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É o funcionário que não trabalha direito?

Frequentemente ouvimos reclamações diversas a respeito dos funcionários públicos, especialmente quando as
pessoas, os munícipes, desejam relatar problemas cotidianos que lhes afetam e não conseguem uma resposta ou
encaminhamento adequado para a solução do mesmo. Solicitam certos procedimentos e as respostas são muitas
vezes evasivas ou pedem para aguardar certos protocolos que ultrapassam os prazos da necessidade de solução
dos problemas.
Facilmente se procede uma reclamação geral que atinge a figura, o personagem funcionário público, sendo-lhe
colocados atributos desde a ideia de incompetência, vagabundagem, cabide de emprego. Ou seja, a ideia que
geralmente acaba dominando a narrativa do caso é aquela que impõe a responsabilidade na pessoa do funcionário
e, por extensão, em todo o funcionalismo público. Esta imagem é associada à ideia de que o funcionário não
trabalha direito por sua condição de estabilidade no emprego e o estrago está feito. Rapidamente dissemina-se
outra ideia de que o público não funciona e temos uma sequência de informações completamente falsificadas
sobre a questão da burocracia no serviço público.
Isto parece só se reforçar pelo exemplo que enfrentei dias destes. Queria relatar o caso de um incêndio criminoso
em um terreno perto de casa. Liguei na prefeitura, em departamento responsável, que não podia atender a
ocorrência em virtude do equipamento estar deslocado para outro incêndio de maiores proporções. O funcionário
me pediu para ligar em outro setor que eles poderiam ajudar a resolver o problema e até me adiantou que eles
teriam equipamento correspondente e que poderiam recusar o atendimento e o que deveria propor caso dissessem
que não lhes caberia aquela competência. Aconteceu exatamente o que me foi relatado pelo primeiro funcionário.
Todavia, o que me chamou a atenção foi a resposta sobre o encaminhamento: nenhum, ou seja, eu deveria apenas
comunicar o evento e que não me seria dado nenhuma notificação de encaminhamento do problema, nem no
momento da ligação, nem posteriormente, pois caberia ao chefe do setor qualquer tipo de possível retorno.
Fiquei com uma impressão horrível de que não adianta nada me preocupar com o problemas da cidade. Já que
ninguém resolve nada mesmo, deveria me preocupar com os meus problemas pessoais e deixar as questões
coletivas às favas! O que reforça, como já disse, a visão de que os funcionários públicos são os culpados pela não
solução dos problemas dos cidadãos, na verdade, não estão preocupados em resolver esses problemas.
Todavia, se fosse simples assim, tudo se resolveria facilmente. A questão é muito mais complexa. Trata-se de um
problema da própria lógica burocrática do Estado no capitalismo. Autores como Gramsci e Poulantzas chamaram
a atenção para o fenômeno burocracia enquanto uma questão do estado classista, ou seja, uma estrutura do estado
capitalista que reproduz as desigualdades do sistema através de suas normas, procedimentos e protocolos.
Neste sentido, meu “sentimento” apontado acima tem fundamento material. Os procedimentos que a burocracia
dirige no sistema de governo tem como efeito produzir apatia na organização popular pela noção de que não
adianta reclamar, visto que as coisas nunca mudam ou demoram muito para mudar. Ou seja, a forma como a
burocracia estatal (no caso da prefeitura) funciona leva à população ao desânimo e impotência quanto às
possibilidades de levar à resolução de seus problemas. O que não é o mesmo que dizer que o funcionário não
quer trabalhar.
A forma burocrática é uma maneira de distanciar e afastar o trabalhador das decisões sobre os recursos públicos
e da dinâmica que os serviços públicos deveriam ser executados. O próprio concurso público que é visto como
um procedimento para moralizar a vida pública, em nada contribui para aproximar população e protocolos de
operação da prefeitura. Enfim, sem uma mudança na própria ordem hierárquica que atinja o status da burocracia
de estado, não teremos uma mudança que beneficie a população. A burocracia precisa deixar de ver a si própria
como funcionaria do executivo ou como dona de si mesma para ser servidora da população. Mais que isto, precisa
ser denunciada como instrumento das classes dominantes (no caso, romper laços com industriais, comerciantes,
latifundiários, investidores) e estabelecer vínculos umbilicais com os trabalhadores, respondendo a estes por seus
procedimentos. Finalmente, de forma mais direta, quebrar o próprio insulamento da burocracia dentro do estado,
que age como se seu setor fosse uma ilha independente do resto e da população.
No caso em questão e muitos outros, o problema é que a ocorrência dos ricos cidadãos, dos grupos econômicos
é atendida muito mais rapidamente e com presteza do que a reclamação dos trabalhadores e dos pobres. As
demandas dos usineiros e dos grandes ruralistas, dos grandes supermercados, dos industriais recebe tratamento
privilegiado nas rotinas administrativas da burocracia estatal, enquanto os pobres devem esperar horas e dias,
meses e anos por suas reclamações. Todos se lembram que um certo banqueiro foi preso numa certa tarde e liberto
por um juiz que realizou o favor ainda de madrugada, enquanto Rafael Braga um pobre catador de reciclável
ficou preso 4 anos inocentemente.
Para ser bem prático. No caso em questão, não deveria a população ficar navegando de ligação em ligação para
ser atendida, mas a burocracia que tomasse o problema dos trabalhadores e saísse de setor em setor, de
equipamento em equipamento buscando a solução e informando o encaminhamento. Mas para fazer isto, entraria
em conflito inúmeras vezes com sua fonte de status: o poder da classe dominante. Este seria um bom começo
para desmontar o poder descalibrado que a burocracia exerce dentro das estruturas do Estado. Será que o prefeito
de nossa cidade tem coragem para abrir o debate sobre o papel da burocracia e seu funcionamento nas diversas
áreas da prefeitura de Itapira? Acho que não...Fica o desafio...
Flavio Eduardo Mazetto – flaviomazz@gmail.com

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