naquele momento
inicial de minha pesquisa, anterior à experiência etnográfica, conectamos tais questões
às noções de Manuela Carneiro da Cunha, que nos diz que a pajelança prolifera com o
englobamento de perspectivas. Esta ideia foi uma das fontes inspiradoras desta
pesquisa.

Todavia, a pesquisa tomou um rumo totalmente diferente. Estava extremamente


inquieto com o desenvolvimento da pesquisa, minha intenção era ter a pajelança como
pano de fundo central., mas não como um objeto fruto de uma relação comercial voltada
para um público urbano com seus devidos interesses pessoais de “cura”, “reconexão
com a natureza” e afins. Eu desejava estudar a estrutura da cultura, e não aquela que
povo um imaginário contemporâneo marcado por características exotisantes. As
circunstâncias que me possibilitaram realizar a pesquisa de campo me inseriram em um
contexto totalmente diferente. Além de ter realizado a pesquisa de campo na aldeia do
Mutum, meu objeto de estudo e informantes mudaram de forma radical.
Em meu percurso enquanto orientando de Els Lagrou, que possui no centro de
seu trabalho as questões da arte entre os ameríndios (mas especializando-se nos
Kaxinawa, povo do mesmo tronco linguístico Pano que os Yawanawa), também sempre
tive manifesto um interesse nas questões da estética. E isso não ocorreu por simples
influência metodológica e/ou teórica, mas também porque no contexto amazônico as
imagens e as formas possuem um papel central na pajelança, pois por meio delas
aprende-se, ensina-se e age-se no mundo. Em dado momento, fui apresentado por minha
orientadora aos trabalhos artísticos feitos por Hushahu Yawanawa, que habita a aldeia
do Mutum, também no Rio Gregório. A partir daí, intensifiquei minha pesquisa sobre a
referida artista que é, junto a sua irmã Putanny, uma das primeiras mulheres a

3
participarem das cerimônias de Ayahuasca entre os Yawanawa e também dos
resguardos de formação na pajelança.
A partir deste momento, decidi reconfigurar a minha pesquisa e centra-la em
Hushahu. Ao longo das minhas pesquisas pela internet e material antropológico, percebi
que havia nenhum trabalho sobre Hushahu. Segui acompanhando-a a distância na
intenção de construir um novo projeto de pesquisa centrado na arte e na transformação
da cultura. Esta proposta foi se consolidando com o passar do tempo e firma-se, de certa
forma, com uma pequena incursão que fiz no universo das artes contemporâneas dos
povos indígenas.

Na presente pesquisa, proponho estudar algumas destas inovações culturais


elaboradas pelos Yawanawa da aldeia do Mutum (TI Rio Gregório/AC) a partir do seu
envolvimento com movimentos xamanísticos e artísticos voltados ao público urbano. A
realização de grandes eventos destinados a receber estrangeiros (Nawa, na língua dos
Yawanawa) interessados nas práticas xamânicas e na cultura indígena de uma forma
geral, é considerado pelos Yawanawa como um momento de celebração da conquista de
novas alianças e crescimento da autonomia do povo Yawanawa. Uma das inovações
mais celebradas pelos mesmos é a qualidade artística de seus trabalhos com miçanga
(com o surgimento de novos motivos a partir de visões com ayahuasca) e a reintrodução
da pintura corporal com jenipapo e urucum. Neste contexto, Hushahu Yawanawa
aparece como importante liderança artística Yawanawa, sendo considerada a
responsável pela retomada dos grafismos tradicionais (os Kene) assim como pela
introdução de outros novos.

Este fenômeno, que suscita importantes reflexões com relação à redefinição dos
papeis de gênero nesta sociedade indígena, também ocorre entre os Shipibo (grupo pano
peruano, Colpron, 2005) e em menor escala entre os Kaxinawa dos Rios Jordão e
Tarauaca (Lagrou, comunicação pessoal5) e envolve também as relações de contato com
movimentos religiosos e alternativos e urbanos que têm a ayahuasca como elemento
central. Assim, nossa análise busca se concentrar na relação entre o processo criativo
artístico e a redefinição de práticas xamanísticas em diálogo com novos fenômenos e
movimentos urbanos para que possamos compreender, em diálogo com a antropologia
americanista, o papel destes dois domínios nos processos de atualização da cultura.

5
Onde não surgiram mulheres assumindo o papel de xamã, mas onde as mulheres também tomam
ayahuasca, sopram rapé e cantam nos rituais de nixi pae, algo que tradicionalmente era reservado aos
homens. (Comunicação pessoal de Lagrou, 2014).

4
Nos últimos anos, os Yawanawa têm procurado diversas formas de retomarem
costumes em risco de esquecimento e vêm estudando, pesquisando e registrando seus
costumes e práticas. Devido aos novos tempos, muitos destes costumes acabam sendo
readaptados e diversas transformações se manifestam. Lagrou (2014) sugere que os
quadros figurativos de artistas que, como Hushahu, que se referem à visão com
ayahuasca , atendem a novos fins de “explicar uma visão”, complementar e de modo
diferente dos Kene. Porém, desejamos investigar aqui se, além de sua finalidade
pedagógica, carregam agência e como se inserem em um contexto mais geral da
pajelança Yawanawa. Compreender estas novas formas de fazer nos possibilita expandir
nossas noções sobre a transformabilidade da cultura, de como se formula novas
maneiras de fazer ver conceitos centrais de uma cosmologia (Viveiros de Castro, 2002;
Vilaça, 2006; Lagrou, 2007; Carneiro da Cunha, 1998 e Wagner, 2010), e coloca em
debate os novos contextos nos quais é possível à antropologia compreender o fenômeno
de atualização da cultura. A pesquisa busca contribuir com o debate sobre as noções
indígenas de si mesmo, que no contexto da interação com os movimentos neo-
xamânicos são traduzidas em termos ocidentais e urbanos, e que acabam influenciando
o modo dos indígenas de realizarem seus projetos e de se mostrarem para o mundo.

O que nos despertou o interesse em trabalhar com os Yawanawa foi perceber


como o desenvolvimento de diversos projetos de cunho cultural e ambiental se
movimentam em torno de práticas da pajelança que estabelecem regras,
comportamentais ou não, que possibilitam a retomada e valorização de costumes
elementares na constituição de um todo Yawanawa. Este movimento de visibilização de
certos costumes e práticas tradicionais é expresso nas mais diversas formas: são cantos,
histórias, desenhos, danças, cerimônias, alimentação, brincadeiras. As mudanças
ocorrem também na organização interna da aldeia. Hoje em dia afirmam ter um
contingente maior de pessoas que realizaram os principais resguardos do que se tinha
nas décadas anteriores.

Dentre estas características diacríticas, direcionamos nosso olhar para as


imagens que na concepção dos Yawanawa carregam “força”6. Aqui, compreendemos
como imagens os trabalhos com os Kene, as visões provocadas pela Ayahuasca (cocção
feita com o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas da Psychotria viridis (respectivamente,

6
Esta noção caracteriza as potencialidades espirituais/xamânicas que pessoas, coisas e seres não-humanos
podem possuir e assim efetuar ações na sociocosmologia circundante.

5
Uni e Kawa na língua Yawanawa), aquelas vivenciadas durante os sonhos e, talvez, os
quadros pintados em tela por Hushahu Yawanawa que traduzem experiências
provocadas pela Ayahuasca (também chamada de Uni em Yawanawa). Me pergunto, o
que é necessário para que sejam produzidas imagens dotadas de “força”? Seria possível
considerar os quadros figurativos de Hushahu como veículos de “força”?

Tive a oportunidade de participar da primeira festa Mariri Yawanawa como


público do evento e fui convidado a participar da dieta da Ayahuasca (a mais
introdutória e simples) no curto período de tempo que fiquei ali (aproximadamente duas
semanas). Tanto no evento que realizaram, quanto na participação nos resguardos, a
presença de pessoas de origem urbana era permitida e em ambos os momentos havia
outras pessoas participando dos mesmos processos que eu. Tanto na festa quanto na
dieta, estive acompanhado de outras pessoas vindas da cidade, que estavam em dieta por
motivos pessoais e inseridos na rede de alianças estabelecida com os Yawanawa aberta
para este tipo de atividade.

Fomos muito bem recebidos por todas as lideranças políticas e pelos pajés. Neste
período, tivemos a oportunidade de saber um pouco mais sobre estes processos e nos
ficou claro que, do ponto de vista nativo, para tornarem seus cantos, desenhos, rezas e
outras ações veículos de “força”, era imprescindível a realização das dietas próprias
para isso. A eliminação do doce, a abstinência sexual, a alimentação racionada e o
consumo de substâncias amargas como a Ayahuasca, o Rapé e o “Meyu” 7, são a base
das dietas. Nossa hipótese é que, tal como ocorre entre os Kaxinawa (Lagrou, 2007), os
Marubo (Cesarino, 2008) e os Katukina (Coffaci de Lima, 2000), as técnicas da
pajelança são realizadas após um processo de construção corporal que perpassa as
noções nativas de ser e estar no mundo. Deste modo, seriam as novas qualidades obtidas
pelos corpos submetidos a dietas que conferem “força” aos cantos, imagens ou outros
produtos do trabalho individual.

Na ontologia ameríndia, seres não-humanos podem ser dotados de agência,


intencionalidade e ponto de vista (Viveiros de Castro, 1996; Descola, 2005). Os
processos de construção corporal supõem o envolvimento com seres não-humanos que
possuem agência e envolvem deste modo a captura das “forças” de diversas substâncias
através do seu consumo. As noções de comensalidade (Costa, 2007) e

7
Chá feito da casca de uma árvore não identificada extremamente amargo e com propriedade de
desintoxicação do sangue.

6
consubstancialidade são aplicadas também para compreender este processo de
transferência de “forças”, apontando para um processo análogo à noção de “abdução de
agência” descrito por Alfred Gell (1998), aplicado à antropologia da arte e das
substâncias que fabricam o corpo por Els Lagrou (2003) e presente de modo geral nas
teorias da corporeidade ameríndia. Em diálogo com esta literatura ameríndia e pano
visamos analisar estes processos criativos de construção de corpos perceptivos no
recente contexto de intercâmbio xamanístico entre os Yawanawa.

A pesquisa apresentada visa estudar as principais concepções de imagem e


desenho yawanawa e como estas são atualizadas e reinterpretadas no contato com um
novo público externo. Para a realização desta pesquisa, parti dos trabalhos com
miçangas e de pintura em tela que Hushahu Yawanawa vem realizando nos tempos
atuais. Em um movimento similar ao que ocorre entre os Kaxinawa (Lagrou, 1998) e os
Shipibo-Conibo, as imagens yawanawa mais diacríticas estão associadas ao mundo dos
sonhos e das visões provocadas com o auxílio de substâncias psicotrópicas (Gil, 1999:
147-149; Oliveira, 2012: 156-161). Porém, só costumam ser acessadas depois de um
processo que implica transformações corporais provocadas pela abdicação de
determinadas substâncias e a introdução de outras. Minha hipótese se sustenta em
considerar que as relações com os outros se baseiam em uma noção de alteridade
enquanto local destinado à abdução de elementos externos a serem reinterpretados pelo
que já está dado, constituindo assim um contínuo processo de abdução da alteridade e
atualização da cultura Yawanawa. O fenômeno não é novo, e vem sendo observado
entre os povos amazônicos sob o prisma da teoria perspectivista de Eduardo Viveiros de
Castro e Tânia Stolze Lima. Naveira, Gil e Oliveira, autores das únicas etnografias
sobre os yawanawa disponíveis, puderam observar entre os Yawanawa da aldeia Nova
Esperança este modo relacional.

A partir de um estudo sob o prisma da antropologia da arte, da percepção e do


corpo, verifico a aplicabilidade deste modelo ontológico e relacional aos yawanawa da
aldeia do Mutum, tendo como ponto de partida dados que me informam sobre os
processos de criação e de construção de corpos durante os resguardos da pajelança. A
orientação por uma imersão participante no campo das dietas veio dos próprios
Yawanawa. Por reconhecerem que as habilidades de Hushahu foram desenvolvidas e
fortalecidas durante os resguardos, eu deveria fazer o mesmo para poder compreender

7
este processo de transformações que se dão no corpo e se refletem nas imagens que este
corpo é capaz de produzir.

Como sabemos, a construção de um corpo pode atender aos mais diversos fins
que circundam a pajelança yawanawa. Processos de cura, tratamentos aos recém
nascidos, feitiços, dentre outros, demandam a realização de resguardos específicos,
usualmente guiados por um tipo de substância (resguardo do jenipapo, caiçuma,
ayahuasca, Kapum e etc.). Porém, aqui estamos querendo tratar de imagens que, dentre
tantas outras funções possíveis, são capazes de carregar forças capazes de gerar
transformações em corpos e na realidade circundante. São mirações que trazem
ensinamentos, sonhos que desvendam perguntas ou os Kene que são usados em alguns
trabalhos de cura. Entre os Yawanawa, uma pessoa produz este tipo de imagem somente
após diversos processos de construção corporal por meio da abdicação e introdução de
determinadas substâncias no contexto das dietas.

A minha presença na aldeia durante o Mariri e a participação no resguardo me


fizeram reformular toda a minha hipótese desta pesquisa, uma vez que tivemos a
oportunidade de nos familiarizar com o universo a ser estudado por meio de conversas,
material fotográfico e participação nas dietas que nos permitiram compreender como
funcionam estes processos de transformação corporal. Ensinaram-me histórias, Kene,
cantos, rezas, regras das dietas e também passaram diversas informações sobre o novo
panorama histórico. Neste contexto, me chama a atenção o importante papel
desempenhado pela arte na relação dos Yawanawa com o mundo não-indígena durante
as últimas duas décadas.

Minha análise busca, portanto, compreender melhor o papel das artes e imagens
no cotidiano Yawanawa e sua importância na reelaboração de relações com o mundo
externo. Com esse material, acredito ser possível analisar, ainda que brevemente, como
a arte pode influenciar o processo de atualização cultural e como estas imagens operam
nas diversas redes relacionais. Compreender a participação dos Yawanawa em um
universo neo-xamânico e artístico no qual participam diversas entidades urbanas é
imprescindível para que eu possa gerar algum entendimento sobre estas atualizações da
cultura que são expressas nas artes e pelas mulheres que as produzem e se envolvem
diretamente com a pajelança.

Busco analisar as categorias de maior relevância nestes processos inter-


relacionados de construção corporal e de criação artística e, assim, conectar os dados
8
obtidos com a literatura existente sobre os Yawanawa em particular e os Pano em geral.
O material de que disponho são algumas histórias de pessoas que fizeram as dietas,
relatos sobre arte e imagens, o que costumam usar para ilustrar um saber, regras
alimentares e de relacionamento, o que pode ou não ser contado, mitos que ensinam
sobre as dietas, animais e espíritos de importância, dentre tantas outras coisas. Este
material é interpretado à luz do processo de atualização cultural e de tradução no
contexto ritual que se construiu em torno do uso da ayahuasca e que conecta os jovens
da aldeia aos jovens das cidades brasileiras e do exterior.

1.2 A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA


Inicialmente, pretendia realizar minha pesquisa de capo no início do ano de
2013, no interesse de ficar na aldeia por ao menos três meses consecutivos. Todavia, o
desenvolvimento da pesquisa e a conjuntura na qual estava inserido só me permitiram
fazer a pesquisa em Setembro de 2013. O momento foi fortuito, pois ocorreu a primeira
festa denominada “Mariri Yawanawa” que se realiza, agora todos os anos, na aldeia do
Mutum. A festa possui a mesma estrutura daquela que ocorre em Nova Esperança, mas
se propõe ser mais intimista e com menos pessoas de fora da aldeia. A minha entrada
em campo se deu de uma forma distinta daquela usualmente experienciada pelos
colegas de carreira. Entrei na aldeia enquanto público de um evento etnoturístico e era
tratado desta forma pelos Yawanawa. Desta forma, na minha primeira semana no
Mutum fiquei observando a festividade e conversando, principalmente, com o público
do evento. Neste breve espaço de tempo, já pude verificar que muitas das coisas que
pensava encontrar eram totalmente distintas daquilo que considerada inicialmente.
Havia três tipos de público principal: as pessoas que representavam instituições
(governo, mídia, sociedade civil e artistas), as pessoas que vinham de outros países e
aquelas pessoas que já faziam parte da rede de alianças com os Yawanawa. Devido ao
grande ritmo de atividades, que começavam já pelas 8am e acabavam por volta das 4am,
era quase impossível ficar muito tempo conversando com eles, o que me obrigou a
aguardar o fim do festival para iniciar as entrevistas e vivência participativa no estilo de
vida yawanawa. Isso ocorreu, principalmente, com Hushahu, uma vez que era um dos
personagens principais do evento por sua qualidade de líder de canto e guia de
cerimônias.
Porém, ao fim do festival, quando acreditava poder ficar mais tempo com
Hushahu, a mesma teve que ir à cidade de Tarauacá para cuidar da saúde dentária de seu

9
filho mais novo. Neste meio tempo, fui direcionado a ficar no Centro Cerimonial de
Terapias para iniciar o resguardo da Ayahuasca junto à antropóloga Alice Haibara, que
já tinha amizade com os Yawanawa. Depois de poucos dias, ficamos sabendo que
Hushahu havia adoecido de forma grave, com suspeita de ter contraído algum tipo de
ameba. Foi a primeira vez na vida de Hushahu que a mesma teve que ser internada em
um hospital, o que provocou grandes preocupações sobre a sua saúde. Como resultado,
praticamente todos os Yawanawa que seriam meus informantes foram para a cidade
acompanha-la. Acabei ficando, junto a Alice, quase sozinhos no Centro Cerimonial com
exceção de Matsini e Txana, na época casado com Kenewama (filha da liderança
Mariasinha). Não podíamos ficar saindo muito do Centro para ir à aldeia devido ao
resguardo e à necessidade de isolamento do cotidiano da aldeia. Por conta disso, fiquei
extremamente preocupado com o decorrer de minha pesquisa, uma vez que só tive
condições de ficar aproximadamente um mês em campo. Porém, como meu objetivo de
pesquisa era focado nos processos criativos de construção de imagens, me fora indicado
conversar com Txana, uma vez que ele era o único que fazia desenhos junto a Hushahu.
Segui os aconselhamentos e decidi me dedicar ao resguardo e com o passar do tempo
comecei a perceber que minha pesquisa estava sendo descentralizada das questões sobre
a arte e direcionada para as do resguardo. Não consegui “ver” as questões da arte e da
criatividade, tudo o que me fora ensinado tratava de resguardo, corpos, relações com
seres espirituais etc. Este fora meu momento de crise metodológica e de experiência do
famoso “anthropological blues”, já não sabia os destinos aos quais a minha pesquisa
estava submetida.
Com esta preocupação em mente, busquei formas de ir à cidade para
acompanhar o caso de Hushahu. Ao chegar na cidade, ela já estava com um quadro de
saúde positivo. De acordo com a mesma, ela não tinha todos os sintomas comuns aos
casos de ameba e, por conta disso, usou das técnicas da pajelança sobre as quais sua
filha, Hukena, já tinha domínio. Com a técnica do sopro usada sob efeitos do rapé, teria
realizado a cura de Hushahu, o que lhe valeu um reconhecimento maior de seu poder.
Na cidade de Tarauacá, pude ter muitas conversas que não consegui na aldeia, pois lá
estava Júlia, que conhece muito bem a história dos Yawanawa, Hushahu e Hukena.
Acredito que este momento me foi fortuito para mostrar minhas intenções de pesquisa e
de alianças, pois ali dei início a relações afetuosas de amizade e companheirismo.
Porém, também fui vítima de infortúnios (furto) cometidos por um dos Yawanawa.
Todavia, o apoio e a consideração à minha situação puderam me trazer mais fatos que

10
dissertavam sobre o modo deles de se relacionarem com as influências negativas que o
contato com as culturas ocidentais lhes traziam. A condição de pobreza, os interesses
consumistas de alguns e a discrepância que estes teriam com os valores de solidariedade
e colaboração com os que vêm de fora que sempre me foram mostrados pelas lideranças
yawanawa.
Com o passar do tempo, e chegando ao fim do meu período de campo, percebi
que ainda necessitava de muitas informações para dar continuidade aos meus objetivos
de pesquisa. Esta primeira inserção foi importante para criar as bases da relação e
entender, de fato, o que poderia ou não estudar entre eles. Por conta disso, já sabia que
seria de extrema importância retornar à aldeia, pois me causava extremo desconforto
falar com uma autoridade de pesquisador sobre um contexto do qual sabia entender nem
o básico.
Ao retornar, me dediquei totalmente à sistematização dos dados que havia
coletado. Ainda que tenha tido enormes dificuldades em conversar com Hushahu,
consegui realizar muitas horas de entrevistas e muitas conversas com aqueles que
possuem alianças de longa data com os yawanawa, principalmente com aqueles que
faziam parte do projeto Mão da Terra (financiado pelo Fund Intent da Rússia) que já
possuíam longa estrada na pajelança e conheciam muito dos yawanawa, além da
inestimável contribuição de Matsini, que é uma das principais e mais influentes
lideranças espirituais dos yawanawa. Sem sua contribuição, esta pesquisa não teria sido
possível.
Depois de ter os dados sistematizados, fiquei extremamente descontente com a
enorme dificuldade que teria para retornar ao Mutum. Isso porque mesmo para a minha
primeira ida a campo, tive grandes gastos e perdas financeiras que dificultavam a
realização da pesquisa de campo. Todavia, ao localizar uma passagem possível para
retornar ao Acre, me articulei para tal retorno independente do que isso poderia me
custar. Desta forma, retornei ao Mutum no mês de Fevereiro de 2014, momento no qual
Hushahu estaria na aldeia e poderia dar continuidade à minha pesquisa.
Infelizmente, só pude ficar por três semanas na aldeia por motivos financeiros, já
que custeei toda esta parte da pesquisa com minha verba pessoal (a outra parte contou
com o apoio do PPGSA, UFRJ). Porém, o momento foi extremamente fortuito, pois
neste período posso considerar que fundamentei as bases de uma relação de amizade e
troca que considero serem fundantes para uma pesquisa antropológica. Digo isso por

11
considerar este tipo de relação imprescindível para uma pesquisa que implique o
antropólogo nos objetivos políticos daqueles quem ele estuda.

1.2.1. O resguardo
Nas duas ocasiões que fui ao Mutum, participei do resguardo da Ayahuasca
como forma de aprendizado dos processos de transformação corporal que objetivavam
me fazer “ver”. Ao nível pessoal, sempre tive o que consideram um bloqueio para as
visões. Por conta disso, tomei minha experiência pessoal como forma de estudo e
compreensão destes processos. Os aconselhamentos, os ensinamentos e as explicações
para tal problema me ensinaram muito sobre tal processo criativo. Modos de
alimentação, regras de comportamento, dedicação ao estudo, resistir às dificuldades da
dieta (como fome e isolamento na mata). Aqueles que lá estavam em resguardo ou os
guiando se surpreendiam, de certo modo, com a quantidade de Ayahuasca e a
dificuldade que tinha para “entrar na força”. O que me era aconselhado era sempre
observar as mudanças corporais que sofria, além também de sempre refletir sobre os
pensamentos que me vinham durante a cerimônia. As mudanças corporais estavam, pelo
que pude observar, no peso de meu corpo e nas substâncias escatológicos. Era fácil
perceber como meu estado mental, mesmo em estados ordinários de consciência, fora
alterado ao longo de todo o processo. Clareza de pensamento, esse era um dos principais
benefícios que me disseram que teria, e isso se concretizava. Pude ter esta percepção,
principalmente, nos dias em que estava mais em conflito com as dificuldades do campo
e que, durante as cerimônias, encontrava uma resolução para estes conflitos na atividade
mental provocada pela Ayahuasca. Em conversas com Matsini e Hushahu, estes me
explicavam como esse processo pelo qual passei era comum e inerente aos modos de
ensino da pajelança Yawanawa. Na minha primeira ida ao campo, houve duas
cerimônias nas quais tentamos “forçar” as visões em mim. Na primeira cerimônia,
consumimos a Ayahuasca feita com o cipó que possui uns caroços em seu caule, que é
considerado muito mais potente do que o cipó comum, que é liso. Nesta ocasião acabei
dormindo durante a cerimônia. Porém, durante este período, comecei a ter muitos
sonhos (o que normalmente nunca tenho) que envolviam elementos e personagens da
pajelança, como o pássaro txana, a cobra e as araras. Me fora dito que ainda que eu
tivesse dificuldades de ter as visões da Ayahuasca, a clareza de pensamento, a magreza
e a atividade dos sonhos eram evidências das transformações provocadas pela
Ayahuasca. No último dia desta primeira ida ao Mutum, Hushahu retornou à aldeia e

12
participou da última cerimônia que tive lá. Preocupada com a minha dificuldade de ver,
me fez beber um copo cheio (mais ou menos cinco vezes uma dose comum) de
Ayahuasca e, ainda não conseguindo ter as visões, me fez beber outro na mesma
quantidade. As visões não surgiam da forma como eram esperadas, mas os processos de
confusão entre a realidade material e sonhos, além de intensas limpezas escatológicas,
ocorreram. Ao pedir que me explicassem tal situação, contaram-me que era claro para
eles que eu deveria passar por um processo de cura, pois tal bloqueio teria relações com
a minha espiritualidade que precisava ser trabalhada. Isso se refletiria no meu corpo e,
como era nele que as transformações ocorriam primeiramente, se refletiria nas minhas
capacidades espirituais de contato com os espíritos. Infelizmente este diagnóstico foi
dado no meu último dia na aldeia, o que fortaleceu meu desejo de retornar ainda durante
minha pesquisa de mestrado.
Durante a minha segunda estadia, busquei dar continuidade, em conjunto à
coleta de dados, aos meus processos de transformação. Pude ser acompanhado por
Hushahu de mais perto e assim aprender muita coisa. Nesta estadia, tentei, ainda que
sem sucesso, participar do resguardo do kapum (descrito posteriormente). Como não
havia caiçuma para que realizasse a dieta nos moldes adequados, dei continuidade, por
duas semanas, ao resguardo da Ayahuasca que já havia feito na primeira ida ao Mutum.
Ainda me observando durante tais processos, ficou claro como tais transformações
corporais e mentais refletem na percepção mesmo durante estados ordinários de
consciência. Relatavam-me diversas coisas que deveriam ocorrer comigo, uma vez que
eram esperadas durante este mesmo processo independente de quem o faça. Do
surgimento de sonhos com elementos da pajelança e clareza de pensamento, vivenciei,
inicialmente, a visão de sombras, o escutar de cantos, o compartilhamento coletivo de
sonhos e visões dentre outras coisas. O envolvimento com este campo da realidade
perceptível, ao ser explicado pelos yawanawa, atestaria como estas transformações me
levariam a ter visões que carregam “força” e ensinamento, ainda que deveria ter ficado
ao menos mais um mês para que o processo fosse concluído. Esta experiência empírica
me possibilitou comparar o que percebia de concreto e o que era dito sobre o que
deveria ocorrer. A correspondência entre estes dois domínios me possibilitou participar
da experiência de campo de uma forma próxima que seria muito inferior caso somente
observasse e relatasse o que supostamente ocorre durante tais processos.
Assim sendo, minha intenção em relatar tal experiência remonta à necessidade
de explanar que aquilo que aqui relato também é baseado em observações empíricas

13
sobre a transformação corporal à qual as pessoas, sejam elas yawanawa ou não, se
submetem durante o resguardo. Por fim, esperamos que o relato possa de fato contribuir
com o saber antropológico, principalmente no que diga respeito à uma etnografia que
busque implicar uma experiência envolvida com a realidade que se propõe explicar.
Aqui, acredito, em consonância com autores como Favred-Saada e Arnaud Halloy, que
o antropólogo deve assumir-se não somente enquanto um campo de construção de um
saber científico desconexo dos problemas que nossos “objetos de estudo” vivenciam,
mas como um ator que propõe se submeter a problemas parecidos, ou seja tenta ver
como as situações nas quais se colocam os nativos podem afeta-lo para deste modo
melhor entender de que falam os nativos quando falam de pajelança, feitiço ou
possessão8.

1.3 UM PERCURSO TEÓRICO


É Lévi-Strauss quem, na antropologia, desmantela as categorias de sensível e
inteligível, considerando os elementos da sensibilidade instrumentos para a
compreensão da realidade. Para a teoria levistraussiana, o ato de pensar ocorre por meio
de metáforas através do exercício da função simbólica. Desta forma, tornar-se-ia
fundante etnografar elementos sensíveis envolvendo-se, nesta escala e na
epistemológica, com a realidade na qual se busca estudar. Portanto, a etnografia, e aqui
buscamos seguir este modelo em campo, permite o acesso a um outro modo de produzir
conhecimento a partir do diálogo com as teorias nativas. Esta forma de fazer
antropológico, simétrico/reverso (que tem sua continuidade, com outros e diferentes
termos e implicações, com a proposta de Viveiros de Castro e Wagner), considera a
ação etnográfica enquanto uma experiência que permite esta inserção nas categorias
nativas por meio do exercício do pensar através de categorias sensíveis. Este tipo de
inserção nos permite identificar no campo do sensível aquelas categorias ocidentais que
não possuem correlatos verbais. Todavia, esta “ausência” não torna-se um problema ao
tomarmos as teorias nativas enquanto teorias propriamente antropológicas.
Compreendendo o corpo por meio de categorias nativas em contexto amazônico
faz perceber que as qualidades de seu corpo são de origem externa. Em sentido oposto

8
Ver Favred-Saada (1990) e Arnaud Halloy (2012) para abordagens teoricamente parecidas: Favred-
Saada propõe deixar-se afetar pelo sistema da feitiçaria em um vilarejo no Sul da França quando aceita a
posição de enfeitiçada que precisa de cura e Arnaud estuda os efeitos da experiência da possessão em um
Candomblé de Recife para se aproximar de uma compreensão vivido do que poderia ser a experiência dos
nativos. É crucial ter em mente que nenhum dos dois autores afirma ter conhecimento sobre o que sentem
os nativos. Ninguém pretende entrar nem na cabeça nem na pele do nativo. O que se propõe é
experimentar um aumento de compreensão ao se deixar afetar. Ver também Goldman (2005).

14
ao dualismo entre corpo e alma do modelo ocidental (ou naturalista, conforme a noção
descolaniana), o corpo ameríndio é feito por meio dos olhares externos e não-
essencialistas. A proposta de modelo oferecido por Seeger, da Matta e Viveiros de
Castro (que, em associação com as teorias de Carneiro da Cunha e Lagrou, abre o
campo teórico desta pesquisa) dialoga com o modelo de ontologia animista (que seria
característico de muitos povos indígenas) de Descola (2005) e perspectivista de viveiros
de castro (1996), no qual os corpos diferem-se a partir da perspectiva do outro que tem
como papel objetificar o corpo. A noção indígena de corpos isolados não existe, mas
sim um aspecto coletivo onde corpos constroem corpos e fluem energia e são, ao
mesmo tempo que matéria e conhecimento (Kensinger, 1995; McCallum, 1996; Lagrou,
1998, 2007).
Assim sendo, cada pessoa é um feixe de relações e sua existência não resume-se
ao corpo. Portanto, a tensão entre a pessoa e, se pudermos assim falar,
personagem/persona não existe para os ameríndios, pois a pessoa define-se a partir de
suas redes de relações. A concepção que veio a se consolidar em toda a antropologia
brasileira e internacional, coloca ênfase no modo relacional baseado na predação” onde
impera a regra da troca de substâncias/perspectivas. Esta relação, no entanto é
complementada pela relação de produção que ocorre por meio das relações de
comensalidade e consubstancialidade (Overing, 1991; Lagrou, 2007; McCallum,
1996;Gow, 1999 Belaunde, 2006).
As diferenças ontológicas entre modelos animista e naturalista podem ser
consideradas implicações teóricas, e observáveis, da teoria levistraussiana sobre a
distinção entre natureza e cultura. Na sua busca de desfazer as noções que isolam estes
domínios em campos distintos, Lévi-Strauss propõe que a cultura seja um resultado da
natureza. A capacidade de opor e racionalizar, partilhada por todos os humanos (1976)
estaria na própria natureza na forma do cérebro. Consequentemente, a diversidade
cultural é resultado manifesto da natureza, pois dela depende. Assim, a vida social deixa
de ser um artifício por ser operadora de estruturas além do controle da consciência.
Inicia-se, assim, uma tendência de análise lógica e estética do pensamento humano.
Dando continuidade ao trabalho de Lévi-Strauss, a teoria perspectivista
desenvolvida por Viveiros de Castro preconiza que a cultura é dada e a natureza é
construída. De forma análoga ao modelo de Roy Wagner (2010), onde a cultura engloba
a tudo, considera-se a necessidade da troca para a construção de alguma coisa. Na
ontologia perspectivista o Outro (animal, espírito ou inimigo), com quem se troca, é

15
diferente por possuir um corpo que possui outra natureza e habitar deste modo em outro
mundo determinado pelo seu ponto de vista. Assim, o problema (ver Viveiros de Castro,
2004) da tradução é inerente ao pensamento cosmológico nomeado como
"perspectivismo". Esta linha teórica representa uma introdução anticolonialista do
pensamento nativo no conhecimento antropológico. Viveiros de Castro afirma que toda
cultura se compara com outra através de si, não havendo realidade objetiva, pois toda
realidade seria contextual e relacional.
Ao aplicarmos esta linha de saber ao campo da estética temos questões
específicas que nos fazem chegar ao estudo aqui apresentado. Estas questões foram
muito bem evocadas no debate em Manchester de 1993 em torno do uso transcultural do
conceito de estética (Ingold, 1994; Ver discussão Lagrou, 2007, 2009). Na crítica de
Overing (1996) ao uso do conceito de estética, este nos é apresentado como um
movimento explicitamente modernista. No debate Overing e Gow mostram, como o
julgamento da beleza e do gosto, são um claro fenômeno do modernismo europeu.
Neste debate, Howard Morphy, que defende o uso transcultural do conceito, trata a
estética como as capacidades sensoriais dos humanos que o tornam capaz de construir e
dar forma aos estímulos. Weiner e Morphy consideram a estética como uma categoria
transcultural que deve ser pensada nos termos da sociedade que a pensa. São estas
outras formas de pensar a estética que a confeririam sua capacidade transcultural.

Já considerando as contribuições e Alfred Gell (1998), os artefatos são


entendidos como materializações de intenções complexas de distintos agentes sociais. A
análise artística partiria da capacidade de captura destas intenções/agências presentes no
ou objetificados pelo objeto, pois seria implícita à uma conjuntura que faz pensar as
intencionalidades sem poder comprová-las empiricamente, mas somente ao nível da
abdução das intenções daquele que produziu ou fez produzir o artefato. Gell usa a
concepção de arte como pessoa, mas nega seu isolamento, propondo sua inserção na
rede de relações sociais que cercam as pessoas e que são mediadas por objetos. Assim, a
forma relaciona-se com a agência do objeto. Conforme o pensamento animista, que
seria, para Gell, uma teoria da agência, os objetos agem conforme agem os humanos.
Lagrou (2002, 2007, 2009) mostra como a teoria de agência de Gell se casa bem com o
pensamento perspectivista. Não é a forma que lhe confere esta agência, mas sua relação
referente a um modo de pensar a relação entre humanos e não-humanos e tal capacidade

16
de agir do objeto estaria em todos os objetos, e não somente alguns escolhidos pelas
afeições pessoais dos antropólogos.

Tomando o caso Yawanawa como base,


busquei realizar este estudo sobre os trabalhos
com kene e desenhos, como o Awa Vana
(motivo da borboleta), enquanto marcadores
culturais que acabam por fortalecer esta
identidade yawanawa. Percebemos que o Awa
Vana não é considerado como possuidor de
grandes forças na pajelança, mas funciona como
um guia para o encontro com tais forças, como a
Runu (cobra) ou a própria Vana (mulher
conhecimento). Isso são afirmações de diversos

informantes, que salientam que o Awa Vana é Figura 1- Pintura em tela com tinta acrílica.
Mulher do conhecimento e fractais. Autora:
mais um símbolo do “revival cultural” do que Hushahu
um instrumento de ação xamânica, como são os kene da cobra e tantos outros.

Todavia, as combinações dos múltiplos kene que vemos nas produções


contemporâneas salientam um percurso, inicialmente pelo olhar, entre múltiplas formas.
A própria construção do desenho do Awa Vana envolve uma relação com os motivos da
Runu, percebidos com o refinamento do olhar. Uma vez que o Awa Vana também é
usado na pintura corporal, em processos de captação de forças e agência no corpo, ele
aproxima-se do campo da Cultura.

Conforme o que foi dito no início desta pesquisa, o processo criativo de


Hushahu nos informa sobre formas possíveis nas quais a Cultura yawanawa possui
“cultura”. Isso porque cada tipo de trabalho que Hushahu venha a desenvolver demanda
para sua compreensão do observador um determinado saber sobre as formas que se
apresentam. Tanto para os kene usados para a cura, quanto para aqueles usados para o
embelezamento, como as pinturas plásticas figurativas e figurativas-abstratas feitos por
Hushahu, dependem da agência gerada no seu observador/suporte.

No período pós-campo, Hushahu veio a desenvolver mais um quadro (à direita)


que nos pode ser útil na reflexão sobre o quanto a transformabilidade na Cultura, gerada
pela interface do domínio do estético entre Cultura e “cultura”, busca traduzir ao outro

17
os seus saberes. Esta imagem nos proporciona mais um exemplo da transformabilidade
do mostrar-se ao outro que corresponde, ao menos no campo do estético, a certas
expectativas representacionalistas do ocidente. Aqui falamos sobre as culturas “nova
era” (Losonscy & Mesturini, 2010a, 2010b; Cavalcante, 2011). Estas são formas
estéticas reconhecidas pela sua representação dos encontros psicodélicos com as plantas
de poder e ícones ameríndios que atestam a conexão da imagem com todo o referencial
enteogênico (Langdon, 1992) ao qual se refere. Consideramos, assim, estas imagens
como exemplos claros dos efeitos da transformabilidade da cultura. Reconhecemos, de
forma imprescindível, que não representam e falam de toda a cultura yawanawa (o que
seria impossível para uma pesquisa deste porte), mas sim deste aspecto específico.
Como se percebe, as técnicas utilizadas para fazer imagens falam da sociedade que a
produz (Severi, 2012). Assim, estilos diferentes de representações apontam para uma
ontologia específica, ou ainda, dissertam sobre um complexo cultural, como podemos
ver nos trabalhos de diversos antropólogos da arte como Els Lagrou, Peter Beysen,
Lucia van Velthem e Luisa Belaunde.

Aqui, ainda que indiretamente, nos


colocamos dentro do debate contemporâneo
sobre a relação entre grafismo e figuração, e
que remete ao conceito de quimera (Severi,
2012; Lagrou, 2013) responsável por unir o
que está e o que não está presente, o que é
sugerido pela imagem. A proposta de Lagrou
é tomar os grafismos indígenas como
quimeras (como diz Severi), que expressam a
relação entre o caráter da imagem
"quimérica" e a ontologia da transformação. Figura 2 - Exemplo de grafismo corporal.
O uso desta noção na compreensão da arte de
povos ameríndios funciona melhor do que o termo geometria. Neste, a figura elementar
é vista anteriormente em relação à imagem feita. A ideia do abstrato permite explorar
qualidades da imagem que não seriam concebidas de outra forma. O desenho não parte
da relação entre figuras, mas sim da relação entre linhas e espaços (isso também é
observado entre os kene yawanawa, ainda que tenham alguns mais figurativos
excluindo-se as pinturas plásticas). A transformação da percepção relaciona-se com uma

18
sobreposição da imagem sobre o fundo, e não com uma mera substituição. No caso
kashinawa estudado por Lagrou, é o pucntum9 que torna a imagem cognitivamente
captável e saliente. Porém, este não é o caso yawanawa, uma vez que a relação entre
linhas e espaços não contempla todas as imagens produzidas por eles. Dizemos isso por
haver diversos grafismos corporais e pinturas plásticas, todos feitos por Hushahu, que
contam com claras figurações. No caso de Hushahu, muitas das figurações são resultado
ou resultam em formas abstratas. Conforme Lagrou, no caso da arte kaxinawa a
figuração ilustrativa e explícita só ocorre depois do movimento de obviação, quando a
figuração surge para explicitar aos brancos o que eles não sabem. Na figuração, os
ameríndios buscariam obviar aquilo que poderia por iniciados ser visto na sugestão, na
arte quase e portanto quimericamente abstrata, que sugere a figura mas não a mostra
totalmente e este fenômeno seria recorrente em muitas artes gráficas ameríndias
(Lagrou, 2011, 2012, 2014). O desenho abstrato abre para a percepção da figura, sendo
a imagem o mediador entre o visível
e o invisível.

De acordo com Lagrou, a


clássica quimera indígena ofereceria
poucos detalhes, mas o suficiente
para guiar o olhar para uma imagem
virtual e completa. Assim, sua
concepção de quimera supõe uma
produção perceptiva por parte do Figura 3 - Exemplo de grafismo corporal
observador. Este fenômeno,
denominado como percepção imaginativa, delega ao exercício mental a finalização dos
desenhos. Na concepção de Severi, que considera duas imagens juxtapostas como
produzindo a quimera, as mesmas apontariam para um ser composto e resultante de um
processo de construção de identidades complexas. Severi também chama a atenção para
a importância da parte invisível, mental, nas imagens ameríndias, como no caso hopi
(Severi, 2007). Em seu artigo sobre o processo perceptivo do desenho em contexto
ritual Lagrou indica a importância do enquadramento do olhar. Podemos ver as dietas,
que evocam as questões do modo de conhecer o mundo, do mesmo modo como
enquadramentos da percepção do mundo.

9
Lagrou identifica no grafismo kashinawa pontos que destoam da trama utilizada na imagem e que
acabaram conferindo uma diferenciação única ao objeto em si.

19
Desta forma, sustenta-se a ideia de que as relações operadas nos processos
criativos de percepção das imagens yawanawa são análogas aos processos de construção
corporal, pois ambos são partes/metades do mesmo movimento cíclico. Foi assim que a
pesquisa que objetivava analisar o campo estético da pajelança yawanawa acabei
desenvolvendo um estudo sore o corpo dotado de forças xamânicas e criativo
esteticamente.

20
2 OS TEMPOS YAWANAWA
Neste primeiro capítulo, queremos trazer ao conhecimento do leitor um breve
panorama do trançado de relações que os Yawanawa do Rio Gregório realizaram com o
“branco” desde o início do contato. Aqui, focaremos nas principais estratégias de
relação estabelecidas conforme determinadas intencionalidades e os produtos desta
relação com o outro. Buscamos mostrar como foram articuladas estas estratégias
relacionais no período da seringa, dos missionários, da FUNAI e em outras três etapas
que achamos serem úteis para uma análise comparativa de alguns momentos de
relevantes transformações culturais. Estes são os períodos “da Aveda”, “das festas” e
“da abertura do Mutum”. Para fechar o capítulo, traremos um panorama sobre a
contemporaneidade dos Yawanawa e uma contextualização centrada na artista aspirante
a Pajé Hushahu Yawanawa.

Numa tentativa de compreender os Yawanawa, buscamos produzir uma imagem


no leitor que o permita associar um conjunto de elementos às características de um
determinado modo de ser. Aqui devemos estar cientes de todas as limitações e das
certezas de falha neste objetivo, uma vez que é imprescindível reconhecermos a
impossibilidade do antropólogo em realizar tal tradução fidedignamente, ainda mais no
escopo de um Mestrado. Portanto, deparar-nos-emos à frente com uma descrição que
busca utilizar-se das noções nativas na confecção da etnografia. Dessa forma, o que se
pretende aqui é tentar realizar uma tradução das concepções Yawanawa a partir de suas
próprias classificações.

2.1 COMO OS YAWANAWA SE VEEM


Raimundo Luiz foi a liderança anterior a Biraci e Tashka, na época em que
moravam no antigo seringal Kaxinawa do Rio Gregório. Ele era muito reconhecido pela
sua capacidade de liderar e pelos seus conhecimentos sobre o mundo dos espíritos. Em
campo, sempre que me falavam sobre Raimundo Luiz não deixavam de citar a sua
importância perante a comunidade. Conforme relataram, ainda que os Yawanawa
tenham deixado de fazer diversas coisas que consideravam tradicionais, Raimundo Luiz
buscava manter a maior parte dos costumes, pautando-se nas coisas que faziam e no
modo como viviam antigamente. Ouvi em alguns relatos da geração de Hushahu e da de
seus filhos sobre Raimundo, alguns falavam sobre o seu perfeccionismo para fazer as

21
coisas. Para ele, tudo que fosse bem feito era belo: “Se você tiver que fazer uma coisa
que o outro já faz, faça melhor, faça bonito”10.

Qualquer coisa pode ser bela, seja um objeto, vestimentas, pinturas e


construções - sejam as relações interpessoais como o casamento, a amizade, a aliança
etc. Tudo possui sua forma bela de ser. Dentre estas diversas coisas que são belas, existe
uma categoria em particular que trata da beleza do corpo e o que ele deve conter para
assim ser considerado. À isso, Dá-se o nome de Rauti11. “Estar vestido da forma mais
bela” seria uma tradução à grosso modo. A composição do Rauti abrange o Kene nas
pulseiras e na pele com urucum e jenipapo, o Shapanati12, o cocar (ou chapéu conforme
falam alguns Yawanawa). A importância desta noção remonta ao fato de que “estar
Rauti” agrada aos bons espíritos chamados Yuve, mas somente quando os Kene estão
bem feitos e belos.

Assim como a ideia de Rauti fala de beleza, aquilo que compreendem como
“arte” também está atravessado por este valor. Todavia, trata-se de uma noção de arte
que, em primeiro lugar, abrange tudo aquilo que produzem e, principalmente, o que é
decorado com os Kene. São jarros de barros, cestarias, Tipi, Kuripi, tecidos13 e, porque
não, corpos14. Não seria a toa que a arte Yawanawa, nessa segunda perspectiva, é vista
como “o que tem aqui”, em referência aos Kene, aos quadros de Hushahu, aos Saiti, às
brincadeiras e ao Rauti – no qual tem-se um corpo enquanto suporte. Os Yawanawa
dizem que nunca andaram nus. Uma saia de algodão, chamada de Vati, era usada pelas
mulheres. A enrolavam na cintura de modo a fixar-se, e era todo decorado com Kene15.

10
Julia parafraseando Raimundo Luiz. Maria Júlia Yawanawa é neta de Antônio Luiz e filha de
Raimundo, responsável pela educação na aldeia e liderança política. Além de substituir Mariasinha
quando ausente, costuma ser a responsável por diversos projetos desenvolvidos pelos Yawanawa
(incluindo-se o projeto sobre a língua Yawanawa desenvolvido pelo Museu do Índio e coordenado e
coordenado por Livia Camargo Tavares.
11
O conceito dauti possui parentesco com o conceito dau em kaxinawa que agrega o mesmo universo
significativo, além de enfeite significa também remédio e veneno (Lagrou, 1998, 2007).
12
Uma saia feita de palha.
13
Atualmente os Yawanawa do Mutum não tem trabalhado com tecido, mas planejam trabalhar com o
algodão com os Kene. Além disso, desenvolveram no ano de 2013 um projeto cooperativo na criação de
roupas para lançamento em desfile. Um dos principais estímulos ao esquecimento da confecção do tecido
foi a introdução das redes e saias industriais na época da seringa.
14
Desta lista, somente os Tipi e os Kuripi são produzidos atualmente. Os trabalhos com argila e palha só
são lembrados por algumas pessoas. Vista esta situação, enviaram projeto aprovado pelo Prêmio das
Culturas Indígenas do ano de 2013 para realizar um workshop em trabalhos com argila, palha e algodão.
15
Utilizavam estas saias do mesmo modo que as Shipibo hoje em dia e Kaxinawa antigamente. Porém
não chegaram a me dizer com precisão se as Yawanawa do tempo dos antigos teciam os desenhos nas
saias, como fazem os Kaxinawa, mas com certeza as pintavam. Os Shipibo por sua vez tendem a bordar
os desenhos sobre panos comprados e previamente tingidos.

22
Os seios eram cobertos por
colares feitos de sementes,e
ossos de pequenos animais e
dentes.

Os Yawanawa desejam
manter seus traços diacríticos
firmes na lembrança e nos
modos de ser. Um deles, e que é Figura 4 - Exemplo de Shapanati (saia de palha). Foto por
uma de suas características que, Renan Reis
segundo afirmam mais sofreu alteração com o contato com os brancos foi o
casamento16. É comum ocorrerem casamentos com outros povos e, através do convívio,
o(a) cônjuge passa a ser reconhecido(a) como Yawanawa ao passo que vai vivendo e
pensando conforme se identificam os Yawanawa. Julia Yawanawa me exemplificou
isso através do seu caso particular, no qual sua avó patrilinear era Katukina e seu avô,
Antônio, era Yawanawa. Sua avó matrilinear era Rununawa e seu marido Arara. O
bisavô matrilinear era Ushunawa. Julia conta que seu avô proibiu que sua avó falasse
aos seus filhos que ela era do povo Katukina, para que seus filhos não perdessem sua
identidade Yawanawa vivendo com outro povo. Antes de morrer, Raimundo, por sua
vez, pediu a sua esposa, mãe de Julia, que jamais levasse seus filhos para outra terra
dizendo que possuem parentes por lá. Nunca permitiu que sua mãe, Arara, falasse isso
para seus filhos.

Numa situação na qual um nawa viva entre os Yawanawa, me fora informado


que mesmo que a pessoa fale a língua e tenha os mesmos costumes que os Yawanawa,
isso não é o suficiente para que ela seja vista como um Yawanawa “de verdade”. Mas
isso não impede o reconhecimento da sua educação conforme a tradição. Descartando o
caso das pessoas que ficam pedindo por nomes sem saber os processos para tal, quando
um nawa recebe um nome em Yawanawa muito provavelmente é alguém com relações
de afeto e confiança com os Yawanawa. Percebemos isso tomando como partida os
casos de Txana e Shuhunawa que receberam seus nomes de Tata (que seria a pessoa
adequada para dar nomes relacionados com os as forças). aAs pessoas (sejam nawa ou

16
Ainda que o parentesco sempre tenha sido abalado pelas relações com o branco, na época dos
missionários representava um dos principais alvos destes.

23
Yawa) recebem nomes de pessoas falecidas ou de personagens dos Shenipahu17. São
certas características que as marcaram e que as tornam pessoas de valor. É por conta das
características e da história por trás do nome que se dá certo nome à uma pessoa. Ainda
que a pessoa tenha um conjunto de nomes associados e correlacionados em termos
relacionais e de parentesco, também é possível a pessoa receber outros nomes ao longo
da vida. Pode receber um no nascimento e outro devido às características pessoais
demonstradas. Sendo assim, um nawa, depois de passar algum tempo com os
Yawanawa, estudando, fazendo dieta, participando de cerimônias, etc. Já está apto a
receber um nome. Será por este nome que a pessoa irá usar em cantos (que não são os
do Muka) para se identificar aos espíritos e quando for necessário em alguma reza e etc.
Com o nome em Yawanawa a pessoa já se torna algo mais próximo do Yawanawa
(ainda que este processo nunca se complete, um nawa nunca deixa de ser um nawa18).
Meus interlocutores afirmam que muitas pessoas brancas desejam e recebem o nome
sem saber nada de seu significado. Quando é assim, a pessoa receberia um nome sem
inspiração de modo que acabaria falando nada do que a pessoa é de fato. Receber um
nome, é análogo a uma dádiva dos espíritos. Ele fala de uma qualidade, representa uma
relação entre a pessoa e o universo cosmológico dos Yawanawa.

Relacionando-se com outros povos, os Yawanawa constroem suas relações de


parentesco e afinidade (Naveira, 1999), e com os espíritos e suas doenças (Pérez Gil,
1999), tal como um povo exogâmico, busca na alteridade pessoas e coisas a serem
usadas na construção de pessoas e coisas Yawanawa. A captura do outro e sua
transformação em Yawanawa ocorre por vias do que a literatura etnológica viria a
entender enquanto “comensalidade” a partir dos debates promovidos por certos autores.
Dentre eles, Els Lagrou (1998), Costa, 2007, Manuela Carneiro da Cunha (1998),
Seeger, A., Da Matta, R & Viveiros de Castro, E. (1979). A temática já fora largamente
debatida pela literatura e nos interessa observar, primeiramente, sua aplicabilidade no
contexto Yawanawa. Naveira e Pérez Gil também afirmam que para os Yawanawa esta
relação entre o consumo e o convívio seriam formas de construção (ou distinção) das
relações de parentesco e afinidade.

Nas relações de parentesco dos Yawanawa, os casamentos costumam ocorrer


entre primos cruzados. Ou seja, partindo de um ego feminino, os primos e as primas são

17
“História’, traduzido a grosso modo da língua Yawanawa.
18
Podemos perceber que o mesmo não vale para os Yura. (Naveira, 1999: 55-59)

24
os filhos e as filhas das irmãs de seu pai ou dos irmãos da mãe. Já os irmãos e as irmãs
são os filhos e as filhas dos irmãos de seu pai ou das irmãs de sua mãe. O oposto ocorre
quando o ego é masculino19. O casamento aos moldes da cultura Yawanawa não
ocorrem mais com frequência. Os Yawanawa enumeram juntos vários elementos
importantes que teriam caído em desuso: As dietas foram quase que totalmente
abandonadas, o Txichã20 deixou de ser feito, dentre tantos outros objetos de uso
cotidiano. Infelizmente não temos registros, e nem me mostraram em campo, dos Kene
que os antigos usavam. Porém, sabemos que o Kene da Runua e o Turu, que é baseado
na tecelagem do algodão, são usados desde estes tempos. Os homens utilizavam o Kene
da Runua em seus rostos e as mulheres o Turu, todos os demais supostamente caíram
em esquecimento. Também estão nesta listagem diversos outros utensílios como cestas,
peneiras e, principalmente, tudo o que era feito com tecido. Hoje já não há nenhum
Yawanawa que domine a técnica da tecelagem e somente uma idosa ou outra ainda
sabem mexer com a palha e a cerâmica. Conforme Julia Yawanawa, tudo o que eles
produzem hoje foi parte deste trabalho chamado de “revival cultural”, que só teria sido
possível recorrendo à memória de Raimundo Luiz e outros velhos. Neste processo,
conseguiram retomar diversos costumes adaptando-se às novas condições. O uso do
Shapanati que, por exemplo, era restrito aos trabalhos realizados pelo Rumeya (aquele
Pajé que realiza trabalhos para matar ou adoecer) em isolamento na floresta. Neste
contexto, buscava-se chamar os espíritos por meio do som produzido pelo Shapanati ao
ser rodada. Hoje em dia, a saia vem sendo utilizada em eventos voltados para um
público que vem de fora da aldeia. São desde as festas realizadas na aldeia do Mutum e
da Nova Esperança que recebe pessoas de diversas regiões do Brasil e do globo, a
eventos no “mundo dos nawa” em escala internacional.

Por mais que talvez não circulem publicamente muitos conhecimentos de caráter
esotérico21, o grande aumento de pessoas fazendo a dieta e o desenvolvimento de

19
Pela fala de alguns Yawanawa, eles aparentam realizar uma demarcação que diferencia os irmãos de
pai e/ou mãe e os da cultura (como falam), que seriam os primos e primas (conforme entendido
ocidentalmente) paralelos.
20
É uma peneira usada para fazer a caiçuma. Hoje dizem que somente uma idosa, de uma pequena aldeia,
sabe faze-lo ainda. Os demais já faleceram.
21
Aqui me refiro à noção de esoterismo enquanto um saber resguardado a iniciados de algum tipo. No
caso, estamos nos referindo a informações de perigo tal que só são passadas a pessoas de grande
confiança e somente em processos avançados. Seriam as dietas relacionadas a Runua estes processos
avançados, uma vez que a dieta do Muka é o passo inicial para tornar-se Pajé. O conhecimento do tipo
exotérico, mais inerente às manifestações new age é bem apresentado na tese de Tiago Coutinho (2011)
ao tratar das cerimônias guiadas por indígenas e que são ditas neo-xamânicas também por ocorrerem
contextos urbanos

25
diversos trabalhos e ações que busquem a retomada de costumes culturais aparentam
estimular um reconhecimento coletivo daquilo que é entendido como “cultura” e
“tradição” yawanawa. Nota-se esta diferença entre os termos em alguns momentos nos
discursos nativos. Aparenta ser possível pensar a noção de “cultura” de forma distinta a
de “tradição”. Entre os Yawanawa, como também comentado por Manuela Carneiro da
Cunha (2009: 363), o entendimento de cultura a relacionaria com aquilo que não é
somente público, mas também publicitado. Já a ideia de tradição, ainda que pública –
todos supostamente têm acesso - costuma ser evocada para falar de características e
qualidades que, para não serem interferidas ao longo do tempo, necessitam ser operadas
sem que seus preceitos mais elementares sejam alterados. Como poderemos demonstrar
a frente, supomos que estes preceitos sejam definidos na relação entre a correta
operação dos saberes tradicionais e a obtenção do resultado esperado. Este tipo de
relação aparenta possibilitar a contínua recriação da cultura e a continuidade da
tradição.

Um exemplo, comum em quase todos os povos Pano, é a tradução (Carneiro da


Cunha, 2009: 108) da noção de Yura e Nawa (ver também Erikson 2002, Calavia 2006,
Lagrou 1998, 2007). Atualmente, a primeira é usada, ainda que pouco, para se referirem
a outros nawa, os que não são Yawanawa. Entretanto, Yura é um termo que possui
significado variante conforme a sua contextualização. Por exemplo, Carid Naveira nos
conta que o termo êwê yura designa a noção de “meus parentes” enquanto yura utsa
designa “outro povo”. Todavia, dependendo do contexto no qual são utilizados, êwê
yura e yura utsa podem designar, respectivamente, “meu corpo” ou “outro corpo”.
Entretanto, conforme se sabe e me contou Hushahu, o termo Yura também designa
“corpo”; quando acompanhado de pronomes pessoais trata-se do “corpo humano”. A
partir do ponto de vista Yawanawa e dos demais povos indígenas, o branco mantém-se
como na fronteira da alteridade. Assim, os demais povos indígenas que eram seus
inimigos, sejam próximos ou não, não são mais classificados como Nawa uma vez que
assim passaram a classificar o branco. Em uma tradução literal, Nawa significa
“inimigo” porém, atualmente, os brancos não são mais vistos como uma única categoria
e são reconhecidas certas aproximações com determinados grupos que permitem a
criação de alianças. Esta visão englobante fora muito ensinada por Antônio, que previu
a chegada de Nawa que iriam ajudar aos Yawanawa vindos de terras muito distantes.
Era um povo para se fazer amizade, e não matar. Assim sendo, o significado anterior de

26
yura utsa foi atrelado à noção de Nawa. Uma vez que agora, aparentemente, outros
povos indígenas são chamados pelo termo yura. Em campo, devido ao pouco tempo de
estudo da língua, não pudemos coletar dados que dissertem sobre uma possível
atualização do termo êwê yura. Porém, o uso do termo Yawa tem aparentado ser sua
espécie de substituto. “Nós somos Yawa, nem Nawa e nem Yura”. Essa era uma
denominação que ouvia em alguns momentos.

2.2 UMA BREVE PASSAGEM HISTÓRICA SOBRE OS YAWANAWA

2.2.1 O tempo sob domínio


O contato com os seringalistas foi feito por Antônio Luiz22, ainda criança (Carid,
1999) e perdurou por décadas até que estes fossem expulsos da região. Todavia, logo
após a saída dos seringueiros, iniciou-se o tempo dos missionários. Na geração de
Antônio Luiz, havia muito respeito aos cultos dos santos católicos. Os patrões da
borracha eram, em grande parte, católicos. Na época da seringa, o estado do Acre
passou por um longo processo de migração de nordestinos dos estados do Maranhão e
principalmente do Ceará para lá. Os imigrantes eram, em sua quase totalidade, ligados
ao catolicismo (principalmente o catolicismo popular) ou a práticas de matriz africana,
como o Tambor de Mina. Depois do tempo dos patrões, deu-se o período dos
missionários que, por sua vez, introduziram o protestantismo. Para salientar a diferença
entre os processos, Julia Yawanawa diz que seu avô (Antônio) foi catequizado,
enquanto seu pai (Raimundo) fora evangelizado.

Ao longo de um processo de aproximadamente 20 anos de atividade missionária,


os membros da Novas Tribos do Brasil evangelizaram os Yawanawa, de todas as faixas
etárias. A língua, dentre tantos outros marcadores Yawanawa, foi uma dentre tantas
características que foi aos poucos caindo em desuso, junto com outras práticas
tradicionais23. A “educação” missionária incluía o português e a história dos brancos e
excluía tudo o que era indígena. Neste período, produtos como açúcar, óleo, sal e alguns
22
Antônio Luiz foi o Yawanawa que estava de frente nas negociações com os patrões da seringa. De
acordo com o que relatam, Antônio não permitiu que os patrões da seringa escravizassem seu povo, que
cometessem atos de violência e aprisionamentos e em troca trabalhariam para ele. Nesse período todos os
Yawanawa moravam na aldeia conhecida como Kaxinawa 22, que, originalmente, era um seringal com esta
denominação. Hoje a aldeia recebeu outro nome, de Aldeia Sagrada, e funciona como o Samaki usado por
Nova Esperança.
23
Nesta pesquisa adotaremos a noção de “tradição” tal como ela me foi apresentada pelos Yawanawa. O
termo era enunciado em praticamente todas as conversas que tratavam sobre o que eram, como faziam as
coisas, o que “simbolizava” e o que pensam. Note-se que, por vezes, as noções de “tradição”
diferenciavam-se das de “cultura” nas suas qualidades de continuidade e transformabilidade,
respectivamente.

27
alimentos, como o macarrão e o arroz, eram usados em abundância. Hoje podemos
perceber vários efeitos deste processo de evangelização que veio acompanhado de um
engajamento cada vez maior com o mundo dos brancos. Além da continuidade dos
costumes protestantes24, há ainda consumo substancial de diversos produtos alimentares
industriais. Não é à toa que a diabetes seja um problema recorrente na aldeia (Raimundo
Luiz morreu por conta da diabetes; Mariasinha ficou muito doente por conta da
diabetes; dentre outras pessoas). Segundo meus interlocutores yawanawa, ao passo que
os missionários introduziam mais e mais coisas, os costumes e as práticas yawanawa,
que eram motivo de escárnio para os seringueiros, passaram a denotar “coisas do
demônio”. Afirmam que, na época dos missionários, tinham medo e/ou vergonha de
expressarem aquilo que era de sua cultura. Entretanto, Antônio Luiz nunca deixou de
contar as histórias. Além disso, continuava o cotidiano usual da aldeia, somado à
contínua adição de produtos industriais no cotidiano yawanawa.

A expulsão dos Missionários das terras dos Yawanawa se deu após a ida de
Biraci para Brasília. Lá, soube da existência da FUNAI, dos direitos indígenas e que
existiam muitos nawa querendo ajudar os Yawanawa. O relato abaixo de Mariasinha
Yawanawa mostra as razões da revolta, que acabou levando à expulsão dos missionários
sem que fosse necessário o uso da violência (por exigência de Raimundo).

 Não teve violência não. Não teve violência porque meu pai não
deixou. Meu pai falou que... Eu não entendi na época porque eles
tiveram que ir embora. Alguma coisa. Sim. Parece que houve um
comentário grande, que quando os missionários vieram pra cá... os
missionários sabiam que tinha FUNAI.
 Vocês já sabiam?
 Eles nunca falaram pra nós que existia FUNAI. Eles nunca
falaram que nós tinha o direito de ter a terra. Eles nunca disseram pra
nós, que nós tinha o direito de entender alguma coisa. Eu acho que
essa foi uma das revoltas do povo. E o meu pai deu razão.
 E meu pai falou: vocês querem... aí meu pai pegou a canoa,
carregou as coisas dele, mudou uma turma e não deixou eles ir embora
até eles ir embora pra pegar o avião. Todo mudo... alguns ficou triste,
choraram, mas concordaram... Por isso não houve discórdia, por isso
não houve briga entre a gente. Ao contrário. Sentimos falta dele, mas
concordamos que tinha que ir embora. (Mariasinha Yawanawa –
gravação em campo)

24
Histórias e valores protestantes foram postos em comparação pelos Yawanawa, de modo que um não
elimina o outro, faz-se um uso complementar das noções protestantes e nativas. Assim como as formas de
medicina dos brancos são apropriadas pelos Yawanawa (Pérez Gil, 1999), o mesmo aparenta ocorrer com
outras filosofias e teologias.

28
Ainda que os missionários tenham sido expulsos, alguns Yawanawa me
contavam que precisavam “reaprender” a ser Yawanawa. Isso envolvia a retomada de
diversos costumes e práticas, dentre eles o “casamento da cultura”, como falam, ou seja,
o casamento entre primos cruzados, cuja perda causa muito tristeza. Foi desde o contato
com os brancos, primeiro com os seringalistas, que os casamentos começaram a mudar.
Antigamente era comum a poligamia, mas hoje já não o é. O homem, com capacidade
de sustentar mais mulheres com produtos da roça, caça e pesca poderia ter mais de uma
esposa. Ao se casar com a irmã mais velha, sendo um bom marido, ele podia casar com
as demais irmãs. Teria que trabalhar muito mais para isso. Hoje, ainda que este tipo de
casamento ainda ocorra, tem se tornado cada vez mais raro. Este fato se deu por causa
da enorme influência dos missionários, que alteraram as formas de casamento ditas
tradicionais e as suplantaram com um modelo cristão e binário.

Com sua expulsão, contaram-me que houve uma espécie de epidemia de surtos
nas pessoas. Me contaram que quase todos na aldeia passaram por algum momento de
descontrole durante os primeiros 30 dias após a expulsão dos missionários. Fora um
momento marcado por um conflito ideológico entre a aliança afetiva com os
missionários e o desejo de retomada do modo de ser Yawanawa dito tradicional. Com a
ajuda dos velhos, os surtos foram superados e deram continuidade aos seus trabalhos
pela retomada dos costumes antigos.

No início da década de 1980, os Yawanawa já haviam expulsado os missionários


das Novas Tribos do Brasil e conseguiram a demarcação e homologação de suas terras
(que ainda veio a ser expandida), sendo a primeira do Estado do Acre. Uma vez na
posse de suas terras, mantiveram-se na Aldeia Kaxi25 até aproximadamente 1992,
quando decidiram abrir a aldeia Nova Esperança por considerarem a terra do Kaxi velha
para o cultivo de urucum enviado à Aveda.

2.2.2 O tempo pós-Eco-92


Na década de 1980, Terri Aquino, renomado antropólogo da FUNAI no Acre,
conhecido como Txai Terri, contatou os Yawanawa por meio de Antônio e Raimundo.
Os Yawanawa contam que é nesta época que tomaram ciência dos seus direitos às terras
e aos seus costumes e práticas culturais. A Terra Indígena Rio Gregório tem seu
processo de demarcação como um modelo, pois foi a primeira TI homologada no estado

25
Kaxi era o modo abreviado como falavam da “Aldeia Sagrada”, o antigo seringal Kaxinawa.

29
do Acre. Nesta mesma época, no final dos anos 80, Terri levou Biraci, Antônio e
Raimundo à Rio Branco e Brasília. Outros também foram, alguns ficaram pela cidade e
os demais retornaram à aldeia. Biraci foi um dos que ficou morando em Rio Branco,
participando dos encontros e eventos dos movimentos indígenas.

Uma vez inserido no movimento indígena, viajou ao Rio de Janeiro no ano de


1992 para participar da Eco-92. Trata-se da Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Rio-92 ou Cúpula da
Terra. No dito encontro, as nações participantes buscavam remodelar o sistema de
desenvolvimento por meio de uma nova política econômica dos recursos naturais, que
poderiam se extinguir caso os países em desenvolvimento buscassem se espelhar nos
modelos econômicos e de consumo das grandes potências mundiais. A programação do
evento contava com dezenas de temas a serem debatidos e negociados. Dentre eles, o
conhecimento tradicional dos povos indígenas, assim como a sua participação na gestão
de bens naturais, centralizava o debate acerca de sua propriedade e usabilidade por
terceiros. No evento, a presença dos Yawanawa e demais indígenas permitia a
aproximação entre ideias e criação de diversos tipos de aliança.

Foi lá que Biraci conheceu representantes da multinacional de cosméticos


Aveda. Acabaram se tornando parceiros e iniciaram o cultivo do urucum na aldeia Nova
Esperança para a criação de cosméticos e afins. A parceria introduziu grandes quantias
de dinheiro, fazendo movimentar muitas ações no contexto da aldeia. Fazia parte da
parceria o custeio, por parte da Aveda, da formação de diversos Yawanawa em áreas de
interesse26. Além disso, a Aveda custeou oficinas de marcenaria, geradores de energia,
combustível, compra de barcos e de diversas ferramentas mecânicas. Levou diversos
agentes de saúde e de educação, construiu casas, enfermarias, escritórios e também um
imóvel na cidade de Tarauacá. Como descreve Aline Ferreira de Oliveira, no ano em
que Kuni entrou para o dieta do Muka27, o fez neste momento por ter ocorrida uma troca
de conhecimentos entre a Aveda e os Yawanawa. Um dos representantes da empresa
entraria para a dieta do Muka, sendo ensinado pelo pajé Yawa, e, em troca, a Aveda
enviaria dois Yawanawa aos EUA para estudarem inglês (uma as principais demandas,
principalmente depois de terem ficado a mercê de tradutores – nem sempre bem
intencionados). Tashka e Nedina foram as duas pessoas enviadas aos EUA (mais

26
São cursos superiores e técnicos nas áreas da medicina, letras, enfermagem, ciências sociais,
informática, microscopista (para detectar o vírus da malária), dentre diversas outras
27
Esta é a principal dieta para quem decide se aprofundar na prática da pajelança Yawanawa.

30
especificamente para a Califórnia). Depois de seis meses Nedina retorna e inicia seus
estudos em letras para se aprofundar seu trabalho com a educação. Tashka ainda ficou
por pelo menos dois anos nos E.U.A, se casando com uma indígena de origem mexicana
e participando do movimento indígena nos EUA. Ao retornar, desejou trabalhar com os
projetos feitos em aliança com os brancos. Suas primeiras atividades se deram com a
empresa Aveda. A aldeia Nova Esperança também foi aberta para atender a estes
objetivos, uma vez que a terra de sua alocação anterior, chamada de Kaxinawa, era
considerada velha e não própria para um grande roçado. Poucos anos depois do retorno
de Tashka, ocorre um conflito no interior da aldeia Nova Esperança e Biraci desiste de
continuar a trabalhar com a Aveda, ficando Tashka responsável por isso através da
Associação SocioCultural Yawanawa, sediada na aldeia do Mutum.

Na época da abertura, Raimundo Luiz era casado com três mulheres e possuía
quinze filhos ao total. Considerando o tamanho de sua família28, decidiu abrir a aldeia
do Mutum29. Entre as aldeias Yawanawa, existem outras que foram abertas pelo mesmo
motivo. É costume abrir uma aldeia nova por iniciativa do pai que, já com muitos filhos
e filhas casados, escolhe uma terra que seja boa para as roças e próxima à boas rotas de
caça e pesca.

A abertura da aldeia do Mutum (em 2008) ocorreu depois de sucessivos


conflitos que circundavam a organização da aldeia Nova Esperança e o
desenvolvimento dos projetos. Era consenso que o conflito não beneficiaria o povo
Yawanawa e como solução deste impasse, decidiram abrir outra aldeia. Com a criação
do Mutum, foram criadas duas representações Yawanawa autônomas que desenvolvem,
cada uma, seus projetos e festivais. A partir desta distinção, ambas as aldeias passaram a
buscar marcadores que as diferenciassem.

Com a parceria criada inicialmente com a Aveda, os Yawanawa conseguiram


iniciar um movimento chamado, por eles, de “resgate cultural”. Depois de uma sucessão
de mudanças nas aldeias, em 2001 realizaram sua primeira festa em Nova Esperança,
sem a presença de nawa. Foi também a primeira vez, para muitos, que retiraram suas
roupas, colocaram os Shapanati, se pintaram de urucum com sipa e jenipapo,
confeccionaram alguns cocares e dançaram em roda. O momento da primeira festa

28
Ao pensar na sua família, também considera que suas filhas irão se casar, ter filhos e o mesmo ocorrerá
com suas netas.
29
Isso ocorreu aproximadamente em 2005.

31
costuma sempre ser citado como um divisor de águas. Aparenta que para os Yawanawa
a realização daquela festa simbolizou uma espécie de “reapropriação” e autonomização
de um modo de existência propriamente Yawanawa, aos olhos dos que assim se
denominam.

Fala de Mariasinha sobre a Aveda e os movimentos de retomada cultural:

 Até nós conhecer essa empresa Aveda, a gente tinha perdido


totalmente o urucum, a gente não pintava, a gente não desenhava, a
gente não sabia nada. Essa empresa veio incentivando mesmo. Do
plantio de urucum... como é.. meu pai diz... pinta o corpo. Meu disse
assim: do urucum pinta, do urucum faz a festa, do urucum a gente
pinta. Antigamente as flecha era desse jeito. Elas só eram assim. As
música era desse jeito. Então a nossa primeira festa, a gente começou
a plantar urucum e a gente se pintou.
 E aí começou né. Aí houve muito incentivo pra dizer: olha nós
somos índios, nós temos que mostrar que somos índios, podemos
mostrar pra nossa amiga.
 A gente tirar a roupa. Para nós... nós... a gente não tira a roupa
na frente do irmão ou irmã. A gente é muito reservado. E ali existiu
roupa como só urucum. Como nós ticamos todos de saia e as mulheres
gordas, as mulheres grávidas, bem buchudonas, colocando saia,
passando... parece que tinham vestido quando passavam urucum. E
isso é só o começo. Os homens começam as músicas. Tata, qual a
música que tu sabe? Qual as melhores músicas que você conhece?
 É. E aí começou. Jovens se juntando. Jovem ficando ali e
aprendendo. E foi muito difícil. E aí pra entrar a primeira dieta. Nossa
essa foi a pior. A pior parte foi todo mundo fez te ensinou.
. Segundo Nedina, seu avô, Antônio, desejava muito ensinar a pajelança para um
de seus filhos. Porém, esperava por algum interessado, pois não queria chamar alguém
para isso. Os primeiros a participarem deste “revival” das dietas Yawanawa foram Kuni
e Teika, que entraram na dieta junto com a pessoa da Aveda. Kuni entrou a pedido de
Biraci Nixiwaka, porque ele estava à frente da Cooperativa Extrativista Yawanawa e
não poderia se dedicar ao Muka. Isso ocorreu em 1999 e já no ano 2000 entram para a
dieta Biraci, Nani e Matsini (que hoje mora no Mutum). Em 2001 (ano da primeira festa
em Nova Esperança) entram as primeiras mulheres na dieta do Muka, que são Hushahu
e Putany. Somente em 2006 Vinnya e Juca entram para a dieta e depois de três anos
(2009) a geração dos netos de Raimundo Luiz iniciam as dietas. Até o ano de 2006
ainda faziam as dietas na Aldeia Sagrada. Em 2008 abriram a aldeia do Mutum e
iniciaram a construção do Samaki30. Em 2009 já começam a realizar algumas dietas31,

30
Samaki refere-se ao lugar onde faz-se as dietas. A palavra possui muito proximidade com a noção
Kaxinawa onde, para estes, dietas são Samaki.

32
tanto do Muka quanto de tantas outras. Aparentemente, a entrada de Hushahu e Putany
para a dieta provocou diversos movimentos nos mais jovens em direção a pajelança,
aumentando exponencialmente a quantidade de pessoas nas dietas após sua
participação. Alguns Yawanawa me falaram que, antes delas terem entrado, ainda havia
certos receios de muitos em passarem pelos sufocos das dietas. Porém, ao terem duas
mulheres entrando e finalizando o Muka com sucesso, muitos se sentiram instigados a
iniciaram as dietas.

Existe uma clara rivalidade entre as duas aldeias, porém esta não se traduz em
violência ou enganações. Cada associação desenvolve seus projetos individualmente,
unindo-se somente por ocasião de questões que envolvem a todos (como a demarcação
de terras, a questão do carbono e etc.). Dessa forma, acabam buscando se diferenciar
uma da outra sob diversos vieses.

Ainda que não possamos afirmar nada sobre Nova Esperança, podemos dizer
que lá há mais aliança com segmentos do mundo dos Nawa32. Inserem-se em uma rede
de alianças muito mais ampla que envolve todo um universo religioso e artístico. O
tempo de existência da aldeia Nova Esperança (cerca de 30 anos) e o de atuação de sua
liderança, Nixiwaka Yawanawa (Biraci), são determinantes neste sentido. No tempo de
abertura do Mutum, Tashka ainda era muito novo e só possuía alianças firmes com a
Aveda. Os projetos que a ASCY desenvolve centralizam-se na Aveda mas, atualmente,
tem se direcionado ao campo da pajelança encabeçados pelo Centro de Cura, o Mariri
Yawanawa e a participação em cerimônias externas.

No Mutum é comum referenciarem-se as atividades realizadas na aldeia Nova


Esperança como sendo diferentes daquilo que consideram um modo tradicional
Yawanawa. Não tivemos a oportunidade de realizar campo em Nova Esperança, o
tempo disponível para uma pesquisa de mestrado não é suficiente para gerar dados
qualitativos em dois contextos distintos. Porém, a forma como a aldeia Nova Esperança
me foi apresentada parecia querer salientar que no Mutum a dedicação em se ter uma
postura tradicional não fora substituída ou complementada com costumes dos brancos
ou de outros povos .A crítica à presença de elementos de outras culturas, como os

31
Este registro que engloba a aldeia Nova Esperança foi muito bem catalogado por Aline Ferreira, em sua
dissertação de mestrado em 2012. Sua contagem foi até o ano de 2012. Na minha pesquisa de campo
havia duas pessoas fazendo a dieta do Muka (a filha de Hushahu (Hukena) e um nawa (Txana) que
habitava o Mutum.
32
Este contexto em torno da aldeia Nova Esperança é melhor comentado na dissertação de Aline Ferreira
(2012).

33
maracás, a vestimenta branca, o convite a entidades por meio de estalos de dedo (tal
como na Umbanda), o canto de hinos e a presença de entidades caboclas, ainda que em
poucas cerimônias, são marcantes naquilo que alguns do Mutum afirmam ser contrário
aos modos Yawanawa. Todavia, o problema não aparenta estar nas práticas em si, pois
no contato e nas alianças que possuem fora do Mutum também participam grupos que
praticam ou simpatizam com religiões como o Santo Daime e a Barquinha.

Assim, atualmente o que podemos encontrar entre os Yawanawa, e acredito que


isso vale tanto para os centralizados pelo Mutum ou por Nova Esperança, é um
constante movimento de retomada dos costumes e práticas na construção de uma
identidade Yawanawa. Marcadamente, esse trabalho ocorre em cima de elementos que
simbolizem (em um sentido representacionalista) a determinados Nawa aquilo que
precisam (os Yawanawa) dizer sobre si para que consolidem um contexto no qual aquilo
que propriamente entendem como Yawanawa se manifeste. Nossa hipótese considera
que partindo deste encontro entre o “falar de si” e o “ser” podemos vislumbrar os
mecanismos dos Yawanawa de captura da alteridade como meio de construção de si
mesmos.

2.3 A CONTEMPORANEIDADE YAWANAWA


Como comentado anteriormente, os Yawanawa distinguem diferenças entre suas
características culturais em termos de sua qualidade de continuidade e transformação.
Sabemos que há diversos debates teóricos no campo da antropologia que tratam deste
tipo de diferenciação. Todavia, este debate poderá ser trazido à tona mais à frente. No
momento, traremos alguns exemplos de certos movimentos atuais que colocam em
diálogo elementos diacríticos “tradicionais” e outros novos. As mudanças são as mais
diversas, desde os hábitos alimentares até formas de se relacionar com espíritos. Aqui,
daremos um enfoque em certos tipos de mudanças somente, uma vez que é impossível
disserta-las de forma extensiva e densa numa pesquisa deste porte. Para as finalidades
deste estudo, atemo-nos a características de cunho religioso/espiritual, as mudanças nos
objetos e noções de arte e, por fim, a diversas atividades e projetos realizados em
cooperação com os nawa.

2.3.1 Os Yawanawa e outras religiões


Atualmente, os Yawanawa vivem um momento de efervescência cultural que
vem sendo vetorizado pela pajelança. Ocorre que hoje os Yawanawa conseguem se

34
beneficiar de toda a estima que muitos grupos sociais pelo globo, engajados em
questões ecológicas e religiosas, possuem pela cultura indígena. Sendo um povo muito
interessado em criar alianças que lhes tragam benefícios, possuem acesso a um público
interessado em conhecer e vivenciar a pajelança Yawanawa. Todavia, este “boom” da
pajelança não tira de cena a presença do protestantismo e de religiões ayahuasqueiras no
contexto Yawanawa. Como comentado, realizei minha pesquisa de campo entre os
Yawanawa da aldeia do Mutum e não estive na aldeia Nova Esperança. Por este motivo,
minhas informações sobre esta segunda aldeia não são primárias. Utilizo-me destas
informações para pensar como se dá a diferenciação entre estas duas aldeias, tendo
como ponto de vista os Yawanawa do Mutum. É importante notar que as lideranças da
aldeia do Mutum calcam-se em valores culturais que não aceitam de bom grado
transformações muito radicais nos seus costumes. Contaram-me, assim, com certa
reprovação que na aldeia Nova Esperança ocorrem rituais que envolvem certo
sincretismo religioso com o Santo Daime e, possivelmente, com a Barquinha33.
Todavia, o novo não deixa de ser muito presente no Mutum, sendo, inclusive, uma de
suas características que os Yawanawa consideram mais demarcar a boa relação com os
brancos.

Ainda tratando da religiosidade, o estabelecimento de relações harmoniosas com


certas formas de religiões aparenta ser uma espécie de reprodução destas relações em
um continuo temporal. Raimundo frequentava na cidade de Tarauacá a Igreja
Adventista do Sétimo Dia e sempre buscava mostrar as aproximações entre as ideias
desta religião e a pajelança. Júlia Yawanawa, sua filha, não se identificava com esta
teologia e dizia ter se “encontrado” na Igreja Batista. Para Julia, seu entendimento sobre
as coisas do mundo sempre foi atravessado por noções cristãs, pois seu pai utilizava o
recurso da analogia entre noções de espiritualidade para explica-las. Fazia isso
comparando as entidades, dizendo quem era deus, por exemplo, em português.
Comparava também a moral dos Shenipahu com a das histórias e fábulas dos Nawa.
Assim, o meio que os filhos de Raimundo consideram mais frutífero de conhecer as
formas de espiritualidade é através da comparação.

Os Yawanawa passaram em sua história por dois momentos marcantes de


conversão religiosa. No período da seringa, ocorriam celebrações para os santos

33
Suspeitamos disso, pois contaram-me sobre “chamados” de entidades não-ameríndias, assim como a
possessão por elas

35
católicos. Posteriormente, durante um longo período sob a ação dos missionários, quase
todos os Yawanawa se converteram ao protestantismo. Mais à frente traremos dados
mais específicos sobre estes dois períodos como a “época da catequização” e a “época
da evangelização”. Todavia, mesmo que lideranças como Raimundo e Tata tenham se
tornado “crentes”, isso não significou um fim para os costumes da pajelança (ainda que
estes costumes tenham sido muito prejudicados). Contaram-me que as respostas cristãs
a diversas questões não era o suficiente. Isso ocorria por haver um entendimento de
“coisas de índio” e “coisas de branco”, como as doenças que podem ser curadas de uma
forma ou de outra (Pérez Gil, L., 1999).

No processo de retomada dos conhecimentos nativos, muitos jovens Yawanawa


da geração de Bira recorreram aos velhos (principalmente a Tata e a Yawa) para
saberem como as coisas eram antigamente, principalmente naquilo que dizia respeito às
dietas e conhecimentos da pajelança. Nesta época, as pessoas que tinham cerca de 40 ou
50 anos não tinham interesse em fazer dieta, ainda que no tempo dos antigos entravam
na dieta nesta faixa etária. Os jovens decidiram entrar para que as dietas e a prática da
pajelança fossem retomadas. Ainda que muitos não tenham aguentado as dificuldades
da dieta, tantos outros conseguiram e, após terem realizado curas34, tiveram suas
capacidades reconhecidas pela comunidade.

Quando perguntados sobre o que desejavam para o seu futuro, era muito comum
ouvir sobre o desejo de todos da aldeia de serem fluentes na língua Yawanawa, questão
de igual importância quanto o conhecimento sobre as suas origens e sua identidade
cultural. Um dos mecanismos mais evocados para contribuir na continuidade de sua
cultura são o Mariri, as dietas e os cantos, as danças, as brincadeiras, a espiritualidade e
outros costumes, como os alimentares, que compõem estas festividades e processos de
ensino e aprendizagem. Atualmente têm desenvolvido um “Plano de Vida Yawanawa”,
sendo coordenado pela liderança do Mutum Tashka Yawanawa. Este plano, irá conter
tudo o que for considerado mais marcante da sua cultura, incluindo o que desejam para
o futuro de retomada dos costumes e o que precisam desenvolver para que seus planos
sejam postos em prática. O Plano possui uma linguagem de projeto, uma vez que será
utilizado como um guia para a implementação de diversos outros projetos ao longo dos
próximos anos. Estão incluídas questões sobre a língua e manifestações culturais, como

34
Conforme nos foi contado de diversas maneiras, a pessoa só é reconhecida enquanto Nii Peya,
Tsimuya, Xinaya, Rumeya etc. uma vez que tenha posto o saber em prática tendo êxito na empreitada.
Essa característica é melhor dissertada por Pérez Gil que estudou o sistema médico Yawanawa em 1999.

36
danças, brincadeiras, manejo do meio ambiente e também articulações com Yura e
Nawa.

Recentemente, ocorreram diversas mudanças na infraestrutura que são


necessárias para que as pessoas possam realizar as suas dietas. Em sua época, Hushahu
contou com a ajuda de poucos para montar uma pequena cabana na floresta. Iniciou a
dieta com algumas trouxas de roupa e quase nenhum equipamento. Conta que tudo o
que levou foi sua força, precisou aprender a língua e os cantos - dos Shenipahu (os
antepassados, os antigos) - refletir sobre os aprendizados da Runua (anaconda) nos
sonhos e nas mirações, fazer os Kene etc. Hoje em dia, praticamente todos os que
realizam as dietas utilizam cadernos (atualmente também usados por Hushahu), recursos
digitais de computador e alguns usam também gravadores de áudio. As facilidades hoje
geradas pelo uso da tecnologia contribuíram, em certa medida, segundo os jovens, para
a continuidade de muitos nas dietas. Podendo realizar gravações, tantos dos outros
cantando quanto de si mesmos, os que fazem a dieta ficam mais autônomos em relação
aos poucos momentos em que Tata canta o Saiti Vanaya ou os cantos do Muka e do
Suya. O fato de que podem sempre acessar estes cantos e narrativas, que ocorrem
durante as cerimônias ou em conversas outras, permite que a facilidade gerada atraia
mais pessoas para realizarem a dieta. Todavia, aparenta ser mais correto considerar que
as dietas feitas atualmente não tenham sido tão eficazes quanto às da geração de
Hushahu e Matsini. Parece haver uma tendência a um relaxamento das regras
prescritivas das dietas, abrindo possibilidades para novas configurações geradas pelosos
distintos interesses nas dietas.. Estas configurações podem parecer contraditórias às
normas prescritivas das dietas e faz com que os Yawanawa da aldeia do Mutum
dediquem-se em manter os traços ditos tradicionais, principalmente naquilo que é
realizado para fortalecer um elemento diacrítico35.

2.3.2 A construção da “cultura” e a influência do Estado/cidade.


Em consequência dos longos anos de afastamento de seus costumes e práticas
rituais, a cidade acabou configurando-se como um local propício à construção de uma
vida “mais digna”, conforme consideravam. Ir para a cidade e fazer a faculdade era, e
ainda é, o sonho de muitos. Entretanto, reconhecem que o investimento no estudo em
faculdades na cidade pode não ser superior aos dos estudos ditos tradicionais. A Aveda

35
Que podem ser cantos, danças, histórias, formas de se guiar cerimônia e tantas outras coisas que seriam
apresentadas como propriamente Yawanawa.

37
também adotava esta forma de estímulo em sua política interna, valorizando a
continuidade das práticas culturais dos Yawanawa. Desde o início das atividades da
Aveda, diversos Yawanawa buscaram entrar para as dietas, uma vez que as condições
de vida na aldeia passaram a melhorar, muito por conta do crescimento da ‘autonomia’
e visibilidade da cultura Yawanawa. O crescimento vespertino da independência
financeira aparenta ter estimulado o sentimento de orgulho, pelas conquistas de seus
esforços, em detrimento da subserviência. Este contexto só foi possível porque
conseguiram, já nos anos 80, a homologação de suas terras. Não possuem problemas
como invasão de terras e nem doenças de dificultoso tratamento como a malária e
coqueluche (ambos foram erradicados da região36). Quando, nos anos 90, Raimundo
Luiz sai da aldeia e vai à Brasília, as relações com os Nawa passaram a ter uma
qualidade de aliança muito distinta daquelas nas quais já haviam vivenciado. Se em um
dado momento os Yawanawa eram dominados ou precisavam dos Nawa, passaram a ter
relações menos verticalizadas, quando estas não chegaram a ser invertidas. O acesso a
um público Nawa interessado em contribuir para que os “índios continuem a ser
índios”, permitiu aos Yawanawa a consolidação de uma sustentabilidade pautada na
continuidade de seus costumes. Quando isso se torna uma realidade concreta, passa a
ser mais interessante adentrar-se nos estudos da pajelança. Isso devido ao fato de que o
“manter-se índio”, tanto na perspectiva Yawanawa quanto na Nawa, envolve as práticas
da pajelança.

Independente das acusações de futilidade que muitos teriam que enfrentar para
iniciar a dieta, é comum referirem-se, tanto os mais idosos quanto os mais jovens (e
todos envolvidos com a pajelança), ao aumento da procura pelas dietas por conta de
motivos e efeitos muito positivos relacionados a elas. Mas nem sempre elas são
consideradas dessa forma. Principalmente por parte das pessoas mais velhas, os jovens
estariam fazendo as dietas para terem certos benefícios pessoais. Ouvi alguns
queixarem-se de que teria muitos jovens que não são Pajés indo à cidade como se
fossem pajés e realizando supostas curas. Entretanto, também não ouvia por parte dos
mais jovens uma autoidentificação enquanto Pajés. Muito pelo contrário, em muitos
comentários sobre cerimônias nas cidades, queixavam-se sobre como, para muitos
Nawa, a noção de Pajé teria uma tradução díspare da noção Yawanawa. Para estes, o
status de Pajé não é conferido só a quem fez a dieta do Muka ou da Saliva. Pelo que

36
Relato de Mariasinha e Julia.

38
pudemos ser informados, quando realizada a dieta do Coração a pessoa se torna
“automaticamente” um Pajé37. Porém, isso não ocorre quando realizadas as demais,
justamente por conta de necessitarem de longos anos de experiência (antigamente, as
pessoas tornavam-se Pajé já na terceira idade) para conferirem à pessoa o status de Pajé.
Uma outra forma disso ocorrer, que possivelmente não ocorre mais hoje, é a pessoa se
tornar Pajé após ter colhido mel da altura das árvores durante uma dieta38. Assim sendo,
temos hoje um contexto no qual os Yawanawa enviam às cidades jovens em formação
para Pajé39 enquanto estes participam das cerimônias guiadas pelos Pajés em suas
respectivas aldeias.

Toda essa profusão das práticas da pajelança só foi possível porque ainda tinham
diversos idosos que lhes garantiam uma memória cultural fundamental para este
“revival”. Ainda que contassem com os Pajé Yawa e Tata, Raimundo Luiz era o
informante principal. Não nos sentimos hábeis para dizer quem possuía mais ou menos
poder no que tange às práticas da pajelança. Entretanto, diferentemente de Tata e Yawa,
Raimundo, além de Pajé, também era Shanai Ihu (líder ritual)40. Por conta disso, era ele
quem negociava as relações com os Nawa. Com seu falecimento, muitos saberes foram
perdidos e somente dois anos antes de sua partida a geração de seus filhos iniciou os
registros linguístico, histórico e cultural. Neste período já ocorriam gravações feitas
pelo Museu do Índio através do ProdoClin, projeto voltado para o registro das línguas
indígenas. Neste projeto, que está para ser concluído41, realizaram gravações,
transcrições e traduções de autobiografias, histórias e narrativas nativas. Hoje o Museu
do Índio conta com um acervo de aproximadamente 32 DVDs com as histórias, as
brincadeiras, costumes alimentares, formas de sustento, objetos produzidos, cantos,
desenhos e diversas autobiografias das principais lideranças políticas e/ou espirituais
yawanawa.

37
Pedimos paciência ao leitor, mais a frente iremos descrever o máximo possível as distintas dietas e
aquilo que influenciam.
38
Nesta situação, realizada durante a dieta do Muka, ao conseguir derrubar a colmeia do alto de uma
Sumaúma e descer em segurança, a pessoa pode tornar-se um excelente Pajé, caçador ou flechador –
ninguém que tenha perguntado sobre isso em campo se lembrava de alguém que tenha realizado esta
provação.
39
Ainda que não ocorra muitas vezes, os Pajé Tata e Yawa já foram por diversas vezes às cidades realizar
cerimônias.
40
As lideranças de menor influência, normalmente atuantes nos assuntos domésticos da aldeia, são
chamadas de Caiania. O termo Chanai Ihu lembra o termo txana ibu, líder do canto, especialista ritual (ou
dono dos japins) dos Kaxinawa (ver Lagrou, 1998, 2007).
41
Na sessão dos Yawanawa do site do ProdoClin (http://doc.museudoindio.gov.br/prodoclin/yawanawa/)
é possível buscar mais informações sobre o projeto. A pesquisadora responsável pelo projeto de línguas
yawanawa, coordenado por Bruna Francetto, é Julia yawanawa, filha de Raimundo.

39
Como comentado anteriormente, umas das principais atuações contemporâneas
dos Yawanawa refere-se ao ensino da língua e dos costumes. Segundo Mariasinha
Yawanawa, na época em que a FUNAI (Biraci já era adulto nesta época, nos anos 80)
contatou os Yawanawa havia entre eles somente 60 pessoas. Junto a diversas ações
realizadas por Biraci, investiram, em caráter emergencial, no aumento da população42 e
retomada da fluência na língua nativa. A parte da memória sobre os costumes, além
daquelas pertinentes ao cotidiano43, que mais recebeu atenção envolvia principalmente
informações sobre a Pajelança. Assim sendo, estas ações que realizaram para darem
continuidade ao seu estilo de vida tiveram um foque inicial na questão da língua e da
espiritualidade. Hoje já existem outros objetivos, como a autonomia financeira e o
desenvolvimento de projetos culturais (que, por sinal, centralizam-se na pajelança).

Ainda sobre a questão da língua, os Yawanawa construíram uma escola bilíngue


que é considerada como uma conquista realizada junto à Comissão Pró-Índio-Acre44.
Atualmente, enfrentam diversos problemas referentes à formação de novos professores
e a criação de material didático. A escola não tem sido o foco das atividades da maioria
dos Yawanawa, sendo da responsabilidade apenas de Julia e Nedina45. Tanto Julia
quanto Nedina salientaram o valor das histórias para a educação das crianças
Yawanawa. A importância de ensinar as próprias histórias defronta-se com o problema
de que, ainda que se tenham diversas histórias gravadas pelo Museu do Índio, as
histórias não tinham sido todas transmitidas na época do falecimento do maior
especialista. O tradicional método de transmissão do conhecimento oral tem como
fragilidade o perigo de grandes perdas quando o elo da transmissão é rompido. Com a
morte de Raimundo Luiz, foi com ele “toda uma biblioteca”, como se referia Nedina ao
seu avô. Tudo o que hoje eles sabem sobre a cultura Yawanawa é dito ter sido ensinado
por Raimundo, pelo seu pai Antônio e sua esposa, por terem vivido com os antigos. O
peso da perda de muitos saberes reforça o desejo em registrar este conhecimento,
dificultando o seu desaparecimento (ainda que muitos devam ser registrados mas
mantidos em sigilo).

42
Hoje, somente Biraci, conta com 35 filhos.
43
Como o preparo de certas refeições, o tipo e o modo como a madeira deve ser preparada para cada
finalidade,
44
A CPI-AC é uma conhecida ONG que atua há décadas com as populações indígenas nos setores da
educação e políticas públicas. Foi por meio da CPI-AC, nos anos 80, que a língua Yawanawa foi
transliterada.
45
Nedina era uma das responsáveis quando fui ao Mutum no ano de 2013. Entretanto, em meu retorno em
2014 ela havia se mudado por motivos de casamento. Desta forma, somente Júlia estava à frente da escola
naquele momento.

40
Na época que fiz a primeira viagem ao campo, Nedina e Julia se queixavam da
política estadual de educação. Anteriormente, a “Comissão Pró-Índio – Acre” realizava
cursos para formar indígenas em professores, sob uma perspectiva que englobasse a
cultura nativa na educação. Entretanto, conforme Nedina me falou, já havia quatro anos
que o governo do estado tomou para si todo o direito para formar professores indígenas,
ainda que nestes quatro anos nenhum novo professor fora formado. Já na minha
segunda viagem esta situação aparentou ter mudado um pouco, novos professores
estariam sendo contratados. Todavia, não temos certeza se há cursos mais longos para
estes novos professores, mas sim a execução de alguns módulos básicos de ensino.
Suspeitamos disso porque a escolha dos professores era totalmente baseada na
disponibilidade da pessoa em si, e não na sua formação.

Porém, a cada vez que dedicam esforços para uma ação, parecem sempre
começar a investir em outros campos. Isso se dá por conta da clara interligação entre os
elementos diacríticos dos Yawanawa. Falar de língua é falar de Shenipahu, que é falar
de Saiti, que é falar de Kene e assim sucessivamente. Hoje, por exemplo, os Yawanawa
têm tido um grande destaque pela sua produção artística. Desde o tempo dos
missionários, e antes, eles possuem o conhecimento da existência das miçangas e
sempre desejaram possuí-las. Nesta época, recebiam muito poucas, pois estas
funcionavam como moeda de favores. Hoje eles possuem um acesso muito maior e
demandas claras por miçangas da marca Jablonex (produzidas na República Tcheca),
em detrimento das chinesas (que quebram com muita facilidade e são irregulares na
forma). Os yawanawa vêm desenvolvendo este trabalho há mais de uma década, porém
ele foi muito intensificado após Hushahu ter entrado nas dietas. Conforme Julia me
contou, foi Hushahu quem trouxe duas grandes inovações no que tange o trabalho com
as miçangas. Primeiro em relação aos novos desenhos, principalmente o Awa Vana, que
hoje está em alta, e segundo, em relação à variedade das cores. Segundo Julia, os
Yawanawa usavam somente miçangas pretas (estas eram as principais). Nas mirações e
sonhos, Hushahu, via diversos Kene pintados com as cores mais variadas, contando
inclusive com “dégradés” (que hoje também estão em alta, mas é um elemento
totalmente novo). Hushahu nos contou, como lembraremos a frente, que em suas
mirações e sonhos a sua percepção destas formas e cores acompanhava o entendimento

41
do que queriam transmitir. A partir
de Hushahu, os Kene por ela
descobertos passaram a ser muito
procurados por diversas mulheres.
O sucesso foi tanto que hoje os
Yawanawa aparentam se distinguir
dos demais povos Pano, ao lado
dos Kaxinawa e Shipibo-Conibo,
Figura 5 - Imagem publicitária de luminária do jacaré. pelo seu trabalho com os Kene.
Créditos: AGT - A gente transforma.
Como o trabalho dos seus parentes
Kaxinawa e Shipibo-Conibo, hoje em dia os trabalhos dos Yawanawa têm tido alcance
internacional. Um dos elementos que marcam este sucesso internacional, fora tudo o
que envolve a Aveda e que temos registro é o projeto de luminárias “AGT Yawanawa –
A Força da Floresta”. Desenvolvido pelo arquiteto e designer Marcelo Rosenbaum e
exposto em Milão46, que contava com diversos objetos de lightning design revestidos
com os kene yawanawa feitos com Miçangas. Foi um trabalho feito em conjunto aos
Yawanawa, que faziam as malhas de Miçangas com os Kene a serem aplicados nos
objetos de design. As luminárias fizeram bastante sucesso e suas poucas unidades são
vendidas pela internet para o público internacional ou pessoalmente, na cidade de São
Paulo. Nossa pesquisa não se estenderá aos empreendimentos realizados pelos Nawa
com colaboração dos Yawanawa. Porém, não é difícil encontrar diversos exemplos
divulgados pela web. São negócios gastronômicos, de turismo, de moda e também
outros que envolvem o uso do Urucum (Aveda) e a Pajelança (cerimônias nas cidades).
O leitor poderá encontrar as referências de alguns destes empreendimentos na
webliografia desta pesquisa.

Os Yawanawa também desenvolvem projetos paralelos aos seus troncos


principais (arte e pajelança) sem deixar de serem oriundos deles. Desde o início das
atividades da Aveda, foram facilitadas diversas atividades que vinham caindo em
desuso devido ao processo histórico gerado pelo contato. Os investimentos nas
performances culturais e pesquisas práticas (dietas) da pajelança acabaram criando
outras demandas para a continuidade do modo Yawanawa de estar no mundo.

46
A exposição ocorreu na sessão “Espaço Brasil S/A” do Palazzo dei Giureconsulti em Abril de 2012.

42
Observando discrepâncias entre o que já conquistaram e o que precisam para
garantirem a continuidade de seu estilo de vida, criaram, a exemplo de análise, a
Cooperativa das Mulheres Yawanawa, a fim de gerar visibilidade e renda pelos
trabalhos desenvolvidos por elas. Partindo das principais queixas que as mulheres
tinham sobre o cotidiano, sobre coisas que desejavam possuir para facilitarem
determinados trabalhos, Julia desenvolveu a ideia da cooperativa que veio a ser apoiada
pelo governo do estado do Acre. Por meio desta cooperativa, as mulheres produziriam
artigos característicos do povo Yawanawa a serem vendidos aos nawa. Seus principais
trabalhos são feitos com Miçanga.Já realizaram cursos promovidos pela Casa do
Artesanato, ligada a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo do Acre, de
beneficiamento de sementes. Infelizmente só metade do projeto foi executado, faltando
o fornecimento da infraestrutura para o início do beneficiamento. Planejam também
trabalhar com roupas decoradas com os Kene. O tecido seria de origem industrial, uma
vez que, dizem, todos os que sabiam produzir os tecidos de algodão já faleceram. Para
Julia, a troca seria por produtos Yawanawa “tradicionais” e, assim, abasteceriam a
cantina com objetos básicos do dia-a-dia. A cooperativa não iria vender frango,
sardinha, produtos de conserva etc. dentro da aldeia. A ideia visa estimular a retomada
de produção de certos objetos no cotidiano, como o kuki (paneiro) e o txichã (peneira
para coar caiçuma), assim como as lanças, artesanato com miçangas e sementes, vasos
de barro e outros itens tradicionais feitos com produtos naturais.

A ideia da cooperativa e da cantina busca diminuir a necessidade de ir para a


cidade conseguir produtos industriais que hoje fazem parte do cotidiano Yawanawa
(utensílios de cozinha, ferramentas, roupas etc.). Além disso, todo mês as famílias são
obrigadas a irem à Tarauacá para poderem receber o dinheiro do Bolsa Família que, em
seu valor total de R$253,00, custeia basicamente a ida e a volta da cidade47. O que Julia,
assim como as demais lideranças (vide Mariasinha e Tashka), mais desejam é que as
famílias Yawanawa dependam cada vez menos da cidade e passem a valorizar mais os
costumes dos Yawanawa. Obviamente não retornarão aos moldes dos antigos, até
mesmo porque é característico dos Yawanawa a boa recepção e a predisposição de
criar-se alianças com os nawa. Entretanto, este contato intenso com a cultura do nawa

47
Para irem à cidade, as famílias devem custear a gasolina (R$170,00 para descer e subir o Rio Gregório),
pagar a diária para que o barqueiro espere em Vila São Vicente, no encontro do rio com a BR364
(aproximadamente duas horas de distância de Tarauacá). Além disso, também há o custo de alimentação
na cidade. Em média, as famílias levam uma semana para irem e voltarem. Claro que esse valor total pode
ser dividido, com mais de uma família usando o mesmo barco (voadeira, com motor de poupa).

43
não poderia, conforme as lideranças,
descaracterizar o modo de ser yawanawa e
também Pano. Ou seja, um modo de ser
pautado por relações de captura da
alteridade. Reconhecendo os novos tempos,
a cooperativa busca oferecer às famílias
itens básicos para a continuidade da vida
aldeã que só são obtidos nas cidades. A
distribuição destes produtos não visa
ocorrer por meios financeiros, mas sim pela
troca de produtos. Vender-se-ão produtos
da cultura Yawanawa por meio da
cooperativa que irá, por sua vez, utilizar o
fundo gerado para comprar estes itens de

necessidade básica do cotidiano. Pelo que Figura 6 - Foco em colar de miçanga. Motivo:
Awa Vana e Runu Mapu. Foto por Renan Reis
pude entender nas conversas, as famílias
Yawanawa não iriam comprar os alimentos e os itens da cantina, mas fariam um uso
coletivo, conforme a demanda e a necessidade. Esta lógica não é nova, uma vez que os
costumes das grandes pescarias e caçadas implicam na partilha comunitária do que foi
angariado na empreitada. O mesmo aparenta ocorrer no âmbito da cooperativa.

Ora, fica muito fácil perceber como tudo entre os Yawanawa implica no todo
Yawanawa. Dois polos, a pajelança e o cotidiano48, imbricam-se continuamente
completando ao longo do tempo diversas amarrações entre pontos e caminhos que
estabelecem uma rede que se projeta na alteridade. O fortalecimento das dietas, por
exemplo, promove, de certa forma, a realização positiva de cerimônias nas cidades. Isso
abre as possibilidades de criação de alianças que, por sua vez, podem gerar
investimentos (financeiros/serviços e também de ação prática) em diversos pontos desta
rede, fazendo surgir a necessidade de criação de outros pontos (pois a trama nunca se
fecha). Veremos mais à frente que este tipo de movimento entre elementos diacríticos é
estrutural no sentido de estar presente em diversas ações Yawanawa, podendo ser na
criação de Kene e de Saiti até a construção de relações de afinidade e parentesco
48
Aqui não deixamos de considerar o cotidiano enquanto um campo de ação da pajelança. Realizamos
esta distinção pautados na diferenciação entre os modos de ação. Aquelas conscientemente projetadas
para a alteridade dos Yuxi e aquela voltada para as ordens práticas da vida cotidiana.

44
2.3.3 A arte Yawanawa contemporânea
Em campo, as alusões à arte sempre deram a mostra da sua importância para a
cultura Yawanawa. A arte, como contam diversos informantes, é um marcador
diacrítico dos Yawanawa desde o tempo dos antigos. Diferenciando seus corpos dos
demais povos, os antigos Yawanawa distinguiam-se com a ocultação do nu por meio
das obras de arte. Aqui, desejamos aplicar a noção de “arte” àquilo que me fora citado,
em diversos momentos, como “arte Yawanawa”49. Obviamente, a variedade de objetos
que os antigos produziam se perdeu e hoje restam alguns registros e a memória dos
mais velhos para recorrerem a imagens que lhes possam servir de inspiração para
criação de objetos ou reproduções das imagens. Podíamos ver em campo diversas
amostragens de artigos artísticos que buscavam aproximar-se às produções dos antigos.
Entretanto, este movimento contemporâneo de novas criações e experimentações
artísticas é resultado das ondas provocadas pelos movimentos de Hushahu no contexto
sociocosmológico. Tal como alianças são feitas com pessoas de outras sociedades o
mesmo ocorre com a produção das imagens. Veremos na sessão das dietas e dos Kene
que as imagens são resultados de relações com a alteridade. Tratando-se dos Kene, esta
relação se dá com o campo de existência dos Yuxi. Neste momento, traremos
informações sobre outra espécie de imagem, que se centra em pontos de importância
substancial para o desenrolar desta pesquisa e para a sustentação de nossas hipóteses.

Segundo relatam os Yawanawa, o aprendizado da manufatura com as miçangas


chegou aos Yawanawa através de um casamento que ocorreu entre uma Yawanawa e
um Ashaninka, que já conheciam e trabalhavam com a miçanga havia tempos. A mulher
aprendeu a técnica e a repassou aos Yawanawa, que já possuíam interesse nesse
conhecimento. Logicamente, o aprendizado da técnica não refletiu na reprodução de
formas. A técnica fora totalmente dominada pelos Yawanawa e hoje os desenhos
realizados configuram um marcador cultural de grande importância. Como evidência
disso, em campo sempre me fora perguntado por que queria registrar os desenhos ou
salientavam, quando não ao mesmo tempo, a importância de que ninguém deveria vê-
los. A preocupação era com supostos plágios. Tinham receio de que outras pessoas
roubassem os motivos e passassem a dizer que eram de outro povo. Os Yawanawa
também dão muito valor à variedade de cores de seus trabalhos com miçanga.

49
Veremos que “arte” pode ser qualquer coisa feita da melhor forma possível, sendo uma noção associada
ao belo e ao bom. Ver Overing (1991) e Lagrou (1996, 1998, 2007, 2009) para uma discussão deste tipo
de estética do cotidiano.

45
Contaram-me que o preto não vinha sendo usado por outros povos, somente para fazer o
contorno de alguns desenhos. O preenchimento de formas com miçangas negras seria
uma marca dos Yawanawa que, junto a tantos outros marcadores, estaria sendo copiada
por outros povos. Além do preto, que sempre fora utilizado pelos Yawanawa, Hushahu
traz de suas experiências visionárias com o Uni50 o uso de diversas outras cores que
nunca foram usadas, além da introdução do “dégradé”. Não somente os novos Kene,
mas também a utilização de uma gama muito maior de cores e formas de dispô-las na
malha são inovações muito valorizadas e incorporadas aos marcadores Yawanawa.

Apesar da Miçanga hoje


estar no centro de diversas
atividades econômicas e
criativas dos Yawanawa, ela só
veio a fazer parte do seu
cotidiano por volta do ano de
2004. Na época dos

missionários eles tinham acesso Figura 7 - Hushahu soprando Rapé em Matsini com um Tipi.
Foto por Renan Reis.
a poucas miçangas cedidas por
estes. Hoje demandam miçangas de qualidade e já conseguem movimentar um mercado
de pessoas interessadas em investir neste tipo de mercadoria51. Entre suas produções
atuais, destacam-se as pulseiras, caneleiras, colares e tiaras. Além destes, Hushahu tem
criado diversos Tipi52 decorados com Kene em miçangas, dentre diversos outros objetos
decorados com os Kene. Com a intenção de refletir sobre como ocorre a relação entre os
desenhos figurativos e não-figurativos dos Yawanawa, este vem a atender nossa
demanda por exemplos que possam ser elucidativos acerca de formas ontológicas
características dos Yawanawa. Hushahu nos apresenta duas fontes de imagens para que
possamos pensar este tipo de relação.

50
Ayahuasca, em Yawanawa.
51
No projeto “No caminho da miçanga, um mundo que se faz de contas”, coordenado por Els Lagrou no
Museu do Índio, que implica na constituição de grande acervo qualificado de arte em miçanga pelos
povos indígenas brasileiros, Julia Yawanawa foi responsável pela constituição e qualificação do acervo de
arte em miçanga yawanawa (comunicação pessoal Els Lagrou).
52
Aplicador de Rapé.

46
Figura 9 - Trabalho feito a partir de imagens trazidas por Hushahu. À esquerda o Runu Mapu (cabeça da
cobra – sem detalhe do olho) e à esquerda uma forma possível do Awa Vana. Foto por Renan Reis

Durante o campo, pude observar diversos Kene que jogam com a percepção do
observador, mostrando e ocultando formas53. A fama de Hushahu no campo dos Kene se
firmou quando trouxe o Awa Vana e o inseriu na confecção dos trabalhos com miçanga.
A partir da forma da borboleta, Hushahu consegue incorporar as formas da Runua
(cobra) e do Washushaka (peixe). O jogo de percepção ocorre quando o olhar é focado
nos motivos da Runua ou do Washushaka e a forma do Awa Vana é ocultada, ocorrendo
o oposto quando focado na Runua ou Washushaka. Intensificando este jogo, as partes,
tanto da cobra quanto do peixe, podem ser separadas e espelhadas. Parece que o
“abstrato”, enquanto “não-figuração”, está mais para os processos cognitivos do que
para as formas específicas dos Kene. Em suma, a figuração é sempre presente em
diversos Kene. Entre os Yawanawa, os Kene aparentam sempre inspirar-se em formas
encontradas na natureza e, ainda que
possam ser totalmente não-figurativas
aos olhos não-Yawanawa, para os
mesmos são estas relações específicas
entre traços e preenchimentos que os
comunica uma forma ou outra. É
justamente na operação coordenada entre

Figura 8 - Foto do acervo pessoal de Hushahu de


diversos traços e motivos mais
pintura em tela com jenipapo e urucum de Tata feita elementares que outros vão surgindo e
por ela mesma.

53
Esta pesquisa dialoga de perto com a pesquisa de Els Lagrou sobre a dinâmica relação entre ocultar e
mostrar nas artes indígenas ameríndias (ver particularmente Lagrou & Severi, 2014 e Lagrou, 2011, 2012,
2014).

47
somando-se em complexidade e detalhes. É possível encontrar diversos trabalhos com
miçangas e jenipapo nos quais estão presentes diversas “partes” de Kene completos. A
asa da Awa Vana pode ser usada sem o corpo, que pode, por sua vez, ser o corpo da
Runua. Também é possível dividir toda a cobra, e colocar a Runu Mapu (cabeça), o
Kate Yuve (costas) e o Shanu Pana (rabo). Ou então o peixe, em escamas e rabo. Estas
figuras também podem aparecer todas misturadas com formas geométricas e gerar um
embaralhado que confunde todas as formas, colocando-as em relação de composição
recíproca. Em outras palavras, uma forma compõe uma outra ao terem seus traços-
periféricos em contato. Ora, vejamos, se é a partir de elementos de menor complexidade
que se contata elementos externos, podemos perceber esta mesma “relacionalidade”
para além do universo dos Kene, como na narrativa das histórias, na construção de
novos Saiti e também de alianças. Ao passo que uma proximidade formal ou de
interesse convirjam, a possibilidade de criação de algo novo a partir de coisas dadas
vem à tona. Veremos que entre os Yawanawa também podemos pensar uma relação
muito íntima entre a produção estética e seu modo de pensar.

É com esta nova profusão de motivos que hoje os Yawanawa têm tido muito
sucesso na receptividade de seus trabalhos pelos Nawa. Durante o Mariri realizado no
Mutum em 2013, praticamente todas as pulseiras, colares e tiaras foram vendidas aos
poucos Nawa que lá estavam. Além disso, eles estão presentes em algumas lojas virtuais
e em certos setores comerciais especializados. Também estão sendo usados trabalhos
com miçanga junto a artigos de moda e alguns desenhos já vêm sendo pintados em
tecido de forma experimental. Veremos que estes trabalhos com os Kene, assim como
com os cantos, as danças, as histórias, os costumes e tantas outras coisas características
do modo de vida dos Yawanawa, são operados por corpos que devem ser Yawanawa,
ou aproximados. Lembremos que os Nawa também podem fazer coisas de Yawanawa,
como cerimônias e dietas. Todavia, aparenta haver um limite para ser ultrapassado para
“tornar-se” Yawanawa, pois assim como a pajelança, as relações de parentesco e de
relacionamentos afins também complementam o que vem a ser um Yawanawa, não
bastando somente saber fazer coisas. Tem que saber fazer gente Yawanawa também!

48
Além dos trabalhos feitos com miçanga, Hushahu também vem criando muitas
pinturas de jenipapo no corpo. Sua utilização atende a diversas finalidades, que podem
ir desde a cura até a identificação do corpo pintado. Em um dado momento, quando
somente algumas idosas pintavam as pessoas (época em que Hushahu ainda era
criança), eram utilizados apenas os motivos da Runua (majoritariamente em homens) e
o Kayania em crianças. Hoje, Hushahu utiliza-se de diversos Kene que compõem
outros. Além disso, ela já vem utilizando figurações humanas e de animais (borboletas e
cobras) em quadros pintados com material industrial e também com urucum e jenipapo
(foto ao lado, com imagem de Tata). Grande parte da força de Hushahu é associada aos
seus desenhos. Entre os Yawanawa, quando o Kene é pintado no corpo humano lhe
transmite sua força. Além disso, os Kene também servem para que os Yuxi identifiquem
estes corpos enquanto não-ordinários,
como corpos dotados de agências da
pajelança. Aqui, como marcadores de
identificação e provedores de agência,
os Kene e os trabalhos figurativos são
movimentadores de relações e saberes.
Em suma, tanto a obtenção de um
saber (seja ele técnico ou não) quanto a
de formas a serem trabalhadas, são
ações projetadas na alteridade que,
aqui, apresenta-se enquanto um campo
de captura de elementos constitutivos e
diacríticos.

Agora falaremos um pouco


sobre os quadros de Hushahu. Foi por
meio deles que ficamos conhecendo a Figura 10 - "Mulher cobra", pintura em tela com tinta
acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa. Foto por Renan
artista e através dos mesmos o nosso Reis
interesse em compreender a utilização das formas figurativas em trabalhos de arte
plástica surge. Buscamos pensar as formas possíveis de abdução de agências para
diversas finalidades.

Hushahu começou a fazer os desenhos de forma autônoma e acabou sendo


rapidamente conhecida, principalmente pelo seu pioneirismo na participação das

49
mulheres na pajelança Yawanawa.
O ativismo de seu irmão, Tashka
Yawanawa, contribuiu para
colocar suas obras em circulação
na cidade de Rio Branco e também
na cidade de Belo Horizonte e
Brasília, pela exposição MIRA!.
Esta ocorreu no Centro Cultural da
UFMG, na Casa da Cultura da
América Latina da UnB e também Figura 11 - "Mulher borboleta", pintura em tela com tinta
acrílica. Artista: Hushahu Yawanawa. Foto por Renan Reis
no Museu dos Correios de Brasília.
Houve um seminário na abertura da exposição em Belo Horizonte e também na Casa da
Cultura da América Latina/UnB. O seminário levantou diversas questões comuns aos
nossos objetivos acadêmicos. A relação entre figura e ação, sempre debatida nas mesas
que dialogaram sobre a pajelança, é relacionada ao caráter “visionário” destas obras e,
assim, a suas capacidades de transmissão de conhecimento.

Hushahu possui três quadros expostos nas referidas exposições, nos quais mostra
personagens femininos associados às identidades da cobra e da borboleta. O início da
criação de seus desenhos figurativos, como veremos melhor na sessão da breve
biografia de Hushahu, se deu quando realizava a dieta do Muka e ela os utilizou como
forma de mostrar ao seu pai os espíritos que estava vendo. Uma vez identificados,
Raimundo Luiz ensinava a Hushahu o que precisava saber sobre as suas visões.
Todavia, criados os três primeiros quadros, seu pai veio a falecer, levando-a a dar uma
pausa em suas criações. Atualmente, Hushahu retomou as atividades e vem criando
diversos outros quadros. Conforme me dizia em campo, estes trabalhos com pinturas em
tela surgiram para mostrar às pessoas com que tipo de forças e aprendizados ela esteve
se relacionando durante seu processo de dieta. Claramente a marca do feminino é
central nas atividades de Hushahu. Sua produção imagética, de cantos e inclusive de
Nawe (rapé), são sempre identificadas pela sua variação feminina.

Falar de “Hushahu para os Yawanawa” aparece, em muitos momentos, quase


que como um sinônimo de “mulher Yawanawa”. Tanto para outros aldeões quanto para
os Nawa, a história de enfrentamento ao monopólio masculino feito por por Hushahu é
dada como o grande exemplo desta “mulher Yawanawa” devido à força e determinação

50
que empregou na conquista de seus sonhos. E não é só o seu caso que se faz presente no
imaginário Yawanawa de exemplo da força da mulher. Manshivake, uma Yawanawa do
tempo dos antigos que sofria abusos de seu marido e acabou fugindo de sua aldeia
também é outra figura feminina de referência. Pelo caminho que seguiu durante a sua
fuga, foi deixando os Kene gravados nas madeiras, marcando o seu caminho ao longo
da floresta. Esta mesma mulher, era reconhecida pela beleza de seus desenhos e adornos
que fazia. Seu nome sempre é comentado ao falarem da história da beleza da arte
Yawanawa, sendo um grande exemplo de Rauti. Entretanto, diferentemente dos Kene de
Hushahu, os seus não continham força, uma vez que ela não havia realizado as dietas do
Muka e dos Suya.

A capacidade de Hushahu de produzir belos kene e adornos sempre foi muito


considerada. Hoje, a percepção destas imagens se liga à definição destas como arte que,
como comentamos anteriormente, caminha conjuntamente com as noções de belo.
Dentre outras possíveis configurações de Kene em miçangas, aqueles trabalhos nos
quais se utilizam o Awa Vana e desenhos da Runua, nos facilitam perceber e
compreender, em certa medida somente, aquilo que é belo para os Yawanawa. Assim,
achamos ser possível vislumbrarmos a operacionalização de lógicas relacionais e
construtoras de imagens, artes, corpos e cultura notadamente Yawanawa. Aqui, a
qualidade “Yawanawa” parece se manifestar por meio de dados formais. Ou seja, são
produtos das lógicas relacionais. Como podemos perceber dentro de um discussão mais
ampla, veremos que estas “lógicas relacionais” não são isoladas. A noção de pessoa
entre os Yawanawa é construída sob as mesmas bases que as noções usadas para
classificar outros seres da realidade. Aquilo que constitui as coisas possui suas formas e
significados em diálogo com o ponto de vista desta coisa. Como preconiza a teoria
perspectivista, a capacidade dos seres de ocuparem um determinado ponto de vista está
mais para o contexto situacional do que para as propriedades biológicas de seu corpo
(Viveiros de Castro, E., 2002: 353). O que distingue os seres em relação entre si são
mais os contornos dos corpos que seus modos próprios de se relacionar com o meio
externo. Assim sendo, não aparenta ser impossível considerar que a contínua busca de
possuir/usar a força de algo entre os Yawanawa nos remeta a um certo tipo de abdução
da percepção do outro.

Afinal, como isso se relaciona com os Kene e as miçangas? Como comentamos,


o jogo de percepção criado na composição feita com o Awa Vana e os desenhos da

51
Runua exige do observador concentrar seu olhar em determinado motivo, assim ele verá
a Runua ou a Awa Vana misturadas com motivos geométricos54. Se não focalizar o
olhar, somente verá um conjunto de formas geométricas, apesar de suspeitarmos que o
olhar sempre será capturado por determinado conjunto de linhas ao buscar um centro
organizador.

Durante os trabalhos com o Uni, o papel dos Kene na miçanga é indicar um


certo observador (que, neste caso, podem ser também os Yuxi) e, assim, obter
determinados resultados de acordo com a relação entre o kene em questão e o
observador. Em outras palavras, utilizar determinado Kene implica considerar que o
modo como ele é percebido, e também por quem ele é percebido, pode gerar resultados
diferentes. Aqui, a importância formal não se restringe aos Kene. Tudo o que for uma
forma e identificar alguma coisa é cabível de carregar a sua força.

Existe uma queixa comum dos Yawanawa em relação a certas posturas dos
nawa. Em suas andanças pelas cidades e outros países, costumam encontrar diversas
pessoas praticantes de espiritualidades que dialogam com a pajelança55. Estas, na sua
maioria, entenderiam a cultura indígena sob um prisma não-nativo e incorporariam
elementos da pajelança à sua espiritualidade. Ocorreria, muitas vezes, de usarem
miçangas e substância de formas muito distintas do uso nativo. Um dos casos
emblemáticos utilizados para exemplar isso foi o de Tata, na cidade do Rio de Janeiro.
No local que estava, havia um Nawa com um colar de dentes de onça. A pessoa pediu
para que Tata fizesse uma benção no colar, para torna-lo mais poderoso (supostamente o
colar teria sido benzido por outro pajé). Tata negou fazer isso porque a pessoa que usava
o colar não era pajé e assim desconhecia a força que um colar feito de dente de onça
poderia ter. Diferentemente, o Awa Vana, e mesmo as borboletas in natura não
ofereceriam risco algum. Diferente da cobra e da onça, a borboleta não é considerada
um predador. O que Hushahu conta sobre sua força é que a borboleta seria o único
animal que pousa na cabeça da Runua enquanto ela está levemente submersa para
respirar. Aqui, o que aparenta ser mais frutífero é sua aproximação segura a uma
entidade altamente predatória. Não à toa o Awa Vana, ao que parece, está diretamente
relacionado às noções de belo compreendidas sob a categoria de Rauti. Como dito, estar
Rauti significa estar belo sob o ponto de vista dos Yuxi. Nesta condição, relações de

54
Esta formação entre os Kene não está presente em todos os trabalhos feitos com a Awa Vana e a Runua,
mas sim em determinados trabalhos que observamos em campo.
55
Ver: Aline Ferreira 2012

52
reciprocidade podem ocorrer da sua forma mais positiva buscando, inclusive, afastar
aqueles Yuxi carregados de coisas inapetentes aos Yawanawa. Nestes casos, que
destoam do uso dos Kene em contextos urbanos, o conhecimento sobre o que tratam os
Kene permite a compreensão da composição coletiva. Se a pessoa que observa for
alguém com estudos mais aprofundados na pajelança, fará correlações distintas das que
se poderia ter observando os Kene meramente pelos seus traços simbólicos e
representacionais.

Aqui, pensamos em uma correlação que


permite interpretar um mesmo objeto de mais de uma
forma possível, sem que uma anule a outra. Falar da
borboleta enquanto mero animal é uma coisa, falar
dela como signo de um poder é outra. O mesmo vale
para outras entidades, como a cobra e o peixe. Existe
o conhecimento comum, assim como o da pajelança.
Os Yawanawa falam deste saber como “conhecimento
de verdade, profundo” que estaria sempre sendo
protegido. Isto, é claro, quando se tem que negociar
para fazer dietas ou então ter restrições de ouvir certas
histórias. A preocupação se estende ao cuidado de não
deixar ouvir uma história mesmo sabendo que a
pessoa não a entenderá conforme este “saber
profundo”. De alguma forma, o conhecimento da

narração mítica também deve ser resguardado, e não Figura 12 - Exemplo de colar (de
tipo muito procurado pelos Nawa).
somente o seu significado mais metafórico. Como se O grafismo é um composto criado
com os motivos da cobra (corpo e
pode perceber, isso vale para os Shenipahu, os Kene, cabeça), borboleta e escamas de
os Saiti e demais cantos, de cura ou não. Isso se dá peixe com geométricos. Artista:
Hushahu Yawanawa. Foto por
porque em um contexto mais aprofundado da Renan Reis
pajelança Yawanawa, os termos utilizados adotam outras espécies de significados e
correlações. Tanto que, no caso de certas histórias e conversas sobre os Yuxi e outros
assuntos pertinentes à pajelança, seriam conversadas, preferencialmente, em Yuve – que
seria a língua da Runua. Hoje, dizem os Yawanawa, somente alguns idosos dominam a
“língua”, que está correndo o risco de desaparecer.

53
Além dos Kene e dos quadros pintados, Hushahu e sua irmã, Putany, também
inovaram na forma de cantar os Saiti. Anteriormente, a sonoridade dos cantos era mais
baixa e fraca do que aquela, alta e forte, cantada, principalmente pelas mulheres, nos
Saiti contemporâneos. Esta mudança rítmica, quando introduzido o violão, gerou certos
tipos de barreiras rítmicas aos Saiti, fazendo com que adaptassem o canto à melodia do
violão. Mas isso não ocorre com os cantos de cura (Muka, Shuinti e Yuve). Estes são
aqueles usados em momentos específicos e para ações diretas. Os Saiti podem variar
entre mero entretenimento até “chamador de força”. Porém, os supracitados cantos de
cura não variam desta forma. Só podem ser entoados ou no estudo ou no trabalho. A
seriedade de seu uso reflete-se também nas prescrições de sua aplicação. Altura, força,
ritmo, andamento e tom são qualidades que não variam. Não se utiliza o Saiti Vanaya,
por exemplo, acompanhado do violão (o mesmo acontece com os outros cantos de
cura). Porém, é por meio destes cantos de maior poder que se aprende e se provocam
efeitos que geram saberes.

Dentre estes efeitos, podem ocorrer curas, visões, limpezas e também alterações
dos estados oníricos e ordinários. Isso só é possível justamente devido àquela lógica
relacional que começamos a dissertar anteriormente. As formas e as coisas constroem-se
simbioticamente à medida que se encontram. Os Saiti, os cantos de cura, os Kene, o Uni
e tantos outros elementos de poder na pajelança Yawanawa sempre caminham juntos,
ao passo que seus “traços-periféricos”, ou seja, seus encontros com outro elemento, são
compatíveis operacionalmente na construção de determinada finalidade. Aqui, aquilo
que é informado pela cultura Yawanawa irá operacionalizar estas relações. Desta forma,
haverá um modo de fazer arte, de cantar, de guiar as cerimônias, de pescar, de casar, de
se ter relacionamentos qualitativamente yawanawa etc. conectados via ensinamentos
xamanísticos Yawanawa. O que se pode perceber, é que todas estas manifestações
artísticas estão imbricadas umas nas outras na mesma forma que tudo está imbricado a
tudo, revelando-se uma estrutura fractal no fazer-se estar no mundo.

Matsini é um grande entusiasta no uso do violão nas cerimônias. Em


praticamente todas as cerimônias que participei, o violão acompanhava os Saiti em
diversos momentos. Acreditamos que o violão tenha sido introduzido também por
influência do Santo Daime, com o qual os Yawanawa possuem boas relações há alguns
anos. Porém, não poderemos aqui confirmar esta hipótese, porque o violão também está
presente na cultura jovem da região de modo geral. Em suma, se houver uma origem

54
desta introdução importa-nos, neste momento, pensar a introdução do violão no que
concerne à sua aceitação e viabilidade dentro do espaço cultural Yawanawa. Tal como
ocorreu com o Awa Vana, com a dieta de Hushahu e seu reconhecimento, estas
novidades aparentam ser processadas pelo ponto de vista Yawanawa e distinguidas
entre o que é viável de ser englobado e o que não é. Para se-lo, tem que operar conforme
as normas de qualidade e efetividade nativas. De nada adiantaria utilizar o violão se ele
não somasse nada aos Saiti56. Quando outros objetos musicais vieram a se manifestar
em cerimônias, ou então quando falavam de casos deste tipo, falavam que há um certo
momento em que se poderia utiliza-los ou não, de caráter experimental. O problema
destes outros objetos é sua relação rítmica com o canto. O violão já gerou mudanças
deste tipo nos Saiti, ainda é parte da alteridade e não se relaciona com o tradicional de
forma plena. O mesmo não vale para outros instrumentos, apesar de que hoje há uma
lenta introdução do uso da flauta.

O canto carrega a força da pessoa que, ao puxar um Saiti Vanaya, consegue,


com o auxílio do seu Muka, chamar as forças da alteridade que deseja. Diferentemente
dos Saiti comuns, os Vanaya não sofrem, de acordo com o que me foi dito, estas
variações rítmicas. Aqui precede um princípio mimético, o qual obriga a quem canta o
Vanaya a manter com fidedignidade o ritmo e a fonética das palavras cantadas. “Fazer
perfeito para os espíritos entenderem”, me explicou Hushahu. E é desta forma mesmo
que se faria algo “bonito”. Hushahu foi uma das pessoas mais influentes em mudar de
forma mais drástica o ritmo dos Saiti. Desejando desenvolver seus trabalhos com a
“variação feminina”, Hushahu começou a cantar mais melodicamente e com a voz bem
alta. A mesma me disse que desenvolveu isso para que os espíritos vissem nela a
firmeza de sua intenção e o tipo de força que ela estava querendo trazer para os
Yawanawa.

Aqui, pretendíamos mostrar um panorama contemporâneo das principais


produções artísticas dos Yawanawa do Mutum. Há ainda diversos outros tipos de
atividades que ainda são conhecidas, mas muito pouco praticadas. Dentre estas, as
técnicas com palha e argila são as mais próximas de serem retomadas atualmente57.
Focando-se nos Kene, trabalhos em tela e cantos, tentamos trazer à vista diferentes

56
O mesmo não ocorreu com o Maracá nas cerimônias e festividades dos Yawanawa da aldeia do
Mutum, porém ele já se faz presente em Nova Esperança.
57
Na edição de 2013 do Prêmio das Culturas Indígenas os Yawanawa, sob representação de Matsini,
foram premiados para realizarem uma oficina de cerâmica e palha.

55
manifestações que buscam criar relações que lhes permitam continuamente construir
marcadores diacríticos para os Yawanawa. Assim, tal como também ocorre nos quadros
de Hushahu, a presença dos Kene aparentam ser a principal forma de marcar a
identidade Yawanawa no corpo em questão.

Grafismo corporal, pinturas em tela, cantos e saberes aparentam, como


poderemos melhor explanar ao longo desta pesquisa, serem imageticamente percebidos
e apropriados na forma dos Kene. As pinturas em tela, conforme me dizia Hushahu, são
como representações de saberes e encontros com entidades espirituais. Tais visões são,
justamente, momentos de grandes fluxos imagéticos, compostos por formas
geométricas, Kene e também imagens “aleatórias” e esvaziadas do poder daquilo que
entenderemos sob a noção de visão usada em campo pelos nativos. Elas não são
materializações das visões, mas sim representações delas. Diferentemente do Kene a ser
pintado no corpo, e que o afeta de alguma forma, as pinturas de Hushahu são posteriores
à experiência visionária do Uni e não o seu resultado. Suspeitamos que elas condensam
em si diversos momentos deste fluxo de imagem e, somente se tendo conhecimento
sobre o que as formas em questão dialogam, permitem ao observador ter uma
compreensão mais próxima daquela que a artista tem da imagem.

Não nos fora ensinado em nenhum momento sobre a possibilidade dos quadros
curarem ou adoecerem alguma pessoa, nem provocar-lhe alguma sorte ou azar. Muito
pelo contrário, o campo de ação dos quadros de Hushahu equipara-se àquele que
consideram à própria noção de arte em si. A arte aparenta ser o belo, mas isso não a
preenche de força automaticamente. Estas imagens são saberes e encontros relatados
figurativamente. Todavia, Hushahu realiza suas pinturas sob o efeito do Uni como
forma de fazer formas e caminhos que levam às imagens. Ali ela busca passar sua força
às imagens por meio de sua intenção e desejo para, assim, conferir força às imagens e
poder comunicar ao observador algo a mais que uma combinação estética. Entretanto,
pelo que me relatou Hushahu, acessar esta força e saber associados a estas imagens,
aparenta depender de observa-la em contexto e meios adequados. Por exemplo, sua
exposição em galerias urbanas não ofereceria as condições necessárias para que o
encontro com a força da mulher-cobra (personagem de muitas das suas obras) se
concretize, mas sim para que o observador saiba que a mulher-cobra faz parte da
cosmologia Yawanawa. Em determinado momento perguntei a Hushahu o que os
quadros poderiam fazer ou interferir se estivessem no Shuhu durante uma cerimônia.

56
Para ela, poderiam oferecer um caminho, para se encontrar com aquela força ali
representada. Mas, ainda assim, não bastaria tomar Uni e olhar para a imagem. Seria
também necessário saber o que é esta imagem entre os Yawanawa e o histórico das
visões de Hushahu.

Pelo que pudemos perceber até o momento, as produções contemporâneas do


campo artístico entre os Yawanawa aparentam colocar em prática uma lógica anterior
aos períodos que denominamos de “contemporâneo”. Mais à frente, no capítulo
seguinte, aprofundaremos esta análise através de elementos contínuos e que não
constituiriam novidades, mas que seriam as bases estruturais para as mesmas. Neste
momento, veremos como a construção de uma percepção perpassa também a de corpos
e pessoas.

2.3.4 O mundo das alianças com o outro


Nesta sessão queremos falar dos principais projetos construídos em conjunto aos
Nawa. São diversas atividades, chamadas de “projetos” por alguns Yawanawa,
empreendidas desde o momento que começaram a ir à cidade para criar alianças. O
período anterior, marcado pela exploração e submissão aos patrões seringueiros e aos
missionários, fora marcado pela realização de projetos nos quais os próprios Yawanawa
não eram coadjuvantes (a partir dos anos 80 isso mudou com a FUNAI e CPI-AC, mas
não com a expressividade atual). São projetos comerciais, artísticos, turísticos,
espirituais, socioambientais e políticos. Aqui trataremos de alguns casos, dos quais
estivemos mais próximos durante o campo, mas citaremos outros para mostrar a
dimensão das alianças estabelecidas pelos Yawanawa com os Nawa.

Conta-se que um antigo Pajé falava sobre o surgimento de um povo que viria de
longe para criar boas relações, que ajudariam os Yawanawa a crescerem. Matsini me
contara que estes “bons humanos brancos” não foram nem os patrões e nem os
missionários (os primeiros a conhecerem), mas sim aqueles que criam relações que
estimulam o próprio modo de ser dos Yawanawa.

Em campo, e também ao investigar a rede de relações com a alteridade nomeada


como Yawa-Nawa por Aline Oliveira (2012:49), pudemos perceber como os Yawanawa
do Mutum aparentam ter mais interesse em receber os Nawa do que ir à cidade realizar
cerimônias. Esta rede pauta-se no investimento em relações de reciprocidade, por parte
dos Yawanawa, uma vez que os Nawa demonstrem-se disponíveis ao estabelecimento

57
de alianças (Ibid., pp:51). Entretanto, nem todas as alianças existentes partem de um
princípio religioso e/ou espiritual. Isso não eliminaria a possibilidade de que o tema
“pajelança” atravessasse, em determinado momento, as relações criadas.

Aqui, queremos salientar o que distingue determinados tipos de atividades,


voltadas à alteridade daquelas destinadas a sua captura. A noção de captura refere-se a
um modo relacional, muito observado pela etnologia ameríndia (Viveiros de Castro, E.,
1996; Lagrou, E., 2002; Coffaci de Lima, E., 2000; Vilaça, A., 1992; Belaunde, L.,
2008). Sob a exegese perspectivista de Viveiros de Castro (2002), poderíamos
compreender a “captura da alteridade” como aqueles movimentos que buscam, como
meio de construção da “pessoa”, entrar em relação com o outro, onde do outro se obtém
partes que ajudarão a constituir a pessoa. Veremos que esta “pessoa construída”
aparenta limitar-se por um tipo de singularidade referente a uma pessoa, grupo de
pessoas ou espécie de animal, vegetal ou mineral. Na cosmovisão Yawanawa, tudo o
que existe no universo possui uma exegese nos saberes da Pajelança. A forma das coisas
e aquilo que as distingue das demais (a dureza da pedra, a maleabilidade da madeira, as
pintas do bagre, os desenhos da cobra etc.) possuem a sua razão de ser, conhecida por
meio dos cantos entoados durante as cerimônias e dos Shenipahu. Ao longo da pesquisa,
se tornará mais claro ao leitor como as coisas são por conta do resultado da execução,
correta ou não, de certas regras. Estas, por definição, envolvem sempre a relação com
alguém ou alguma coisa.

Neste momento, trazemos alguns casos etnográficos que nos servirão de


exemplos para refletirmos sobre as formas nas quais a construção da identidade
Yawanawa aparenta se dar. Primeiramente, temos que apontar ao leitor o que vem
sendo buscado na criação de alianças com os Nawa, para assim colocarmos estes
exemplos em comparação. Acreditamos que por meio disto se tornará possível
evidenciar estes modos relacionais percebidos nas imagens, em ações e em alianças das
quais falamos. Veremos que é justamente na proximidade entre a identificação de duas
singularidades que atuam os Yawanawa na construção de si próprios.

O apoio dado pela FUNAI na demarcação e homologação da TI do Rio


Gregório, como era de se esperar, não fora o suficiente para que diversos costumes e
práticas não caíssem no esquecimento. As razões que levariam alguém a fazer as dietas,
a trabalhar com os Kene em miçanga e jenipapo, a se dedicar às atividades da roça, a
fazer cerimônias na mesma frequência dos antigos, a realizar as rodas de danças e

58
cantos, assim como diversos outros costumes rotineiros no tempo dos antigos, já não
seriam fortes o suficientes para suplantar os desejos e costumes provocados pelo contato
com a cidade e os brancos. Conforme a grande maioria daqueles com quem conversei,
isso ocorreu porque durante muito tempo a identidade indígena fora considerada motivo
de vergonha resultando em auto resignação, fazendo com que os Yawanawa desejassem
ser aquilo que lhes fora apresentado como ideal pelos diversos agentes do mundo dos
brancos (intencionados em acumular dinheiro, converter almas e subordinar pessoas
humanas). Hoje o que ocorre é o extremo oposto! Somente as relações que valorizem e
fortaleçam a identidade Yawanawa são de seu interesse. São os marcadores Yawanawa,
compreendidos pelos Yawanawa sob a noção de tradição, que recorrem
estrategicamente ao relacionarem-se com a alteridade, o diversificado mundo dos
“brancos” (e não tão brancos).

Pois bem, tracemos um percurso! Aproximadamente em 1998, Tashka havia


retornado dos Estados Unidos e, munido de sua experiência com o movimento indígena
californiano, recorreu a seu pai, Raimundo Luiz, para contribuir na retomada da
memória e dos costumes antigos. Esse movimento de “resgate cultural” não foi
provocado somente por Tashka. Biraci, liderança da aldeia Nova Esperança, e Kuni
(Oliveira, 2012), um dos primeiros a retomarem a prática da dieta do Muka, também
tiveram papéis muito importantes nesse processo. Raimundo dizia nunca ter visto como
eram os antigos, mas seu pai58 e mãe, sim. Sua memória teve um papel central que,
junto aos saberes de diversos outros de sua época e pessoas mais velhas, puderam
oferecer à geração de Biraci e Tashka toda uma memória a ser utilizada neste
movimento de “revival” cultural. Como comentado anteriormente, a língua, a pajelança
e a arte aparentam ser os principais troncos trabalhados atualmente. É justamente
através de sua reprodução que, continuamente, seus traços mais característicos
consolidam a identidade Yawanawa.

Não é à toa que há Yawanawa que investe na carreira de cantor para se


apresentar e participar de diversos eventos musicais com os Saiti (que hoje aparentam

58
Ainda que o pai de Raimundo, o Antônio Luiz, tenha vivido entre os antigos, essa vivência foi curta, de
certa forma. Conforme conta Miguel Carid (1999), Antônio Luiz tornou-se liderança por ter sido a pessoa
a contatar o branco pela primeira vez. O fez aos seus onze (11) anos de idade

59
estar fazendo sucesso em diversos nichos59). Gravaram CDs, apresentaram-se para
grupos estrangeiros, além das performances realizadas nas aldeias. Os Kene já fazem
parte de coleções em design de moda, de lightning design e merchandising em
novelas60. Os Yawanawa também estão presentes em ensaios fotográficos61, campanhas
socioambientais da sociedade civil e vêm sendo considerados um caso exemplar na
promoção da cultura, conforme o linguajar da sociedade civil organizada. Isso ficou
muito claro já na primeira semana de campo, durante o Mariri Yawanawa62 de 2013. Lá,
vimos que representantes da mídia acreana, do governo do Estado do Acre 63, de
instituições de fomento, equipes comerciais e grupos culturais de Rio Branco criam
alianças de reciprocidade com os Yawanawa.

Uma das características mais marcantes destas alianças é o contínuo


fortalecimento dos laços Yawanawa com a própria vida na aldeia. Diferentemente do
que ocorre nas cidades, os projetos desenvolvidos nas aldeias sempre são muito
protagonizados pelos próprios Yawanawa, que fazem questão de estar à frente nas
negociações64. Em campo, ouvi diversas histórias sobre cerimônias que ocorrem em
cidades ou próximo a elas. Nelas, é comum haver certa diversidade de crenças entre os
frequentadores de alguns destes centros (Oliveira, 2012). Conforme Labate, estudiosa
do assunto, os grupos espirituais mais envolvidos com os Yawanawa são de três tipos:
os das religiões ayahuasqueiras e/ou neo-xamânicas (Labate, B., 2004 apud Oliveira,
2012), e aqueles denominados como “da linha indígena” (Oliveira, 2012: 58), tal como

59
Em campo tive acesso aos arquivos de dois CDs gravados aproximadamente em 2008.Também tinha
outro CD (Kanaro), gravado em 2013 por Shaneihu Yawanawa, que conta com videoclipe para a música
Kanaro.
60
Respectivamente, Yawanawa por Laetícia (conheci a empresária responsável durante o campo),
LaLampe (São Paulo) e Ancelmo Gois (colunista O Globo). O link está disponível na webliografia.
61
A exposição da série “Ritos e Ancestrais – Um Fragmento Yawanawa”, da fotógrafa brasileira Talita
Rennó, realizada no espaço artístico Galeria Koi (São José dos Campos/SP) e a exposição “No Coração
da Floresta”, de Marcos Lopes (um dos participantes do projeto da LaLampe na confecção de luminárias
coordenado por Marcelo Rosenbaum, realizada no Galpão Ação Cidadania (Rio de Janeiro/RJ) fazendo
parte da programação oficial da Rio+20.
62
Mais à frente teremos uma sessão específica para falar deste evento. Diferentemente do que o termo
“Mariri” possa denotar em outros contextos, aqui, ao falar “Mariri Yawanawa” estaremos nos referindo
ao evento que os Yawanawa, por meio da Associação Sociocultural Yawanawa, realizam no mês de
Agosto para receber Nawa e mostrar a sua cultura para eles. É um evento etno-turístico.
63
Representado do Cocita Maia, responsável pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Apesar da
notável visibilidade deste movimento yawanawa vale destacar que estes não são os únicos grupos
indígenas acreanos a atraírem a atenção da imprensa nacional e internacional. Os Ashaninka e os
Kaxinawa atraem igualmente muita atenção, apesar de utilizarem estratégias muito diferentes.
64
Claro que há diversas formas de projetos e nem todos são protagonizados pelos Yawanawa, contando
que sua concordância e beneficiamento sejam garantidos.

60
seria o grupo Shãku Bena de Curitiba, nomeado por Fabiano Kaxinawa65 (que já
trabalha no Rio de Janeiro tem alguns anos) e o “Guardiões Huni Kuin” do Rio de
Janeiro (também existem grupos do mesmo tipo em Florianópolis, Porto Alegre e São
Paulo).

Nos encontros neo-xamânicos e ayahuasqueiros, o diálogo com representações


de outras culturas é imediato e inevitável. Muito baseado em algumas falas dos
próprios, posso afirmar que os Yawanawa dialogariam com estas outras pessoas
afirmando-se perante a tradição. A situação muda quando os rituais se dão em espaços
da “linha indígena”, onde podem guiar todo o trabalho nos conformes da tradição. Em
outros casos, como durante a participação em uma cerimônia de outras tradições,
lidariam de forma “ecumênica” com as “adversidades da alteridade”. Já na aldeia,
especificamente a do Mutum, o que ocorre é justamente quase o oposto do ecumênico.
Lá, dentro do Centro de Cerimônias, Curas e Terapias Yawanawa (CCCTY), é
estritamente desaconselhada a presença de manifestações religiosas de outras tradições.
O máximo que pude perceber de manifestação de alteridade ali foi um canto Huni Kuin
que, inclusive, foi cantado em um momento inicial de uma cerimônia de forma bastante
simples (sem Saiti Vanaya). Vale destacar, no entanto, que a presença de cantos
xamanísticos de outros grupos indígenas da região, é comum em rituais com ayahuasca
tradicionais entre outros grupos pano (Lagrou, comunicação pessoal).

Os Yawanawa possuem distintas estratégias relacionadas às ações locais e às


ações relacionadas ao mundo dos brancos. Em suma, aparenta que através da tradição
constrói-se a tradição. Agora, permita-nos descrever mais especificamente alguns tipos
de aliança partindo de certos grupos de Nawa.

2.3..1 A Rede Yawa-Nawa

A ideia de rede Yawa-Nawa foi trabalhada por Aline Ferreira, que esteve entre
os Yawanawa da aldeia Nova Esperança em 2012. Sua dissertação de mestrado trata
justamente das redes de troca e aliança criadas pelos Yawanawa através do interesse dos
Nawa pela pajelança e dos Yawanawa pela criação destas alianças. Fariam parte desta
rede diversos grupos que possuem em comum o reconhecimento da importância da
cultura indígena para o mundo e buscam criar laços para sua continuidade e também

65
O grupo criado por Fabiano fora estudado por Tiago Coutinho (2011) no contexto do xamanismo
urbano.

61
beneficiamento próprio (como curas). São várias as formas de se pensar e trabalhar com
isso. Consequentemente, são diversos os grupos e as intenções projetadas nas ações de
aliança e parceria empreendidas com os Yawanawa.

A tal rede tem alcance internacional, possuindo conexões com os Estados


Unidos e Europa, principalmente. Os Nawa não-brasileiros vêm até os Yawanawa,
principalmente, em busca da Pajelança ayahuasqueira. Tanto os que realizam dietas
quanto aqueles que participam de cerimônias nas cidades buscam, aparentemente, uma
espécie de reconexão com algo que consideram elementar e verdadeiro 66. O próprio
isolamento da aldeia aparenta estimular o crescimento desta rede. As viagens de Pajés e
suas famílias para cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre são
custosas e sustentadas por poucas pessoas, por isso o seu alto valor e a busca, por parte
dos anfitriões, da divisão dos custos de passagem com outros núcleos que os forem
receber.

Uma espécie de celebração desta rede ocorre durante o Mariri Yawanawa


(anualmente em agosto no Mutum) e o Festival Yawa (também anual, mas em outubro
na aldeia Nova Esperança). Lá estavam presentes representantes do governo, imprensa
local, representantes da Aveda, participantes estrangeiros das atividades do Samaki,
grupos de teatro e outros profissionais culturais do Acre. Também já visitaram o Mutum
equipes de documentários sobre povos indígenas, artistas famosos interessados nas
vivências e outras espécies de programas de TV ligados ao jornalismo étnico e
ambientalista. Para além do Mutum, existem casos como o de Marcelo Rosenbaum e
Ligia Tavares que conheceram mais da cultura Yawanawa durante o Festival Yawa e se
inspiraram, respectivamente, no trabalho com miçangas e alimentação, para
desenvolverem seus produtos destinados a clientes urbanos.

2.3..2 Cooperativa das Mulheres

As relações com o governo do Estado do Acre ocorrem principalmente por meio


de projetos voltados à sustentabilidade da aldeia e suas famílias através de diversas
frentes (políticas para as mulheres, educação, saúde, meio ambiente etc.). Todavia, isso
ocorre através de um circuito de conversas que permite, aos Yawanawa e aos membros

66
Esta leitura encontra confirmação na bibliografia sobre neo-xamanismo ou xamanismo urbano
(Losonsczy, 2010; Cavalcanti, 2011; Oliveira, 2012) e também nas informações obtidas durante nossas
incursões em cerimônias urbanas e por meio das conversas com parte do público do Mariri de 2013.

62
do governo, o encontro com desejos comuns às partes. No caso da aldeia do Mutum,
chamada às vezes de “aldeia das mulheres”, muito de sua visibilidade é gerada pela
atuação das mulheres Yawanawa.

A participação das mulheres em diversos projetos, hoje reconhecidas como


integrantes de um movimento de “resgate cultural”, torna possível a concretização de
uma rede na qual a identidade Yawanawa (em termos sociais, estéticos e “culturais”)
seja o motor de seu movimento. Não à toa, há pouco tempo a parceria entre a Secretaria
de Políticas para as Mulheres/AC, o Fórum Estadual de Economia Solidária e a
Organização de Cooperativas do Brasil criaram, através do projeto “Casas de Produção
e Cultura da Mulher Indígena” – financiado pelo BNDES – a “Cooperativa
Sociocultural de Mulheres Yawanawa – Awihu Manipahu67. A cooperativa tem por
finalidade estimular os trabalhos com miçangas, palha, argila e tecidos. Dentre estes,
somente os trabalhos com miçanga fazem parte do cotidiano Yawanawa. Disseram-me
que diversos objetos tradicionais foram deixando de ser usados devido às facilidades
dos seus substitutos industriais. Sua implementação acaba por conseguir beneficiar o
governo do Estado do Acre (como todo projeto “positivo” e “bem sucedido”) e às
famílias Yawanawa (que possuem demandas por rendas estáveis). Desta forma, a
continuidade de um cotidiano no qual a confecção de trabalhos com miçanga pelas
Yawanawa tem lugar de destaque conecta distintos interesses, políticos e cotidianos.

2.3..3 O projeto Mãe da Mata

Quando cheguei à aldeia, para o festival, encontrei dentre o público um grupo de


russos. Estes, por sua vez, eram guiados por um Nawa chamado Shuhunawa68 pelos
Yawanawa, que dominava o português e espanhol fluentemente. Percebia-se que eles
não compunham um público comum do Mariri Yawanawa. Eles dormiam no Centro de
Curas e ficavam mais separados do grosso do público. Conversando com Shuhunawa e
Matsini, pude saber que este grupo fazia parte de um projeto desenvolvido no âmbito do
programa conhecido como “Fund Intent”. Aparentemente, trata-se de uma organização
não governamental que desenvolve atividades pró-sustentabilidade por meio da vivência
e conservação dos saberes dos povos originários. Através do Fund Intent, diversas
pessoas iriam para países como Brasil, Canadá, México, Cuba, África do Sul e outros a

67
Que significaria “mãos de muitas mulheres trabalhando”.
68
Este é o nome dele em Yawanawa, que lhe fora dado enquanto estava no campo. O mesmo desejava ser
chamado desta forma.

63
fim de terem vivências espirituais nativas destas regiões. Não buscamos aqui tratar do
interesse das pessoas que investiam neste empreendimento. Além de a comunicação ser
totalmente dificultosa (não falavam nem o português e nem o inglês), buscavam
vivenciar momentos de isolamento e pouca atividade coletiva.

Pudemos perceber que, a Fund Intent trabalha com dois grupos diferentes. Um
deles vai ao Mutum para participar do festival, contando com uma semana de
programação. Estes só participam das festividades e não das dietas. O segundo grupo,
por sua vez, fica um ou dois meses na aldeia fazendo a dieta do Nane69. Em conversa
com o coordenador do projeto, me fora informado que os participantes pagam por um
pacote, que inclui translado para a aldeia, alimentação, guia para as cerimônias e
cotidiano e os próprios benefícios da dieta (que não poderia, por sinal, ser traduzível em
cifras). Em geral, seriam pessoas que se identificam com a pajelança enquanto uma
possibilidade de desenvolvimento pessoal e espiritual, que acreditam, de alguma forma,
que os saberes dos povos indígenas ocupam um papel central na constituição de sua
pessoa.

A aliança criada aparenta ser muito benéfica aos Yawanawa, pois permite que
haja o interesse dos mais jovens a se aprofundarem nos estudos da Pajelança. O
interesse dos Nawa pela pajelança faz movimentar toda esta rede Yawa-Nawa, gerando
outros movimentos no contexto da aldeia de modo a dar continuidade ao tecer desta
rede. Percebemos que a criação do centro de cura pode ser vista, justamente, como um
dos resultados destes movimentos internos gerados pelas relações externas à aldeia.

De um certo ponto de vista, a criação de um centro de cura, que busca estar o


mais próximo possível dos moldes dos antigos, beneficia ambos os lados da aliança.
Aos Yawanawa por ser de um papel elementar na realização de dietas e cerimônias de
cura. E aos Nawa, por serem recebidos cordialmente para terem vivências com a
Pajelança Yawanawa. O coordenador de campo do projeto é Shuhunawa, que ficou por
aproximadamente treze meses na aldeia junto a sua companheira recebendo e ajudando
os russos que chegavam. Sua relação com os Yawanawa já contava cerca de cinco anos.
Foi justamente por conta da confiança gerada pelos anos de amizade entre ele e os
Yawanawa que este projeto pode ser desenvolvido.

69
Dieta do jenipapo. Esta e outras dietas serão dissertadas no capítulo 2.

64
O ensinamento dos saberes da Pajelança não são públicos. A dieta oferecida aos
russos é a do Suya do Nane, associada aos ‘verdadeiros conhecimentos’ e ao
desenvolvimento dos sonhos. Todavia, aparentemente tudo o que aprendiam dialogava
mais com as capacidades pessoais do que com técnicas que possam fazer o mal para
alguém ou controlar grandes forças. Conforme é ensinado, principalmente por Matsini e
Hushahu, a vivência, em si, é uma busca por uma conexão com as forças da floresta.
Passar por um regime alimentar, pelo isolamento e ser ensinado diretamente pelos
velhos Pajés já possibilitaria um conjunto de transformações pessoais que valeriam toda
a empreitada.

O retorno financeiro é gerado pela venda dos produtos mais usados durante as
cerimônias70 e pelos valores cobrados pelo serviço. Estas “taxas” geram uma renda para
todos aqueles que trabalham para as cerimônias e para as atividades referentes às dietas
e às curas realizadas, sejam para os russos ou não. Além daqueles que trabalham com a
Pajelança, a Associação Sociocultural Yawanawa também recebe uma taxa para que
possa haver um maior retorno coletivo, uma vez que os saberes ali ensinados não são de
propriedade individual, mas coletiva.

Em suma, a execução deste projeto mobiliza bastante todo um coletivo de


Yawanawa. Por diversas vezes via Hushahu, sua filha Hukena e Matsini muito
ocupados para que pudessem produzir a quantia, por exemplo, de rapé e ayahuasca, que
os russos iriam consumir em seu processo. Normalmente, a quantia de rapé e ayahuasca
usada no cotidiano das pessoas Yawanawa é grande, mas ainda assim é bem menor
daquela que eles passam a ter que produzir para atender às necessidades da dieta. Além
disso, os participantes do projeto fazem encomendas de diversos artigos de miçanga
que, por muitas vezes, levam muito tempo para serem feitos devido ao seu tamanho e à
complexidade do grafismo.

2.4 HUSHAHU YAWANAWA: UMA ARTISTA ASPIRANTE A PAJÉ


O contexto até aqui apresentado inclui diversas pessoas que poderiam centralizar
uma pesquisa antropológica. Contudo, o foco nos movimentos produzidos pelas
imagens recém-criadas entre os Yawanawa nos levou a estudar em campo os
mecanismos usados na produção destas imagens. Hushahu Yawanawa fora apontada,

70
Em geral costumam comprar rapé, Ayahuasca, Kapum, Sipa, Tipi, Kuripi e artesanatos com miçangas.

65
em diversos momentos, como uma personagem pioneira na retomada de imagens e
meios de sua produção. Portanto, neste momento buscaremos contextualizar o leitor na
trajetória percorrida por Hushahu nos seus estudos na Pajelança Yawanawa salientando
todo o seu processo de aprendizagem durante a dieta do Muka o que a tornou uma
importante liderança espiritual entre os Yawanawa do Mutum.

Como dito anteriormente, no tempo dos antigos existia uma mulher, chamada
Manshivake, que era casada com um homem muito ciumento, não podia se pintar, se
embelezar e perfumar-se. Contam que depois de uma briga, na qual Manshivake fora
espancada por seu marido por motivos de ciúme, ela fugiu da aldeia e foi deixando os
Kene nos paus caídos pelo caminho que seguia. Esta foi considerada uma característica
marcante e preservada na memória Yawanawa, sendo esta passagem sempre resgatada
para ilustrar a beleza dos antigos, no uso dos Kene, do urucum, adornos e perfumes (que
era a cera do Sipa passada no rosto). Devido ao trabalho de Hushahu de trazer novos
Kene e fortalecer a memória dos mais antigos esta é, algumas vezes, comparada a
Manshivake. Todavia, Hushahu seria ainda mais influente, uma vez que Manshivake
não possuía os conhecimentos da pajelança e nem o controle sobre estas forças que
Hushahu “inseriu” em seus desenhos e objetos produzidos.

O interesse pelo Uni já vinha desde sua infância e nunca cessou. Como
descreveremos mais a frente, Hushahu se preparou por muitos anos para poder entrar
nos processos de iniciação na Pajelança. A fim de participar e ter seus esforços
reconhecidos, Hushahu recorreu à tradição para legitimar seu processo e conquistas.

Antigamente, as mulheres Yawanawa não podiam tomar Uni, usar rapé ou


realizar outras atividades comuns aos homens (como a caça e a abertura de roças).
Ainda que Hushahu tenha percebido esta distinção ainda muito nova, isso não foi o
suficiente para inibir a sua curiosidade sobre o universo masculino da Pajelança.
Conforme me disse em campo, queria também realizar tudo o que os homens faziam.
Fumava, bebia, usava o terçado (facão, peixeira), trabalhava na roça e também na caça...
Sua relação com o Uni era muito restrita. Chegava à cerimônia escondida no meio das
sombras e pedia para tomar do chá. Tinha que aguentar tudo sem demonstrar muitas
reações (como gritaria), e sempre com muito receio de que seu pai e sua mãe chegassem
ali após verem que não estava deitada e dormindo em casa. Nessa época, Hushahu tinha
cerca de treze anos de idade. Sua irmã também já havia tomado quando nova, porém
havia reagido com certo descontrole - o que fez Hushahu ficar mais cautelosa.

66
Todavia, não conseguia aprofundar os estudos e trabalhar com as cerimônias
entre seu povo. O principal impedimento fora a resistência masculina e o respeito aos
modos antigos de fazer as coisas. “Se nunca houve mulher pajé, não é para ter”, relatava
Hushahu. As coisas mudaram quando seu irmão, Tashka Yawanawa, retornou dos
Estados Unidos onde foi estudar. Em determinado momento, a esposa de Tashka, Laura,
intercedeu por Hushahu falando com seu marido sobre seu interesse em fazer as dietas e
estudar a pajelança. Sabendo disso, Tashka comunicou a seu pai que ficou surpreso
pelos interesses de Hushahu mas ofereceu apoio. Depois houve uma conversa com toda
a família para que pensassem sobre a questão.

Queriam saber de Hushahu se ela queria mesmo mexer com a planta sagrada
(que é o Muka) e fazer o processo da dieta de um ano. Respondeu que sim. Então
perguntaram: “mas com qual objetivo?” Isso, Hushahu não sabia, mas tinha curiosidade
e vontade de saber das coisas espirituais, da cultura de seu povo, de como curava e
através de seu estudo retomar o que foi perdido. Depois desta conversa, levou-se cerca
de cinco anos para que Hushahu pudesse iniciar a dieta do Muka. Esse tempo era
necessário para seu preparo e para observarem seu comportamento para que não
houvesse dúvida quanto a sua vontade de passar pela dieta do Muka.

Quando chegou a época de iniciar a dieta, foram organizar o lugar onde ela
ficaria reclusa, distante da aldeia. Foi a dona Mariasinha, seu Raimundo Luiz e demais
parentes que organizaram o lugar onde Hushahu ficaria durante todo o processo da
dieta. Neste momento, seu pai anunciou o processo de Hushahu para todas as aldeias,
gerando também conflitos. Umas das importantes lideranças Yawanawa se opôs
fortemente a isso, porque permitir a entrada de mulheres na dieta seria uma forma de
desafio, uma vergonha pra ele e os demais homens. Porém, ainda assim, seu pai sempre
confirmava com Hushahu o seu interesse e seguia com os processos necessários.

Na semana em que Hushahu iria entrar na dieta, sua irmã Putany, após retornar
de Nova Esperança, também manifestou seu interesse em entrar na dieta. Seu marido
mandou devolve-la e quando a mesma chegou ao Mutum quis participar da dieta junto
com Hushahu. Sua irmã teve que negociar com seu Raimundo Luiz e também sua mãe,
que dizia que ela não estava entrando por gosto, mas por raiva. Então, Hushahu, em
defesa de sua irmã, pediu ao Tata para que ela entrasse, pois é ele quem dá a palavra
final sobre quem participa ou não desta dieta. Após diversas conversas entre os parentes
mais próximos, aceitaram a participação de sua irmã.

67
Nessa época, Hushahu não sabia diversos cantos, principalmente aqueles
cantados só nas cerimônias, e não tinha gravações ou anotações para poder aprendê-los
e memorizá-los. Tradicionalmente, tanto os cantos quanto as rezas são aprendidos
estando junto a quem os canta. Hushahu sempre entrava na roda em que as mulheres
iam cantar, junto a Dona Nega71, Lena e Iraci. Quando Hushahu entrava na roda,
algumas das mulheres mais velhas retiravam sua mão e a mandavam ficar com as
meninas pequenas. Elas diziam: “por que tu não vai ficar lá, com as meninas jovem
como você? Deixe só a gente”. Hushahu dizia que queria e precisava estar ali, mas
ainda assim sua presença era negada. Isso não ocorreu durante sua dieta, mas sim
durante a sua juventude. Pelo que pude entender, durante a dieta Hushahu já sabia
alguns dos cantos, os mais cotidianos, simples e fracos de poder, porém aprendeu novos
e desenvolveu um estilo de canto durante o processo (dissertado mais a frente). Dizia às
mulheres mais velhas que ela mesma iria buscar os cantos e que um dia teriam orgulho e
se sentiram honradas por estarem perto dela cantando.

Na época que entrou para a dieta, sua irmã pintou todo o seu corpo, sua mãe
preparou um grande banquete de almoço e fizeram um grande evento que, de acordo
com Hushahu, tinha clima de despedida. Achavam que ela poderia ter muitas
dificuldades para lidar com a dieta, mas diziam que mesmo se morresse teriam uma
história para contar sobre o que ela tentou e não conseguiu, se ficasse viva iria trazer um
tesouro para a espiritualidade Yawanawa. O próprio Tata foi quem abriu os caminhos,
fez o pedido e cavou a batata do pé do Muka. Pegou umas folhas, começou a fazer os
pedidos, depois ajoelhou-se diante do pé do Muka e do pai de Hushahu que estava em
pé com toda a família ao redor. Começou a fazer os pedidos e a cavar a terra no morro,
arrancou a batata e a deu à Hushahu que a comeu e fez seu pedido. Após isso, foram
embora. Deste momento em diante, Hushahu não olhou mais pra trás, para quem a
estava ou não acompanhando. Só sabia que Tata e seu pai, Raimundo Luiz a estavam
acompanhando.

Ao chegarem ao local no qual passaria o tempo de sua dieta, seu pai ficou de
frente a ela e Tata dizendo as palavras em Yawanawa. Porém, Hushahu ainda não

71
No meu campo Dona Nega já havia falecido devido a um câncer. Porém, nas dissertações de Laura Gil
e Miguel Naveira vemos relatos que dissertam de sua importância na comunidade. Dona nega era uma
especialista, uma Nii Peya, das plantas. Esse tipo de especialistas são comuns entre os Pano, entre os
Katukina, que são os mais aproximados linguística e culturalmente dos Yawanawa (além de
compartilharem o mesmo rio) são os Rau (Coffaci de Lima, 2000), entre os Kaxinawa são dos dauya
(Lagrou, 1998, 2007).

68
entendia nada da língua, que era um dos seus maiores desafios na dieta. Já desde o
começo do dia, antes mesmo de comer da batata, não tocou mais na água, no doce e
cortou as relações sexuais. Só podia comer uma banana verde cozida e um peixe bem
pequeno (urucutum) por dia.

Na primeira noite, Hushahu passou por algumas formas de transformações


sensoriais, como se esperava devido ao Muka. Na manhã, seu pai havia pedido para que
nesse momento não se assustasse com as coisas que visse. Teria que tomar muito
cuidado para não tropeçar, pisar em espinho, se cortar e tudo mais, pois se logo no
início da dieta ocorressem estes pequenos acidentes, eles continuariam a ocorrer durante
toda a vida numa periodicidade fora do comum.

Até este momento, Hushahu só conhecia o Uni, mas não o Rapé. Quando se
passou uma semana, Tatá perguntou se ela queria o Rapé e então foi fazer um pra ela.
Não tinha Kuripi72 e nem Tipi73. Para poderem usar o Rapé, Hushahu e sua irmã
quebraram uma caneta para usar como Tipi. Quando Tata soprou em Hushahu a cabeça
doeu, se levantou, começou a correr e a rodar. Hoje, todavia, já tem completo domínio
sobre o uso do Rapé fazendo, inclusive, um que é considerado de excelente qualidade.

Após as primeiras semanas e meses, já ocorriam transformações em Hushahu e


na sua resistência às substâncias e aos intempéries da dieta em isolamento. Inclusive,
Hushahu me relatou um ocorrido durante a dieta. Enquanto estava na casinha que
montaram pra ela74 foi mordida por um escorpião na palma de sua mão, porém, nada
ocorreu, nem dor sentiu. Isso foi dado como um exemplo dos efeitos da dieta.

O horário em que elas deveriam acordar era às três horas da manhã, depois não
podiam mais dormir. Nesta hora, iam ouvir “histórias”75 e os “cantos sagrados” (modo
de falar sobre os Saiti e outros cantos) até o amanhecer. Quando o dia amanhecia,
levantavam o fogo, faziam uma pequena queimadura na pele com um graveto e usavam

72
É um aplicador individual de Rapé, na forma de um “V”. A extremidade mais fina vai ao nariz e a mais
grossa na boca para soprar.
73
O Tipi é o aplicador no qual uma pessoa sopra o rapé na outra.
74
As pequenas paredes da casa (que só iam até a metade da altura do telhado) eram feitas de palha de
palmeira, ambiente que atrai aranhas, lacraias, cobras e escorpiões.
75
Como forma de valorização e reconhecimento da autonomia e do saber nativo, usaremos os termos
dados pelos Yawanawa a coisas chamadas por outros termos pela literatura etnológica (quando houver
conflitos). No caso, o termo “história” aparece-se como a tradução feita pelos Yawanawa de Shenipahu,
que são o que os antropólogos conhecem como “mito”.

69
a resina do sapo. Depois iam para baixo de um pé de Meyu76, o raspavam e
machucavam a casca. Tomavam o líquido de Meyu bem cedo para que nada pudesse
tocar o corpo, para que não ficassem doentes, para abrir os sonhos e deixar a pessoa
mais forte.

Depois de aproximadamente um mês, seu pai levou uma Mana Runua (jiboia)
para que Hushahu tomasse de sua saliva e fizesse, em conjunto ao Muka, a dieta da
saliva. Ficaram, Hushahu e sua irmã, vinte e quatro horas sem bebida e/ou comida,
somente o Rapé. Nos dias seguintes introduziu-se uma pequena quantidade daquilo que
a cobra come. São pequenas espécies de peixe e roedores, como a cutia. Porém,
alimentos bem pequenos como o curumatã (espécie de peixe) são para serem comidos
em um dia, a cutia deve durar quase uma semana. Fome e sede atravessam toda a dieta,
e são controlados, principalmente, pelo uso do rapé e do Uni em momentos de crise.

Na última semana da dieta da saliva, Hushahu começou a ter sonhos, visões e


mirações muito fortes quando sob efeito do Uni. Hushahu conta que em uma passagem
de seus sonhos viu uma pessoa pintando todo o seu corpo. Ao acordar, pegou seu
espelho e começou a se pintar-se tal como a tinham pintado no sonho. Já conseguindo
ver e se relacionar com diversos espíritos da floresta, viu em uma de suas mirações uma
grande borboleta azul parada na sua frente de asas abertas. Nesse momento, um
espírito/Yuxin falou que este era o primeiro presente “das coisas que tomou”.

Após vê-la, Hushahu a desenhou no chão e começou a estudar o desenho. Deste


momento vem toda a sua inspiração nas borboletas77, que se manifesta enquanto um
divisor de águas. Sendo uma espécie de dádiva de algum Yuxi sua força não está mais
em cheque. Na cultura Yawanawa, é comum ocorrerem visões nas quais o
reconhecimento de um aprendizado ou poder sobre determinada técnica é marcado
através dos presentes dados por espíritos ou parentes em sonhos (Pérez Gil, 1999). O
mesmo ocorre entre os Marubo (Cesarino, 2011). Porém, diferente do caso Marubo,
estes presentes não são específicos de determinados processos da Pajelança, mas variam
76
Meyu é uma árvore da qual se extrai um sumo da raiz. É extremamente amarga e todas as dietas (mas
também pode se usar no cotidiano) devem começar com essa bebida (inclusive, por não terem me dado,
Hushahu disse que estavam me ensinando errado).
77
Hoje o Awa Vana é reconhecido por toda a comunidade como uma conquista de Hushahu. É
reconhecido como um marcador da cultura Yawanawa e vem sendo reproduzido em diversos trabalhos
com miçangas. O nome do motivo awabena, asa de borboleta azul, e motivo semelhante existe também
no repertório gráfico kaxinawa, onde pertence à classe dos kene chamados de yaminahua kene, ou ainda
benimai kene, desenhos para alegrar, usados nos rituais hiaka, rituais de caça (Lagrou, 1998, 2007).
Podemos ver deste modo que a inspiração artística de Hushahu se dava em diálogo com possibilidades
virtuais presentes no universo artístico pano (comunicaçãopessoal, Els Lagrou).

70
de pessoa para pessoa conforme suas inclinações pessoais e envolvimento com as forças
da alteridade.

No caso de Hushahu, com o Awa Vana vieram diversos outros kene e


combinações deles. Hushahu, já com um fluxo intenso de imagens durante trabalhos
com o Uni, começou a usar pedaços de carvão para desenhar nas árvores os espíritos
que estava vendo. Quando seu pai ia lhe visitar, Hushahu mostrava os desenhos e ele
falava dos espíritos, quais eram, se eles eram bons ou ruins para os humanos. E, através
dos espíritos que desenhava nas árvores, seu pai acompanhava a dieta e o seu
aprendizado.

Nesta época, os trabalhos com adornos eram muito pouco realizados. Hushahu
que também se dedica muito a esta atividade, ia à mata com um pequeno pote, pegava
uns pedacinhos de madeira e juntava sementes para fazer adornos. Ia perguntando ao
Tata como eram os colares e pulseiras dos antigos e tentava reproduzi-los.

Nos primeiros quatro meses, Hushahu e sua irmã não eram vistas por ninguém.
Quando ocorria por acidente de alguém os ver, as pessoas jogavam um pano por cima
delas para se cobrirem. Neste período, muitas crianças e adultos começaram a ficar
doentes por ataque dos espíritos que, conforme Tatá, era como uma provação dos
espíritos para ver se Hushahu e sua irmã tinham a capacidade de curar. Começaram a
realizar curas nas pessoas e sempre tinham sucesso, muitas vezes as crianças com febre
ficavam curadas de imediato com o Racuche78.

Depois da ocorrência destas curas, o pai de Hushahu pediu a ela e sua irmã para
que realizassem uma cerimônia no terreiro. Entretanto, devido à fraqueza física
provocada pela dieta, Hushahu acabou desmaiando no caminho. Seu pai ficou receoso e
então falou para Hushahu que não voltasse pro terreiro enquanto não terminasse a dieta.
Porém, a curiosidade da comunidade era muito grande, muitos queriam vê-las e saberem
da dieta. Então Nixiwaka (Biraci) marcou um encontro para que elas fizessem uma
cerimônia na casa delas. Este foi o primeiro encontro com Nixiwaka durante os seis
primeiros meses da dieta. Ao cantarem, Nixiwaka teria ficado muito impressionado,

78
O Racuche é uma técnica de cura na qual o aplicador realiza uma reza enquanto massageia o corpo do
adoecido, depois sopra no alto da cabeça, costas e peito. É usado de forma geral para afastar o que haja de
ruim (físico ou não), caso não funcione utiliza-se de técnicas mais fortes. Em trabalhos com Uni há uma
variação na qual a pessoa que for receber o Racuche sopra, com força, Rapé no aplicador da ténica. Isso é
feito para que o aplicador “veja” o que está atrapalhando e/ou adoecendo a pessoa. Desta forma ele
melhor direciona sua ação, tornando-a mais eficiente (principalmente com a força do Uni).

71
principalmente com o rapé que fizeram79 e perguntou a elas como conseguiram fazer
um Rapé como aquele. A resposta foi simples: “mistério de mulher!”.

Esta vontade e dedicação em demonstrar seu aspecto feminino manifestou-se em


diversos outros campos. Hushahu queria fazer tudo com um jeito de mulher. Um dos
campos a que também se dedicou foram os cantos. Sua forma de cantar era mais alta e
rítmica em comparação aos cantos executados pelos homens, como Tata e seu pai.
Hushahu canta alto, forte80, e assim o fazia para se comunicar com os espíritos. Eram
diversos cantos e Kene que Hushahu vinha aprendendo, até que vieram as forças da
Runua e assim começou a fazer seus desenhos da jiboia para os homens e o da borboleta
para as mulheres81. Também vieram os desenhos mais leves, muito usados em crianças,
como os da espinha de peixe e talos das folhas de Jhálino82.

Daí em diante, a imersão de Hushahu na espiritualidade Yawanawa não cessou,


conseguia ver os espíritos, sentir as forças e lidar melhor com elas. O que importa para
que a “espiritualidade”, conforme dizem os Yawanawa, de uma pessoa se desenvolva,
basta que se dedique às dietas e que use a sua intenção. Por diversas vezes nos foi
lembrado que o querer não significa, necessariamente, estar fazendo e desejando o mais
correto, ainda que seja relativo. Ao que tudo indica, a Runua, por exemplo, não cederia
seus saberes para pessoas que não têm interesse neste saber, mas somente no poder para
ser o melhor em algo.

Já desde sua infância Hushahu tinha demonstrado aptidões para os Kene. Ainda
que não soubesse, seu pai guardava todos os seus desenhos, mesmos os rabiscos. Após
seu falecimento, quando foram cuidar das suas coisas materiais, encontraram uma pasta
com tudo o que Hushahu havia desenhado. A morte de seu pai a fez questionar todo o
seu trabalho com a espiritualidade e a deixou desgostosa em continuar a praticá-la e a
fazer os Kene. Foi justamente após sua morte que Hushahu fez suas primeiras pinturas
figurativas em tela. As fez para poder mostrar a seu pai, em espírito, aquilo que havia
aprendido. Ainda, por meio dos sonhos, seu pai esteve sempre manifesto. Em um deles,
79
Em campo, Hushahu me contou que o rapé que tinha na aldeia não era muito bom, Foi ela junto a sua
irmã que começaram a coar o Rapé em uma malha muito fina de algodão (como camisas de um tecido
muito fino). O produto final fica de alta qualidade, muito fino e com bastante força. O Rapé Yawanawa é
feito metade com fumo de rolo tostado e macerado com a outra metade de cinzas de Tsunu.
80
Entre os Yawanawa as mulheres tem gosto em cantar em alto volume, utilizando-se majoritariamente
de tons agudos e mais melódicos em relação aos homens.
81
Em campo não vi estas distinções. Nos desenhos corporais os da cobra eram majoritários e não cheguei
a ver nenhum de borboleta. Este era muito presente nos trabalhos com miçanga em conjunto aos desenhos
das cobras.
82
Não conseguimos identificar a espécie da planta.

72
Hushahu estava em sua casa e seu pai chegou e falou: “filha, eu não me despedi de
você, então eu quero vim me despedir de você, você cuide dos seus irmãozinhos e vem
cá, que eu quero te mostrar uma coisa”. Pegou na mão de Hushahu e a retirou de sua
casa. Do lado de fora, tinham pessoas brincando que usavam umas lanças pequenas para
brincar de furar. Seu pai lhe disse: “olha, o que tá vindo pra você”. Daí surge uma bola
de jenipapo translúcida. Novamente, ele disse: “pega e queime, porque é seu”. Hushahu
correu, a queimou e acordou. Disso, Hushahu entende que seu pai não queria que
parasse o que começou. Ele foi embora e deixou Tata para continuar a ensinar a
Hushahu e aos demais interessados em fazer a dieta. Hoje, todos os Kene que Hushahu
faz estão pintados nos corpos das pessoas, sejam eles homens ou mulheres. Para os
Yawanawa, todos os Kene atuais teriam sido redescobertos, de alguma forma, por
Hushahu. Ainda, quando pinta as pessoas com estes Kene, estando na força do Uni,
Hushahu efetua curas e lida com a força nas pessoas, podendo aumentá-las
exponencialmente. Como Hushahu diz, pinta-se em “você”, na “tua” mente e a partir daí
ocorrem as modificações desejadas e sentidas pelo corpo.

Tata chegou a brigar com Hushahu quando via que ela escrevia e desenhava o
que aprendia: “você não pode colocar os nossos segredos no papel, para as pessoas
ouvirem.”, dizia Tata. Todavia, Hushahu continuou a desenhar as imagens que surgiam.
Conforme alguns comentários, Hushahu tinha a necessidade de expor sua intenção, sua
força. Numa postura considerada “feminina” por alguns Yawanawa, Hushahu precisava
falar, cantar e gritar para que as pessoas tivessem contato com a “espiritualidade que ela
trazia83”.

O Awa Vana, que faz muito sucesso nos dias atuais, já é aceito como marcador
da identidade Yawanawa. Ainda assim, enquanto a cobra, a onça, a arara e o japó
possuem forças muito grandes, a borboleta já não os possuiria tanto. Mas a força que
Hushahu recebeu na dieta mostrou a ela o poder e importância deste Kene da borboleta.
Neste período, Hushahu começou a buscar nos sonhos sua fonte principal de inspiração
na feitura dos Kene. Sonhava ser pintada, via Kene em seus sonhos, formas da natureza
e espíritos. Tudo isso lhe servia de inspiração para os Kene. Acreditamos que seja neste
momento da dieta que Hushahu utiliza-se dos resultados deste processo como fonte de
inspiração e criação. Seus quadros são marcados pela presença do feminino, num desejo

83
Esse termo era usado algumas vezes para tratar das coisas que Hushahu trouxe de novo do seu trabalho
na dieta do Muka e da Saliva. Principalmente a forma de cantar e os novos Kene são vistos por alguns
como o lado feminino da tradição Yawanawa.

73
de mostrar ao outro (e principalmente seu pai) o poder desta força que desenvolveu em
sua dieta. Como podemos perceber na sua trajetória pessoal, a questão do feminino
sempre moveu Hushahu no desenvolvimento de seus saberes, como no enfrentamento
do monopólio masculino na relação com o xamanismo, na necessidade de mostrar a sua
força particular, na estilização feminina, assim como nos Saiti, nos Kene e, inclusive, no
beneficiamento do Nawe84.

É justamente com a chegada das forças da Runua que Hushahu começa a


produzir os desenhos. O Awa Vana, recebido enquanto uma dádiva, foi estudado e
usado para embelezar as mulheres, enquanto os desenhos da Runua foram mais
destinados aos homens. Essa relação entre gênero e Kene no contexto do Samaki e das
dietas aparenta ficar obscurecida, uma vez que predominam os Kene da Runua por
possuírem grandes forças, enquanto o Awa Vana não. Em suma, a Runua é uma
entidade antiga e central na pajelança Yawanawa85, enquanto o Awa Vana é uma dádiva
recente reconhecida enquanto um marcador diacrítico da identidade Yawanawa, e não
um elemento de grande poder na pajelança. Em geral, os marcadores da identidade e os
elementos de grande poder não aparentam ser a mesma coisa. Somente com a Runua e
seus Kene ocorre a interligação entre identidade e poder.

O que Hushahu e Putany inovaram na confecção do rapé, seria a utilização de


um tecido como voal para peneirar o rapé e a cinza do Tsunu. Utilizando este tecido, o
rapé feito por elas sai muito fino, gerando muito apreço pelos mais velhos, inclusive
Tata. Pelo fato de ser muito fino, ele não entope as narinas e é mais facilmente
absorvido pelas mucosas nasais. Hushahu considera que um Nawe feito desta forma
possui mais força e que, somado às intenções e forças nas quais a pessoa que o faz está
envolvida, ele pode se tornar melhor ou pior.

Quando Hushahu começou a pintar os quadros, queria mostrar às pessoas os


espíritos e a forma como eles se relacionavam com ela. Para a mesma, falar por meio de

84
Hushahu conta que na primeira cerimônia de Uni que ela e sua irmã guiaram após entrar no Muka
surpreenderam algumas lideranças com o Nawe que haviam feito. Comentaram que a razão disso se dá
pelo “toque feminino”, que tornou o Nawe bem fino. Antigamente, o Nawe só era usado pelos pajés (num
contexto onde somente homens de aproximadamente 40 anos entravam para a dieta do Muka, muito antes
de tornarem-se pajé - que exige a dieta da saliva e anos de experiência) e hoje, além de ser usado por
pessoas de ambos os sexos a partir dos 13 (treze) anos aproximadamente, também é produzido por
mulheres (os de Hushahu e Hukena são conhecidos como de excelente qualidade, devido as suas forças
aplicadas ao Nawe).
85
Com a Runua se aprende a língua do Rane, o canto de cura Shuinti, o mundo dos yuxi, recebe-se
poderes e estabelece-se uma relação de reciprocidade com..., que sempre envolve uma associação entre
“poder” e “saber”.

74
imagens rende mais do que por palavras. Hushahu diz que estando na força e possuindo
conhecimento, entende-se os Kene de forma mais aprofundada e próxima ao domínio
dos saberes dos Yuxi. Nos quadros são pintados momentos de encontro com entidades
espirituais do gênero feminino.

Hushahu pediu ao Muka para ter conhecimento sobre a força e o mundo. Dentre
um dos resultados do seu processo, Hushahu desenvolveu o trabalho com o Kene. Nas
mirações, os Kene se desenvolveriam e, de seus próprios padrões, fariam surgir outros
Kene e assim sucessivamente86. Para ela, o que a distingue perante outras pessoas, é que
os Kene aparecem em forma e significado. Uma “pessoa comum”, como diriam, mira
com formas abstratas que ao se aprofundar na prática ayahuasqueira, pode mirar com os
Kene propriamente ditos. Entretanto, isso não automatiza a captação dos seus
significados e forças. Aqui, sucede um processo de objetivação que necessita, conforme
dizem muitos Yawanawa no Samaki, do conhecimento da tradição Yawanawa. Como
exemplo desta confluência entre “miração” e “saber” tem-se o entendimento das
conversas em Yawanawa87, dos saiti vanaya e dos Shenipahu. Tudo isso influencia na
significação dos Kene “mirados”.

86
Ver Lagrou (1998, 2007, 2014) para a análise dos kene kaxinawa onde opera uma lógica similar de
motivos que fazem surgir e se transformam em novos motivos, assim como de padrões geométricos de
onde surgem figuras num progressivo processo de aprender a ver através da ingestão da ayahuasca.
87
As conversas que ocorrem durante as cerimônias sempre discorrem sobre o campo da pajelança
Yawanawa. Podem ser conversas de assuntos importantes, ou só recordações de momentos engraçados
vividos em outras cerimônias. Assuntos do cotidiano não são conversados durante as cerimônias de Uni.

75
3 PREPARANDO E APRENDENDO O CORPO

3.1 PAJELANÇA, CORPOS E FORÇA


No capítulo anterior, mostramos ao leitor diversas características e ações que
hoje mobilizam os Yawanawa num contínuo processo de retomada de valores
indenitários e diacríticos. Todavia, como salientado diversas vezes, todas estas ações
realizadas precedem processos de aprendizagem específicos e fundamentais para a
conferência e veracidade de sua marca Yawanawa. Em campo, tinha o interesse de
compreender como faziam para produzir novos Kene e outras imagens. Sempre quando
perguntava à Hushahu, Matsini e outros, me contavam que era nas dietas onde se
aprendia as coisas necessárias para poder “ver”. Involuntariamente, a pesquisa de
campo, que se propunha a estudar processos criativos e artísticos, foi direcionada à
observação de processos corporais de aprendizagem.

Veremos que durante as dietas as maneiras nas quais se ensina algo perpassam
diretamente pelos mesmos processos corporais de construção (ou fixação) deste
conhecimento. O próprio local, destinado aos que estão fazendo alguma dieta, envolve
regras sobre contato com determinado tipo de coisa ou entidade que pode atrapalhar,
mas nem sempre, todo o processo e, inclusive, a saúde do outro.

É muito comum ouvir os Yawanawa falarem sobre a necessidade da paciência


para que se possa mirar e aprofundar os saberes. Isso possui uma justificativa, que tange
a uma expectativa da experiência de mirações que viriam a afirmar o progresso da dieta.
Cada pessoa teria seu momento para se encontrar com a força do Uni e não adiantaria
ter pressa. Somente após um estudo do próprio corpo as imagens de grande poder
viriam à tona. Ao longo dos estudos, abrem-se as visões e os sonhos para este universo
sociocosmológico habitado por diversos espíritos, conhecidos como Yuxi. O Uni
mostraria à pessoa aquilo que ela realmente desejaria e precisaria para seu trabalho. Em
praticamente todas as dietas da Pajelança o consumo do Uni é fundamental para o
processo de aprendizagem.

A centralidade do Uni remontaria a sua capacidade de trazer à vista processos


internos da pessoa a colocando-a em reflexão direta com a ordem dos acontecimentos
externos. Esta “conexão” envolve toda a geração de uma capacidade reflexiva
expandida que gera interpretações que são vivenciadas como extremamente coerentes e
táteis sobre os significados mais profundas dos processos cotidianos. O entendimento de

76
algum problema que esteja ocorrendo, a busca por respostas às questões pessoais sobre
a vida, espiritualidade etc., a busca por algum conhecimento de cura, o desejo de
conhecer Kene, Saiti e Shenipahu, dentre tantas outras coisas. O Uni, assim, é capaz de
guiar os caminhos pessoais, mostrando as possibilidades futuras e lhe deixando o poder
de escolha e direcionamento da vida. Porém, ainda que uma pessoa possa ter visões
mais diversas e tenha escolhido um caminho pela sua determinação pessoal, não
significa que ela possuirá força. Para tal, deve-se seguir o caminho ofertado pela Runu.
É a cobra quem é a dona deste poder que pode ser gerado na ação do Uni em conjunto
com as dietas.

Quando não se consegue sentir a força ou se tem alguma experiência de


adoecimento ou sentimentos ruins, cabe à pessoa buscar compreender este processo para
assim conseguir as respostas para aquilo que deseja. O estudo é feito com o próprio Uni,
consumindo-o até que venha a entender as razões da ocorrência, podendo ser por meio
de miração, sonhos ou até mesmo por reflexões em estados meditativos. Podem ser
ações do próprio Yuxi da pessoa, que a trava e interdita o fluxo energético/imagético
provocado pelo Uni, impedindo a pessoa de sentir seus efeitos e assim de sujeitar-se às
suas forças. Mas também podem ser influências externas, de Yuxi ou pessoas. Para lidar
com este bloqueio e influências, toma-se mais Nawe e aumenta-se a dose do Uni se
necessário. Tudo pode interferir, uma vez que a pessoa pode assujeitar-se a ser
influenciada se estiver com sua mente voltada a pensamentos e locais que a desviem do
trabalho realizado na cerimônia. Problemas da cidade, dificuldades na família e tantos
outros sentimentos provocados pelo mundo ordinário podem interferir na cerimônia. O
ideal é conseguir focar-se nos Saiti e, assim, se conectar às forças que convidam para as
cerimônias. Uma vez que se tenha compreendido as razões por traz das experiências
negativas ou se conectado às forças da alteridade cosmológica, há um direcionamento
das forças pessoais para o processo de cura adequado. Uma vez obtidas as visões e suas
forças, tal como disseram a mim, “a espiritualidade se abre pra você”.

Esta passagem é marcada pela presença de imagens, conta-se que a pessoa já é


percebida pela Runu. A visão seria uma evidência disso. Ser visto pela Runu implica ter
as portas abertas para adentrar-se em seu estudo. Ao passo que as mirações
aprofundam-se, maiores são os aprendizados88.

88
As dietas vêm, aqui, justamente produzir esta reação.

77
Para os Yawanawa, a Runu é vista sob diversas facetas, assim como tudo o que
faz parte do mundo. Quando perguntei à Hushahu sobre a cobra, sobre os modos como
ela se comunica, nos ensina e age em nós ela foi bem enfática em diferenciar a cobra-
bicho e a cobra-espírito. Um dos mecanismos mais utilizados para mostrar esta
distinção é a comparação entre o modo usual dos Nawa se relacionarem com esta ideia
de cobra. Para Hushahu, os Nawa se confundem e acabam sacralizando o próprio
animal, que para os Yawanawa não é sagrado. A cobra em si, esta que vemos na mata,
ela ataca e mata. Não será ela quem irá ensinar as pessoas. Ao mesmo tempo, também
não é, necessariamente, aquela cobra que pode ser vista nas mirações do Uni.

Por diversas vezes fui chamado à atenção para não acreditar no que via, pois “é
tudo miração, não é real”. O mesmo ocorre com visões de cobra em sonhos, se não for
o “sonho de conhecimento”, como se referem diversas vezes, é só uma imagem que
quer falar de alguma coisa89 - e não necessariamente a interação com algum ser
espiritual. Entretanto, ainda que a cobra da mata e a cobra da miração não sejam uma
manifestação explícita do espírito, a Runu não deixa de existir. Ocorre em sonhos e
mirações o encontro com as forças da Runu, mas tudo depende da experiência e do
entendimento sobre os elementos que a compõem. Acessando o saber Yawanawa sobre
a Runu, os seus modos de agir e as formas de se comunicar com ela, cada experiência é
avaliada de modo a entender se a comunicação fora, de fato, com a Runu.

A princípio, achamos possível recorrer à ideia de metáfora (Wagner, 2012) para


pensar as visões da cobra durante as mirações e sonhos. Nestas, as formas de serpente
dialogam com tudo aquilo que é vivenciado, e comunicam através das entrelinhas
quando lidas corretamente, uma vez que se tenha acessado o saber sociocosmológico
Yawanawa. Diferentemente do que alguns Nawa fariam (conforme alguns nativos), os
Yawanawa não associam toda visão de cobra a algo relacionado diretamente à entidade
da Runu e nem a cultuam como um ser divino, mas sim como um espírito mestre. Sua
principal função na sociocosmologia Yawanawa é ensinar e dar poder.

Esta forma Nawa de lidar com a cobra é, para alguns Yawanawa, irresponsável,
uma vez que este pensamento leviano levaria muitos a acreditarem que o uso de adornos
com motivos de cobra tornaria possível a conexão direta com a Runu. Tornar estes
mecanismos da Runu demasiadamente públicos e conhecidos faria sua força dividir-se

89
Quando eu tive um sonho com uma cobra e fui perguntar o que aquilo poderia significar me disseram
se tratar de traição.

78
e, assim, enfraquecer-se. Rotineiramente, de fato, não há problemas em usar os Kene da
cobra em miçangas ou pintados no corpo, mas se isso for feito de forma leviana, fora
dos contextos rituais, ela (a cobra) irá cobrar e colocar a pessoa em provação. O
encontro real com a cobra envolve obrigatoriamente alguma forma de aprendizado, seja
na forma de visão, na forma de poderes e ou na forma de saberes concretos.

Todavia, alguém que não entende a língua e não estiver se esforçando nesse
estudo e na Pajelança, ainda assim poderia até sentir/perceber coisas que são cantadas.
No caso das pessoas que não entendem a língua e participam das cerimônias
esporadicamente, estas podem direcionar seu trabalho conforme sua intenção e
pensamento nos momentos de canto. Mesmo que Tata, Shineya, esteja falando da água
em seu canto, mas a pessoa esteja pensando no fogo, será com a força do fogo que ela
irá dialogar. Um canto que fala de forças malignas, cantado em uma cerimônia para
Nawa projetada para as forças do bem, provocaria experiências com estas forças do
bem. Assim, se a pessoa não entende as palavras, aquilo que elas estão chamando
poderá não interferir na experiência da pessoa. O que interfere é o que se está pensando
e, quanto mais se sabe do assunto menor é a chance de estar tomando Uni sem realizar
uma cerimônia coletivamente direcionada para determinada coisa90. Quanto mais souber
da língua e das histórias, mais poderá contribuir para a realização das cerimônias e
curas.

Como dito anteriormente, não é somente por meio da linguagem falada que
ocorrem os ensinamentos, mas também imageticamente. Em determinados momentos,
questionava Hushahu sobre como ocorria o momento exato no qual o Kene ensinava
algo para ela. Me descreveu que o Kene em si não é o saber passado, mas sim um
caminho para este conhecimento. A relação entre traços, preenchimento e cores destes
Kene, que se manifesta nas mirações, seria capaz de guiar a mente da pessoa por
caminhos determinados a certos lugares do “astral91” que, só por se estar neste local,
aprender-se-ia tudo o que ele é e o significado de todas as suas partes constituintes. É a
própria experiência que ensina, não somente uma informação passada entre dois
agentes.

90
Seria justamente por meio deste “coletivo de intenções” que alguns processos de cura são realizados.
Enquanto o Pajé trabalha, os demais são indicados a direcionar suas intenções à cura do enfermo.
91
O termo é tomado de empréstimo dos Yawanawa que o empregam para falar sobre o mundo espiritual,
da Ayahuasca. Ainda que não tenhamos registro de sua origem no contexto Yawanawa, existe a
possibilidade de influência do Santo Daime.

79
Ainda assim, não basta entender a língua, conseguir “ver”, ouvir cantos e
histórias para dar continuidade aos estudos pessoais na Pajelança. Sempre (ou quase
sempre) será necessário que haja um professor, um guia, que possa lhe passar seus
conhecimentos, o que nem sempre envolve ensinar tudo o que se sabe. Aquele que não
precisa mais ser ensinado será quem ensinará. Tal como ocorre em diversos grupos
Pano (Cesarino, 2008; Erikson, 1990; Lagrou, 1998, Coffaci de Lima, 2000), existe uma
multiplicidade de especialidades nas quais as pessoas podem se apoiar.

***

Em campo conheci Seu Luiz, que é um Nii Peya de idade avançada e muito
reconhecido pelo que entende. É especialista em plantas medicinais e mora na aldeia
Sete Estrelas. Era de um tipo mais reservado e não queria se envolver muito com as
políticas da pajelança. Assim como Antônio e Raimundo, que esperavam alguém pedir
para aprender, o mesmo fez Luiz. Isso não é à toa e não envolve nenhuma forma de
mesquinharia ou egoísmo, mas sim uma forma de resguardo a saberes muito caros aos
Yawanawa que não poderiam ser tratados levianamente.

A necessidade de relações firmes de afinidade e/ou parentesco é imprescindível


para que ocorra um ensinamento deste tipo. Os Nii Peya conhecem diversas plantas da
floresta. Ainda que não lidem com os cantos e rezas, conhecem diversas espécies
fundamentais para os estudos nas dietas. Há referências a espécies que, agindo nos
sonhos, gerariam os mesmos efeitos que o Uni, fora os sensoriais. Também existem
plantas e modos de prepará-las que ajudam nos sonhos, amarguram o sangue, limpam o
corpo, ajudam a ver, dentre tantas outras coisas. O conhecimento de um Nii Peya não é
restrito a quem assim é reconhecido. Estes o são por terem se destacado nesta frente e
realizado diversas curas ao longo dos anos.

Não obstante, o conhecimento sobre as técnicas e histórias de determinada


especialidade não o torna um especialista reconhecido. E aqui só estamos considerando
os especialistas envolvidos com o universo da cura e relações com os Yuxi. Todavia,
existem aqueles que são voltados para as atividades da Pajelança propriamente dita. Ou
seja, voltam-se às relações com seres e forças da alteridade, acessados por meios
próprios de construção corporal e desenvolvimento de uma perspectiva
sociocosmológica.

80
Se por um lado temos a confiança entre professor e aluno, de outro temos a
retidão na relação entre o aluno e o conhecimento. Fazer uma dieta poderosa é como ir
buscar o casamento com uma mulher. Isso porque os Yawanawa consideram que o
conhecimento é uma mulher que deve ser lisonjeada, bajulada e desejada com esforço
pelo iniciando. O praticante deve concentrar sua energia nas atividades da dieta, até que
esta mulher-conhecimento reconheça seus esforços e apareça em um sonho para ter
relações com a pessoa na rede. Esse acontecimento marca o fim da dieta do Muka.

Nos trabalhos de Oliveira e Gil, vemos a referência a uma entidade chamada


“Vanashahu” – mulher palavra – que casa-se com o iniciando marcando o fim e sucesso
da dieta. No Mutum, há constantes referências à Vana – dona do conhecimento – e uma
expectativa pelo seu encontro nos sonhos. Falam que é a entidade mais importante e
poderosa capaz de se aliar durante toda a vida da pessoa. Porém, ela é ciumenta e
vaidosa, sendo exigente em relação a outras mulheres com as quais a pessoa irá se
relacionar e se casar. Todavia, ouvimos nenhuma referência que fale de matrimônio
com outros espíritos, mas sim de relações sexuais que marcam o fim e o sucesso de um
processo de aprendizado. É na experiência e nas trocas substanciais que ocorrem a
aprendizagem e a tomada de poderes. O encontro sexual com a Vana ou também com a
Runu marcaria uma proeminência da dieta, ainda que se possa finaliza-la sem ter tido tal
sonho. A centralidade está no esforço e na “perfeição e beleza” do processo da dieta, e
não em encontros com seres da alteridade. O Yuxi da Vana acompanhará a pessoa até o
seu falecimento, funcionando como o espírito auxiliar de maior poder na pajelança
Yawanawa.

Nessa breve introdução ao tema do conhecimento e seu aprendizado, quisemos


salientar os processos nos quais isso ocorre. Majoritariamente, pela fala, pelo canto,
pelas imagens, pelos sonhos e pelo Uni. Poderemos aprofundar isso mais a frente,
depois de contextualizar o campo de relações sociocosmológicas, os locais onde
ocorrem e o modo como se dão. Somente com estas questões esclarecidas poderemos
descrever a ação destas formas de ensinamento e como o corpo ocupa um papel central
nesta dinâmica.

Na história Yawanawa, como me fora contado, nunca houve um período no qual


não houvesse um “Pajé”. Por diversos momentos, não havia pessoas fazendo as dietas,
criando-se um clima de urgência na retomada dos ensinos. Considerando-se as
diferenças contextuais, as ferramentas e manuseios de comunicação com os Yuxi e a

81
apropriação de suas forças na forma de cura ou feitiço não são determinados
morfologicamente, mas sim relacionalmente. Veremos que as relações com seres da
alteridade é prescrita por uma ética de relacionamento e por uma necessidade de
utilização de formas e objetos em contextos múltiplos. Como dissertamos
anteriormente, a utilização do novo para recriação do antigo também se manifesta na
Pajelança tradicional. Nossa hipótese considera possível que um contexto mais rotineiro
da Pajelança Yawanawa não traz, somente, coisas (objetos, cantos, desenhos, saberes
etc.) da alteridade, mas retoma aqueles que deixaram de ser usados devido à mudança
no contexto cultural dos Yawanawa. Dentre elas, o registro e uma espécie de retomada
coletiva no interesse de gerar a continuidade de diversos saberes, antes resguardados na
memória dos mais idosos, salientam os distintos especialistas e, assim, a gama de
saberes de cura e espiritualidade dos Yawanawa. Aqui faremos uma apresentação de
alguns especialistas que nos falaram sobre isso, ao longo do capítulo eles serão
continuamente retomados para elucidarem outras características da pajelança
Yawanawa

Há um tipo de pajé, chamado Rumeya que é conhecido como aquele que tira
e/ou coloca pedra (Rume) na pessoa. Não existem mais Rumeya entre os Yawanawa.
Estes falam que somente entre os Kulina ainda há (os mesmos foram estudados por
Pollock, 1992). A introdução do Rume provoca doenças ou introduz saberes/poderes,
mas pode-se remover a doença (mas não o saber/poder). Tata não é Rumeya mas, ainda
assim, consegue remover a pedra, pois aprendeu isso de um amigo Kulina de seu pai.

Raimundo Luiz nos fora apresentado como “quase” Shineya, enquanto Tata já o
seria completamente. Aparentemente, Shineya é aquele que realiza e finaliza a dieta do
Muka e da saliva da cobra. Todavia, o título só é conferido àqueles que realizam curas e
dominam as técnicas por muito tempo (Raimundo teria feito quase todo o processo, mas
por ter quebrado o resguardo acabou tendo pasma, que é quando as rezas não possuem
efeito). Na aldeia do Mutum somente Tata era considerado Shineya, e o mesmo ocorria
com Yawa em Nova Esperança. Ainda que não tenhamos ouvido falar sobre regras
hereditárias92 do reconhecimento do Shineya, a transmissão entre gerações aparenta

92
Uma pessoa pode ser iniciada por qualquer pessoa, ainda que se priorize parentes. No caso dos
Yawanawa, a transmissão se deu dentro no núcleo familiar de Antônio Luiz (avô de Hushahu). Depois do
falecimento do pai de Hushahu, Tata e Yawa centralizaram a responsabilidade em iniciar as pessoas na
pajelança.

82
ocorrer devido à diferença de idade entre a liderança espiritual e seus alunos mais
avançados (que provavelmente poderiam ser os Shuintia, se dominar as técnicas).

O Shineya, por exemplo, faz a reza na caiçuma para que possa curar doenças
descobertas nas narrativas oníricas. Enquanto o Shuintia está mais restrito em sua
atuação, podendo realizar curas com sopro e guiar cerimônias, apoiando a ação do
Shineya. Também existe o especialista identificado como Yuvehu, que significa “aquele
que possui o amargo”93. Ao realizar a dieta, a pessoa já passa a possuir o conhecimento
que precisa conforme surge a necessidade.

O Yuvehu também seria capaz de ser possuído por Yuxi e falar da origem das
doenças de quem vinha lhe consultar. Conforme a descrição de Pérez-Gil, este é o
especialista nos cantos do Muka, enquanto o Shuintia e o Shineya utilizam-se da reza
chamada Shuanka. Todavia, em campo nos falaram deste especialista, mas nos
informavam que Tata (um Shineya) poderia fazer o canto do Muka (de cura) junto a
outras quatro pessoas. Aparentemente, o Yuvehu não possui esta necessidade, sendo
autônomo. Aquele conhecido como Tsimuya também conseguia o que descreviam
como “receber94” os Yuxi (existe a possibilidade de ser uma prática assemelhada às
realizadas pelos Marubo95), porém suas habilidades envolviam, além dos cantos
também usados pelos Yuvehu, conhecimentos extensos sobre toda a floresta, tanto no
prisma material quanto no cosmológico. João Grande (Pérez-Gil, 1999: 31) fora um
famoso Tsimuya, e o próprio Raimundo teve a oportunidade de presenciar os momentos
de possessão e conhecimento sobre os Yuxi dono de “lotes da floresta” e coisas da
natureza. João conseguia realizar, no mundo dos Yuxi, assim como os xamãs entre os
Kulina (Pollock, 1992), uma projeção e trazer da floresta varas de queixadas para serem
caçadas.

Yuvehu é um especialista associado ao conhecimento (Yuve = saber) e Tsimuya


está associado ao amargo (Tsimu = amargo; quem toma o caldo de tabaco – Nawene).
Na época que ainda havia Tsimuya e Yuvehu estes eram considerados os Pajés; com o

93
Entre os Kaxinawa o xamã, “aquele que possui o amargo”, que pode lançar e extrair dardos invisíveis
patogênicos, é chamado de mukaya (muka significando amargo (ver Lagrou, 1998, 2007; Kensinger,
1995, e.o.). Yube, por outro lado, é o nome tanto do espírito da jibóia/anaoncda (duanuã), quanto da lua.
Vemos deste modo que o universo xamanístico pano possui muitas correspondências e variações
interessantes (ver Lagrou, 1007; e Coffaci, * para o universo xamanístico Katuquina).
94
Aqui o sentido deste “receber” ainda nos é confuso, pois em alguns momentos descrevem tal como uma
“possessão” e em outros explicam que os Yuxi falam por meio do Pajé, mas não “possuindo” seu corpo e
comportamento.
95
Ver Cezarino, 2011).

83
falecimento de todos o papel de Pajé aparentemente foi direcionado ao Shineya. Como
Pérez-Gil suspeita (ibid.: 38), o título Pajé parece ser conferido àqueles com maiores
poderes e conhecimento. Contemporaneamente, trata-se de Tata e Yawa, antigamente
eram João Grande e Antônio Luiz.

***

Em suma, cada especialista possui suas formas de utilizar as forças que


alcançam. Tudo o que faz parte do mundo possui alguma força e, assim, uma
usabilidade. Para aprender, deve-se buscar saber o poder espiritual das coisas por meio
da língua da reza. De nada adiantaria cantar a televisão ou a eletricidade se não se
conhece seu nome e poder dentro do Rane. Esta língua é ensinada pela Runu, mas
somente depois de muito tempo de estudo e somente após a dieta da saliva.

No seu processo de aprendizagem, também é importante conhecer os dois tipos


possíveis de Runu que podem ser encontradas, tanto dentro ou fora do mundo dos Yuxi.
Dentre as cobras, há duas espécies que são identificadas com a Runu. A primeira é a
jiboia-constritora (Boa constrictor), que vive no ambiente terrestre e a outra é a sucuri-
preta (Eunectes murinus), que habita tanto o ambiente terrestre quanto o aquático. Ainda
que ambas sejam identificadas com a Runu, a jiboia-constritora teria menor poder que a
sucuri-preta, justamente por não habitar os dois ambientes. A relação com o entorno
configura tipos de força que se interligam com o ambiente a que estão interligadas. A
jiboia-constritora, por exemplo, é associada ao sol e poderes da terra. O mesmo para a
sucuri-preta, somado às forças referentes ao domínio aquático, como a lua e, assim, com
o sangue. Por tudo possuir poder e por sempre estar em relação com o mundo, a
constância (ou experiência contínua) de certas forças gera relações de associação com
aquele corpo ali presente.

Quando perguntei sobre a possível relação existente entre o Muka e a Runu,


Hushahu não pôde me contar porque este conhecimento é resguardado aos que fizeram
as dietas. Salientou que diversas coisas só se aprende fazendo, e que é no momento em
que as faz que se conhece e é informado sobre as razões mais profundas das ações
prescritas. Todavia, fora informado de que o Muka é poder puro e acima dele só a Vana,
uma vez que o Muka é o seu poder. Nossa pesquisa e a de Oliveira possuem uma
pequena divergência documental acerca da concepção Yawanawa do Muka. Conforme a
autora, o Muka seria uma entidade, acessada por meio da batata e sua dieta, dotada de
grandes poderes e central na Pajelança Yawanawa (Oliveira, 2012: 202). Todavia, em
84
todos os diálogos que tivemos no Mutum, eram enfáticos em dizer que o Muka é puro
poder manifesto, e não uma entidade. Para ilustrar isso, recorrentemente o comparavam
à Vana que, de fato, é uma personificação do conhecimento. Muka não é personificado,
não possui inclinações morais e nem de gênero. Para possuí-lo, e passar a dizer “meu
Muka”, a corporeidade e a yuxinidade96 da pessoa devem encontrar um equilíbrio que
permita a absorção do Muka - que vem da batata - e integrá-lo à corporeidade e
yuxinidade agora alteradas. Isso não ocorre com personificações, que se restringem a
serem professoras e aliadas deste corpo que possui Muka. No máximo, e hoje conta-se
que ninguém seria capaz de fazer isso (ao menos entre os Yawanawa), poderiam ser
incorporados por um poderoso Yuvehu. Espera-se que a pessoa que comer o Muka
nunca dirá que é dona de coisas pelo seu prestígio, pois espera-se do iniciando que tenha
desenvolvido a sua humildade antes mesmo de comer da batata. Caso tenha se
vangloriado, seria sinal de que não fez direito a dieta ou não entendeu os processos dela.

O momento que marca o fim das dietas do Muka e da Runu é o sonho que se tem
com a Vana. Existem diversas formas de se referenciar a este ser da cosmologia
Yawanawa. Vana da Runu ou Vana do Muka, ambas são a mesma entidade, porém
diferenciam-se na sua manifestação durante a dieta do Muka ou da Runu. Durante o
desenvolvimento das dietas, a Vana se agrada com a beleza (conforme as noções
Yawanawa, o belo está associado ao tradicional), vista como marca da “verdadeira
espiritualidade”. Se a pessoa fica a vida inteira fazendo dieta mas nunca tem o seu
encontro com a Vana, é como se nada no processo tivesse tido efeitos profundos.
Porém, o encontro pode vir até mesmo antes do previsto, em alguns casos especiais.
Hushahu descreve esse encontro da seguinte forma:

“A mulher da espiritualidade é muito orgulhosa. Ela tem que ser


conquistada pelo que ela vê você fazendo na dieta. A cada tempo que
passa ela se aproxima. Aí, quando ela chegar e deitar com você na
rede ela casa com você. É a Vana! Aí se tem um outro mundo da
espiritualidade, ela é a cura, tira as coisas ruins porque o corpo já está
preparado para isso”. (Hushahu; gravação de campo)

A entidade compreendida pelos Yawanawa como deus chama-se Nuke


Shuvimani (aquele quem nos criou), representa uma espécie de modelo ideal para o fim
último da dieta. O alimento de deus, conforme me disse Matsini, é luz. Ele não precisa
da água e da comida, pois a luz o sustenta espiritualmente e não possui um corpo físico.
Assim como conta a história do povo que subiu aos céus, é por meio da abstenção de

96
Uso aqui um neologismo cunhado por Lagrou (1991) no seu estudo sobre os Kaxinawa.

85
água e comida, substituídas pela força e luz do Uni, que se enfraquece o corpo e
fortalece o espírito.

***

Existem diversas situações possíveis para a intervenção daqueles que guiam e


trabalham diretamente com os assuntos da Pajelança. Além das intempéries
cerimoniais, a ocorrência de doenças no cotidiano das pessoas é também devido à
quebra de resguardos por aqueles que realizam as dietas e não podem ser tratados por
todos aqueles que auxiliam as pessoas que estão “levando uma peia” do Uni. Quando
uma pessoa realiza uma dieta para, por exemplo, ser um bom caçador ou pescador e vier
a quebrar o resguardo, o Yuxi da planta/substância usada na dieta pode aparecer em
sonho e punir a pessoa a nunca mais conseguir o que desejava. Entretanto, este não é um
destino irremediável para aquele que possui o Muka. Este consegue direcionar a força e
receber esta punição com menos severidade. Pode nunca se tornar um excelente
caçador, mas com sorte consegue algo.

Durante as cerimônias, é possível que algumas pessoas necessitem da ajuda de


alguém para ultrapassar alguma espécie de conflito com a ação do Uni ou para realizar o
que chamam de limpeza. Esta consiste nas ações purgativas que ocorrem com o auxílio
do Uni durante cerimônias e estudos pessoais. Fisicamente, trata-se majoritariamente de
vômitos e, por vezes, defecação. Porém, a ideia de limpeza é mais ampla e engloba,
praticamente, toda forma de expurgação de algo que lhe provoque mal e/ou adoeça. Por
via de regra, tudo aquilo que colocamos para fora, em termos de substâncias e não-
substância, é veículo para a ocorrência da limpeza. Cabe àquele que guia as cerimônias
e seus auxiliares a controlarem a situação para manter o trabalho funcionando. Fazem
isso cantando os Saiti, utilizando o Sipa (que afasta as forças ruins) e o Racuche nos que
necessitarem. Este só é usado por aqueles que possuem o Muka. Em uma das formas nas
quais pode ser usado, a pessoa que está doente/se sentindo mal, sopra Nawe naquele que
irá realizar o Racuche. Esta pessoa viria a sentir o que provoca mal no outro e realiza
uma espécie de massagem na cabeça, acompanhada de reza e sopros tanto na cabeça
quanto em outras partes do corpo, que necessitem de tratamento.97

Aparentemente, ter o Muka é uma condição para a obtenção de todo saber e toda
técnica de grande abrangência e eficácia. Em conversas com Matsini, fui informado que

97
Na primeira ida a campo, Hushahu passou muito tempo doente. Ficou internada na cidade de Tarauacá
e só deixou de sentir as dores que tinha quando sua filha, Hukena, utilizou o Racuche na região do baço.

86
todas as medicinas e rezas foram recebidas durante diversas dietas, mas aquelas que
envolvem as forças do mundo da Pajelança perpassam o Muka (o amargo já perpassa
todas as dietas, variando em grau). Qualquer pessoa que esteja em alguma espécie de
dieta e utilizando-se de plantas de poder (Rapé – Nawe – e Uni – o sapo também é
usado sazonalmente) fica, momentaneamente, com o corpo fraco e o Yuxi forte. Ainda
assim, o que se acumula durante a dieta do Muka nunca se esvanece.

No contexto das dietas, há uma importante regra que diz respeito à partilha de
itens e alimentos e que tange todo esse processo de acumulação de substâncias. Não é
permitido aos que fazem dieta compartilhar comida com pessoas que não estejam
fazendo dietas. Além da comida, o mesmo ocorre com o Nawe e o Kuripi. Dividir a
comida durante certas dietas pode fechar os sonhos e, por ser a fonte primária de estudo,
a dieta seria prejudicada. Pode ocorrer de não fechar totalmente, mas atrapalhar e gerar
confusão no aprendizado. Isso se dá pela partilha das energias pessoais. O caso da
comida e do Nawe podem ser relativizados em alguns momentos, quando
compartilhados com outras pessoas que fazem a dieta. Já no caso do “Kuripi da dieta”
não, somente aquela pessoa pode usá-lo. Compartilhar com outra pessoa meche com o
seu Muka, e assim seus sonhos e efeitos do Nawe. Usado para dar força à intenção,
como para estudar, para curar, para tirar pensamento ruim, para trabalhar e assim
sucessivamente, não pode ser compartilhado indevidamente, pois perde seu efeito
impulsionador e funcionaria somente em seu espectro fisiológico.

3.2 ACUMULANDO E APARTANDO


“Eles tomavam muito Shaka Uni”, Nedina comentava sobre o Shenipahu que
fala dos antepassados que subiram aos céus por não consumirem mais água e nem
comida, somente a Ayahuasca98. Seguindo este “modelo ideal”, as dietas são feitas para
que o corpo possa ser preparado a receber e aguentar a força do Uni. Alguém que já
tenha realizado a dieta do Muka, por exemplo, seria hábil a tomar grandes quantidades
de Uni realizando um bom trabalho99. Se a pessoa não tem um preparo adequado e
receber desta mesma força poderia perder o controle, cair no chão e ficar passando mal.
Nos últimos tempos, os casos de pessoas que tiveram efeitos do Uni além do que
poderiam aguentar foram de gritarias, mirações muito fortes, vômitos e também

98
O nome do mito é Puya Hunihu. O mito se encontra também entre outros grupos pano, como os
Kaxinawa, onde se chama de xanka huni, “o cipó leve” (Lagrou, 1998).
99
Explicar esta noção nos conformes ayahuasqueiros.

87
diarreia. No tempo dos antigos, conta-se que as pessoas que exageravam caiam no chão
e saia sangue de todos os seus orifícios. Quando isso ocorria, os pajés faziam um
trabalho para dominar e retirar esta força que provocava o desmaio e o sangramento.
Todavia, mesmo que a pessoa retornasse à consciência ainda estaria “diferente,
transformada”.

Tendo o seu corpo devidamente preparado para esse tipo de ação e realizado
muitos estudos, a pessoa que está mais avançada na dieta consegue direcionar a força do
Uni conforme sua intenção e realizar os trabalhos que deseja durante a cerimônia.
Podem ser as rezas do Suya, os cantos do Muka ou, até mesmo, para poder sentir e
aprender com a força da lua, estrelas ou qualquer outra coisa. Para os Yawanawa, tudo o
que existe no mundo possui Yuxi, e é daí que vêm as forças e com elas o aprendizado.
Até mesmo os objetos dos Nawa possuem Yuxi e podem ter suas respectivas forças
usadas por quem a canta.

Segundo Hushahu, a sombra do corpo de uma pessoa é o seu Yuxi e


aparentemente é só este que possuímos. Parece que os Yawanawa não consideram a
existência de múltiplos Yuxi em um único corpo. Infelizmente, muitas informações
sobre a noção de alma e Yuxi do corpo ainda estão muito obscuras. Conhecer o assunto
em detalhes demanda um tempo de estudo que não poderia ter sido investido em uma
pesquisa de mestrado. Conforme me ensinaram, estas noções são aprendidas nos
Shenipahu e nos sonhos que ocorrem ao longo das dietas. Em algumas conversas, fui
informado de certas distinções entre a sombra do corpo e aquele Que habita o mundo dos
sonhos e das mirações. É comum nas etnografias Pano encontrarmos noções como
“espírito-do-olho” ou “duplo”100 para tratar deste “corpo virtual”, mas não tive como
compreendê-lo em sua totalidade no caso Yawanawa. Pelo que me informaram não se
trataria de um Yuxi da pessoa, mas sim a sua própria mente. Projetar-se-ia a mente
carregada pela força da intenção, o Yuxi manter-se-ia em seu próprio corpo.

Ultrapassar estes limites do corpo, que são estendidos ao longo da dieta, poderia
provocar o falecimento, porque o corpo não possuiria esta estrutura, por isso a
necessidade de prepará-lo. Este processo implica conhecer a si mesmo e assim saber
sobre o mundo e como agir nele. Conforme Matsini:

100
Noção de Pierre Vernant apropriada pela etnologia, primeiro por Manuela Carneiro da Cunha (1978) e
depois usado com frequência para dar conta do conceito indígena de espírito/alma. Ver p.e x. Lagrou
(1998, 2007) para uma análise do conceito yuxin na sua relação com o conceito de duplo.

88
“Porque o corpo, o nosso corpo, as coisas que têm dentro, elas não são
coisas simples. Uma coisa entrou dentro de você, por alguma coisa.
Outra saiu, por causa de alguma coisa. E o corpo humano é uma... é
uma... é muito forte pra trabalhar com ele. Nós mesmo, pra trabalhar
com nós mesmo. E dentro de nós... alguns sábios, que estudaram. Eles
falam, que nós, nós somos nosso maior adversário, nós mesmos. Nós
temos que vencer nós mesmos, pra nós poder entender as coisas.
Como é que nós vamos vencer nós mesmo? Como é que vamos
estudar nós mesmo? É ver todas as... a forma e na força você pode
fazer isso. “
Beleza e limpeza também aparecem associadas no processo de adaptação do
corpo para o universo sociocosmológico Yawanawa. As ditas limpezas podem ocorrer
durante as cerimônias em diversos momentos de extrema profundidade subjetiva para a
pessoa, fazendo-a experienciar diversos tipos de sentimentos, reviver momentos do
passado e se encontrar com “verdades” e domínios extra-humanos. Algumas vezes, as
pessoas podem ter estas experiências de forma negativa, ficarem presas em pensamentos
racionalistas, ter sensações físicas de enjoo e/ou doença ou ter sentimentos de ordem
negativa, como o medo e a loucura. Nestes momentos a pessoa pode recorrer a algumas
coisas, como um Racuche, se concentrar e cantar os Saiti, defumar o Sipa, usar Nawe ou
então, de forma involuntária, realizar limpezas. Estas, por sua vez, podem ocorrer por
diversas vias e sempre se relacionam com a escatologia do corpo humano. A forma mais
comum (e aparentemente a mais eficiente) de limpeza é o vômito101. Sua finalidade é
colocar coisas ruins para fora, um momento onde energia e materialidade imbricam-se
sem anular suas distinções. O que se põe para fora pode ser uma cura do corpo, a
liberação de um sentimento ou sensação ruins, efeito muito forte do Uni, ação de algum
Yuxi ruim, a libertação de pensamentos desviantes e assim sucessivamente. Na
esmagadora maioria dos casos de vômitos, as pessoas se sentem muito melhor depois
que ele ocorre. A limpeza por vômito e defecação é mais comum com o Uni, mas pode
ocorrer também com o Nawe. Para isso ocorrer com o Nawe, seus efeitos devem ser
intensos, no qual a força do Nawe obriga a pessoa a ficar de repouso, esquenta seu
corpo e provoca sensações de tonteira, principalmente mantendo-se de pé102. Já com o
Uni não depende da sua força. Eu mesmo tive limpezas sem ao menos estar sentindo o
efeito do Uni, que vim a sentir após ocorrer o vômito103. Por fim, espera-se que a

101
A limpeza também pode ocorrer por meio da defecação e flatulência.
102
Na aldeia falavam “cair no rapé”, “derrubado pelo rapé”, que é um modo para se falar da pessoa que
usa o rapé e não consegue mais se levantar devido à tonteira e sensações fisiológicas de seus efeitos.
Além da tontura, ocorre muita expectoração e um calor muito grande no corpo. Em geral, quem “cai no
rapé” fica deitado no igarapé até que o calor e a tontura se esvaneçam.
103
Mais um efeito da limpeza, que retira aquilo que atrapalha a entrar na força.

89
limpeza torne o trabalho ainda mais belo, pois é assim que são identificados os
trabalhos que mais dão certo.

Todas as dietas trabalham esta relação de introdução e remoção de substâncias,


buscando sempre através do cotidiano e das cerimônias realizar ensinamentos via
substâncias (como, por exemplo, a limpeza). Isso ocorre substancialmente porque o
conhecimento fica no corpo e no pensamento, não pode ser perdido104.

Na língua Yawanawa, Tsimu significa amargo105 e está, como, por exemplo, para
os Kaxinawa, Marubo e Katukina (respectivamente, Lagrou, 2007: 320; Cesarino, 2011:
53; Coffaci de Lima, 2000), associado ao poder próprio da pajelança e aos Yuxi. Há,
portanto, um tipo de pajé chamado Tsimuya. Diz-se que este pajé “possui amargo”, que
seu “pensamento é amargo”, que “ele é amargo”. É um tipo de pajé especializado em
fazer coisas ruins com a própria força do pensamento. Estes pajés conseguem, dizem
Hushahu, Tata, Matsini e tantos outros, matar uma pessoa só pensando em como ela vai
morrer. Comem da pimenta para dar mais força à sua intenção e pensam no que querem
fazer. Ele também pode realizar rezas, como para retirar alma. Um antigo pajé chamado
Shanupahu, muito reconhecido pelo seu poder, tinha a capacidade de retirar a alma de
uma pessoa com canto. Seu poder era famoso, pois conseguia realizar seus trabalhos
mesmo sem comer da pimenta. Não à toa aquele tipo de Pajé reconhecido como o mais
poderoso está diretamente associado ao amargo e suas substâncias, pois são as
substâncias de poder por excelência.

Infelizmente, não tivemos acesso a diversas informações que poderiam nos


elucidar sobre o papel do “amargo” entre os Yawanawa. Porém, pudemos encontrar
algumas pistas para guiar nossa seleção e leitura de dados. Existem certas substâncias
que são reconhecidas pela sua amargura. O Uni e o Nawe, ainda que sejam amargos, são
combinações entre substâncias amargas e neutras. Seu papel dentro da Pajelança
Yawanawa aparenta centralizar suas qualidades visionárias e de força que os

104
Sabemos que o conhecimento possui relações com o sangue. Infelizmente não pude aprender sobre
esta relação, nem qualquer outra coisa sobre o sangue além de sua materialidade. Este conhecimento,
suspeito, está resguardado aos iniciados. Sendo o sangue um veículo de conhecimento, e este é análogo a
poder, com toda a certeza possui poderes de importância, é ele quem tem que ser amargado. Ver Lagrou
sobre conhecimento e sangue entre os Kaxinawa (2007) e Belaunde (2006) para um estudo comparativo
da relação entre sangue e pensamento entre os povos ameríndios amazônicos.
105
Meyu também significa amargo. Mas, nesse caso, só trata do aspecto gustativo.

90
distinguem. Ainda, estas substâncias só poderiam ser assim por serem amargas. Nunca
haveria alguma bebida doce que pudesse carregar força106.

A batata do Muka e o Nane, especialmente, são as substâncias que carregam


mais desta força que circunda a amargura. Não são combinações de diferentes produtos
naturais. A batata consome-se crua e do Nane se bebe seu sumo. Suportar a amargura e
conseguir realizar o trabalho de forma plena marca a retidão na feitura do rito.
Antigamente, as mortes provocadas pelas intenções do Tsimuya demandavam dele
somente o uso do pensamento e mais nenhum canto, reza ou outra ação. Ainda que não
seja usado para matar, o aumento da força do pensamento continua a ser o motivo
principal para se fazer o Suya da pimenta. Todavia, ainda que a pimenta esteja
classificada como amarga, por ser picante (e ser mais difícil de resistir do que o amargo)
consegue conferir à pessoa o máximo de poder para sua intenção. O uso da pimenta em
contextos de Pajelança ou aumento da força do pensamento não é único entre os
Yawanawa, havendo diversos exemplos, cada um com sua particularidade, entre os
Kaxinawa (Kesinger, 1974; Lagrou, 1998), Marubo, (Cesarino, 2011), Katukina
(Coffaci de Lima, 2008) e Yaminawa (Saez, Naveira & Gil, 2004).

3.2.1. As substâncias
Considerando-se as substâncias removidas do corpo, fica fácil perceber que
pensa-las enquanto força é cabível entre os Yawanawa. Em todas as dietas abdica-se
totalmente de qualquer coisa que for doce e, com exceção das dietas do Uni e do
Kapum, a água também é totalmente vetada. Somente se consume um pouquinho de
caiçuma na parte da manhã. Além disso, também interrompe-se qualquer intercurso
sexual e diminui-se drasticamente a quantidade de comida. Objetiva-se secar o corpo,
deixa-lo bem magro. Estar neste estado implica que no campo espiritual desenvolve-se
muita força em seu Yuxi (veremos mais à frente que este Yuxi potencializado pela forças
das substâncias amargas configurará o Muka da pessoa em questão). Todavia, não basta
à pessoa estar muito magra, pois um gole sequer de água a torna comum, o sexo coloca
para fora a força acumulada ao longo da dieta, a comida atrapalha os sonhos, os
trabalhos nas cerimônias e faz o corpo cheirar ainda mais mal para os Yuxi e, o doce,

106
Ainda que o mel seja largamente referido nos mitos, não encontramos referências sobre seu poder para
os Yawanawa. Na verdade, durante uma conversa, descobri que o mel pode deixar alguém “na força”.
Neste caso, não é força da Pajelança, mas sim embriaguez após um grande consumo de mel (como faziam
antigamente nos Mariri).

91
por sua vez, retira a força daquilo que foi pedido que se desenvolvesse. As rezas não
surtem efeitos, o Racuche não cura, os Kene não geram força e assim sucessivamente.

Ao longo da descrição de algumas dietas que faremos a frente, veremos que a


remoção de certas substâncias e alimentos especifica cada tipo de dieta que objetiva
realizar determinadas construções no corpo humano que refletiriam (ou seriam uma
manifestação de) capacidades e conhecimentos inerentes às potencialidades mentais do
praticante.

Durante as dietas, por estar envolvido com as forças das substâncias, a pessoa
consegue produzir, por exemplo, um Nawe diferente. São as forças projetadas pela
intenção de quem o faz que podem distingui-lo de outros que veio ou virá a fazer
quando não estando em dieta. O Nawe pode ser feito de diversas maneiras. Conta-se que
nunca se faz o mesmo Nawe, e o que mais importa na sua confecção é a quantidade do
tabaco e do tsunu associados ao seu pensamento e intenção na hora de fazê-lo. Quando
fiz um, seu efeito não aparecia imediatamente após o sopro, mas sua força vinha
momentos após, de forma progressiva. Ouvi de algumas pessoas que esse tipo de Nawe
não é fácil de fazer, que alguns tentam mas não conseguem. Entretanto, nestas mesmas
falas percebe-se não se tratar de um domínio ou jeito técnico, mas sim que nunca se faz
um mesmo Nawe. É provável que os próximos Nawe feitos por mim não sejam iguais e
que eu tenha muitas dificuldades em fazê-lo novamente. Porém, o fato de estar fazendo
a dieta no momento que fiz o Nawe pode, para os Yawanawa, ter influenciado neste
resultado.

Fisicamente falando, o resultado da dieta é observado pela magreza da pessoa.


Diz-se que o Uni é a bebida dos deuses e consumi-lo integralmente no lugar de comida
e outros líquidos faz a força espiritual da pessoa subir ao passo que se diminui o
máximo possível a da carne do corpo. Os efeitos das dietas junto ao Uni também
abarcam, dentre tantos outros, a clareza do pensamento, os sonhos e os estados alterados
de consciência durante o dia-a-dia. Estes ocorrem em períodos nos quais há muito
consumo de Ayahuasca. Isso varia conforme a qualidade do Uni, a resistência da
pessoa, a periodicidade e a dose consumida. Podem ocorrer desde simples impressões
estéticas até confusões entre realidades e contato direto com espíritos. Existem certas
regras sobre a periodicidade do consumo de Uni, seja dentro ou fora das dietas (que
variam em intensidade). O que os Yawanawa consideram ideal é ter um intervalo de
uma semana entre um trabalho e outro para quem não faz dieta. Já os que fazem,

92
participam das cerimônias que ocorrem, preferencialmente, dia sim e dia não. Há
também a possibilidade de se tomar Uni fora das cerimônias, de forma privada para
estudar ou informalmente em grupo. Aqui, estudar é cantar, aprender a língua, conhecer
Shenipahu e aprofundar o saber sobre a força. O papel do Uni aparenta tornar físico este
saber imaterial quando o torna visível e possível de ser sentido durante as experiências
“sinestésicas”.

3.2.2. As dietas
As dietas são processos nos quais os praticantes preparam seu corpo para
determinadas finalidades. Elas podem ser as mais plurais, atendendo aos objetivos de
obtenção de conhecimento, poderes e também para a cura de doenças inerentes ao
universo da pajelança. As conclusões de Laura Perez Gil (1999) sobre o sistema médico
Yawanawa nos parecem corretas, uma vez que as práticas da pajelança não são capazes
de curar todas as formas de doença. Em suma, qualquer sistema de cura, seja ele
oriundo da biomedicina ocidental, das práticas protestantes, do universo da pajelança,
assim como também conhecimentos originados pelos seringueiros, são usados para se
obter a cura das doenças inerentes ao sistema médico em questão. Entretanto, existe um
certo movimento de introdução de saberes no mundo da pajelança. Podemos tomar
como exemplo diarreias patológicas107, mas pode ser curada com a utilização do Rapé (e
sua diarreia de limpeza).

Na cultura Yawanawa as pessoas fazem as dietas quando querem aprender e se


aprofundarem na espiritualidade108. Além disso, também são fundamentais para a
aproximação com o mundo dos Yuxi, sendo imprescindível realiza-las para poder ver os
Yuxi e se conectar com as forças da pajelança. Durante as dietas há regras sobre
atividades físicas e o clima. Na dieta do Uni, Kapum e Muka não se pode pegar sol (dá
dor de cabeça) e nem trabalhar muito. Porém, nas dietas da caiçuma, jenipapo e da
pimenta se deve trabalhar para suar. Além disso, e isso vale para todas as dietas, deve-se
manter a casa limpa e organizada, sempre tomar banho junto aos primeiros raios solares
e antes de anoitecer (deve-se estar limpo e com a mente tranquila para participar das
cerimônias de Uni).

Para os que fazem dieta pela primeira vez, os primeiros resultados aparecem
muito devagar. Não basta entrar na dieta para se ter visões e aprender com elas. Ainda

107
Provocadas por alimentos, adoecimento, feitiçaria, etc.
108
Outro termo utilizado pelos Yawanawa ao se referirem às práticas tradicionais da pajelança.

93
que não ocorram, isso não significa que o Uni possa estar sem efeito, pois nem todos
são sensoriais. Este primeiro momento demanda que se estude a si mesmo, o que se
deseja e também a reflexão das ações que cometeu ao longo do dia. Para os Yawanawa,
o Uni dá conhecimento àqueles que merecem pelo seu trabalho, que tem como um dos
seus resultados o conhecimento de si mesmo. Considera-se que a pessoa em si não
perceberá o seu progresso durante a dieta, mas sim outra pessoa. Será o outro quem verá
o quão magro se está e o quanto funcionam os seus aprendizados (afinal, do que
adiantaria saber uma reza se não há cura?). Importante lembrar que, aparentemente, não
há uma espécie de conteúdo programático prévio em relação aos estudos dentro da
dieta. Existem sim coisas específicas que sempre devem ocorrer, mas o direcionamento
do estudo varia tanto quanto variam as intenções para a realização da dieta.

Os Yawanawa não consideram positivo estudar outras culturas durante a dieta.


Isso se dá porque a pessoa acabaria se tornando alvo da própria força da dieta, gerando
muita confusão. Passada a dieta, pode-se estudar o que quiser de forma livre. Por
diversos momentos lembram que tanto a Vana quanto a Runu (que são as entidades-
mestre por excelência) são “vaidosas” e “rigorosas” com a continuidade da dieta. O
acúmulo de força ocorre pelo contato com as fontes do saber. Acessar outras fontes
traria outras forças que, em contato com as nativas Yawanawa, geram uma espécie de
conflito devido a certo tipo de “desconsideração” pelas forças sociocosmológica
Yawanawa.

As dietas são o início de todo saber na pajelança Yawanawa. São como


caminhos para lugares desconhecidos que seriam percorridos sem orientação. As
pessoas que já fizeram uma dieta e estão fazendo outra, estão alguns passos adiantados,
podendo direcionar e planejar sua dieta conforme seus interesses. Quando não se faz
dieta para conhecer a força se faz para se ter mais força. Funcionam como uma forma
de comunicação com a força (ou então os Yuxi). Para que isso ocorra, a transformação
corporal provocada pela dieta deve ser vista como um resultado da ação das substâncias
inseridas, que são potencializadas pela ausência de outras. É nessa mudança substancial
que ocorre a possibilidade de se comunicar com os espíritos. Durante a dieta do Muka,
por exemplo, a pessoa tem um desejo realizado e se torna a melhor naquilo que praticou
durante a dieta. Mas isso também ocorre com as ocorrências repetitivas. Se você roubar,
enganar, se cortar, tropeçar, enfim, fizer algo repetido e/ou com empenho, aquilo se
repetirá durante toda a vida da pessoa. Aquilo que a pessoa cultiva durante a sua dieta

94
será colhido sempre. Para tal, o que o Muka exige é a boa feitura de sua dieta. Nenhuma
força virá cobrar alguma coisa.

Relembrando a história das cobras pajé, Matsini compara a busca das cobras
(evento contado em Shenipahu) nas suas dietas para ilustrar a possibilidade de haver
múltiplas finalidades para a realização das dietas. Em seus processos, as cobras
desenvolveram a força do veneno e, como era de se esperar, o resultado fora expresso
no corpo e nas suas capacidades fisiológicas. Esse caso salienta o poder da intenção
entre os Yawanawa, uma força capaz de criar uma realidade conforme seus
direcionamentos. E não é justamente isso que ocorre na relação substância-corpo?
Partindo de um pensamento “substancialista”, cria-se aqui um corpo conforme os seus
campos de atuação. Ao fim da dieta é normal a pessoa se sentir fraca. Todavia, o
conhecimento e o poder fixam-se no corpo da pessoa e nunca mais saem dali. A partir
do fim da dieta pode-se consumir carne vermelha, doce, água e ter relações sexuais.
Ainda, há muitos relatos de pessoas, desde os tempos antigos, que mesmo após a dieta
não voltam a consumir doce e até mesmo água. São pessoas que se tornaram
reconhecidos Pajés (ao que tudo indica eram Yuvehu). Aqueles que se aprofundam nas
práticas da Pajelança costumam se preocupar com o excesso de coisas doces. Mesmo
fora das dietas, o amargo ainda é a substância guia de poder. Ter um corpo amargo
permite que a pessoa seja circundada pelas forças da Pajelança109.

A importância da dificuldade e das substâncias amargas é tanta que,


antigamente, os Yawanawa que faziam as dietas iam realizar uma caçada ao mel para se
colocarem a prova e amargarem seu sangue. Nesta ocasião, eles subiam em uma árvore
alta, derrubavam a colmeia e desciam sendo picados pelas abelhas. Uma vez bem
sucedido o sacrifício, a pessoa que o fez pode tornar-se um poderoso pajé, um guerreiro
muito forte ou um excelente flechador. Conforme Pérez-Gil (2001) observara, as
picadas de insetos, tal como das abelhas, também estão associados às substâncias
amargas e, assim, ao poder. Segundo o que me disseram, no caso da caça à colmeia, não
era a pessoa que escolhia o tipo de habilidade que ganharia ao finalizar a prova, essa
habilidade era determinada pela própria força da dieta que a pessoa fazia110. A
princípio, aparenta não ser uma dieta específica, mas deve, no mínimo, ser realizada
junto a dietas que não sejam do Muka e da Saliva, uma vez que é inerente a estas dietas

109
Também é possível compensar o doce, por exemplo, com bastante uso de Nawe e pimenta.
110
Como do Uni, Kapum, Nane etc.

95
serem uma etapa na formação de um Pajé. Já a dieta do coração da cobra, também
entendida como um sacrifício, exige que a pessoa cace a cobra, coma de seu coração e
inicie a dieta que irá durar um ano111. Esta dieta não é prerrogativa para tornar-se
Yuvehu.

Para os Yawanawa, o “sacrifício oferecido” à entidade/força são as dificuldades


da dieta superadas de forma séria, focada e “bela”. A quebra das regras do resguardo
pode gerar desde uma simples dificuldade na retomada da dieta (no caso das dietas
leves, como do Uni) até a morte (dieta do coração da Runu). Quem informa sobre isso
são os Shenipahu e os exemplos dos antecessores. Além destas vias, os sonhos também
servem para isso, mas também podem provocar confusões. Conta-se que a Runu pode
vir nos sonhos e induzir a quebra do resguardo, manifestando-se em pensamentos não-
intencionais do tipo paranoico e/ou que levem a desconsiderar a relevância dos
resguardos. Seriam pensamentos que se confundiriam com os que ocorrem durante as
mirações para testar a retidão da intenção. De tudo o que me contaram, principalmente
Matsini e Hushahu, aparenta que a força testa a pessoa por provações que dialoguem
com o que se põe e o que se tira do corpo. Questões como o uso “bom” ou “ruim” da
força não são relevantes na quebra ou não do resguardo. Fazer uso ruim ou não da força
é de total responsabilidade da pessoa. Ainda que possam ter consequências, não quebra
o resguardo. Conforme Matsini, Yuve é considerado como o ponto máximo da dieta,
onde não se precisa mais consumir ou beber nada além de luz. Quando a dieta é
realizada com maestria, procuram -e encontrar com os Yuve e estuda-los. Para Matsini, é
deste ponto que surge o “conhecimento”, que é aquele parte a tradição.

A liberdade aparenta ser um valor de grande importância para os Yawanawa.


Para eles, as boas práticas nunca poderiam privar a liberdade, que manifesta-se nas
formas de pensar e realizar ações, seja no cotidiano ordinário, seja na dimensão dos
Yuxi. Para Matsini, durante as dietas as pessoas têm liberdade para fazer o que desejam,
e são as únicas responsáveis por isso. Salienta-se que a própria escolha de entrar em
uma dieta, e se sujeitar às suas regras, é uma demonstração de liberdade e
responsabilidade sobre as escolhas. Para realizar as conquistas oferecidas pelas dietas
deve-se ter uma postura de retidão e dedicação na execução das regras prescritas. As

111
A dieta do coração da cobra foi igualmente descrita por Lagrou para os Kaxinawa (1998, 2007) como
sendo uma dieta que inicia homens e mulheres que querem se tornar mestres respectivamente nas
capacidades agentivas específicas para seu gênero.

96
consequências das quebras dos resguardos recaem sobre a própria pessoa. Na fala de
Matsini:

- Você quer ter sonho. Você quer se encontrar com o quê? Então,
tudo você escolhe, pra você estudar. E a partir de quando você tá
estudando, num objetivo, aí você é todo esse... esse... esse teu
sacrifício, que você tá fazendo, ele tá te ajudando dentro de você. Pra
você entender. O.. eu... eu já conheço várias, várias dietas. Eu já
participei de alguns encontros, onde as pessoas falam de dieta. A
nossa dieta... e já vi também, que tem pessoas que usam a força, tipo,
você não estuda o que você faz, mas você fica ali... não escravo, você
fica dependente de uma força, por exemplo, tem pessoas que
sacrificam animal, tem pessoas que tem um horário pra encontrar com
essa força espiritual, pra você crescer mais. O nosso Yawanawa, você
não... você, tipo não... todo sacrifício que você faz é durante a dieta,
só. Depois que você terminou a dieta, você é uma pessoa livre, você
pode fazer o que você quer. Se você fizer uma coisa errada, você é
consciente do que você tá fazendo. (Matsini; gravação de campo)
Atualmente, a dieta do Muka tem estado em alta. A procura por ela, tanto pelos
Yawanawa quanto pelos Nawa, aumentou muito desde a época que Kuni entrou pra
dieta (Oliveira, 2012: 100). Kuni iniciou sua dieta junto com um americano
representante da Aveda e desde então diversos Yawanawa e Nawa procuraram a dieta
do Muka pelos motivos mais diversos. Em campo, contaram-me que na média os Nawa
que entraram para o Muka não buscaram o aprendizado e as técnicas da pajelança112.
Ocorre de aprenderem os Saiti e a fazer o Racuche. Todavia, não costumam aprender as
coisas mais profundas da pajelança, como as línguas e rezas de profundo poder. Na
contemporaneidade, as razões para se fazer a dieta do Muka se tornaram plurais e, junto
a isso, trazem questões distintas ao contexto Yawanawa. Aceitar ensinar a pajelança
envolve uma relação de confiança, uma vez que a conferência de poder à outra pessoa a
torna um adversário em potencial. Por conta disso há uma preferência em ensinar tais
coisas aos parentes. Suspeitamos que as dietas feitas com pessoas de menos confiança,
como Nawa que estão somente de passagem113, sigam o procedimento ritualístico do
cotidiano, mas não necessariamente envolvem as transferências de poder e
conhecimentos de maior importância. Muito devido ao longo contato e a atualização de
diversas atividades tradicionais, os Yawanawa acabam colocando em diálogo certas
experiências que no tempo dos antigos nunca poderiam ter ocorrido. São novos
contextos que devem ser compreendidos e trabalhados.

112
Txana e Shuhunawa são claras exceções. O desenvolvimento da dieta de ambos, assim como os
saberes demonstrados, foram reconhecidos por todos os envolvidos em seu aprendizado.
113
Este quadro muda, no entanto, quando há alianças duradouras e casamentos interétnicos em jogo.

97
Os antigos só comiam o Muka com cinquenta anos pra cima. A pessoa já havia
tido toda uma experiência de vida e já teria realizado tudo o que precisava para a
continuidade da vida de sua família114. Diversas vezes nos fora comentado que é comum
que as pessoas entrem nas dietas por sentimentos de raiva, e isso é de certa forma visto
positivamente. Quando carregado por esta vontade, espera-se que a pessoa se empenhe
ainda mais na execução da dieta.

Aparentemente, um “novo meio envolvente”, fortemente marcado pelas


performances culturais (aqui estamos incluindo as cerimoniais), acaba provocando uma
maior constância de imersões em contextos não ideais aos das dietas. Principalmente
entre as gerações mais novas, a ida à cidade integra uma parte importante para o
cotidiano da aldeia. São diversos os produtos que demandam da cidade e por isso
precisam ir até lá algumas vezes. O próprio tabaco para fazer o Nawe, devido à perda da
espécie nativa, é comprado na cidade (preferencialmente Rio Branco, capital do Acre).
Todavia, estar em dieta não impede que a pessoa vá à cidade (em geral deve-se acabar
uma parte da dieta antes de sair). Novamente, cada um teria a liberdade de guiar seus
estudos e ações, se ir a cidade é uma necessidade, o “guerreiro” deve enfrentar todos os
problemas que surgirem e alcançar seus objetivos. Ora, se pensássemos que a ida ao
meio urbano e o processo de uma dieta fossem excludentes um do outro, cairíamos em
uma falácia, pois as intempéries do contexto urbano podem ser controladas por aqueles
que realizam estudos e trabalhos com “forças verdadeiras” (expressão comum). Por fim,
ir à cidade durante um processo de dieta poderia acabar fortalecendo a pessoa e
tornando-a mais experiente nas relações com os Nawas em um contexto cerimonial.
Assim como no caso do sentimento de raiva, as situações de conflito aparentam gerar
meios para aprofundar e fortalecer os trabalhos desenvolvidos.

Contudo, de modo geral, as coisas do mundo do branco não deixam de possuir


um caráter negativo. As invenções do Nawa, como poderia pensar um Yawanawa, são
úteis naquele contexto por eles vividos. Por serem deste outro mundo, o contraste que o
mundo do Nawa produz na realização das dietas coloca a pessoa em desequilíbrio, que
pode se manifestar das mais diversas formas: Sensações físicas de cansaço e exaustão,
dores de cabeça, sensação de retrocesso no trabalho, maior exposição à quebra dos
resguardos e relaxamento dos estudos. Em campo, tive que ir à cidade no meio da

114
Nesta idade, espera-se que os filhos e filhas estejam casados e com filhos. Entre os Yawanawa, quanto
mais velha a pessoa for, de mais trabalhos pesados ela será privada. Em suma, não há mais outra pessoa
que dependa totalmente dele.

98
minha dieta e fui acompanhado pela filha de Hushahu, Hukena. Naquela época, ela
estava fazendo a dieta do Muka e ir à cidade envolvia, obrigatoriamente, um problema.
O mais imediato tem relação com a alimentação e a bebida (como álcool e refrigerante,
por exemplo), pois neste contexto estão mais sujeitos à tentação alimentícia da cidade e
não é possível produzir caiçuma115. Além disso, há interferências no campo relacional.
Idealmente, a pessoa que faz a dieta do Muka deve ter o mínimo possível de contato
com outras pessoas, pois é um momento de maior sensibilidade às forças externas e
também de menor controle sobre a ação pessoal na alteridade. Quando se está na cidade,
torna-se muito mais difícil estudar os Shenipahu, os Saiti¸ e os Kene. Os saberes falam
da natureza envolvente e dos seres que nelas habitam. O contato entre o meio
envolvente e as formas Yawanawa de ser é o “setting” necessário para a continuidade
das dietas. Nelas, aprende-se que o que se coloca no corpo (seja material ou não)
influencia todo o processo.

Isso só fortalece a hipótese de que a realização de uma dieta não tem como
finalidade única o desenvolvimento de conhecimentos e saberes aprofundados na
Pajelança Yawanawa. Existem vários tipos de dietas e sua grande maioria são
destinadas a resguardos para cuidados especiais com os filhos, como parte de um
processo de cura ou do que podemos compreender como construção corporal116. Ainda
que todas aparentem buscar alterações corporais (e assim mentais), nem todas se voltam
à compreensão do contexto sociocosmológico que explica e dá sentido a estes
processos.

Um exemplo de dieta que não objetiva gerar grandes conhecimentos e nem a


obtenção de poderes é a do Kene. Para os Yawanawa, é com a Runu, a jiboia, que se
aprende os Kene117. Nesta dieta, a pessoa passa a mão sobre uma jiboia e fica um mês
de resguardo, consumindo Nawe e Uni. Quando se observa a jiboia estando na força do
Uni pode-se ver todos os Kene transformando-se constantemente em um grande fluxo
de formas e cores, e assim aprende-los. Em suma, esta dieta propicia um conhecimento
e o florescimento do processo criativo de criação dos Kene (potencializado pelo
consumo do Uni), ainda que estes mesmos Kene não carreguem a força de quem os
115
Na dieta do Muka a água é totalmente proibida, sendo permitido somente a caiçuma, chás (idealmente
evitados), ou bebidas não doces.
116
Aqui falo de dietas como a do Kapum, que não demandam cerimônias (em particular, proíbe-se o uso
do Uni) mas somente os resguardos alimentares, a remoção do doce e a abstinência sexual.
117
Nota-se que este é o caso não somente para os Yawanawa mas para a maioria dos grupos indígenas
amazônicos, como os Kaxinawa, Shipibo, Ashaninka, Wauja, Wayana, Waiãpi etc. (ver Lagrou, 2009 e
2013).

99
criou (como ocorre no caso de Hushahu). As dietas mais simples podem ser feitas
diversas vezes e, em geral, buscam atender a desejos mais amplos, além de ser uma
forma introdutória de praticar a Pajelança Yawanawa.

A partir daqui, nos dedicaremos às principais dietas da Pajelança Yawanawa, no


que tange à participação na vida ritualística. Ainda que se tenha uma dieta do Kene, esta
não é de grande importância para as práticas espirituais. Este mesmo resultado,
acrescentado de força, pode ser obtido durante o Muka, se assim desejar a pessoa (foi o
que Hushahu fez). Assim sendo, existem aquelas dietas introdutórias, aquelas para a
obtenção de saberes e poderes e aquelas que finalizam os processos de dietas cabendo a
continuidade de uma vida em estudo.

A dieta do Uni é o primeiro passo para se conhecer a pajelança Yawanawa e


também para se preparar o corpo para receber a força do Uni. Ela segue o protocolo de
resguardo comum a todas as dietas, mas permite o consumo de água de forma
moderada. Pode durar duas semanas ou um mês, mas nada impede a pessoa de
determinar o tempo que deseja estar em dieta. Além disso, tal como em todas as dietas,
ocorrem diversas transformações corporais, principalmente nas substâncias corporais.
Fezes, urina, cera de ouvido, salivação e até o sangue se alteram. Sua finalidade é
preparar o corpo para o mundo da pajelança.
Este mesmo caráter introdutório ocorre no caso da dieta do Kapum que, ainda
que não passe saberes, é de grande importância para as práticas da Pajelança. Tal como
entre os Katukina (Coffaci de Lima, 2000) e os Kaxinawa (Lagrou, 1998), a utilização
do veneno de sapo objetiva fortalecer o corpo da pessoa e curar a panema118. Além
disso, possui também a propriedade de “amargar” o sangue. A utilização do Kapum fora
das dietas é feita para aumentar a disposição das pessoas, sendo usado antes de
trabalhos que exigem muito esforço, como a caça, abertura de roça e afins. Na dieta, o
veneno do sapo é usada três vezes por semana logo no início do dia, junto com os
primeiros raios solares. Com ela, se objetiva vomitar até a bile para que ocorram as
limpezas. O modo correto de fazer isso envolve consumir aproximadamente um litro e
meio de caiçuma antes da aplicação do veneno, vomitar, esperar os efeitos passarem e
começar a trabalhar (dura aproximadamente 40 minutos).

118
A pessoa empanemada é aquela que não tem disposição de fazer nada, fica o dia inteiro na rede sem
vontade para cuidar da roça e fazer nada além de ficar deitado. Em campo cheguei a ouvir comparações
entre panema e depressão (na leitura da biomedicina).

100
Em campo, aprendemos sobre três tipos de dietas “do Suya”, como falavam.
Infelizmente estamos longe de explorar em profundidade os significados do Suya.
Todavia, conseguimos compreender que uma pessoa possui o Suya quando é passado
por alguém que já o possuía. Essa passagem do Suya é feita pelo Shineya (no caso do
Mutum, pelo Tata), ele realiza uma reza em um pote que contém a substância da dieta
que virá a ser, na manhã seguinte, consumido e assim concretizada a passagem do Suya.
Poderíamos arriscar dizer que o Suya é o que diferencia aquelas dietas onde se obtém
saber e poder e aquelas que não. Seria, portanto, algo compreendido como estando entre
uma substância e uma força, e que trata da especificidade da substância central da dieta
e suas capacidades (forças?) específicas. Porém, se em um dado momento percebemos
que se pode fazer estas dietas sem receber o Suya, vemos que isso ocorre justamente
porque elas devem ser feitas durante a dieta do Muka. Assim sendo, acreditamos ser
possível considerar que o Suya é passado somente àqueles que as fazem durante o
Muka. Como o termo Muka pode ser traduzido como “poder” (“batata” é “iraru”)
vemos que Suya trata de outra coisa, mas que só pode ser obtida por aqueles que
possuem “poder”. Veremos mais à frente, quando falarmos mais sobre a dieta do Muka,
que os aprendizados do Muka são passados ao se realizarem estas dietas do Suya.
Portanto, não parece impossível considerar que, ainda que saber e poder sejam a mesma
coisa e diferentes ao mesmo tempo, o Suya seja o saber específico, dotado de poder pelo
Muka.

As três dietas do Suya distinguem-se em ordem de importância e efeito em


relação às dietas do Uni e do Kapum (e tantas outras). São processos a serem
percorridos durante a dieta do Muka. Nestas três dietas come-se menos do que nas
dietas do Uni e do Kapum. A água não é uma opção e é substituída preferencialmente
pela caiçuma, mas também servem outras bebidas amargas. Durante minha estadia em
campo não havia muita caiçuma119 e usavam quase que qualquer líquido não-doce, mas
em doses controladas. Tanto nas dietas do Uni e do Kapum quanto nestas três pode-se
comer de tudo, menos carne vermelha. Não se come na parte da noite (somente após as
cerimônias, mas com parcimônia) e de manhã somente a partir das nove ou dez horas
(isso também vale para as dietas mais simples), após o banho e arrumação da casa. Nas

119
Tinham feito cerca de duzentos litros de Caiçuma para o Mariri Yawanawa que ocorreu na minha
primeira semana de campo. Depois do festival os trabalhos foram cessados e só algumas pessoas tinham
Caiçuma: A filha de Hushahu por estar fazendo a dieta do Muka, e os russos que estavam fazendo a dieta
do Nane (a caiçuma não foi produzida especificamente para eles, era um excedente do que havia sido
produzido).

101
dietas do Suya não se pode cozinhar para dividir com pessoas que não estejam na dieta,
muito menos comer restos dos outros. Em geral, são alimentos feitos com mandioca,
banana, peixe, arroz, macarrão e feijão de praia.

A dieta da Caiçuma é feita para se trabalhar os sonhos e a obtenção máxima do


saber da espiritualidade Yawanawa. Para se começar a dieta, a Caiçuma é colocada em
um pote a ser rezado pelo Shineya. A Caiçuma também é rezada para se obter curas,
como da diarreia e febre. Dentre as dietas do Suya, a da Caiçuma aparentava ser a mais
simples e corriqueira, sempre sendo usada para cura ou conhecimento. Já a dieta da
Pimenta era feita para dar força à intuição, à mente e à palavra da pessoa. Além das
regras alimentares (que também valem para as dietas da Caiçuma e do jenipapo),
consome-se pimenta em todas as refeições e também pura. A resistência é um dos
elementos centrais desta dieta. Infelizmente falavam muito pouco dela, provávelmente
porque seus detalhes (e isso vale para todas as dietas) só me seriam repassados se
estivesse realizando a dieta do Muka.
Por fim, a dieta o Jenipapo (Nane), que é a mais forte do Suya. Sua força serviria
para tudo, abriria os caminhos da espiritualidade e também desenvolveria a capacidade
de sonhar. Em campo pude presenciar o início desta dieta feita por três Nawa. O início
ocorre durante uma cerimônia de Uni que começa com os Saiti seguidos de Saiti
Vanaya. Após aproximadamente duas ou três horas Tata cantou os Shuinti. Enquanto
cantava, a pessoa que estava em dieta ficou na frente de Tata com um pote de barro120
cheio do sumo de jenipapo (que eles mesmos têm que extrair) entre os dois. Depois do
canto, o pote é reservado e a cerimônia pode cessar conforme o interesse das pessoas,
quem estiver cansado pode ir dormir e quem ainda estiver interessado em ficar no
Shuhu121 pode ficar conversando ou somente deitado na rede122.

No dia seguinte à cerimônia, a pessoa tem todo o seu corpo coberto pelo Nane e
bebe de seu sumo. De acordo com Hushahu, quando a pessoa se pinta após receber o
Suya do Nane, os espíritos não conseguem vê-la e outras pessoas não podem olhar
diretamente em seus olhos. Pelo olhar, pode-se jogar algo de ruim independente da
intenção. Desta forma, esta pintura total do corpo com o Nane buscaria proteger a

120
Hoje já não são produzidos em quantidade pelos Yawanawa, somente algumas mulheres velhas ainda
conhecem a técnica.
121
Que seria a “casa de reza” composta por um grande telhado de palha sustentado por algumas pilastras
nas quais as redes são amarradas, com uma fogueira próxima ao centro onde fica um grande tronco para
sustentação do telhado.
122
Nestes momentos conversa-se muito sobre os acontecimentos da cerimônia.

102
pessoa dos ataques de espíritos ruins retirando-se da vista. A pessoa se faz perceber
pelos espíritos quando canta os Saiti e se utiliza de Kene nas cerimônias de Uni. Ainda
que não desapareça da visão de outras pessoas, o corpo fechado com o Nane também
aparenta buscar controlar forças internas ao corpo. É como se neste momento da dieta (a
primeira semana ou enquanto durar a pintura) a pessoa não possuísse controle sobre a
projeção de suas forças para o mundo externo. Quando se inicia o Suya do Nane
começa o desenvolvimento do entendimento e controle de todas as forças, além dos
sonhos também serem muito trabalhados durante esta dieta. Dentre os três Suya dos
quais tivemos conhecimento, o do Nane seria o mais poderoso em comparação ao da
Caiçuma e da Pimenta123. A ele é associada a entrada na vida espiritual em termos de
conhecimento sobre as forças, Yuxi e o mundo sociocosmológico dos Yawanawa.
Assim como a dieta da pimenta, esta só pode ser feita durante ou após a do Muka.
Acreditamos ser possível que a necessidade do Muka se dê pelo fato de que não se pode,
na pajelança Yawanawa, separar “saber” e “poder” que, por estarem imbricados, devem
ser desenvolvidos conjuntamente.

Além destas primeiras dietas citadas, a dieta do Muka é uma das principais e hoje
em dia tem sido uma das mais procuradas por diversas pessoas. O Muka é uma espécie
de batata muito amarga e que é procurada devido ao seu poder no universo da Pajelança
Yawanawa124. Não se trata de uma entidade, mas sim um “poder”, no sentido da força
que todos os que se aprofundam na Pajelança devem obter. Esta dieta é dividida em
duas partes. Nos primeiros três meses come-se menos do que nos outros nove meses. As
regras mudam em intensidade, e não em coisas que se pode ou não fazer e/ou comer. No
primeiro período obtém-se o poder do Muka e na etapa seguinte desenvolve-se o poder,
o conhecimento e o coloca em prática125. A obtenção deste poder torna a pessoa a
melhor naquilo que faz durante a dieta. Também é durante esta dieta que se acessa
conhecimentos não públicos, como certas histórias e saberes126 de poder. Nesta dieta,
seguem-se as mesmas regras alimentares do Suya, porém nos três primeiros meses só se
come um pouco na parte da manhã. A quantidade de alimento aumenta parcialmente ao
longo do tempo. Saber especificamente no que o Muka age envolve conhecimentos

123
O Suya da caiçuma é usado para efetuar curas, enquanto o da pimenta para dar força à intenção.
124
Entre os Kaxinawa, onde ela é chamada de dade esta batata também é conhecida e associada à
iniciação xamânica (Lagoru, 1998, 2007),
125
Conforme Laura Pérez Gil (2001), e o que foi confirmado em campo, o reconhecimento do
conhecimento e poderes daqueles que fazem as dietas mais importantes só se dão quando postos em
prática. Somente o estudo não confere reconhecimento da sociedade.
126
Não pude ouvir as histórias/mitos de maior importância para os Yawanawa justamente por conta disso.

103
esotéricos127 por serem conhecimentos de valor cosmopolítico (para o uso em contexto
ameríndio do conceito cosmopolítico ver Sztutman, 2005).

Na dieta do Muka, a pessoa que a faz pode ter a opção de somente receber o
Muka e não necessariamente aprender a pajelança Yawanawa. Nesta dieta, uma vez que
se passaram os três primeiros meses (que são os mais intensos), a pessoa recebe o seu
Muka e pode, se quiser, abandonar o processo de aprendizagem, mas não o resguardo.
Entretanto, logicamente há a preferência por aprender as rezas e as histórias para que se
possa utilizar o Muka. Nos nove meses seguintes a pessoa terá que fazer as dietas do
Nane, Caiçuma e Pimenta. Neste período, se a pessoa se fura, corta ou queima, isso irá
continuar acontecendo posteriormente. Mas isso também ocorre com atividades e
costumes. Se a pessoa ficar estudando, roubando, andando na mata, aprendendo canto,
aprendendo reza, Kene ou qualquer outra coisa, ela se tornará “a melhor” naquilo. O
pedido que se faz ao Muka nunca poderá ser revertido128. Durante a dieta a pessoa pode
fazer outros pedidos que tenham relação direta com o pedido primeiro. É desta forma
que a pessoa pode direcionar a força do Muka e do Uni para as direções que deseja agir
com o seu Muka. É na dieta do Muka que ocorre o principal investimento em saberes.

Diversas coisas, tal como o canto, os desenhos, as rezas e tantas outras coisas
que fazem parte do contexto ritual podem ser desenvolvidos através da captura da
alteridade. Ouvimos relatos sobre o consumo de determinados tipos de animais, de
carne vermelha inclusive, que deveriam ser comidos em determinado momento. Pelo
que pudemos entender, capacidades de certos animais e plantas são aprendidas pelas
pessoas ao consumir um certo animal e/ou planta129. Relações de consubstancialidade
fazem parte do contexto das dietas e também do cotidiano130, são responsáveis pelas
trocas de substâncias, conhecimento e poder e pela construção de corpos amargos.

Por fim, existem outras duas dietas sobre as quais os Yawanawa do Mutum
falam muito: a dieta da saliva e a do coração da cobra. Estas são as mais difíceis e, desta
forma, as que mais conferem poder e conhecimento. Por exigirem maior esforço, são
127
Entendemos enquanto “conhecimento esotérico” aqueles nos quais se precisa estar em um nível mais
avançado do estudo da Pajelança. Impreterivelmente isso exige relações de confiança, pois alguém só
aceitará te guiar em uma destas dieta ou te conferir certos ensinamentos quando confiando na pessoa. Isso
se dá por conta dos poderes conferidos a pessoa.
128
Interessante notar as semelhanças com a dieta da cobra entre os Kaxinawa (ver Lagrou, 1998, 2007).
129
Ver Lagrou (1991, 1998, 2007) para discussão de práticas rituais similares entre os Kaxinawa, dizendo
respeito a ingestão do yuxin do japim e da jiboia através da ingestão de sua carne não cozida, mostrando
como a presença do sangue veicula uma consubstancialização com o animal ritualmente ingerido.
130
Por exemplo, algumas espécies de macaco – e tantos outros animais – são proibidas por passarem
características negativas da espécie, como “loucura”.

104
muito pouco realizadas. Em campo só soube de três pessoas que moram na aldeia e que
já as realizaram, que são Hushahu, Matsini e Tata. Para a dieta da cobra, não serve a
sucuri. Tem que ser a jiboia. Ao final desta dieta, a pessoa tem um sonho com ela em
que é ensinado o que precisa saber131. Não se pode tomar água, comer doce e comer
qualquer coisa que não faça parte do cardápio natural da cobra. Ou seja, comem-se
ratos, pacas, capivaras etc132. Na primeira semana come-se somente uma piaba (um
pequeno peixe de escama) que deve durar todo esse tempo. Isto é feito durante um mês.
No mês seguinte já se pode comer uma paca por semana. Ao passar do tempo, começa-
se a comer as presas maiores da Runu. Outras formas de alimento estão vetados.
Entretanto, a caiçuma entra para ajudar contra a sede, mas não como substituta da água,
pois ainda é muito escassa (dois goles de manhã ao longo de um dia inteiro).

Hushahu fez três dietas ao mesmo tempo, a do Muka, a da Saliva e a do Coração.


O risco que ela corria era de vida, muito por conta da alimentação e dos riscos do
isolamento necessário para a realização destas dietas. Fazer essa dieta da saliva significa
que a pessoa já domina muito das forças da Pajelança, e é a última dieta que exige um
professor para poder ensinar os cantos e as rezas. Além disso, como ficará mais claro
posteriormente, ela envolve o domínio de uma língua específica para os trabalhos e
rezas da Pajelança. O início desta dieta é feito com a captura de uma jiboia ou uma
sucuri, depois toma-se de sua saliva para iniciá-la. Ela é feita com o objetivo de
aprender as rezas e usar a força da Runu que, segundo a pajelança Yawanawa, é a
verdadeira dona do poder. Para a Runu se faz uma espécie de juramento e bebe-se de
sua saliva. Assim que a engole, a cobra pode achar a pessoa (incluindo nos sonhos e nas
mirações) e com ela se comunicar.

As dietas da Saliva e do Muka conferem conhecimento e poder, porém a dieta da


Runu gera resultados em um mês, já a do Muka em três e demanda outros nove para ser
finalizada. O resultado do Muka é paulatino e exige um estudo contínuo por meio do
acúmulo dos Suya, enquanto na dieta da Saliva o veiculador dos saberes e poderes não

131
Aquilo que se precisa saber não é compreendido como uma unidade. A pajelança Yawanawa é
marcada pela centralidade da intenção e da força do pensamento. Ao realizar dietas faz-se pedidos que a
direcionam. Relataram-me que ao comer do coração da cobra e finalizar a sua dieta ela lhe confere um
grande poder na a caça, na pesca, no canto, no kene e na reza (ver Lagrou para Kaxinawa onde se adquire
as mesmas capacidades, 1991, 1998, 2007).
132
Nem todos estes animais podem ser consumidos por quem faz a dieta da Saliva, pois ela dura um mês
(leva-se meses até poder consumir animais de porte médio ou grande, como a anta) e, pelas descrições
que ouvi sobre algumas dietas da Saliva que foram feitas, não há consumo rotineiro de carne vermelha.
Come-se todos os dias um pouco pela manhã.

105
são substâncias autônomas, mas de um tipo que veicula a agentividade de uma entidade,
a Runu. Uma outra aproximação entre as dietas do Muka e da Runu é que esta última é
voltada para as rezas e cantos do Muka. Aquele que realiza a dieta do coração, como
falamos anteriormente, é o Yuvehu, capaz de realizar o canto do Muka sozinho
(enquanto o Shineya precisa de cinco pessoas cantando juntas)133. Tata sabe os cantos
do Muka e provavelmente está aguardando para ensiná-los. Porém, para realiza-lo, são
necessárias cinco pessoas que tenham realizado as dietas do Muka e da Saliva. Nesta
última, por sua vez, é quando se aprendem as rezas feitas na Caiçuma, Nane, e Pimenta
(os cantos do Suya).

Diferente destas dietas que demandam processos de estudo, aprendizagem e


ensino, a dieta do coração dispensa aqueles chamados de professores. Como
observamos anteriormente, a saliva, por ser uma substância extraída da cobra, possui
capacidades de ensino e de obtenção de poder que complementam e atualizam os
processos gerados durante o Muka. Agora, na dieta do coração da Runu, isso se
aprofunda. Depois de caçarem uma jiboia, remove-se seu coração, parte-o e espreme-o
de modo a sair um líquido branco, a ser chupado pela pessoa. Conta-se que é
extremamente amargo, e é a substância fisiológica que, aparentemente, mais carrega
potencialidades de saber e poder134. Esta dieta é feita por aqueles que já possuem todo
um complexo de conhecimento e, ao executa-la, não precisam ser orientados por
alguém. Neste estágio de desenvolvimento das forças e saberes da Pajelança, considera-
se que aquilo que a pessoa precisar saber ela o saberá assim que precisar deste
conhecimento. Quando alguém tem dúvida sobre o que e quando comer, o que fazer ou
não, como interpretar os sonhos, buscar plantas e animais de importância para o
processo, se comunicar com espíritos, cantar, pintar e tantas outras coisas, aprende-se o
que se quer a partir do momento em que precisam deste saber. Neste estágio, a pessoa
precisa somente colocar o conhecimento em prática, pois sua eficácia concreta sempre
será precedida pelo reconhecimento dos poderes da referida pessoa. É neste encontro
entre a circunstância e a intenção que se estimulam vetores de movimento. Estes podem
ser passagens de Shenipahu, momentos de sonhos, mirações do Uni, técnicas como o
Racuche ou diversas outras ações prescritas para as mais diversas situações.

133
Confessamos certa inexatidão quanto a isso, considerando que estas associações entre especialistas e
técnicas não é fixa e sua descrição em campo é múltipla.
134
Ver Lagrou para uma discussão sobre a impossibilidade de separar substância e yuxin entre os
kaxinawa (1998, 2007).

106
Como já acreditamos ter deixado claro, as dietas possuem um conglomerado de
regras e prerrogativas para que se tenha sucesso. Das histórias e do exemplo de quem já
as fez, se sabe o que se pode ou não comer e fazer. Estas mesmas fontes também
informam regras comportamentais, duração das dietas e, por fim, o que ocorre quando
realizadas de forma correta ou não. Já tratamos anteriormente dos objetivos finais das
dietas, agora iremos falar brevemente das consequências que ocorrem quando se
quebram as regras alimentares e comportamentais da dieta.

Além dos efeitos gerados pelas propriedades das substâncias e da abstinência


sexual135, há consequências distintas de acordo com o nível da dieta que está sendo
feita. Não conseguimos coletar informações precisas sobre isso, mas seremos capazes
de demonstrar a gradação destas consequências e assim evidenciar porque não basta
somente ter que lidar com as regras das dietas, mas com o que ocorre caso elas não
sejam seguidas.

A única regra que não conseguimos especificar melhor é sobre a abstenção de


carne vermelha. O que nos falaram é que isso ocorre porque esse tipo de carne possui
muito sangue (isso muda na dieta da cobra, na qual se come o que a cobra come – muito
pouco no início e pouco ao fim da dieta) e por estar associada a animais pesados,
opostos ao corpo magro ideal das dietas. Nas dietas mais simples (Uni e Kapum), as
consequências não são pesadas, apenas será mais difícil para fazê-las uma outra vez.
Porém, no caso das dietas do Suya ocorre a perda do conhecimento e habilidades
conferidas pelas dietas até aquele momento. É possível que se mantenham certos
saberes e poderes, porém eles serão muito menores em força do que quando se mantém
fiel às regras. Além disso, acontecem efeitos físicos com a quebra da dieta, ainda que
não sejam intensos. Estes podem ser múltiplos e não conseguiremos especificar aqui
cada um dos efeitos. Porém, nos foi relatado que quando se bebe água, por exemplo, ela
não irá saciar a sede e provocará náuseas. Já o gosto doce dá enjoo e sentimento de
tristeza, e as relações sexuais fazem perder toda a energia e disposição. Nas dietas do
Muka e da Saliva os efeitos tornam-se graves. Conta-se que ao quebrar estas dietas, a
pessoa carregaria um sentimento ruim (algo análogo a nossa noção de depressão) pelo
resto da sua vida e não teria mais a chance de retomar a dieta. Caso a pessoa retome a

135
A água limpa a força acumulada, o doce corta e dá “pasma” e as relações sexuais desperdiçam a
energia acumulada.

107
dieta, esta se tornaria muito mais difícil. Os efeitos adversos seriam intensificados, e
isso desencorajaria a retomada.

A sensação de quebra da dieta também poderia acabar sendo utilizada em prol da


perseverança na dieta. Diversos relatos contam que pessoas que passavam muita sede ou
muita fome ou que tinham uma vontade muito intensa de ter relações sexuais, sentiam
os efeitos da quebra em momentos de quase desistência. São momentos nos quais a
mente começaria a criar ideias como “um golinho dessa água não terá problema”; “só
essa pitada de açúcar no café não fará nada”; “se ficar só abraçadinho não ocorrerá
nada...”. Diz-se que quem faz isso é a própria força da Runu, do Muka e dos Yuxi que
querem testar as pessoas nas dietas. Relataram que estas sensações prévias são tão
intensas ao ponto de eliminarem totalmente a vontade de quebrar o resguardo.

Na dieta do coração- sobre a qual, infelizmente, não temos muitos detalhes -


quebrar a dieta provocaria a morte. O avô de Hushahu entrou para a dieta do coração da
Runu junto a um amigo, cujo nome não me foi contado. Ambos não resistiram às
dificuldades da dieta e a quebraram. Hushahu, Matsini e tantos outros me contaram que
quebrar esta dieta levaria à morte. Entretanto, somente o amigo de Antônio Luiz, avô de
Hushahu, faleceu. Conta-se que por ser um Shineya de reconhecido poder e por ter
relações de aliança e parentesco com tantos outros, Antônio recebeu ajuda de diversos
outros Shineya que impediram que sua alma fosse levada embora.

Acreditamos que até o momento conseguimos oferecer uma descrição dos


processos que ocorrem durante as dietas. Há muito a ser aprendido e entendido ainda,
diversas informações são totalmente vetadas para aqueles que ainda não fizeram o
Muka. O tempo em campo só pôde nos propiciar uma breve introdução na Pajelança
Yawanawa e ainda há muitos processos e saberes desconhecidos por nós. Mesmo que
pudéssemos aprendê-los, não nos seria permitido transmiti-los em sua totalidade, tendo
em vista seu caráter de segredo e confiabilidade durante seu ensino. Ainda assim,
esperamos ter conseguido trazer aqui um panorama sobre as principais dietas e assim
elucidar as transformações que estão em jogo e como elas repercutem no meio
circundante.

3.2.3. Veículos da força


Na tentativa de compreender a arte Yawanawa enquanto um mecanismo de cura
e conhecimento acabamos chegando a uma discussão sobre construção corporal. Ao

108
longo destes dois capítulos, falamos das diversas dietas que realizam a fim de construir
um corpo dotado de capacidades agentivas no meio circundante. Pudemos perceber que
ao introduzir e remover determinados tipos de substância do corpo há reflexos no
campo espiritual (aqui, no Yuxi ou “duplo” (Lagrou, 2007; Cesarino, 2011; Vernant,
1990), a pessoa se tornaria capaz de conferir esta capacidade de agentividade à cantos,
desenhos, sopros e rezas (incluindo as que narram eventos míticos), além de possibilita-
la a habitar o mundo dos Yuxi por meio dos sonhos e mirações. Desta forma, traremos
mais algumas informações sobre estas técnicas.

***

Entre os Yawanawa, a música, assim como entre outros povos Pano (Cesarino
2011, Lagrou 1998, Coffaci de Lima 2000), possui um papel central para a Pajelança e
também para pensarmos a sua arte. Entre os Yawanawa, existem diversos tipos de
cantos, e alguns podem passar por mudanças estilísticas, mas nunca em sua totalidade.
Possuem funções diversas e dividem-se em ordem de importância e efeito.

O Saiti é um tipo de canto usado nas rodas de Uni, nas danças, nas brincadeiras e
também para controlar a força do Uni. Canta-se para aumentar e/ou diminuir a força.
Para isso, deve-se cantar direcionando o canto para algo, seja para as árvores, lua, sol,
animais ou o que for. Já o Saiti Vanaya é usado para chamar “grandes forças”. Este
canto inicia-se com um Saiti comum e depois começa a fala cantada, no estilo de uma
narrativa136. É aprendido já na dieta do Muka e cantam sobre as histórias dos Yawanawa
e narram os eventos que estão acontecendo no momento presente da dieta. O Shuinti é o
canto usado para a reza da Caiçuma, tanto para curar as pessoas quanto para iniciar a
dieta. Este canto é feito exclusivamente em outra língua, com o nome de Rane. Esta é
uma língua usada somente nestes contextos. A Runu é a dona tanto do Shuinti quanto do
Rane. Diz-se que todos os Yuxi entendem Rane, mas somente os que partilham da
mesma mata que os Yawanawa entendem Yawanawa137 (com algumas exceções).
O canto que aparenta ser de maior poder é o canto do Muka (ou Yuve), que é o
canto usado em trabalhos de cura específicos. São cantados em Yawanawa e
parcialmente em Rane. Infelizmente não pudemos presenciar a utilização deste canto,

136
Pode-se cantar um Shenipahu, uma miração ou uma narrativa livre. Este canto é feito na língua
Yawanawa, e não na língua ritual do Rane.
137
O mesmo ocorre para os espíritos que habitam cidades, centros urbanos etc., entendem a língua local e
o Rane. Fui informado que quando presentes nas cerimônias os Yuxi dali entendem nada do que é cantado
em português.

109
somente em alguns Racuche feitos em mim, em pessoas que estavam fazendo dieta e no
público do festival que levou uma “lambada”138 do Uni. Não presenciamos trabalhos de
cura para doenças (somente Shuinti em trabalhos preventivos).

O canto do Muka é um canto de cura. Assemelha-se ao canto do Suya (aquele


cantado nos potes de Caiçuma, Nane e Pimenta). Entretanto, o conhecimento passado e
estudado pelo canto do Muka não engloba a totalidade da realidade, tal como os cantos
do Suya. O Muka não chega, por exemplo, a falar de todas as plantas, animais, forças,
elementos da natureza e cosmo. É limitado à cura pelo canto. Nele, não se entrega nada
à pessoa (tal como no Suya, onde se entrega este à pessoa), retira-se o que faz mal dela.
Entretanto, hoje não é tão fácil poder realizá-lo, uma vez que este canto exige a
participação de ao menos cinco pessoas cantando ao mesmo tempo. No Mutum, a única
pessoa que sabe o canto é Tata, que ensina para que os demais possam ouvir e sentir a
força. Entretanto, hoje não há no Mutum cinco pessoas que tenham realizado a dieta do
Muka139.

Outro tipo de canto é o chamado Shuinti. Este, por sua vez, é a reza de cura por
excelência. Utiliza-se dos saberes sobre os poderes das plantas, animais e tudo o que
habita o cosmo para usar de sua força na cura da pessoa. Em campo, tive a oportunidade
de acompanhar esta reza feita para um tratamento preventivo. Para realizá-la, o Shineya
reza o Shuinti sobre um pote de caiçuma a ser consumida pela pessoa doente. Depois
deverá ficar três dias de dieta.

Além de informar sobre o que se pode fazer ou não, ou quanto tempo se deve
ficar em uma dieta, os Shenipahu são fonte imprescindível para o conhecimento sobre o
mundo dos Yuxi. Muitas histórias são ocultas e só são contadas a certas pessoas de
confiança. Existem três histórias que não podem ser contadas em sua completude às
pessoas que não comeram o Muka. Elas tratam da origem dos povos, em uma época
onde animais e humanos se comunicavam, dos antepassados que subiram aos céus com
o corpo seco e, por fim, uma outra que fala sobre um homem que viajou a três diferentes
mundos com o japó140. Conta-se no Shenipahu da origem das medicinas, que diz que o
Uni surge depois da criação, somente no momento em que ele foi necessário. A história
138
Esse termo é muito utilizado para se referir às pessoas que não aguentam a força do Uni.
139
Considerando-se a aldeia Nova Esperança, com toda a certeza há pessoas o suficiente para fazerem
esta reza.
140
Japó é uma espécie de peixe. Por motivos óbvios, não pude saber o conteúdo explícito de cada uma
destas histórias. Cheguei a ouvir algumas partes e relatos sobre estas histórias, mas somente dando a
minha palavra de que não iria publicar isso ou contar para terceiros.

110
em detalhes de seu surgimento é contada no Shenipahu que fala da origem dos povos
Pano e dá-se pela brotação da folha Kawa (psychotria viridis) e do cipó Uni
(banisteriopsis caapi)141. Em outro, no Awara Nane Putane, conta-se como os
Yawanawa descobriram o segredo do poder das cobras (o próprio Uni)142. Infelizmente
não temos a narrativa da história, mas no canto em que se fala sobre o surgimento do
Uni (ou seja, quando ele foi necessário), fala-se também sobre como a “necessidade”
que precede a geração do Uni insere-se na relação com a morte, já que surge da tumba
do primeiro a morrer143. Uma vez que se está sujeito à ação da morte (por meio de
doenças) ela é evitada com técnicas de cura. Aqui, neste contexto, cura e Uni são
praticamente sinônimos, não fosse o conhecimento dado pela Runu. E é justamente pela
ação do Uni que a morte é superada e os vivos passam a ser imortais que habitam o
mundo dos céus.

Para os Yawanawa, tudo o que existe no universo foi criando quando o Nuke
Shuvimani precisou que existissem. Tive a oportunidade de ouvir o início de uma
história que fala sobre a geração do mundo. A história conta que no princípio de tudo só
havia água e escuridão. Da pressão entre os dois, surge Nuke Shuvimani que gerava as
coisas conforme precisava delas. Queria ficar em pé e criou a terra, queria comer e criou
os animais e assim sucessivamente. Seu poder não viria do Muka e nem do Vana (que
são as fontes de poder dos humanos), mas somente dele mesmo. Todos os Yuxi e suas
forças, portanto, teriam surgido após a geração de Nuke Shuvimani. Diz-se nos
Shenipahu que no passado todos os animais falavam e eram humanos de uma outra
qualidade. Teriam assumido as formas de animais aqueles que se equivocaram ou
quebraram resguardos. Por exemplo, as cobras venenosas que tomavam Kapi para
obtenção de poder. As histórias contam os casos de sucesso e fracasso, que explicam

141
Neste trabalho iremos nos referir à folha e ao cipó somente nos termos nativos. Mas para facilitar a
identificação ao leitor leigo, a folha Kawa é conhecida no contexto das religiões ayahuasqueiras (como o
Santo Daime) como “Rainha”. Neste mesmo contexto o Uni é conhecido ou como “cipó” (termo em
português adotado para traduzir Uni) no contexto pano ou “Jagube” no contexto daimista. Estas
informações foram retiradas de conversas com diversas pessoas que se consideram “ayahuasqueiras” e
também de conversas em espaços não-indígenas dedicados ao consumo religioso da bebida.
142
Neste mito, um homem é levado por duas irmãs cobra à sua aldeia no fundo do rio. Lá ele passa a
viver com as cobras como se fossem humanos parentes, que consumiam a Ayahuasca sem que ele o
pudesse também. Todavia, em certo momento ele tomou do chá e viu a verdadeira forma das cobras.
Retorna para sua aldeia e leva consigo o segredo das cobras, que são os conhecimentos sobre os poderes
do Uni.
143
Ver o mito de origem kaxinawa para motivos de comparação: do corpo de Yube que conheceu o cipó
no mundo aquático das anacondas surge o primeiro cipó e a folha kawa, o seja, é tomando cipó que se
tem acesso à experiência do primeiro homem que conheceu o mundo das anacondas e do cipó (Lagrou,
1991, 1998, 2007).

111
porque certas cobras são venenosas e outras não. Em um exemplo dado durante os
estudos sobre os efeitos da água durante a dieta, conta-se que as cobras d’água
venenosas, quando em dieta, teriam sofrido muito com a sede mas conseguiram resistir.
Uma outra cobra, chamada Txau, que não possui veneno, não aguentou a sede e pulou
na água e dela bebeu. Foi nesse momento que se transformou em cobra e perdeu todo o
seu poder. A força espiritual lhe disse: “Você nunca vai ter sucesso de poder, você vai
usar sua força, mas, quando você ferir alguém, as pessoas vão rir de você, teu poder não
vai fazer efeito”. Essa seria justamente a pasma, que também ocorre com aqueles que
consomem doce e têm relações durante a dieta. As cobras que resistiram são as que são
venenosas e/ou valentes (como a jiboia).

Saber as histórias denota capacidades de ação xamânica em utilizar estas


narrativas míticas para provocar os efeitos ali. Isso pode ser feito por meio dos cantos e
rezas que são aprendidos durante as dietas do Muka e da Runu. Eles não só ensinam,
mas são um dos principais veículos de ação disponível pela Pajelança Yawanawa.

***

Desejamos agora tentar mostrar as relações entre certos tipos de imagens e a


Pajelança Yawanawa. Precisamos, anteriormente, especificar aqui os tipos de imagens
que estamos tratando. O recorte aqui apresentado se dá pelas ocorrências e
ensinamentos que tive em campo. Ainda que buscassem entender, no seu “sentido
verdadeiro” os quadros de imagens figurativas, eles nunca eram citados nas conversas
sobre a força, seja ou não durante as cerimônias. Ainda, poderíamos ter considerado
também as imagens virtuais da memória e dos contos, que são invocadas para explicar e
narrar os acontecimentos cosmológicos. Todavia, estas formas de imagens nos foram
relatadas como representações que figuram reflexões. Diferente das formas de imagens
que mais trouxemos neste trabalho, e às quais aqui retornaremos, os Kene, as visões e as
mirações, particularmente, carregam a força da Pajelança quando são resultado dos
processos de transformação corporal por meio das substâncias amargas e formas de
concentração e acumulação de suas forças.

Entendemos, a partir do estudo de caso específico de Hushahu, que a criação de


novos Kene também pode resultar destes processos de transformação por serem
justamente marcadores do diagnóstico positivo das dietas. Pessoas que possuem o
amargo são capazes de ver e criar novos Kene, ver espíritos e se relacionar com a
realidade cosmológica mesmo em estados ordinários de consciência e também
112
conseguem realizar ações que intencionalmente utilizam-se de componentes
cosmológicos quando estando na força do Uni. Visões e mirações distinguem-se
justamente neste ponto. Partimos das expressões mais utilizadas pelos anfitriões
Yawanawa. Termos como “ver” e “ter visão” são frequentemente utilizados para se
referir à revelação da realidade invisível. Já a miração, ainda que envolva este mesmo
desvelar, é sempre acompanhada de força e conhecimento. A força é sentida no corpo,
enquanto o saber é transmitido pelas formas e reflexões e fixa-se no corpo. Quando, por
exemplo, ocorrem visões de espíritos e/ou sombras, ou ouvem-se vozes e cantos vindos
da floresta, estes indicariam que o corpo da pessoa está presente na realidade
sociocosmológica. Seria um efeito dos processos das dietas ou de estudos na Pajelança.
Possuindo, assim, um corpo preparado para este encontro, as experiências provocadas
pelo Uni encurtam a distância entre o que é visto e sentido. Aparentemente, quanto
maior for esta distância, mais as imagens seriam tidas como meros efeitos psicodélicos
e, quanto menor for, mais os corpos estarão em relação com as forças de cura e
transformação que o circundam.

***

Os chamados Kene são usados no corpo, em adornos e objetos. Entre os


Yawanawa não encontramos registros de sua origem mítica. Tudo o que aparentam
saber sobre eles encontra-se em partes de histórias recentes, havendo nenhuma que trate
do surgimento e do ensinamento dos Kene especificamente. O que pudemos perceber é
que seu processo criativo de atualização pauta-se nas formas encontradas na floresta e,
principalmente, na Runu, embasado nas formas anteriormente estruturadas nos
glossários dos Kene Yawanawa. Todos os Kene são traduções imagéticas das formas da
natureza ou transformações de outros Kene. Eles podem surgir durante as mirações em
trabalhos de maior aprofundamento nos mundos da Pajelança. Estes desenhos tomam
forma e carregam em si a força da experiência provocada pelo Uni e possuem utilidades
múltiplas.

Com os Kene no corpo, os Yuxi reconhecem na pessoa um maior envolvimento


na prática da Pajelança, podendo manifestar-se mais para estas pessoas. Também são
usados para trabalhos de cura ao serem pintados no corpo das pessoas para aumentar a
permeabilidade da pele auxiliando na entrada de forças cantadas144 e, assim, curar as
doenças que ali estão. São usados, também, em festas, para dar energia, conectar com a
144
Ver Lagrou para este tipo de agentividade do kene entre os Kaxinawa (1998, 2007).

113
floresta e agradecer. No contexto da dieta eles são uma proteção. Os espíritos veem as
pessoas sem Kene como se estivessem doentes. Já quando pintados, veem pessoas
fortes, guerreiras e prontas para tudo, pois estariam protegidas plenamente. Neste
contexto, usar o Kene da Runu, Awa Vana, Pasipi, Runu Mapu, Washushaka ou
Yumashou145 serve para chamar estas forças para o trabalho individual projetado para a
coletividade146. Aqui, novamente, a alteridade integra e faz movimentar as ações
desenvolvidas no interior das cerimônias e das pessoas que delas participam.

As formas apresentadas nos trabalhos com Kene trazem uma questão referente à
significação, figuração e abstração. Os Yawanawa aparentam considerar que os Kene
sejam, plenamente, formas figurativas que só seriam ocultadas ao observador
desavisado. Estando na força do Uni cada traço do Kene possuiria um significado e
modo de se relacionar com outros Kene. Além de haver alguns Kene específicos que de
fato não são figurativos, os arranjos feitos pelas novas combinações de Kene em um
único objeto podem exigir do olhar um esforço maior para se perceber os Kene
entrelaçados. Nota-se que, se para os Yawanawa a não-figuração não possui significado
e consideram seus Kene como formas figurativas, podemos perceber claramente um
movimento significante que parte do ocultamento das formas nas combinações de Kene
e na distinção entre seus traços, cores e, consequentemente, significados.
Este jogo de pensamento é entendido por meio das visões de Kene durante as
mirações. Nestes momentos, como relatam diversas vezes, os Kene surgem a partir do
que é cantado e guiam a pessoa aos lugares onde terá os aprendizados, vivenciados por
meio das mirações. Aqui acreditamos ser possível correlacionar as visões de Kene e
mirações durante as experiências do Uni nas dietas. O Kene é um veículo de força e
conhecimento por excelência. Conferem forma aos cantos e assim guiam a experiência
visionária (ver Lagrou, 2007; Gebhart-Sayer, 1986). Em outra “etapa” podem ser usados
não como um canal, mas um provedor de movimento para a abdução da alteridade
circundante e assim de seus benefícios. Como falamos anteriormente, os Kene podem
ser aprendidos durante a dieta do Muka, da Saliva e também a específica do Kene. As
duas primeiras, aparentemente, são capazes de gerar na pessoa estas habilidades no uso
do seu Muka que conferem força e ações de abdução nos Kene. Já a dieta do Kene não,
só faz aprender a vê-los e a criá-los. Não são capacidades hierarquizadas verticalmente.
145
Respectivamente: cobra, borboleta, andorinha, cabeça da cobra, peixe e espinha do peixe.
146
Como salientado diversas vezes por Hushahu e Matsini, durante as cerimônias realizam-se os pedidos
mais diversos e, para tal, canta-se para alhures. Pode ser para o grupo, parentes, animais, plantas, astros,
Yuxi ou o que for (uma vez que tudo possui Yuxi e tem nome na pajelança).

114
Aprendê-los é o suficiente para aprofundar os aprendizados durante as cerimônias,
enquanto usar do Muka implica especializar-se nestas técnicas xamânicas, o que não é o
desejo/vocação de todos.
Trata-se aqui do mesmo desrespeito do uso nativo dos conceitos dos quais
abordagens tradicionais podem ser acusadas. Aqui você não se deu o tempo de entender
o uso Wagneriano da metáfora que fiz de um conceito nativo do campo da reflexão
sobre processos cognitivos de percepção e enquadramento.

3.2.4. Sonhos e mirações


O desvelar entre o visível e o invisível se dá pelas visões e pelos sonhos. Dentre
as visões, aquelas que os Yawanawa chamavam rotineiramente de “mirações” são de
importância distinta147. A ação do Uni faz ver diversos Kene e eventos no plano
sociocosmológico. As mirações são visões, provocadas com o auxílio de substâncias
enteógenas148 consumidas durante cerimônias e outros momentos significativos149. É de
conhecimento público que as mirações “não são reais”, e que operam conforme
ilustrações dos significados, dos conceitos e das ações que ocorrem durante estes
momentos. Sua realidade é um tanto quanto abstrata, pois são capazes de agir na pessoa
ainda que sua fisicalidade seja ilusória. Nas cerimônias, operam a intencionalidade, a
intuição e a consciência150 dos Yuxi e das pessoas. As “visões” podem se apresentar de
formas múltiplas e entrelaçadas por seus elementos comuns: formas geométricas e
fractais, visões de energias, cosmos, memórias, sensações físicas e emocionais,
interação com forças (não necessariamente vistas, ouvidas ou sentidas), conceitos,
ideias, pensamentos, distintos espaços e planos. Uma realidade na qual o mundo
ordinário é preenchido, incialmente, por uma percepção outra. Durante os estados
alterados de percepção, a cognição, e comunicação interagem com as mesmas coisas
que se vê, ouve ou sente com sua percepção ordinária, mas o estatuto ao qual se referem

147
O uso do conceito “miração” se insere num contexto intercultural ayahuasqueiro e é um conceito
nativo importante na religião do Santo Daime para falar do estatuto particular da experiência visionária
vivida. Os Yawanawa usam o conceito na mesma direção, o de distinguir entre tipos de visões mais e
menos “verdadeiras”, ou portadoras de “força da espiritualidade”.
148
O termo “enteógeno” é popularmente conhecido como referindo-se às substâncias provocadoras de
estados alterados de percepção e consciência em um contexto orientado para tal.
149
Vale lembrar que nem todas as substâncias enteogênicas provocam mirações, tal como o Rapé e o
tabaco em contextos passados (Pérez Gil, 1999).
150
Aqui a percepção é integrada à consciência. Para os Yawanawa, a mente de uma pessoa é dada
conforme seu contexto, sua cultura. Adotamos aqui uma noção perspectivista (Viveiros de Castro, 1996)
de “ponto de vista” na qual, ao passo que varia, a percepção sobre o mundo percorre a mesma variação e
assim forma um todo de elementos constitutivos da consciência da pessoa. Estes elementos se movem
conforme o ponto de vista da pessoa.

115
já é outro. Perceber o mundo de forma extraordinária não se limita a visões de formas e
seres. O processo pelo qual a pessoa passa para se ter mirações (principalmente as mais
fortes) segue o percurso: Efeitos Físicos → Efeitos Sensoriais e Sinestésicos →
Mirações. São processos e resultados do aprendizado e controle de forças. Mas outras
pessoas podem passar por todo esse processo de forma muito rápida com a ação do Uni.
As mirações, por serem mais “simbólicas” e narrativas nunca são interpretadas como os
efeitos visuais sem força ou saber, mas sim efeitos das transformações geradas pelo
Uni.

Para que se tenha as visões, é preciso uma longa caminhada sem erros, ou erros
já redimidos, e que se tenha passado por diversas cerimônias e também dietas. Dizem
que é neste momento que “o Uni se abre pra você”. Nas mirações e nos sonhos também
podem ocorrer entregas de itens em momentos chave. São exemplos, os sonhos de
Hushahu após a morte de seu pai que lhe reencaminhou para a linha da espiritualidade e
o de Matsini que recebe um arco sujo de sangue que saiu do canto de uma
mulher/espírito presente na cerimônia. Ambos marcam um momento de reconhecimento
de seus conhecimentos e poderes por parte dos Yuxi e antepassados. A entrega de
presentes por parte dos Yuxi é entendida como forma de confirmação. Mais
marcadamente, temos o esperado sonho com a Vana no fim da dieta do Muka. Neste, a
Vana aparece e tem relações com a pessoa em sua rede. O ato marca o matrimônio entre
a pessoa e a Vana, lhe garantindo a sua companhia nas cerimônias realizadas. Possuir a
Vana significa ter muito poder, é um certo tipo de assistência espiritual para a reza e
outras formas de se trabalhar com a força no outro e de si mesmo.151

Os sonhos também são fonte de imagens, formas e conhecimentos para os


Yawanawa. Não conseguimos descrições densas sobre os sonhos, mas acreditamos ser
possível utilizar a noção de “duplo” para pensar a pessoa nesta realidade, conforme o
faz Lagrou a partir da contribuição de Jean Pierre Vernant (1990). Esta noção de
“duplo” é útil por diferenciar a pessoa em distintos planos da realidade. Ainda que não
esteja sendo carregada pela materialidade do corpo, as intencionalidades, a força da
intuição e a consciência da pessoa são, de certa forma, personificadas nas realidades
virtuais. É justamente o “duplo” quem dialoga com os espíritos e ele é, logicamente,
alvo de suas ações.

151
Ver Pérez Gil, 2001.

116
O ideal de alimentação durante a dieta é que se coma pouco antes de dormir,
pois tanto o excesso quanto o contrário são prejudiciais aos sonhos. Neste horário deve-
se comer coisas leves que não necessariamente saciem toda a fome, pois isso ajuda os
sonhos a se desenvolver. Na concepção Yawanawa existem três tipos de sonhos. O
sonho das 19h às 22h seria um sonho “normal”, sem aprendizados, mensagens ou
reflexões. O das 22h à 1h trata de aprendizados oriundos do mundo dos Yuxi. São os
sonhos da pajelança propriamente ditos, no qual o diálogo com os Yuxi e com os mortos
pode ocorrer. O sonho a partir de 1h é de um tipo que trata dos aprendizados ocorridos
durante a dieta e o cotidiano da pessoa. Se o sonho é ruim, trata dos erros cometidos que
devem ser corrigidos. Se for um sonho bom, trata dos acertos que devem ser
continuados.

Baseando-se nestes sonhos a pessoa irá planejar o que fazer, pensando sobre
seus erros e acertos, o que fará no futuro e o que fez de errado no passado para que
possa fazer melhor. Esse é o tempo em que se estuda durante a dieta. O ideal é acordar
aproximadamente às 4h para fazer esta reflexão junto ao uso do Nawe e, então, assim
que o sol raiar, tomar banho, comer e seguir o dia conforme o que fora planejado.
Todavia, a usabilidade mais importante dos sonhos, em seu aspecto mais pragmático, é
a descoberta das causas de doenças e seu tratamento. A cura pelos sonhos realizada pelo
Shineya é usada somente para doenças espirituais, para pessoas que tiveram sonhos
muito ruins, que acordaram cansadas, “empanemadas” e/ou doentes. Assim, este sonho
precisa ser contado ao Shineya para ser interpretado e a cura efetuada. Quando sonha-se
coisas ruins o Shineya segue o espírito da pessoa através deste sonho e, ao resgatá-lo,
efetua a cura. Obviamente, é preciso ter muitos saberes e décadas de experiência para
dominar isso, não é à toa que entre os Yawanawa só existem dois Shineya (Tata e
Yawa) reconhecidos por todos.

Como foi bem observado por Laura Gil (1999), os processos de cura Yawanawa
consideram uma multiplicidade de variantes para realizar um diagnóstico e assim se
iniciar um tratamento ideal. Determinadas doenças comuns só serão tratadas entre os
Yawanawa pelos seus especialistas. As doenças são estudadas para averiguar se podem
ser tratadas com a medicina do outro ou se se trata de alguma doença já conhecida pelos

117
Yawanawa152 e se possuem seu próprio tratamento. Os sonhos são a principal fonte para
descobrir a origem de uma doença. Considera-se que o “eu” do sonho seja uma
metáfora, ou um “duplo” do espírito da pessoa, uma vez que foram categóricos em dizer
que o espírito da pessoa não sai do seu corpo nestas viagens.

3.3 UMA ETNOGRAFIA DO CORPO


Até o momento, acreditamos ter sido possível elucidar ao leitor toda uma
dimensão sobre as potencialidades das dietas. Não pudemos nos adentrar mais
especificamente, dentre tantos motivos, devido às limitações da pesquisa de campo.
Porém, é importante salientar que até o momento podemos traçar uma linha de
entendimento que se inicia nas imagens que mais marcam a identidade Yawanawa e
termina na realização de dietas que envolvem o isolamento, o aprofundamento pessoal
na espiritualidade e as boas relações com os Yuxi. Este percurso é marcado pelas
transformações corporais que são necessárias para a contínua criação de corpos
Yawanawa “agentivos”153. Estes são dotados da força dos Yuxi e, assim, capazes de
com eles realizarem trocas, e com estas forças agir sob o mundo em toda a sua
dimensão sociocosmológica.

Desta forma, aquela pesquisa que se propunha estudar “arte” acabou, ao


debruçar-se sobre ela, estudando o “corpo”, na mesma linha teórica de outros estudos
sobre arte ameríndia como os de Vidal (1992), Overing (1991), Müller (1992), Lagrou
(1991, 1998, 2007, 2009), Barcelos Neto (2004) e Van Velthem (2005), que mostraram
todos como é impossível falar de arte no mundo indígena sem falar da fabricação ritual
e cotidiana do corpo. Não à toa, o corpo atravessa todas as relações Yawanawa. Se não
for uma relação de distinção entre “espécies”, como dos animais ou Yuxi, é uma que
disserta sobre marcações corporais. O que se come, o que se bebe, o que possui poder, o
que é útil espiritualmente, o que pensam as substâncias corporais, dentre tantas outras
coisas que são categorizadas pelo ponto de vista Yawanawa, são consideradas de
determinada forma de acordo com a relação entre o meio e o corpo yawanawa que são
construídos na construção de sua visibilidade e alianças.

152
A diarreia, ainda que dita em alguns cantos que foi trazida pelo branco, pode ser tratada com o
Racuche (quando se trata de limpezas durante as cerimônias) e a dieta da Caiçuma, além dos métodos
aplicados às causas fisiológicas.
153
No capítulo seguinte, buscaremos realizar uma tradução em termos antropológicos de algumas noções
usadas pelos Yawanawa. Veremos que a ideia de força e agência (Gell, 1998) aparentam ser análogas,
naquilo que concerne a capacidade de determinada coisa em agir sobre outra.

118
4 OS YAWANAWA E A ANTROPOLOGIA
Neste último capítulo, buscamos trazer ao leitor uma confluência de dados entre
as etnografias existentes sobre os Yawanawa que nos permita complementar o que os
distintos autores já trouxeram à antropologia e problematizar algumas implicações tendo
como pano de fundo o escopo desta pesquisa. Entendemos que o contexto sociológico
no qual nossa questão está inserida compreende a presença e atuação de diversos
agentes sociais e culturais que estabelecem relações de reciprocidade em um contínuo
processo de atualização e definição do ponto de vista Yawanawa. O contexto ao qual
nos referimos tem como base as práticas espirituais e a retomada de costumes ditos
tradicionais. A antropóloga Aline Ferreira estudou mais especificamente a presença dos
Yawanawa em contexto urbano, que integra as redes de relações dos Yawanawa. A
autora denomina esta rede como “Yawa-Nawa”, e a define da seguinte forma:

“A rede yawa-nawa é yawa, é nawa, mas não é yawa nem nawa,


é yawa-nawa: é co-criada mutuamente. Portanto, a noção de
rede yawa-nawa visa evidenciar - colocando em suspensão - a
forma usualmente concebida de que os indígenas se inserem no
mercado... ou de que eles dialogam com o neo-xamanismo.
Trata-se de considerar que mais do que se inserirem em algo
previamente concebido – por exemplo: o ‘mercado global do
xamanismo’ ou da ‘cultura’ – a participação ativa de indígenas
nesse novo campo xamânico cria modalidades específicas a esta
interação: a rede yawa-nawa é criada na ação, no diálogo”
(Oliveira, 2012: 40-41).
Neste contexto puderam perceber, tanto Oliveira quanto outros antropólogos que
estudaram o fenômeno do neo-xamanismo e/ou efeitos da presença de brancos nas
cerimônias de pajelança (Cavalcanti, 2011; Colpron 2005; Losonczy, 2010; Coutinho,
2011), o quanto as definições dadas pelo público urbano àquelas coisas do contexto
ameríndio destoam das próprias definições nativas, ao menos sob o prisma de uma
observação participante. Como exemplo temos as definições humanistas e pacifistas
sobre a atuação do pajé e a reinterpretação de mitos e costumes conforme um campo de
pensamento construído na pós-modernidade ocidental (Losonczy, 2012; Coutinho,
2011). Tanto na nossa experiência de campo, quanto durante nossa participação em
eventos de pajelança Yawanawa e/ou neo-xamânicos que ocorreram em centros
urbanos, as definições prévias, que dissertam também sobre a importância e forma de
ação da pajelança dos praticantes demanda dos Yawanawa o uso de determinados

119
termos para poder aproximar as noções nativas e as ocidentais. O que pudemos perceber
de mais imediato é que esta demanda por ressignificação de certos termos e/ou noções
influencia também o seu uso na aldeia.

Entendemos que quando nos falam sobre o “pajé”, ainda que o antropólogo
possa estar interessado nas definições na língua nativa, o modo como nos apresentam a
noção é o mesmo, ou no mínimo muito aproximado, como o fazem para todos os
“nawa”. Tata era comumente referenciado como um Pajé entre os Yawanawa.
Instigava-nos ouvir de Tata que ele mesmo não seria Pajé, porque para tal deveria
“tomar tabaco”. Aqui, ele está falando do Nawene, que hoje não é mais feito pois se
perdeu a espécie de tabaco (a substituição pelo fumo de rolo não é uma opção, como é
para o rapé). Assim, como também observara Gil (1999: 115), o termo Pajé seria
reservado ao Tsimuya (que possui o amargo – Tsimu) e ao Yuvehu (que toma Nawene).
A conclusão a que chegamos é que esta denominação é a mesma entre nós e a referida
antropóloga. O que nos resta a explorar são os usos urbanos do termo pajé que vem
sendo associado aos Shineya e, inclusive, aos Shuinti (Hushahu, Matsini e demais que
fizeram o Muka e a dieta da cobra). Usados frequentemente pelos Nawa ao se referir aos
indígenas que possuem controle sobre forças espirituais, o termo passa a ser aplicado a
pessoas que não seriam Pajé na aldeia, mas somente nestas zonas de contato. Nossa
hipótese considera que essa ocorrência se dê como forma de classificação usada pelos
Yawanawa para ensinarem, de forma simplificada e figurativa, o campo de atuação do
qual estes estudantes de pajelança fazem parte. Assim, recorrem a um conceito criado
no contexto interétnico brasileiro (pois pajé é uma palavra de origem tupi) que, por se
voltar a pessoas não-indígenas envolvidas com a pajelança, simplifica e as vezes nem
considera os sistemas de classificações nativos.

Aparentemente, a pajelança Yawanawa dita o caminho a percorrer na criação de


alianças extra-aldeãs e na atualização da cultura. Não somente um caminho, mas
também a sua própria finalidade. Eventos de cunho etnoturístico como o Mariri
Yawanawa têm como “atração” principal as cerimônias com Uni e Rapé. As alianças ali
são “celebradas”, “fortalecidas” e “expandidas”, conforme linguajar cotidiano, tal como
já ocorria desde 1997 entre os Yawanawa de Nova Esperança (Oliveira, 2012: 93). As
festas e, em menor escala, as cerimônias realizadas nas cidades, nos aparentam
movimentarem a atualização da cultura. Vale notar, no entanto, que não se trata de um

120
fenômeno novo, mas sim de algo também presente nos Mariri realizados antes do
contato e voltados a receber Yura154 (Naveira, 1999).

4.1 O QUE FORA DITO


Todo esse movimento de “resgate cultural” promovido pelos Yawanawa gerou
eventos que expressam o resultado da captura e controle da alteridade realizada durante
as dietas. Porém, queremos tratar neste momento de um aspecto invisível e ideológico.
A participação de Hushahu e Putany na dieta do Muka marca um importante momento
das transformações aqui trazidas, especificamente no âmbito da Pajelança, que
iniciaram no início da década de 1990. O período desde a época da Eco92 até a
realização do primeiro Mariri em Nova Esperança (sem Nawa) foi marcado pelo estudo
de costumes dos antigos e a retomada de modos de produção de alimentos,
infraestrutura e de “ser e estar no mundo” tal como os Yawanawa sempre teriam feito.
A primeira festa foi realizada para celebrar diversas conquistas obtidas nos nove anos
desde a Eco92. Fora a primeira vez que muitas gerações de Yawanawa se despiram,
improvisaram os Shapanati155 e os Kene com jenipapo, pintaram todo o corpo com
urucum, dançaram e cantaram em roda. Desde então a festa passou a ser projetada para
o público Nawa e é feita para mostrar ao branco, tal como teriam mostrado para si
mesmos na primeira festa, a cultura Yawanawa.

Logo após a primeira festa, Hushahu e Putany entraram para a dieta do Muka e
isso gerou polêmicas por não ser da “tradição Yawanawa”. No meio de todo esse
momento de celebração e efervescência de trabalhos e projetos a serem realizados, as
irmãs passam a ser a primeira geração de mulheres (que se tem registro) a se tornarem
lideranças espirituais entre os Yawanawa. Em 2008, Hushahu se muda para o Mutum
que, ainda que seja conhecido pela sua fidelidade à “tradição”, passou ao longo do
tempo a ser conhecido pelo público Yawanawa devido ao papel das mulheres nas
práticas espirituais, artísticas e políticas no contexto da aldeia. No Mutum, a liderança
local é Mariasinha que, quando ausente, é substituída por Júlia156). Matsini também é
uma liderança de grande importância e, além de ser responsável pelos assuntos
espirituais da aldeia (consultando Tata), costuma organizar e gerenciar muitas
atividades coletivas como pescas, idas à cidade, construção de casas e espaços coletivos

154
Índios não-Yawanawa.
155
Saia de palha
156
Responsável pela escola e integrante do projeto de documentação de línguas executado pelo Museu do
índio e coordenado por Bruna Franchetto.

121
e etc. Acreditamos que esta performatividade da mulher entre os Yawanawa se dá em
decorrência de movimentos internos aos Yawanawa em diálogo político/cultural/social
com os Nawa. Com boas relações com o governo e organizações privadas, nacionais e
internacionais, podemos sustentar a ideia de que não fosse este equilíbrio entre
concepções nativas e não-nativas muitas coisas que hoje são reconhecidas pelos
Yawanawa como conquista talvez não tivessem contribuído com tal “resgate cultural”.
Alguns fatos sustentam este diálogo: a secretária de Políticas para as Mulheres
representou o governador do Acre no Mariri do qual participamos; Hushahu e sua filha
participam de um circuito neo-xamânico voltado para as mulheres; o governo criou a
Cooperativa das Mulheres Yawanawa, o destaque aos cantos femininos e as habilidades
das mulheres com o campo artístico e criativo complementam a importância e a criação
deste tipo de aliança justamente por “valorizarem a mulher”. Aqui a questão da mulher
não é somente um tema, mas um marcador diacrítico.

Oliveira não se equivoca sobre a aparente menor propensão dos Yawanawa do


Mutum a divulgarem a possibilidade de um Nawa fazer as dietas (Oliveira, 2012). As
atividades dos Yawanawa de Nova Esperança são muito mais amplas e contam com
investimento muito maior. Uma das diferenças mais marcantes entre as duas aldeias é
que em Nova Esperança foram introduzidos diversos elementos cerimoniais e costumes
vindos do mundo não-indígena. Em campo, nos fora contado sobre a cantoria de Hinos
do Santo Daime, invocação de entidades caboclas e o uso de vestimenta branca durante
algumas cerimônias na aldeia e no trabalho de Oliveira vemos que costumes oriundos
da linha neo-xamânica também estão presentes, principalmente em cerimônias nas
cidades. Na verdade, a diferença que achamos ser mais fundante entre a aldeia Nova
Esperança e Mutum é que os primeiros estão mais abertos às transformações provocadas
pelas alianças do que os segundos. Ambos estão sujeitos à transformabilidade, porém,
como é o caso do Mutum, o controle mais enrijecido da entrada de elementos de fora do
universo indígena yawanawa torna-se um valor moral diacrítico neste contexto
interétnico, pois transformar-se demais acabaria tornado a pessoa (ou o grupo) uma
outra coisa que não é Yawanawa. Ainda que necessitamos complementar o
entendimento desta relação entre Nova Esperança e Mutum, acreditamos que a
interpretação dos fatos por parte dos habitantes de Mutum chega a uma conclusão
interessante, considerando que em Nova Esperança a comunidade é mais aberta a
receber Nawa mas, ainda assim, restringe o acesso aos saberes da Pajelança a um grupo

122
restrito de Nawa. No Mutum, aparenta que, uma vez que a pessoa tenha sido aceita para
fazer a dieta, teria o mesmo acesso às informações do que qualquer Yawanawa que
esteja fazendo a dieta. Para nós ficam claras diversas variações, que envolvem o tempo
que se conhece o Nawa, o tipo de parceria que vem desenvolvendo, a familiaridade com
a Ayahuasca e Rapé, companheirismo no cotidiano, enfim, tudo aquilo que é importante
para se ter confiança em uma pessoa. Obviamente o acesso dos Yawanawa, ou de Nawa
que há muitos anos conhecem os Yawanawa do Mutum, é muito facilitado pelo tempo.
Os Yawanawa estão abertos a amizades e alianças, mas antes a pessoa deve mostrar que
está ali para isso.

Tendo a pajelança enquanto pano de fundo da ordem dos acontecimentos, os


Yawanawa possuem em todos os campos de sua cultura o diálogo e troca entre
técnicas/saberes da pajelança com outros. Tal como Carid fala em sua dissertação
(1999: 77), entre os Yawanawa ocorre de os papéis de liderança política e espiritual se
centralizarem em uma pessoa. Não que dependam uma da outra, mas suas qualidades
associadas são úteis na criação de relações com pessoas, grupos e entidades externos157.
As relações criadas entre instituições, que ocorrem por meio das associações que são
geridas, usualmente, por aqueles que são considerados chefe estão mais voltadas à
execução de projetos e atividades dentro das aldeias em parceria com entidades urbanas.
Já aqueles reconhecidos como líderes espirituais, estão à frente das relações com a
alteridade criadas na rede Yawa-Nawa que ocorrem pelas práticas de pajelança mundo a
fora. De fato, tornar-se especialista em determinada coisa não implica na
impossibilidade de aprender técnicas de outras especialidades. Em suma, ser
determinado especialista aparenta estar mais associado ao reconhecimento coletivo das
práticas da pessoa do que aos processos nos quais ele passou em si (Naveira, 1999: 81;
Gil, 1999: PP; Oliveira, 2012). Ainda assim, ao menos na aldeia do Mutum, não
aparenta ser necessário demonstrar a capacidade de adoecer alguém para que os
resultados de sua dieta e seus estudos na pajelança sejam reconhecidos. Todavia, a
necessidade de aprender tais técnicas já fora considerada necessária no contexto de auto
defesa. Porém, pelo que me fora contado, a ausência de Tsimuya e de inimigos pajé de
outros povos torna não mais imprescindível o aprendizado deste tipo de técnica para o
reconhecimento coletivo do especialista em questão.

157
Ainda assim, inclusive observado por Naveira (1999: 79), aparenta ser mais útil ao chefe político obter
os saberes da pajelança do que o contrário.

123
Ainda que o papel daqueles considerados Pajé seja central em todo um sistema
de relações com a alteridade, as técnicas e rituais de pajelança não limitam a existência
ou não da Pajelança em si - como observado por Lagrou no caso Kaxinawa em sua tese
e por Gil na sua dissertação sobre os Yawanawa. Aqui, tratamos de uma realidade
sociocosmológica. “Nesse mundo, o corpo, a identidade e o problema da alteridade não
são questões categoriais ou classificatórias, mas questões relacionais” (Lagrou,
2007:29). O modo adequado de se estar em relações com a alteridade, seja ela advinda
do mundo visível ou d invisível, opera mais como um sistema coletivo e prescritivo
acerca destas relações do que de um modo representativo de estar para o mundo. A
prática da pajelança, as dietas, os aspirantes a Pajé e aqueles assim considerados são
atores capazes de lidar com este sistema de relações. É quase como traduzirmos
pajelança ou xamanismo como a concepção antropológica de “sociocosmologia”
(Viveiros de Castro, 1996: 124). O mundo, em si, é anterior a qualquer pessoa e é ele
quem prescreve o modo como as coisas funcionam. Os estudos da Pajelança (e também
os acadêmicos e escolares) são considerados pelos Yawanawa como entendimentos da
realidade circundante. Se determinado saber ou técnica foi esquecido, a sua aplicação e
o estudo criarão outros saberes pois, afinal de contas, o mundo é permeado de entidades
dotadas de conhecimento e capacidades de ensino. Importante considerar que esta
sociocosmologia não aparenta corresponder somente ao que é visto ou não. Em suma,
ainda que possamos ver os produtos da floresta, sua influência no organismo e
capacidades agentivas das pessoas corresponde a um saber que disserta sobre esta
realidade invisível. Porém, não se trata de um “outro lado da realidade”, mas sim de
outros seres que também habitam este “entre-mundos” da realidade visível e da
invisível. Assim, a esfera da Pajelança Yawanawa não é acessada, inclusive em suas
técnicas, somente em estados alterados de consciência (Gil, 1999: 52). Seria o caso
somente se o considerarmos em um espectro extremamente amplo. Consideramos desta
forma porque o encontro com animais158, as coincidências climáticas e momentos do
cotidiano se refletem no mundo invisível, e vise versa. Sim, a Pajelança é uma forma de
se relacionar com a realidade invisível, mas ela também é percebida no mundo visível,
mas somente por aqueles que desenvolveram a sua consciência e estudos para esta
compreensão. Como explicam, mesmo sem Uni pode-se ver os espíritos.

158
Matsini contou de um episódio onde, na janela de sua casa, fora beijada por um beija-flor. O evento
fora interpretado como uma confirmação da conexão de Matsini com as forças da natureza.

124
4.2 O QUE PODEMOS DIZER
Ainda que reconheçamos que as categorias rauti e sharai até aqui trazidas estão
longe de serem entendidas em profundidade, o contexto no qual elas se inserem é o da
relação, que por si só abarca também o nawa (seja antropólogo(a) ou não). Ao
reconhecermos, portanto, que estas fazem parte da “cultura”, observar/estar/pensar o
domínio da estética entre os Yawanawa é frutífero para compreendê-los, ainda que em
pequena escala, no que diz respeito ao modo como se relacionam ao se fazerem vistos.

Acreditamos ser possível afirmar, a partir da fala de determinadas lideranças


yawanawa, que existe para eles uma diferença entre o que simplesmente é bonito e
aquilo que, além de belo, traz força/saber à pessoa. Usualmente, aparentava que todo o
discurso do belo fazia referência a um modo específico e não universal de ser, que
dialogaria com o que há de mais íntimo e particular aos yawanawa. Rauti trata de um
belo tradicional, que coloca o embelezamento corporal como uma característica do
corpo yawanawa. Enquanto que, qualquer coisa pode ser sharai, pois nada deixa de ser
belo por não ser yawanawa. Desejamos ter mostrado até o momento a importância das
transformações corporais e controle das forças agentivas por meio dos kene, cantos e
controle de entrada e saída de substâncias.

Ao considerarmos estas ferramentas de controle e direcionamento das


transformações, que o ambiente e aqueles com quem se relacionam impõem ao corpo,
não seria impossível considerá-los enquanto movimentadores de elementos diacríticos.
Estas ferramentas compõem “camadas” formadas por códices culturais que têm o corpo
enquanto suporte. Todavia, são estes mesmos elementos que moldam o corpo que
servirá de suporte. Tudo indica que estes dinamizadores diacríticos são mediadores,
dentre outras formas como a alimentação, construção de parentesco etc., entre a
alteridade/ “cultura” e a tradição/Cultura.

Se assim considerarmos, não seria absurdo indicar que os efeitos corporais e


relacionais (e assim suas implicações cosmológicas) gerados pelo contato com a
alteridade são uma consequência preciosa e extremamente perigosa devido ao risco do
tornar-se um outro não-yawanawa. Portanto, acreditamos que seja possível entender que
este determinado estado de saúde/corpo (não biomédico) é associado a um modo de ser
no mundo que, juntos, definem e marcam a identidade yawanawa. Desta forma, talvez
este corpo e modo de ser também possam ser expressos em termos estéticos,
compreendidos aqui como rauti. As imagens e o campo estético são inerentes a um

125
modo relacional e dinamizam seu movimento de forma cíclico, sempre criando novos
corpos agentivos e criadores de agências.

Por diversos momentos desta pesquisa, salientamos o papel da noção Yawanawa


de “tradição” enquanto um centro comum de todas as suas ações. Pudemos observar que
os movimentos que circundam esta noção de “tradição” referem-se, muitas vezes, a
modelos e saberes estruturais. Em um primeiro contato com os Yawanawa através de
quadros pintados por Hushahu, percorremos seu processo criativo que passa pelos Kene,
mirações e sonhos. Nesta pesquisa, que inicialmente se propôs a investigar as atividades
artísticas dos Yawanawa em busca de traços que dissertassem sobre seus modos de ser,
acabamos percebendo que todo processo de construção de imagens relevante para a
ação xamânica ocorre em conjunto a processos de construção corporal.

Diversos antropólogos nos trazem relatos e análises de processos deste tipo entre
outros povos Pano. Resguardos que devem ser feitos durante determinados processos da
pajelança são parte da cultura Marubo, Kaxinawa, Katukina e Kulina (Cesarino, 2011;
Lagrou, 1998, 2007; Coffaci de Lima, 2000; Pollock, 1992). Na literatura etnológica,
tais processos de transformações corporais são entendidos como consequências das
relações de “consubstancialidade” com outros seres. Neste contexto, as pessoas trocam
substâncias ao se relacionarem e, ao passo que se tornam mais próximas, mais seus
corpos se assemelham. Esta chave de compreensão da etnologia deve muito a teoria
perspectivista, desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima e que
pode ser aplicada a diversos outros contextos amazônicos.

Especificamente sobre arte e povos Pano, Els Lagrou realiza diversas análises
sobre como os movimentos gerados pela sedução do olhar são estruturantes no processo
criativo Kaxinawa. As imagens geradas pela Ayahuasca e o Kene ensinado por meio
dela buscam capturar o olhar do outro e assim estabelecer uma relação. Esta forma de
relação, conforme a teoria perspectivista, buscaria trocar pontos de vista com o outro.
Ver-se através do olhar do outro permite aos Kaxinawa, e também aos Yawanawa,
aprender com ele e entender como ele os vê. É para dotar-se deste conhecimento que
tanto os Kaxi quanto os Yawa entram em relação com o outro e trocam. Percebemos ao
longo desta pesquisa que se em um momento de isolamento, consumindo-se substâncias
de poder e estando em relação com yuxi e forças, ao passo que se aprofundam as
relações com a alteridade, mudam-se os objetivos da troca. Em um contexto de relações
com o branco, troca-se “cultura” mas com os yuxi trocam-se substâncias.

126
Ao longo da exposição da pesquisa salientamos algumas diferenças entre os
significados dos termos “cultura” e “tradição” para muitos dos Yawanawa. O primeiro
estaria associado a algo em constante mudança e o outro a algo permanente. Para fins de
pesquisa, consideramos frutífero analisar estas duas categorias por meio das
contribuições de Manuela Carneiro da Cunha. Para a autora, a concepção de Cultura é
vista em termos de continuidade, enquanto a “cultura” é sua projeção consciente frente
ao olhar do branco. A “cultura”, enquanto uma representação da Cultura, aparenta
compor todos os jogos relacionais e por meio deles gera movimentos na Cultura.
Todavia, se para os Yawanawa a tradição está para o constante assim como a cultura
está para o inconstante, não encontramos esta mesma analogia no trabalho de Carneiro
da Cunha. Para a autora, “cultura” seria cultura para os Yawanawa, enquanto Cultura
seria tradição. Entretanto, e isso não demonstra nenhum descompasso em relação à
concepção de Cunha, a Cultura é uma constante relacional e produtora de diferenciações
e transformações, e não um englobamento fixo de elementos diacríticos.

Dentre as conversas que tivemos no Mutum, muitos dos Yawanawa faziam


claras referências a coisas que carregavam poder e aquelas que não carregavam.
Entretanto, ambas podem ser Yawanawa, pois possuir força não interfere nisso – aquilo
que é mais próximo e/ou parte do domínio da pajelança não são compartilhados com
todos da aldeia de forma irrestrita. Os desenhos, os cantos, as cerimônias e as dietas
que passaram por diversos movimentos de transformação geraram certas variações
naquilo que é tido como tradicional. Como dito anteriormente, este campo do
tradicional opera como uma “fonte” a qual acessam quando querem entender alguma
situação ligada àquilo que seria mais íntimo e privado dos Yawanawa. Nunca
poderíamos traçar conclusões a respeito disso, mas identificar um caminho é possível.

Ainda que os cantos, os desenhos, as cerimônias e as dietas sejam os principais


marcadores da identidade yawanawa para o exterior, e assim entendíveis sob a noção de
“cultura”, estes só são considerados, em contexto aldeão, como parte dos Yawanawa se
forem efetivos naquilo que se propõem.

O que diferencia um elemento que tem força de um que não tem é a capacidade
do primeiro de provocar os efeitos esperados na sua concepção. Todavia, é importante
salientar que estes objetivos finais das relações e coisas produzidas remontam à
sociocosmologia yawanawa. O conceito de “agência”, aplicado à antropologia por Gell
(1998) e cunhado no contexto amazônico por Lagrou em sua tese sobre a arte kaxinawa,

127
aparenta traduzir com muito sucesso esta ideia de força usada pelos yawanawa.
Tratando-se do campo da pajelança, acreditamos ser possível que a capacidade de
agência seja fundamental para que um objeto ou uma atividade seja estruturante para
que seu poder e eficiência sejam considerados. Todavia, o conceito de agência é
estritamente relacional, enquanto a ideia de força nem sempre o é. As capacidades de
uma determinada planta, por exemplo, não dependem da relação na qual ela se encontra
com humanos. Cabe aos humanos relacionarem-se com a realidade circundante e dali
retirarem o saber que lhes permita usar esta força específica. Já a “agência”, aqui,
aparenta depender do contexto relacional no qual se insere. Por conta disso, estamos
inclinados a considerar a “agência” como sendo o elemento gerado pelo sucesso de uma
relação possibilitando assim o alcance de seus objetivos. Assim sendo, a “agência” entre
os yawanawa aparenta ser latente ao objeto ou corpo em questão, e se manifesta quando
em relação, seja com espíritos, com o meio ambiente ou com organismos do governo.

Ainda que o que seja apresentado enquanto “cultura” para determinado campo
relacional exterior à aldeia (como nas cerimônias no Santo Daime, no exterior ou
performatisadas em eventos) possa não ter a mesma “distância cultural” que outros
campos da alteridade. Em cada local diferente em que os Yawanawa estejam, seja
realizando cerimônias, seja conhecendo algum local ou participando de atividades com
outros povos ou até mesmo trabalhando e morando na cidade, o que seria considerado
propriamente yawanawa, conforme a perspectiva que nos foi mostrada em campo,
impossibilita que qualquer tipo de relação entre “Cultura” e Cultura yawanawa
configure uma identidade e um poder yawanawa. Conforme o que me foi apresentado
enquanto marcador yawanawa no Mutum, existe um limite de inclusão de elementos da
alteridade ao campo Yawanawa sem que se perca, primeiro, a identidade e, segundo, a
força. Isso permite que diversas ações (como apresentações, cerimônias etc.) realizadas
no exterior não deixem de ser propriamente yawanawa. A preocupação de muitos
yawanawa é que estes eventos venham a ser de maior interesse das gerações mais
jovens (devido à possibilidade de ganhar dinheiro com isso) do que as ações que de fato
envolvem poderes e forças. A preocupação ocorre, principalmente, porque quanto maior
for a distância entre a “cultura” e a Cultura, menor será a continuidade e eficiência dos
saberes, técnicas e modos que tenham como raiz o saber da Cultura.

Para Carneiro da Cunha, o campo relacional no qual os indígenas devem realizar


traduções e convergências com a noção de cultura ocidental acabaria sendo imposto aos

128
mesmos. Os povos indígenas seriam pragmáticos no uso da ideia de "cultura"
comunicando-se e relacionando-se com a lógica metropolitana que, quando em relação
com esta alteridade, que inclui esta lógica metropolitana em um processo de captura,
digestão e transformação e recorrente no contexto amazônico. Diversos povos indígenas
como os Katukina, Huni-Kuin, Matsés, Marubo, Baniwa, Araweté (Coffaci de Lima,
2000; Lagrou, 1998; Cesarino, 2008; Viveiros de Castro, 1986) dentre tantos outros, são
exemplos do contexto amazônico no qual o conhecimento está diretamente associado às
experiências vivenciadas no surgimento deste saber, e não a fontes de informação. São
estas experiências e modos de se perceber a realidade que constituem o saber. Falando
de formas de percepção, Carneiro da Cunha corrobora com Viveiros de Castro na
afirmativa de que, no contexto amazônico, diferentes mundos coexistem. A realidade
experienciada é organizada conforme a cultura em questão, que é compartilhada pelos
diferentes seres. É justamente a natureza que é idiossincrática. "Os referentes da
percepção são relativos à espécie, mas sua organização - a cultura - é universal"
(Carneiro da Cunha 2009:367). Assim, fazem parte da percepção o equívoco e a
contradição, ao passo que é fonte imprescindível de conhecimento.

A apropriação do termo "cultura" (tal como “arte”, “miração” e “força”) por


parte dos indígenas, indica um determinado contexto. Sinalizam o registro de
conhecimento para a sua tradução. Não se trata de uma fidelidade ao registro original do
termo emprestado, mas sim a garantia de um entendimento de determinado código de
saber. Usam-se tais termos pelo que evocam. Possuem um aspecto metassemântico,
significam e possibilitam a tradução. Além disso, salientam um contexto interétnico. "E
já que cultura fala sobre cultura, como vimos, cultura é simplesmente o termo de
empréstimo nativo para aquilo que chamo de "cultura"” (Carneiro da Cunha 2009: 371).
Conforme a autora, e aqui sustentamos o caso entre os yawanawa, a imagem ocidental
sobre os indígenas corresponderia ao sistema interétnico de representações, ainda que se
confronte com o sistema estrutural destes povos.

Para a autora, estes diferentes sistemas, interétnico e estrutural, podem coexistir


relacionando-se e construindo-se mutuamente. A Cultura, nesta visão, também é
resultado de uma apropriação de elementos do domínio da "cultura". É a partir da
apropriação de características do outro que se reorganiza a cultura para mantê-la
enquanto tal. No pensamento de Cunha (1998), as traduções dos elementos diacríticos
são uma tentativa fracassada de mediação, são, por fim, tentativas de remanejar. Para

129
Carneiro da Cunha, o que o pajé (tradutor por excelência) busca são as sínteses
originais, novos códigos que multiplicam as relações e os sentidos de modo a construir
um mundo.

É preciso não esquecer no entanto que a tradução pode representar uma tentativa
fracassada de mediação, e que, portanto, este se insere no campo do equívoco Losonczy,
2010b; Coutinho, 2011; Viveiros de Castro, 2004). Aqui, operamos com uma noção de
concepção limitada por uma temporalidade ontológica, que classifica o outro a partir do
equívoco acerca daqueles com quem mal se comunica. O equívoco pode ser a resposta
dada à instância do "frame cultural", ou seja, a resposta da síntese gerada pela mediação
entre cultura e “cultura”. Assim, o equívoco assume uma forma epistemológica, uma
vez que a cosmologia ameríndia já prevê a presença da alteridade em sua estrutura
cosmológica/ontológica (Vilaça, 2005). Desta forma, aparenta existir uma grande
diferenciação entre o não-entendimento e a não-conceitualização. No caso ameríndio, o
equívoco não denota uma ignorância sobre o outro, mas uma distinção conceitual sobre
a realidade para um e para outro, como por exemplo para o nativo e para os não-
indígenas simpatizantes que carregam suas próprias questões para a experiência.

Dentro desta análise das interfaces entre Cultura e “cultura”, identificamos


também nos trabalhos de Langdon (1992) a noção de performance e sua usabilidade
para este caso de estudo. Para a referida autora, os rituais são eventos que reestabelecem
uma determinada ordem em ameaça, enquanto performances, e aqui achamos ser
possível considerar que estas dinamizam elementos do campo da "cultura", constroem
sentido eliminando a possibilidade de existência de uma ordem intrínseca ao ser,
construindo uma nova ordem social capaz de compartilhar. É justamente devido à
manipulação intencional de diferentes camadas de determinada forma/conteúdo, que
diversos povos ameríndios capturam a agência da alteridade em meio a relações de
reciprocidade.

Este trabalho trata - e aqui tomamos o termo de empréstimo - da performance


dos elementos diacríticos nas interfaces entre Cultura e “cultura”. Conseguimos aqui
oferecer uma linha de entendimento na qual os distintos objetos hoje produzidos com a
influência do contato são objetos muito frutíferos para compreendermos os movimentos
de atualização e transformação da cultura. O objetivo, tal como o das imagens, é fazer
ver/observar um modo de ser e perceber as relações entre forma e conteúdo das
imagens. O contínuo processo de reconstrução do imaginário social é recorrente no

130
contexto amazônico e se projeta nas novas formas de se fazer ser visto. Na relação com
o mundo ocidental são considerados, em muitos casos já observados (Losonczy &
Mesturini Cappo, 2010b: 165), enquanto detentores de qualidades ancestrais e
atemporais.

Na produção antropológica de Anne-Marie Losonczy conseguimos encontrar


exemplos do uso da desta ideia por trás da noção de performance naquilo que se refere
aos seus resultados. Preocupada com as novas formas pelas quais o xamanismo tem sido
apresentado quando em contato com o contexto urbano, a antropóloga considera que as
práticas da pajelança possuem distintas configurações que partem de uma mesma
matriz. Aquela do contexto nativo da aldeia e aquela do contexto urbano/interétnico.
Desconstruir estas articulações e cerimônias realizadas em contexto urbano implica,
como considera Losonczy e como observado entre os yawanawa, o uso de técnicas de
mediação entre o guia cerimonial e os cerimonialistas que ocorrem por determinadas
sequências explicativas. O entendimento mútuo não é necessário, bastando que a
qualidade performática do equívoco ainda seja eficiente para aquilo que os guias
cerimoniais e cerimonialistas objetivam. Idosos são acompanhados por jovens, aqueles
que não conhecem a cidade são ajudados por quem a conhece. Pessoas que realizaram o
Muka ou tiveram uma vivência longa com a Pajelança yawanawa são mediadores por
excelência, e isso pudemos observar nas breves incursões em cerimônias urbanas que
realizamos durante esta pesquisa e pelo que vinha sendo comentado em campo, tal
como prevíamos ao considerarmos os estudos de Losonczy, Cavalcante e Ferreira.

O entendimento dos significados das formas, cores e combinações não é de


domínio público e demandam a mediação de um guia cerimonial. É justamente no
encontro com o desconhecido acompanhado pela tradução do mediador que os kene e os
saiti conseguem surtir efeitos em seu suporte (corpo). Entretanto, esta eficácia varia
conforme a distância entre a "cultura" e a Cultura, uma vez que o acesso à força, ou,
agência, depende de um conhecimento mais aprofundado do ponto de vista yawanawa.
O que ocorrem são traduções dos significados, tanto dos kene e saiti quanto das razões
da estrutura ritual, por meio de sinônimos, polissemia e indefinições. Estes mecanismos
seriam, conforme Losonczy, a característica do discurso que garante a eficácia do ritual.
Aqui compreendemos que esta noção aproxima-se da noção de equívoco, uma vez que
ela também é diacrítica e construtiva, fundamental para comunicar o si e o outro.

131
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo de todas as pesquisas e análises que desenvolvemos, acreditamos ter
conseguido mostrar ao leitor diversas características da tranformabilidade da cultura
ameríndia a partir do exemplo yawanawa. Como se pôde perceber, não queríamos
realizar aqui um grande comparativo regional e nem teórico, mas sim trazer a
experiência de transformação vivenciada pelos yawanawa do Mutum (nos seus termos).
A partir dos exemplos trazidos pela experiência na aldeia, inserimos nossos dados em
um contexto relacional e de constantes transformações. As linhas teóricas aqui
analisadas nos serviram como pano de fundo de análise, pois ajudam a entender nosso
objeto de estudo como mediador por excelência entre o campo mais elementar da
cultura e os produtos da lógica relacional gerados no campo da “cultura”. Percebemos
que a figuração do grafismo, ou a tendência do uso de figurações na arte indígena
contemporânea (Lagrou, 2013; Belaunde, 2013), atende aos objetivos finais de
comunicação e, consequentemente, à captura do olhar do outro. É justamente esse
movimento, que atestamos no caso yawanawa, o responsável por tornar objetos, corpos
e imagens mediadores, pois são indubitavelmente construídos nos processos relacionais.

Desta forma, acreditamos ter contribuído com o saber antropológico com dados
e exemplos que sustentam essa abordagem teórica tão usada entre povos Pano e outros
amazônicos. O recorte teórico, que percorre desde Lévi-Strauss até Lagrou, da relação
entre natureza e cultura à relação entre grafismo e figuração, nos forneceu insumos
extremamente frutíferos para atestarmos que, de fato, o campo estético é um mediador
por excelência entre os domínios da cognição e da construção de identidades dividuais
e/ou coletivas.

Portanto, concluímos que o caso de Hushahu Yawanawa nos possibilita pensar


tais processos de transformação cultural por meio da estética, e nos evidencia que no
contexto ameríndio de fato existem trocas e relações diretas e cíclicas centrais no que
diz respeito ao processo de construção dos corpos/identidade da pessoa e/ou povo. A
ideia de frame ou enquadramento, proposto por Bateson, Lagrou e Severi para pensar
imagens e obras de arte na antropologia, aqui também é frutífera no entendimento dos
resguardos enquanto ferramentas de construção corporal. Conclui-se, portanto, que
assim como as imagens devem realizar uma conexão direta entre dois domínios da
cultura para que ela seja efetiva, o mesmo ocorre nos processos de construção corporal
e, assim, no de alianças/relações com a alteridade.

132
Concluímos aqui este estudo, e esperamos que ele possa não somente responder
a certas indagações antropológicas, teóricas e/ou etnográficas, mas também suscitar
questões para a continuidade dos estudos da arte, da cognição, dos corpos, das
identidades. Enfim, da pessoa ameríndia. Claro que existem muitas questões que
poderiam ser abordadas, mas que não foram devido ao nosso recorte etnográfico,
metodológico e teórico. Somos sinceros em considerar que a pesquisa nos trouxe mais
questões do que respostas. Assim sendo, implicamos uma continuidade futura desse
estudo para um aspecto mais amplo e sociológico, uma vez reconhecida a aplicabilidade
das noções aqui trazidas para pensar o modo de construir-se ameríndio, o modo
ocidental de construção desse ameríndio e as consequências deste encontro no que diga
respeito à construção de corpos “indiginamente” enquadrados e “adoecidos” pela
colonização.

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