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INTRODUÇÃO
AO ESTUDO DO
MÉTODO DE MARX
1 EDIÇi~O
EDITORA
EXPRESSÂO ~o~ui~
sÃo pauto, 2011
Copyrighr © 2011 by Editora Expressão Popular - 5 um á r 1 o
Revisão: Miguel Cavalcanti Yoshida
Projeto gráfico, capa e diagrasnação: Z’IP Design
Impressão e acabamento: Cromosete
Tal concepção reducionista, que nada tem a limites deste escrito introdutório, recordo, tão so
ver com o pensamento de Marx, é compartilhada mente como contraprovas, o peso que Marx atribui
também por muitos dos adversários teóricos de às “tradições” quando tangencia a propriedade co
Marx. Weber, por exemplo, criticou, na “concepção munal entre os eslavos (Marx, 1982, p. 18) e as suas
materialista da história”, as explicações “monocau permanentes preocupações com a especificidade
salistas” dos processos sociais, isto é, explicações de esferas ideais como a arte (Marx-Engels, 2010;
que pretendiam esclarecer tudo a partir de uma Lukács, s.d. e 2009, p. 87-119). O segundo eixo te
única causa (ou “fator”); a crítica é procedente se re mático relaciona-se a um pretenso “determinismo”
lacionada a teorias efetivamente “monocausalistas”, no pensamento Marxiano: a teoria social de Marx
mas é inteiramente inepta se referida a Marx, uma estaria comprometida por uma teleologia evolucio
vez que, como realçou um de seus mais qualificados nista ou seja, para Marx, uma dinâmica qualquer
—
estudiosos, “é o ponto de vista da totalidade e não (econômica, tecnológica etc.) dirigiria necessária
a predominância das causas econômicas na expli e compulsoriamente a história para um fim de
cação da história que distingue de forma decisiva o antemão previsto (o socialismo). Vários estudiosos
marxismo da ciência burguesa” (Lukács, 1974, p. 14). já mostraram sobejamente a inconsistência dessa
Atualmente, no diversificado e heterogêneo crítica (Mészáros, 1993, p. 198-202; Wood, 2006,
campo dos adversários (e mesmo detratores) de p. 129-154; Borón et alii, 2007, p. 43-47); recente-
—
vocadas podem ser superadas supondo-se um
—
Cabe insistir na perspectiva crítica de Marx em demorada investigação: de fato, é só depois de quase
face da herança cultural de que era legatário. Não 15 anos de pesquisas que Marx formula com precisão
se trata, como pode parecer a uma visão vulgar de os elementos centrais de seu método, formulação
“crítica’~ de se posicionar frente ao conhecimento que aparece na “Introdução’~ redigida em 1857, aos
existente para recusá-lo ou, na melhor das hipóte manuscritos que, publicados postumamente, foram
ses, distinguir nele o “bom” do “mal”. Em Marx, intitulados Elementos fundamentais para a crítica da
a crítica do conhecimento acumulado consiste em economia política. Rascunhos. 1857-1858 (Marx, 1982,
trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, p. 3_21)1. É nestas poucas páginas que se encontram
os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os sintetizadas as bases do método que viabilizou a aná
seus limites ao mesmo tempo em que se faz ave
— lise contida n’O capital e a fundação da teoria social
rificação dos conteúdos desse conhecimento a partir de Marx.
dos processos históricos reais. É assim que ele trata a
filosofia de Hegel, os economistas políticos ingleses Teoria, método e pesquisa
(especialmente Smith e Ricardo) e os socialistas que Antes de sinalizar rapidamente o processo inte
o precederam (Owen, Fourier et alii). lectual que surge resumido na “Introdução” referida
Avançando criticarnente a partir do conhecimento
1 No momento em que escrevo, tenho informações de que este texto se
acumulado, Marx empreendeu a análise da sociedade minal de Marx, em tradução de Mário Duayer, será publicado em breve,
burguesa, com o objetivo de descobrir a sua estrutura numa co-edição Boitempo (5. Paulo)lEditora UFRJ (Rio de Janeiro).
L
acima, e mesmo antecipando algo do conteúdo deste teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento
texto de 1857, é preciso esclarecer o significado que real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o
teoria tem para Marx. sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e
Para ele, a teoria não se reduz ao exame sistemáti a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta repro
co das formas dadas de um objeto, com o pesquisador dução (que constitui propriamente o conhecimento
descrevendo-o detalhadamente e construindo mode teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto
los explicativos para dar conta à base de hipóteses
—
mais fiel o sujeito for ao objeto. Detenhamo-nos
que apontam para relações de causa/efeito de seu
—
um pouco neste ponto tão importante e complexo,
movimento visível, tal como ocorre nos procedi começando pela própria noção de “ideal”.
mentos da tradição empirista e/Õu positivista. E não Ao mencionar a relação de seu método com o de
é, também, a construção de enunciados discursivos Hegel, de quem recolheu criticamente a concepção
sobre os quais a chamada comunidade científica dialética, Marx anotou:
pode ou não estabelecer consensos intersubjetivos,
Meu método dialético, por seu fundamento, difere do
verdadeiros jogos de linguagem ou exercícios e com
método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para
bates retóricos, como querem alguns pós-modernos
Hegel, o processo do pensamento [...] é o criador do real,
(Lyotard, 2008; Santos, 2000, cap. 1).
Para Marx, a teoria é uma modalidade peculiar e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao
contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para
de conhecimento, entre outras (como, por exemplo,
a arte, o conhecimento prático da vida cotidiana, o a cabeça do ser humano e por ele interpretado (Marx, 1968,
conhecimento mágico-religioso cf. Marx, 1982, p.
—
p. 16; itálicos não originais).
15). Mas a teoria se distingue de todas essas modali Assim, a teoria é o movimento real do objeto
dades e tem especificidades: o conhecimento teórico transposto para o cérebro do pesquisador é o real —
da aparência fenomênica, imediata e empírica por — homens, “o produto da ação recíproca dos homens”
onde necessariamente se inicia o conhecimento, (Marx, 2009, p. 244). Isto significa que a relação
sendo essa aparência um nível da realidade e, por sujeito/objeto no processo do conhecimento teórico
tanto, algo importante e não descartável é apreen —, não é uma relação de externalidade, tal como se dá,
der a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) por exemplo, na citologia ou na física; antes, é uma
do objeto. Numa palavra: o método de pesquisa que relação em que o sujeito está implicado no objeto.
propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, Por isso mesmo, a pesquisa e a teoria que dela
—
visa alcançar a essência do objeto2. Alcançando a es resulta da sociedade exclui qualquer pretensão
—
sência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura de “neutralidade”, geralmente identificada com
e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos “objetividade” (acerca do debate que, sobre a
e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz jetividade’~ se acumulou nas ciências sociais e na
no plano do pensamento; mediante a pesquisa, tradição marxista, cf. Lõwy, 1975, p. 11-36).
viabilizada pelo método, o pesquisador reproduz, Entretanto, essa característica não exclui a obje
no plano ideal, a essência do objeto que investigou. tividade do conhecimento teórico: a teoria tem uma
O objeto da pesquisa tem, insista-se, uma exis instânïcia de verificação de sua verdade, instância que
tência objetiva, que independe da consciência do é a prática social e histórica. Tomemos um exemplo:
pesquisador. Mas o objeto de Marx é a sociedade da sua análise do movimento do capital, Marx
(1968a, p. 712-827) extraiu a lei geral da acumulação
2 Para Mai,ç como para todos os pensadores dialéticos, a distinção entre capitalista, segundo a quaL no modo de produção
aparência e essência é primordial; com efeito,”toda ciência seda supér capitalista, a produção da riqueza social implica,
flua se a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas
coincidissem imediatamente” Qvfanç 1974b, p. 939); mais ainda: “As necessariamente, a reprodução contínua da pobre
verdades científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela experiên za (relativa e/ou absoluta); nos últimos 150 anos, o
cia de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das
coisas” (Marx, 1982, p. 158). Por isso mesmo, para Marx, não cabe ao desenvolvimento das formações sociais capitalistas
cientista “olhar’, “mirar” o seu objeto — o “olhar” é muito próprio dos somente tem comprovado a correção de sua aná
pós-modernos, cuja epistemologia”suspeita da distinção entre aparên
cia e realidade” (Santos, 1995, p. 331). lise, com a “questão social” pondo-se e repondo-
L
1 se, ainda que sob expressões diferenciadas, sem
solução de continuidade. E ainda outro exemplo:
analisando o mesmo movimento do capital, Marx
(1974, 1974a e 1974b) descobriu a impossibilidade de
Voltemos à concepção marxiana de teoria: a
teoria é a reprodução, no plano do pensamento,
do movimento real do objeto. Esta reprodução,
porém, não é uma espécie de reflexo mecânico, com
o capitalismo existir sem crises econômicas; também, o pensamento espelhando a realidade tal como um
no último século e meio, a prática social e histórica espelho reflete a imagem que tem diante de si. Se
demonstrou o rigoroso acerto dessa descoberta. assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no
Essas e outras projeções plenamente confirmadas processo do conhecimento, seria meramente pas
sobre o desenvolvimento do capitalismo não se sivo. Para Marx, ao contrário, o papel do sujeito é
devem a qualquer capacidade “profética” de Marx: essencialmente ativo: precisamente para apreender
devem-se a que sua análise da dinâmica do capital não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a
permitiu-lhe extrair de seu objeto “a lei econômica sua essência, a sua estrutura e a sua dinâmica (mais
do movimento da sociedade moderna” (Marx, 1968, exatamente: para apreendê-lo como um processo),
p. 6) não uma “lei” no sentido das leis físicas ou
— o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo
das leis sociais durkheimianas “fixas e imutáveis’~ de conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve
mas uma tendência histórica determinada, que pode ser dotado de criatividade e imaginação. O papel
ser travada ou contrarrestada por outras tendências3. do sujeito é fundamental no processo de pesquisa.
Marx, aliás, caracteriza de modo breve e conciso
No posfácio à segunda edição (1873) d’o capital, Marx cita passagens
tal processo: na investigação, o sujeito “tem de
de um crítico de sua obra que considera ter apreendido corretamente apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de
o seu método de pesquisa, contrapondo-o aos “velhos economistas analisar suas diferentes formas de desenvolvi
[que] não compreenderam a natureza das leis econômicas porque as
equipararam às leis da física e da química’) ora, “é isto o que Marx mento e de perquirir a conexão que há entre elas”
contesta. [...] cada período histórico, na sua opinião, possui suas (Marx, 1968, p. 16).
próprias leis” (Marx, 1968, p. 15). De fato, Marx escrevera n’O capital,
a propósito das “leis da população”; “[. ~1 Todo período histórico tem Neste processo, os instrumentos e também as
suas próprias leis [...], válidas dentro de limites históricos. Uma lei técnicas de pesquisa são os mais variados, desde a
abstrata da população só existe para plantas e animais e apenas na
medida em que esteja excluída a ação humana” (Marx, 1968a, p. 733). análise documental até as formas mais diversas de
que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. aliás, sustentava, em 1920, que o espírito do legado
de Marx consistia na “análise concreta de uma si
O próprio Manc recorreu à utilização de distintas técnicas de pesquisa tuação concreta”. O mesmo Lenin, uns poucos anos
(hoje caracterizadas como análise bibliográfica e documental, análise antes, já compreendera que a Marx não interessava
de conteúdo, observação sistemática e participante, entrevistas, instru
mentos quantitativos etc.); conhece-se, inclusive, um minucioso ques elaborar uma ciência da lógica (como o fizera He
tionário que elaborou, disponível emThiolient (1986). gel): importava-lhe a lógica de um objeto determinado
26 Introdução ao estudo do método de Marx José Pauto Netto 27
escobrir esta lógica consiste em reproduzir ideal- a se deslocar da crítica filosófica para a crítica da
mente (teoricamente) a estrutura e a dinâmica deste economia política como se verifica nos Manuscritos
—
objeto; é lapidar a conclusão lenineana: “E.. .J Marx econômico-filosófico de 1844, só tornados públicos em
não deixou uma Lógica, deixou a lógica d’O capital” 1932 (Marx, 1994) —, que essas reflexões ganham
(Lenin, 1989, p. 284). uma articulação claramente dialética. Não é por
acaso que, paralelamente à redação desses Manus
As formulações teórico-metodológicas critos..., Marx retorne à hegeliana Fenomenologia
Sublinhei, há pouco, que o método de Marx do Espírito, demonstrando o domínio que já possui
não resulta de operações repentinas, de intuições das suas categorias (Marx, 1994, p. 155-161). Se a
geniais ou de inspirações iluminadas. Antes, é o leitura dos Manuscritos.., revela um conhecimento
produto de uma longa elaboração teórico-científica, ainda insuficiente da economia política, isto não
amadurecida no curso de sucessivas aproximações compromete a segurança do autor no manuseio da
ao seu objeto. Vejamos, muito esquematicamente, dialética, manuseio que se aprofunda na sequência
os principais passos dessa elaboração. do estabelecimento da relação pessoal com Engels
É no segundo terço dos anos 1840 que se encon — no livro que marca o começo da sua colaboração
tram as formulações teórico-metodológicas iniciais intelectual, A sagrada família ou A crítica da crítica
de Marx. Densas reflexões materialistas devidas à — crítica, de 1845 (Marx-Engels, 2003), expressão do
influência de Feuerbach já surgem, nítidas, numa
— seu confronto cóm pensadores alemães contempo
crítica à filosofia do direito de Hegel, redigida em râneos. Em várias passagens, os dois jovens autores
dezembro de 1843/janeiro de 1844 e logo publicada5. apontam a perspectiva teórica a partir da qual criti
É, especialmente no curso de 1844, quando começa cam filósofos com os quais, até pouco tempo antes,
mantinham boas relações intelectuais.
Porém, é na obra a que se dedicam em seguida, A
Trata-se do ensaio critica da filosofia do direito de Elege!. Introdução, que
não deve ser conhindido como manuscrito de 1843, conhecido como ideologia alemã (escrita em 1845/1846, mas só publicada
critica da filosofia do direito de Elege?, Manuscrito de Kreuinach, Manus em 1932), que surge a primeira formulação mais pre
crito de 1843 etc, e sã publicado em 1927— ambos estão disponíveis em
Marx (2005). cisa das suas concepções. Marx e Engels esclarecem
ativos, tal como são condicionados por um determinado dinamiza por contradições, cuja superação o conduz
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo inter a patamares de crescente complexidade, nos quais
câmbio que a ele corresponde [.1. Á consciência não novas contradições impulsionam a outras superações.
Por estes anos, como Engels o recordará bem mais
Observe-se nesta formulação a antecipação de uma passagem célebre tarde, já estavam — ele e Marx — de posse de “uma
«o 18 brumórjo de Luís Bonaparte, na qual os homens são tomados grande ideia fundamental”, que extraíram de Hegel:
como, simultaneamente, autores e atores da história: “Os homens fa
zem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem a ideia “de que não se pode conceber o mundo como
sob circunstâstcias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defron um conjunto de coisas acabadas, mas como um con
tam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” Qvianç 1969, p.
17). A mesma linha de argumentação comparecerá na critica de Man a junto de processos” (Marx-Engels, 1963, v. 3, p. 195).
Proudhon, como o leitor venErará numa citação que se fará a seguir.
ele “não concebe nossas instituições sociais como 1 que os homens se acham colocados, pelas forças produtivas
homens transformam o seu modo de produção e, ao mais das experiências políticas vividas no curso da
transformá-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida,
eles transformam todas as suas relações sociais. O moi Não se esqueça que Manç de 1848 até o fim da vida, foi um permanente
nho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com “analista de conjunturas” ~,istóricas, político-econômicas e sociais). As
incontáveis análises que ele produziu — geralmente publicadas em jor
o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o nais e revistas — contribuíram em boa medida para o seu acúmulo teórico.
capitalista industrial (id., p. 125). I’-ara exemplos dessas análises, cf. Manc (1969,1986 e 1987).
-—
T revolução de 1848 vão adquirir um significado
—,
sociedade burguesa: analisa documentação histó figuras isoladas de indivíduos nas atividades eco
rica, percorre praticamente toda a bibliografia já nômicas. De fato, “quando se trata [..J de produção,
produzida da economia política, acompanha os de trata-se da produção em um grau determinado do
senvolvimentos da economia mundial, leva em con desenvolvimento social, da produção dos indiví
ta os avanços científicos que rebatem na indústria duos sociais”. Por isto mesmo, Marx considera que
e nas comunicações e considera as manifestações a “produção em geral” é uma abstração, que denota
das classes fundamentais (burguesia e proletariado) apenas um fenômeno comum a todas as épocas
em face da atualidade. Vivendo em Londres, então históricas: o fenômeno de, em qualquer época, a
capital do país capitalista mais desenvolvido, de produção implicar sempre um mesmo sujeito (a
um império de dimensões mundiais, sede do maior humanidade, a sociedade) e um mesmo objeto (a
centro financeiro (a City), tendo à sua disposição a natureza)9. Este fenômeno confere unidade à histó
imprensa mais informada da economia e a mais ria da humanidade, mas unidade não é o mesmo que
completa biblioteca da época (a do British Museum), identidade: é preciso distinguir “as determinações
Marx pode enfim determinar precisamente, em sua que valem pata a produção em geral” daquelas que
plena maturidade, o seu objeto de estudo e o seu dizem respeito a certa época; do contrário, perde-se
método de investigação. É, pois, ao fim de quase a historicidade na análise, e às categorias econômicas
15 anos de pesquisa que ele escreve, entre agosto
e setembro de 1857, a célebre “Introdução’~ onde a Anos depois, n’O capital, ele determinará o processo de trabalho huma
sua concepção teóriço-metodológica surge nítida8. no (“processo em que o ser humano, com sua própria ação impulsio
na, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza”) como
sempre constituído por três elementos: “a atividade adequada a um
8 Neste e nos seguintes parágrafos não farei a remissão às páginas donde fim, isto é, o próprio trabalho; a matéria a que se aplica o trabalho, o
se extraem as citações de Marx, desde que retiradas da “Introdução”— objeto de trabalho; os meios de trabalho, o instrumental de trabalho”
todas proveem de Manc (1982, p. 3~21) ~famx, 1968, p. 202).
consequentemente, Marx especifica que quer estu tuições sociais e políticas e da cultura). Para elaborar
dar uma determinada forma histórica de produção a reprodução ideal (a teoria) do seu objeto real (que
material: a “produção burguesa moderna”. é a sociedade burguesa), Marx descobriu que o pro
Marx está convencido, em função dos estudos cedimentoftmndante é a análise do modo pelo qual nele se
históricos que já realizara, de que “a sociedade bur produz a riqueza material.
guesa é a organização histórica mais desenvolvida, A questão da riqueza material ou, mais exata
—
mais diferenciada da produção”. E deixa bem claro mentç, das condições materiais da vida social—, porém,
que o conhecimento rigoroso da sua produção ma não envolve apenas a produção, mas articula ainda
terial não basta para esclarecer a riqueza das relações a distribuição, a troca (e a circulação, que é “a troca
sociais que se objetivam no marco de uma sociedade considerada em sua totalidade”) e o consumo. Por
assim complexa; por exemplo, no trato da cultura, que, então, começar pela produção? A argumenta
Marx enfatiza a existência de uma “relação desigual ção de Marx, baseada no aprofundamento de seus
do desenvolvimento da produção material face à estudos anteriores e consolidada no exílio londri
produção artística” e assinala ainda a dificuldade no, depois de demonstrar que a produção é, em
para clarificar “de que modo as relações de produção, parte, consumo e este, parcialmente, é produção,
como relações jurídicas, seguem um desenvolvimen e também depois de relacioná-los à distribuição e
to desigual”. Mas por todo o acúmulo teórico que
—
à circulação, leva ao seguinte resultado: estes mo
realizou com suas pesquisas anteriores ele está
—
mentos (produção, distribuição, troca, consumo)
igualmente convencido de que o passo necessário e não são idênticos, mas todos “são elementos de
indispensável para apreender a inteira riqueza dessas uma totalidade, diferenças dentro de uma mesma
relações sociais consiste na plena compreensão da unidade”. Mas, sem prejuízo da interação entre esses
produção burguesa mqderna. Sem esta compreensão, elementos, é dominante o momento da produção:
será impossível uma teoria social que permita oferecer A produção se expande tanto a si mesma [.4! como se
um conhecimento verdadeiro da sociedade burguesa como alastra aos demais momentos. O processo começa de
totalidade (incluindo, pois, o conhecimento para — novo sempre a partir dela. Que a troca e o consumo não
1.
possam ser o elemento predominante, compreende-se por Uma vez determinado o seu objeto, põe-se a
si mesmo, O mesmo acontece com a distribuição [...].Uma Marx a questão de como conhecê-lo põe-se a —
[forma] determinada da produção determina, pois, [formas] questão do método. Aqui, nada melhor que dar a
determinadas do consumo, da distribuição, da troca, assim
palavra ao próprio Marx:
como relações determinadas desses d~ferentes fato res entre si.
Quando estudamos um dado país do ponto de vista da
Uma teoria social da sociedade burguesa, por Economia Política, começamos por sua população, sua
tanto, tem que possuir como fundamento a análise divisão em classes, sua repartição entre cidades e ~ampo
teórica da produção das condições materiais da os diferentes ramos da produção, a exportação e a
vida social. Este ponto de partida não expressa um importação, a produção e o consumo anuais, os preços das
juízo ou uma preferência pessoais do pesquisador: mercadorias etc. Parece que o correto é começar pelo real
ele é uma exigência que decorre do próprio objeto e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva;
de pesquisa sua estrutura e dinâmica só serão
—
assim, em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela
reproduzidas com veracidade no plano ideal a par população, que é a base e o sujeito do ato social de produ
tir desse fundamento; o pesquisador só será fiel ao ção como um todo. No entanto, graças a urna observação
objeto se atender a tal imperativo (é evidente que o mais atenta, tomamos conhecimento de que isto é falso. A
pesquisador é livre para encontrar e explorar outras população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo,
vias de acesso ao objeto que é a sociedade e pode, as classes que.a compõem. Por seu lado, essas classes são
inclusive, chegar a resultados interessantes; entre uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos
tanto, tais resultados nunca permitirão articular em que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado,
uma teoria social que dê conta dos níveis decisivos e o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho,
da dinâmica fundamental da sociedade burguesa)10.
ticular e autônoma, a Sociologia, dela excluída precisamente a questão
~ É o caso, para ficarmos entre os “clássicos” das ciências sociais, de da produção material, tomada objeto de outra disciplina acadêmica,
a Economia), eles — mesmo Weber, que, sabe-se, interessava-se por
Durkheim e Weber. Nas suas obras, encontram-se análises e propo Economia — não foram capazes de elaborar uma teoria social apta a
sições que oferecem indicações pertinentes à compreensão da vida dar conta da articidaçíto entre relações sociais e vida económioz. Flira mna
social; dadas, porém, as suas concepções teóricas e metodológicas critica de princípio à Sociologia como ciência particular e autônoma, cf.
(conducentes a pensar as relações sociais no marco de urna ciência par- Lukács (1968, cap.Vl).
pre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários no segundo, as determinações abstratas conduzen~ à reprodução
do concreto por meio do pensamento (itálicos não originais).
Estados etc., mas terminam sempre por descobrir, por
meio da análise, certo número de relações gerais abstratas Deve-se distinguir, a esta altura, para alcançar a
que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, inteira compreensão do método que Marx considera
o dinheiro, o valor etc. “cientificamente exato’~ o sentido de “abstração” e
r
“abstrato”. A abstração é a capacidade intelectiva esfera do ser da esfera do pensamento; o concreto a
que permite extrair de sua contextualidade deter que chega o pensamento pelo método que Marx con
minada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, sidera “cientificamente exato” (o “concreto pensado”)
examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o é um produto do pensamento que realiza “a viagem
qual a análise é inviável aliás, no domínio do estudo
—
de modo inverso”~ Marx não hesita em qualificar este
da sociedade, o próprio Marx insistiu com força em método como aquele “que consiste em elevar-se do
que a abstração é um recurso indispensável para o abstrato ao concreto’~ “único modo” pelo qual “o
pesquisador”. A abstração, possibilitando a análise, cérebro pensante” “se apropria do mundo”.
refira do elemento abstraído as suas determinações Cabe também precisar o sentido das “determi
mais concretas, até atingir “determinações as mais nações”: determinações são traços pertinentes aos
simples”. Neste nível, o elemento abstraído torna-se elementos constitutivos da realidade; nas palavras
“abstrato” precisamente o que não é na totalidade
—
de um analista, para Mar; a determinação é um
de que foi extraído: nela, ele se concretiza porquanto “momento essencial constitutivo do objeto” (Dussel,
está saturado de “muitas determinações”. A realidade 1985, p. 32). Por isso, o conhecimento concreto
é concreta exatamente por isso, por ser “a síntese do objeto é o conhecimento das suas múltiplas
de muitas determinações’~ a “unidade do diverso” determinações tanto mais se reproduzem as
—
que é própria de toda totalidade. O conhecimento determinações de um objeto, tanto mais o pen
teórico & nesta medida, para Marx, o conhecimento samento reproduz a sua riqueza (concreção) real.
do concreto, que constitui a realidade, mas que não As “determinações as mais simples” estão postas
se oferece imediatamente ao pensamento: deve ser no nível da universalidade; na imediaticidade do
reproduzido por este e só “a viagem de modo inver real, elas mostram-se como singularidades mas —
so” permite esta reprodução. Já salientamos que, em o conhecimento do concreto opera-se envolvendo
Marx, há uma contínua preocupação em distinguir a universalidade, singularidade e particularidade’2.
elas são objetivas, reais (pertencem à ordem do ser — As categorias que exprimem suas [da sociedade burguesa]
são categorias ontológicas); mediante procedimentos relações, a compreensão de sua própria articulação, permi
intelectivos (basicamente, mediante a abstração), tem penetrar na articulação e nas relações de produção de
o pesquisador as reproduz teoricamente (e, assim, todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas
também pertencem à ordem do pensamento são — ruínas e elementos se acha edificada e cujos vestígios, não
categorias reflexivas). Por isso mesmo, tanto real ultrapassados ainda, levam de arrastão, desenvolvendo
quanto teoricamente, as categorias são históricas tudo que fora antes apenas indicado e que toma assim
e transitórias: as categorias próprias da sociedade a sua significação etc. A anatomia do homem é a chave
burguesa só têm validez plena no seu marco (um para a anatomia do macaco, O que nas espécies animais
exemplo: trabalho assalariado). E, uma vez que, inferiores indiça uma forma superior não pode ser com
como vimos, para Marx “a sociedade burguesa é preendido [.. .1 senão quando se conhece a forma superior.
a organização histórica mais desenvolvida, mais A economia burguesa fornece a chave da economia da
diferenciada da produção” —vale dizer: a mais com antiguidade etc.
plexa de todas as organizações da produção até hoje Esta argumentação inverte a vulgar proposição
conhecida é nela que existe realmente o maior
—,
positivista de que “o mais simples explica o mais
desenvolvimento e a maior diferenciação categorial.
Logo, a sua reprodução ideal (a sua teoria) implica a 13 É precisamente esta riqueza categoria? que não aparece nas exposições
apreensão intelectiva dessa riqueza categorial (o que que geraimente pretendem divulgar”o método de Marx”— seu conhe
cimento exige a leitura da obra do próptio Marx, em especiai O capital.
dade de ulterior desenvolvimento), não se descura econômicas na ordem segundo a qual tiveram historica
a necessidade de conhecer a gênese histórica de mente uma ação determinante. [...] Não se trata da relação
uma categoria ou processo — tal conhecimento é que as relações econômicas assumem historicamente na
absolutamente necessário. Mas dele não decorre o
conhecimento da sua relevância no presente sua—
‘~ Eis por que Lucien Goldmann qualifica o método de Maoc corno “ge
estrutura e sua função atuais. Ambos, estrutura e nético-estruturai”e Gyürg Lukács designa-o corno”histõrico-sisterná
função, podem apresentar características inexisten tico”.
1
mos, em nome de Marx, um conjunto dEregras para deu-nos a teoria do capital: a reprodução ideal do
orientar a pesquisa; também não colocamos à sua movimento real’5.
disposição um rol de definições para dirigir a inves E para operar esta reprodução, ele tratou de ser
tigação. Nestas poucas páginas, apenas sumariamos fiel ao objeto: é a estrutura e a dinâmica do objeto
— e de forma muito esquemática: só apresentamos que comandam os procedimentos do pesquisador.
uma nota introdutória à problemática metodológica O método implica, pois, para Marx, uma determi
de Marx as principais aproximações marxianas à
— nada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa:
questão do método de pesquisa. E devemos justificar aquela em que se põe o pesquisador para, na sua
as razões deste procedimento. relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas
Não oferecemos ao leitor um conjunto de regras determinações.
porque, para Marx, o método não é um conjunto de Também não oferecemos definições ao leitor.
regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi Porque procede pela descoberta das determinações,
recortado para uma investigação determinada nem, e porque, quanto mais avança na pesquisa, mais
menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito descobre determinações conhecer teoricamen
—
que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, te é (para usar uma expressão cara ao Professor
para “enquadrar” o seu objeto de investigação. Re Florestan Fernandes) saturar o objeto pensado com
cordemos a passagem de Lenin que citamos: Marx as suas detenninações concretas Marx não opera—,
não nos entregou uma lógica, deu-nos a lógica d’o com definições Na “viagem em sentido inverso’~
capital. Isto quer dizer que Marx não nos apresen as “abstrações mais tênues” e as “determinações as
tou o que “pensava” sobre o capitaL a partir de
15 E é desnecessário dizer que esta reprodução ideal, cuja validez a bis
um sistema de categorias previamente elaboradas
tória real do capitalismo do último século e meio vem reafirmando,
e ordenadas conforme operações intelectivas: ele na medida em que é necessária, não é suficiente para dar conta do ca
(nos) descobriu a estrutura e a dinâmica reais do pitalismo contemporâneo: novos fenômenos, sinalizando novos pro
cessos, emergiram na dinâmica do capital, fenâmenos e processos que
capital; não lhe “atribuiu” ou “imputou” uma lógi Marx não examinou (e nem poderia tê-lo feito). Mas é o método por
ca: extraiu da efetividade do movimento do capital ele descoberto que tem possibffitado o tratamento crítico-analítico da
conternporaneidade, em autores tão diversos como Mandei, Mészáros,
a sua (própria, imanente) lógica numa palavra,
— Harvey e tantos outros.
nos Elementosfundamentais para a crítica da economia dológicas que nos parecem nuclear a concepção
—
política. Rascunhos. 1857-2858. Este novo tratamento teórico-metodológica de Marx, tal como esta surge
1
as elaborações de e posteriores a 1857 (ainda que e articulada. Cabe à análise de cada um dos com
lastreadas em sua produção anterior). Trata-se das plexos constitutivos das totalidades esclarecer as
categorias de totalidade, de contradição e de mediação tendências que operam especificamente em cada
(Marcuse, 1969; Lukács, 1970, 1974 e 1979 e Barata- uma delas.
Moura, 1977). Mas a totalidade concreta e articulada que é a
Para Marx, a sociedade burguesa é uma tota sociedade burguesa é uma totalidade dinâmica seu —
lidade concreta. Não é um “todo” constituído por movimento resulta do caráter contraditório de todas
“partes” funcionalmente integradas. Antes, é uma as totalidades que compõem a totalidade inclusiva
totalidade concreta inclusiva e macroscópica, de e macroscópica. Sem as contradições, as totalidades
máxima complexidade, constituída por totalidades seriam totalidades inertes, mortas e o que a análise
—
de menor complexidade. Nenhuma dessas totali registra é precisamente a sua contínua transforma
dades é “simples” o que as distingue é o seu grau
—
ção. A natureza dessas contradições, seus ritmos,
de complexidade (é a partir desta verificação que, as condições de seus limites, controles e soluções
para retomar livremente uma expressão lukacsiana, dependem da estrutura de cada totalidade e, no
—
a realidade da sociedade burguesa pode ser apreen vamente, não há fórmulas/formas apriorísticas para
dida como um complexo constituído por complexos). E determiná-las: também cabe à pesquisa descobri-las.
se há totalidades mais determinantes que outras (já Enfim, uma questão crucial reside em descobrir
vimos, por exemplo, que, na produção das condições as relações entrei os processos ocorrentes nas tota
materiais da vida sociaL a produção determina o lidades constitutivas tomadas na sua diversidade e
consumo), elas se distinguem pela legalidade que entre elas e a totalidade inclusiva que é a sociedade
as rege: as tendências operantes numa totalidade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são
lhe são peculiares e não podem ser transladadas mediadas não apenas pelos distintos níveis de com
diretamente a outras totalidades. Se assim fosse, plexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar
a totalidade concreta que é a sociedade burguesa de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações (in
seria uma totalidade amorfa e o seu estudo nos
—
ternas e externas) que articulam tais totalidades, a
revela que se trata de uma totalidade estruturada totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria
totalidade, a contradição e a mediação Marx des- —, operados nesta construção, o que se constata é a
cobriu a perspectiva metodológica que lhe propiciou fidelidade à perspectiva metodológica que acabamos
o erguimento do seu edifício teórico. Ao nos oferecer de esboçar. É nesta fidelidade, aliás, que reside o que,
o exaustivo estudo da “produção burguesa’~ ele num estudo célebre, Lukács (1974, p. 15) designou
nos legou a base necessária, indispensável, para a como ortodoxia em matéria de marxismo.
teoria social. Se, em inúmeros passos do conjunto
da sua obra, Marx foi muito além daquele estudo,
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