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Teoria e Ideologia
Revista Socialismo Libertário - N.2 Jan/14
SUMÁRIO
Editorial 05
Teoria e Ideologia 06
E
sse segundo número da revista vivemos e as melhores estratégias para nela
Socialismo Libertário concentra-se sobre intervir, tendo por base nossos princípios e
o tema teoria e ideologia, que vem sendo nossa estratégia geral, e visando estabelecer
discutido há anos em nossa corrente um processo revolucionário de transformação
e que, no último período, recebeu atenção rumo ao socialismo libertário.”
destacada das organizações da Coordenação Os textos aqui apresentados inserem-
Anarquista Brasileira (CAB). se em um processo mais geral – que vem
Não se trata, como eventualmente poderia sendo levado a cabo de maneira mais efetiva
parecer, de um esforço intelectual puramente desde meados de 2012, com a fundação da
abstrato: essa discussão, apesar de passar por CAB – de estabelecimento de bases comuns e
temas epistemológicos e teórico-conceituais em aprofundamento de posições para o caminho
alguma medida complexos, possui, para nós, que pretendemos trilhar nos próximos anos,
implicações práticas muito importantes. Por rumo a uma organização nacional.
meio daquilo que agora se discute, conforme Esse ano de 2013 foi importante pelo
apontamos no primeiro texto, buscamos forjar ciclo de lutas em escala nacional, com o qual
as bases para respostas de um conjunto de todas nossas organizações se envolveram.
questões básicas. “O que é o anarquismo? O que Com a ascensão das mobilizações, o
o caracteriza historicamente como tal? Qual é anarquismo também ganhou destaque e, de
o nosso vínculo com os clássicos anarquistas? uma maneira ou outra, a CAB tem colhido
O anarquismo é uma ferramenta para teorizar bons frutos desse processo. Esperamos que
sobre a sociedade, uma prática política que tem essa edição da revista possa contribuir com
por objetivo transformá-la ou ambas as coisas? esse fortalecimento do anarquismo especifista
Devemos utilizar autores de fora do campo no cenário das lutas que vêm sendo travadas
anarquista para compreender a sociedade que nos mais diversos espaços sociais.
vivemos? Em que medida nossa maneira de
teorizar sobre a sociedade afeta nossa ideologia e
vice-versa? Existe socialismo científico? Em suma, Viva a revolução social! Viva o anarquismo!
trata-se de uma discussão antiga e complexa, que Rumo à organização nacional!
extrapola muito o campo anarquista e que tem
por objetivo fornecer respostas para as nossas Coordenação Anarquista Brasileira
tentativas de compreender a sociedade em que Janeiro de 2014
TEORIA E IDEOLOGIA
Coordenação Anarquista Brasileira
Errico Malatesta
Socialismo Libertário [edição 02] p. 7
D
O anarquismo é uma ferramenta para teorizar
urante a Plenária da Coordenação sobre a sociedade, uma prática política que tem
Anarquista Brasileira (CAB), no início por objetivo transformá-la ou ambas as coisas?
de 2013, dedicamos tempo, dentre ou- Devemos utilizar autores de fora do campo
tros assuntos, para chegar a alguns acordos e fir- anarquista para compreender a sociedade que
mar uma posição coletiva em relação ao debate vivemos? Em que medida nossa maneira de
sobre teoria e ideologia, que vem sendo reali- teorizar sobre a sociedade afeta nossa ideolo-
zado há anos pelas organizações do anarquismo gia e vice-versa? Existe socialismo científico?
especifista, no Brasil e em outros países. Em suma, trata-se de uma discussão antiga e
O documento que tem motivado essa complexa, que extrapola muito o campo anar-
discussão foi escrito em 1972 pela Federação quista e que tem por objetivo fornecer respos-
Anarquista Uruguaia (FAU) e se chama “Huerta tas para as nossas tentativas de compreender a
Grande: a importância da teoria”, tendo sido sociedade em que vivemos e as melhores estra-
elaborado a partir das contribuições de Errico tégias para nela intervir, tendo por base nossos
Malatesta e outros teóricos. Desde os anos 1990, princípios e nossa estratégia geral, e visando es-
esse documento tem sido debatido entre mili- tabelecer um processo revolucionário de trans-
tantes e organizações de nossa corrente, os quais formação rumo ao socialismo libertário.
Socialismo Libertário [edição 02] p. 08
mais adequada dos fenômenos da vida. Bakunin ormente, de que o papel da ciência, e, portanto,
afirma ainda que “a ciência universal é, pois, um da teoria científica, relaciona-se sempre a uma
ideal que o homem nunca poderá realizar. Estará explicação daquilo que é, ou, ainda, daquilo que
sempre forçado a contentar-se com a ciência de obrigatoriamente deve ser, no sentido da ex-
seu mundo. [...] A ciência é, todavia, muito imen- trapolação dos elementos de previsão da teoria
sa para que possa ser dominada por um homem científica; a ciência, conforme a concebe Mala-
ou por uma geração.” (Bakunin, “Considerações testa, não pode explicar o futuro e nem aquilo
Filosóficas sobre o Fantasma Divino”) Ou seja, que deveria ser, sendo essa uma das caracterís-
nunca conseguiremos ter uma ciência ou teoria ticas da ideologia. A estratégia anarquista cer-
geral, que dê conta de toda a realidade; o campo tamente se apóia em explicações estruturais
teórico-científico constitui um legado histórico- e conjunturais sobre a realidade e, por isso,
social e, por isso mesmo, possui suas limitações. relaciona-se com a teoria científica; entretanto,
Malatesta, fundamentado em posições seus objetivos finalistas – revolucionários, so-
semelhantes, concebe o campo teórico-científi- cialistas e libertários – e os próprios meios es-
co, em especial no que diz respeito às análises da tratégicos concebidos para atingir esses fins não
sociedade, sempre como um campo provisório, pertencem estritamente ao campo científico ou
que coloca em xeque o próprio critério de ver- teórico. Podem ter alguma relação mas não se
dade: resumem a ele.
Por esse motivo, compreendemos que
“Na ciência, as teorias, sempre hipotéticas e não se pode falar em “socialismo científico”;
provisórias, constituem um meio cômodo o anarquismo, como uma corrente socialista,
para reagrupar e vincular os fatos conheci-
dos, e um instrumento útil à investigação, as
descobertas e a interpretação de novos fatos:
mas não são a verdade. [...] A dúvida deve
ser a posição daqueles que aspiram cada vez
mais chegar à verdade ou, pelo menos, a essa
porção de verdade que é possível alcançar.”
(Malatesta, “Anarquismo y Ciencia”)
ainda que possua relações com a ciência, não sociais para compreender a realidade de manei-
pode ser considerado como tal, e nem somente ra mais adequada.
como uma teoria social. O mesmo se pode dizer Quando Malatesta se refere às confusões
de outros socialismos. Malatesta critica, nesse de “coisas e conceitos distintos”, ele coloca uma
sentido, os desdobramentos, em certo sentido preocupação quanto à confusão de teoria e ideo-
positivistas, dessa noção científica de socialismo logia, ou seja, sobre o conhecimento da socie-
em suas diferentes correntes, incluindo o anar- dade e as intervenções que se realizam sobre ela.
quismo. Considerar que o anarquismo não é uma teoria
ou uma ciência permite, para cumprir as exigên-
“O cientificismo (não digo a ciência) que cias que a produção teórico-científica nos coloca,
prevaleceu na segunda metade do século que busquemos aportes de outros campos ideo-
XIX produziu a tendência de considerar ver- lógicos; não compreendemos ser imprescindível
dades científicas, ou seja, leis naturais e, por- buscarmos referencial teórico-metodológico
tanto, necessárias e fatais, o que era somente somente dentre os autores anarquistas, mesmo
o conceito, correspondente aos diversos in- porque, entre eles, há diferenças fundamentais.
teresses e às diversas aspirações, que cada Além disso, entendemos que não há um método
um tinha de justiça, progresso etc., da qual e uma teoria inquestionáveis, aplicáveis e repro-
nasceu ‘o socialismo científico’ e, também, duzíveis a toda e qualquer situação, em todo e
o ‘anarquismo científico’ que, mesmo pro- qualquer tempo. Estar abertos a aperfeiçoar mé-
fessados por nossos grandes representantes, todos e teorias sociais já existentes e utilizar-se
sempre me pareceram concepções barrocas, de novos é justamente um mecanismo de evi-
que confundiam coisas e conceitos distintos tar cristalizações e dogmatismos que transfor-
por sua própria natureza.” (Malatesta, “Anar- mam a teoria em elemento ideológico. Sem que
quismo y Ciencia”) a experiência possa, por assim dizer, desafiar a
teoria, esta passa a ser um dogma que, de forma
A nosso ver, Bakunin e Malatesta, por ilusória, força a realidade, sem dúvida sempre
meio dessas contribuições, apresentam elemen- maior que a teoria, a se encaixar num sistema
tos que nos permitem colocar algumas respos- que tudo explica e tudo deduz. A teoria deve ser
tas às questões anteriores. Falamos de métodos e construída ou aplicada a partir de uma obser-
teorias científicas da sociedade e, nesse sentido, vação atenta da realidade, pois é a partir dessa
compreendemos que as ciências sociais são dis- observação que se pode confrontar a teoria com
tintas das ciências naturais e não podem tomar a realidade e, assim, validá-la, aprimorá-la, ou
essas últimas como modelo ideal de ciência (o mesmo descartá-la. A teoria deve estar aberta
que nos diferencia dos positivistas e empiristas); para o universo que busca explicar: colhe nele
as teorias que utilizamos para compreender a confirmação e, se surgem certos dados que a
sociedade – tenham elas foco estrutural, con- contrariam, passa a fazer verificações (sobre os
juntural, passado ou presente – devem buscar dados), revisões (sobre seu próprio funciona-
aprimoramentos permanentes, já que nunca mento) e modificações (sobre si mesma).
conheceremos a sociedade completamente e não Entendemos que a necessária abertura
conseguiremos prever certeiramente seu futuro; neste campo exige que utilizemos, mesmo que
devemos considerar o campo teórico-científico com critério, outros referenciais teórico-me-
provisório e de incertezas e temos sempre de es- todológicos que vão para além do campo anar-
tar abertos para ajustar nossos métodos e teorias quista. Para nós, a ideologia anarquista deve
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que são produzidos e reproduzidos nos imagi- distintos sujeitos sociais. Entretanto, ainda que
nários dos distintos sujeitos sociais; a segunda, a ideologia vincule-se às condições histórico-
em sentido mais restrito, da ideologia como sociais, ela não emana mecanicamente delas. A
doutrina, e, portanto, como conjuntos de pen- ideologia “requer um desenvolvimento determi-
samento e ação desenvolvidos historicamente nado de sua análise para que não fique relegada
e que atuam politicamente no jogo de forças ao aparato ideológico que se apóia nas relações
da sociedade, o qual é responsável pelo estabe- entre infra e superestrutura, e nem nesse caráter
lecimento das relações de poder. Trataremos a a ela tão comumente atribuído de distorcer,
seguir de ambas as abordagens. mascarar a ‘realidade’ e a ‘racionalidade’.” (FAU-
FAG, “Wellington Gallarza e Malvina Tavares”)
A ideologia como elemento da esfera Não consideramos que a esfera cultural/ideo-
cultural/ideológica lógica seja, pura e simplesmente, um reflexo
Consideramos que vivemos em um sis- mecânico das outras esferas, e, se por um lado
tema com uma determinada estrutura e que ela sofre determinação econômica e política,
podemos pensar na representação desse conjun- por outro, produz e reproduz elementos rele-
to sistêmico-estrutural por meio da interação vantes para a constituição estrutural e sistêmica
entre três esferas fundamentais: econômica, de nossas sociedades.
política/jurídica/militar e cultural/ideológica.
Por isso, discutir a ideologia, nesse sen- “Em determinados momentos históricos, se
tido amplo, implica algumas noções que estão produz, fortemente, um conjunto articulado
relacionadas a essa terceira esfera do campo de idéias, representações, noções no interior
social, que tem por base as noções de cultura do imaginário dos distintos sujeitos sociais.
e ideologia. A cultura está relacionada com as É este conjunto articulado de caráter ima-
atitudes, normas, crenças, mais ou menos com- ginário, que toma a forma de ‘certezas’ de-
partilhadas pelos membros de uma sociedade. fendidas pelos próprios sujeitos sociais. Isso
Envolve conhecimentos, arte, moral, costumes é o que pode transformar esses sujeitos em
e hábito, e possui relação com as instituições protagonistas de sua própria história ou em
sociais, a forma de vida em sociedade, as exis- sujeitos passivos e/ou disciplinados pelas
tências familiares, os laços, os vínculos e as forças dominantes. É isso que chamamos de
perspectivas. A ideologia diz respeito a tudo o ideologia. Assim, a ideologia tem a ver di-
que circula no campo das idéias e das subje- retamente com a constituição histórica dos
tividades. Os sentimentos de religiosidade e o sujeitos sociais e com a forma como eles se
mundo das utopias e das aspirações do ser hu- expressam na sociedade. É algo bem distinto
mano se encontram neste nível. Os conteúdos da noção que a ideologia seja a falsificação
das mensagens, a estética e valores contidos na da realidade, justamente porque ela é um
comunicação e na cultura também estão neste dos componentes fundamentais de qualquer
nível. Essa esfera, portanto, relaciona-se ao realidade social.” (FAU-FAG, “Wellington
campo das idéias, das subjetividades e do sim- Gallarza e Malvina Tavares”)
bólico.
É fundamental tomar em conta o pro- A ideologia constitui, assim, um ele-
cesso de constituição histórica e social dessas mento relevante da realidade social. Se ela não
idéias, representações e valores que são pro- emana mecanicamente de condições econômi-
duzidos e reproduzidos nos imaginários dos cas e políticas, devemos ter em mente que o
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ceitos ideológicos que lhe deram um estilo tam para a criação de um sistema federalista e
e traçou metas. O anarquismo surge, en- autogestionário; suas leituras da realidade esta-
tão, como proposta de luta (articulando belecem críticas, estruturais e conjunturais, dos
preceitos político-organizativos e teórico- sistemas de dominação; suas estratégias são coe-
ideológicos) em favor do interesse histórico rentes com seus objetivos e revolucionárias.
dos trabalhadores.” (CAZP. “Declaração de
Princípios”) Teoria e ideologia
O anarquismo é composto de um con- Tendo definido e discutido brevemente
junto de pensamentos e ações articulado sis- os conceitos de teoria e ideologia com os quais
tematicamente. Implica idéias, aspirações, va- trabalhamos, queremos, neste momento, rela-
lores, sentimentos e motivações que interagem cioná-los, já que mesmo os distinguindo, não
com as práticas políticas. A ideologia anarquista os consideramos conceitos estanques; eles cer-
fornece as bases estratégicas para intervenções tamente possuem relações. Retornamos aqui ao
políticas que têm como objetivo transformar as argumento apresentado no início desse texto, de
relações de poder; ela inclui meios (estratégias) que “a teoria está relacionada ao conhecimento
de se alcançar seus horizontes revolucionários, da sociedade e a ideologia a um nível de análise
o que se traduz, em termos históricos, na prática relativamente autônomo que, muitas vezes, se
política. Essa prática política parte de três ele- traduz em práticas políticas fundamentadas
mentos fundamentais: numa concepção do ‘vir a ser’ da sociedade”;
retomaremos aqui essa distinção e colocaremos
“1. A formulação de um objetivo finalista algumas questões que nos permitam pensar a
(que deve ser explicado da maneira mais relação entre teoria e ideologia. Em primeiro lu-
clara possível). 2. A apreensão ou compreen- gar, podemos afirmar que, tomando em conta a
são definida da realidade em que se vive, por ideologia anarquista, “à teoria compete a função
meio de sua análise profunda e exaustiva. 3. de compreensão da realidade passada e presente;
A previsão mais aproximada possível do fu- à ideologia compete a função de intervir sobre a
turo desta realidade, de sua transformação, realidade presente, no intuito de transformá-la”.
tanto naquilo que seja espontâneo, quanto (OASL, “Declaração de Princípios”)
deliberado. Ou seja, em nosso caso, a ideolo- Reforçamos a necessidade, para uma
gia não admite o caráter de espectador inte- prática política coerente, de diferenciar os con-
ressado e analítico das condições ou trans- ceitos de teoria e ideologia; conforme busca-
formações espontâneas da realidade, mas mos demonstrar, a primeira está relacionada
nos obriga a pensar voluntariamente, vo- ao campo do conhecimento, da ciência, e a se-
luntariosamente, no sentido de seu futuro.” gunda ao campo da doutrina, da política. A teo-
(FAU, “O que é Ideologia”) ria deve buscar responder o que é, e a ideologia
tem como função ser um combustível que im-
A ideologia anarquista, no intuito de pulsione a prática política em relação a um vir a
intervir politicamente na realidade, com vistas ser, aquilo que gostaríamos que fosse. A primei-
a transformar as relações de poder, estabelece ra relaciona-se ao conhecimento do passado e
objetivos, leituras da realidade e estratégias e do presente e, eventualmente, de prognósticos
táticas adequadas para tal intervenção. Seus “certeiros” em relação ao futuro (ainda que, re-
objetivos são socialistas e libertários e apon- forcemos, no campo social esses prognósticos
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do fazer, uma atitude prefigurativa que parte do Fazendo isso, compreendemos poder
agora e se molda no cotidiano por relações de potencializar nossa intervenção e nosso projeto
sentido que nem sempre estão mediadas pelo de poder popular, avançar em relação à nossa
consciente ou o racional; que pode ser interpe- estratégia geral. Como afirmamos anterior-
lada por um discurso teórico como elucidação, mente: “A CAB tem por objetivo impulsionar
como princípio de lucidez, mas que sempre um projeto de poder popular nas localidades
transborda as suas categorias formais. em que atua, fazendo do anarquismo a centelha
que deve incendiar os movimentos populares,
Teoria, ideologia rumo ao nosso ideal de socialismo e liberdade.”
e prática política (CAB, “Nossa Concepção de Poder Popular”)
Para isso, entendemos como um próx-
Em conclusão, queremos afirmar que imo passo caminhar na construção de nossa
teoria e ideologia constituem as bases da práti- caixa de ferramentas teóricas e na elaboração
ca política anarquista. programática de nossa estratégia nacional.
Nossa prática política envolve elemen-
tos de ordem teórica e ideológica: temos deter-
minados princípios e uma estratégia geral, que
constituem elementos essencialmente ideológi-
cos; realizamos leituras estruturais e conjun-
turais, do passado e do presente, e tentamos es-
tabelecer alguns prognósticos, que constituem
elementos essencialmente teóricos; buscamos
conciliar nossos objetivos finalistas com nossa
leitura da realidade e, por meio de uma prática
política, transformar a sociedade presente na
sociedade que desejamos para o futuro sendo,
para isso, fundamentais outros elementos de
ordem teórica e ideológica.
Nossa prática política deve, por isso,
manejar adequadamente os conceitos de teoria
e ideologia, sabendo diferenciá-los e/ou reco-
nhecer sua influência, a depender das circuns-
tâncias.
Em termos gerais, podemos dizer que
a teoria abarca o “como” vamos analisar e pro-
duzir conhecimento sobre o campo social-
histórico, a ideologia refere-se a um nível da
análise que tem sua “autonomia relativa” e Nota sobre as imagens:
que está em interdependência no conjunto da Ilustrações de Frans Masereel, retiradas do livro
estrutura global; ela, em geral, contém uma Die Stadt. Obra integralmente composta de xilo-
perspectiva de futuro – vinculada, em nosso gravuras que retrata os conflitos pessoais e cole-
interesse, à prática política, ganha traços de tivos vividos nas cidades alemãs do começo do
doutrina. século XX.
DISTINTAS ABORDAGENS TEÓRICAS
DOS ANARQUISTAS:
A RELAÇÃO ENTRE AS ESFERAS SOCIAIS
Coordenação Anarquista Brasileira
Socialismo Libertário [edição 02] p. 21
P
artindo da discussão realizada em “Teo- sustentavam perspectivas teóricas distintas, sem
ria e Ideologia”, gostaríamos, como dizia terem deixado, por isso, de ser anarquistas. Le-
Mikhail Bakunin, mais do que “falar do vando em conta as continuidades e permanên-
torno”, começar a “tornear”. Para isso, elabora- cias que o anarquismo teve a partir desses clás-
mos uma discussão sobre as diferentes abord- sicos, pode-se dizer, da mesma maneira, que é
agens teóricas dos anarquistas, com foco na possível notar diferenças teóricas relevantes,
relação entre as esferas sociais. Essa discussão sem que se coloque em xeque o anarquismo
tem por objetivo fortalecer o argumento já colo- desses anarquistas.
cado naquele texto, de que “O anarquismo é [...] Debates que envolvem o materialismo e
uma ideologia e têm utilizado historicamente o idealismo, mas, principalmente, a relação entre
distintas teorias sociais para compreender a as três esferas sociais – econômica, política/ju-
realidade”; ou seja, o que define o anarquismo rídica/militar, cultural/ideológica –, evidenciam
são os elementos ideológicos em conjunto com claramente as distintas perspectivas teóricas que
determinados postulados teóricos. Pretende- vêm sendo adotadas pelos anarquistas ao longo
mos sustentar esse argumento, mostrando que da história.
os anarquistas, clássicos e/ou contemporâneos,
defendem propostas distintas no campo do mé-
todo de análise e da teoria social, e que isso não
os faz mais ou menos anarquistas, visto que o
que define o anarquismo não é o método e/ou
a teoria que utilizam para analisar a sociedade,
mas um conjunto de princípios político-ideoló-
gicos, que contém noções teóricas de critica à
estrutura social.1 Sustentamos, assim, que o
anarquismo não é uma teoria para análise da
sociedade, mas uma ideologia que se concretiza
numa prática política pautada nesses princípios.
Desde seu surgimento, o anarquismo
vem se apoiando em distintas matrizes teórico-
epistemológicas, diversos métodos de análise e Mikhail Bakunin
teorias sociais para conhecer a realidade. Esses
aspectos são aqui considerados como perten- A predominância da esfera econômica
centes ao campo da teoria, utilizado historica- em relação às outras foi sustentada por alguns
mente pelos anarquistas. Pela relação já apon- anarquistas. Bakunin, nesse sentido, afirma que
tada entre teoria e ciência, entendemos não ser “toda a história intelectual e moral política e so-
possível dissociar a teoria utilizada pelos anar- cial da humanidade é um reflexo de sua história
quistas do contexto em que estiveram inseridas. econômica”. Entretanto, sua posição não é de-
Do ponto de vista dos anarquistas clássicos, terminista; ele enfatiza que “a escravidão políti-
pode-se dizer que Bakunin, Piotr Kropotkin, ca, o Estado, por sua vez, reproduz e conserva a
Élisée Reclus, Rudolf Rocker e Errico Malatesta miséria, como uma condição de sua existência;
Socialismo Libertário [edição 02] p. 22
com o próprio desenvolvimento das Ciências Sua crítica, naquele momento, enfati-
Sociais e do positivismo. Para se transformar a zava que, tendo ido para o outro oposto, grande
realidade, considerava-se necessário conhecê-la parte das pessoas estava adotando uma postura
e, pelo menos no campo social, a ciência parecia completamente idealista: “Hoje, todo mundo é
a ferramenta mais adequada para proporcionar ‘idealista’: todos [...] tratam o homem como se
esse conhecimento. A defesa que Bakunin real- ele fosse um puro espírito, para quem comer,
iza do materialismo deve ser compreendida, ao vestir-se, satisfazer suas necessidades fisiológi-
menos em parte, neste sentido. Ele, assim como cas fossem coisas negligenciáveis”. Ele afirma, ao
Marx e outros socialistas, buscava distanciar-se final, um meio-termo, que se reflete em seu pro-
das fundamentações metafísicas e teológicas, jeto de emancipação: dever-se-ia considerar que
chamadas de idealistas, em suas tentativas de “a emancipação moral, a emancipação política
compreender o real. e a emancipação econômica são indissociáveis”.
Ainda assim, as discussões entre o ma- (Malatesta, “‘Idealismo’ e ‘Materialismo’”)
terialismo e o idealismo passaram a envolver Posições que defendem essa interde-
outros elementos, e suas discussões aplicadas pendência entre as três esferas têm sido desen-
à relação entre as esferas sociais tornaram-se volvidas por organizações como a Federação
mais complexas. O século XX foi marcado por Anarquista Uruguaia (FAU) e a Federação
vários estudos no campo da teoria social que Anarquista Gaúcha (FAG), que afirmam que a
demonstraram que a realidade, mesmo obser- sociedade constitui uma “estrutura global sem
vada a partir de uma perspectiva racional, pos- predomínio estabelecido a priori, sem deter-
sui elementos subjetivos, e que as idéias, ou os minação [entre as esferas], a não ser a interde-
elementos presentes da esfera cultural/ideo- pendência. O ‘determinante’, se se quer utilizar
lógica, possuem capacidade de determinação o termo, seria a matriz que esse conjunto global
dos fatos, das esferas política/jurídica/militar e possui.” (FAU-FAG, “Wellington Gallarza e
econômica – estudos que se devem, em grande Malvina Tavares”)
medida, tanto ao desenvolvimento da Psicologia Outros anarquistas incorporaram essa
e de determinados campos das Ciências Sociais, relação de influência mútua entre as esferas,
e da História. como Rocker, que considera que “o fato de in-
Alguns anarquistas, observando esse de- fluírem as condições econômicas e formas espe-
senvolvimento no campo da teoria, passaram a ciais de produção na história do desenvolvimen-
reivindicar a relevância da esfera cultural/ideo- to das sociedades humanas não é novidade para
lógica, partindo da concepção de que as idéias, ninguém”. Entretanto, “nunca foram as forças
os aspectos subjetivos, poderiam influenciar os econômicas que serviram de móvel a todas as
fatos, os aspectos objetivos. Malatesta reflete so- outras. Acontecimentos sociais realizam-se por
bre isso e enfatiza: obra de uma série de diversas causas, que na sua
maioria se entrelaçam: tão intimamente que é
“Há alguns anos, todo mundo era ‘material- impossível afinal delimitá-las entre si.” (Rocker,
ista’. Em nome de uma ‘ciência’ que, defini- “A Insuficiência do Materialismo Histórico”)
tivamente, erigia em dogmas os princípios Rocker investigou aspectos culturais da
gerais extraídos de conhecimentos positivos sociedade e verificou sua relevância na influên-
muito incompletos, tinha-se a pretensão de cia entre as esferas. Chegou mesmo a sustentar
explicar toda a psicologia humana e toda a que “toda a política emana em última instância
história atormentada da humanidade por da concepção religiosa dos homens” e que “todo
simples necessidades materiais elementares.” o econômico é de natureza cultural”. Uma afir-
(Malatesta, “‘Idealismo’ e ‘Materialismo’”) mação que evidencia a relevância fundamen-
tal, do seu ponto de vista, da esfera cultural/
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A Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) é um espaço organi- j) De que a ética é um pilar fundamental da organização anar-
zativo fundado em 2012 que articula nacionalmente organizações quista e que ela norteia toda a sua prática.
e grupos anarquistas que trabalham com base nos princípios e
na estratégia do anarquismo especifista. A CAB surge como re- k) Da necessidade de propaganda e de ela ter de ser realizada nos
sultado dos dez anos do processo de organização, iniciado em terrenos férteis.
2002, com o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO). Durante
essa década, avança em termos político-ideológicos e em relação l) Da lógica dos círculos concêntricos de funcionamento, dando
aos trabalhos nos movimentos populares. A fundação da CAB corpo a uma forma de organização em que o compromisso está
marca a passagem de um fórum para uma coordenação nacional, diretamente associado com o poder de deliberação. Da mesma
evidenciando um aumento de organicidade e fundamentando maneira, uma organização que proporcione uma interação efi-
as bases para o avanço rumo a uma organização anarquista bra- ciente com os movimentos populares.
sileira.
m) De que a organização deve possuir critérios claros de entrada
Nossa concepção organizativa do anarquismo e posições bem determinadas para todos que queiram ajudar
(níveis de apoio /colaborador).
Todos os grupos e organizações da CAB, assim como aqueles in-
teressados em ser seus membros, devem concordar, defender e n) Da autogestão e do federalismo para a tomada de decisões e
aplicar esta concepção de anarquismo, que consideramos o míni- articulações necessárias, utilizando a democracia direta.
mo necessário para o início dos trabalhos conjuntos. O anarquis-
mo defendido pela CAB é compreendido a partir dos princípios o) A busca permanente do consenso, mas, não sendo possível, a
político-ideológicos e pela sua estratégia geral colocados a seguir. adoção da votação como método decisório.