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Os Desafios da Ordem dos Advogados

de Moçambique1

Tomás Timbane2

1 Versão escrita da comunicação apresentada no dia 13 de Setembro de 2019 na


Cerimónia de Celebração dos 25 anos da Ordem dos Advogados de Moçambique
sob o lema “Promovendo o Acesso à Justiça para a Defesa dos Direitos,
Liberdades e Garantias Fundamentais”.
2 Doutor em Direito, Advogado, Assistente Universitário e Membro da Corte de

Arbitragem do ICC.
1
I. Em 2016, no último discurso como Bastonário,
usando as palavras de um advogado português3, disse que a
advocacia era a voz serena da liberdade4. Referi ainda que
um bastonário nunca se aposenta, mas deixa apenas de
correr na pista principal e fica à espera que outros
continuem a correr pelas mesmas razões que o levaram a
correr. Por isso aqui estou, aceitando o chamado do
Bastonário Flávio Menete, para, nesta pista secundária,
abordar os desafios da Ordem dos Advogados, que é a voz
serena da liberdade, porque só em liberdade um país logra
os objectivos contidos no seu contrato social. Esta minha
reflexão é também uma comemoração dos 25 anos desta
organização, que é das mais democráticas do nosso país e
que, em 1999, pela mão do Bastonário Carlos Alberto Cauio
- a quem presto a minha homenagem - tão bem me
recebeu.
No dia em que proferi estas declarações, o Dr. Rui
Baltazar5, num dos textos mais conseguidos que alguma vez
se escreveram sobre o papel da advocacia em Moçambique,
alertou, aos advogados e a Ordem, para os difíceis desafios e
perigos que terão pela frente e para lhes encorajar a
enfrentá-los com coragem e determinação. Na sua
exposição, o Dr. Rui Baltazar referiu que o poder político, de
uma maneira geral, não convive bem com a actividade dos
advogados, e isto é tanto mais evidente quanto mais
autoritário, menos democrático, e mais medíocre for esse
poder. Referiu, ainda, que as resistências ou obstáculos às
actividades dos advogados agudizam-se quando eles melhor
estiverem a cumprir o seu papel de controle da legalidade,
de combate aos abusos de poder, a violência sobre os

3JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Bastonadas – Vitórias e Derrotas na luta pelo


Estado do Direito, Casa das Letras, Lisboa, 2006, pp. 80-82.
4 A voz serena da liberdade, in Ordem no Estado de Direito – Visão e

Perspectivas do Bastonato, W Editora, Maputo, 2016, pp. 361-371.


5 A Responsabilidade Social dos Advogados, in Jornal O País, 6 de Maio de

2016, p. 16 (Texto da intervenção feita na tomada de posse dos órgãos sociais da


Ordem dos Advogados de Moçambique, realizada no dia 4 de Maio de 2016, em
Maputo).
2
cidadãos e as violações dos direitos e liberdades
fundamentais.
O que quero dizer hoje, pegando na deixa que me é
proporcionada pelas sábias palavras que acabo de citar, é
que nós os advogados, reunidos nesta Ordem, somos o
antídoto ideal contra a mediocridade política. As más
línguas dizem que a diferença entre um advogado e Deus é
que Deus não acha que ele é um advogado, o que,
aparentemente, não se pode dizer dos praticantes da nossa
profissão pelo menos a julgar pela opinião dos que nos
invejam. Mas há um cunho de verdade aí. Corremos sempre
o risco de nos considerarmos acima de tudo e de todos e,
por isso, de não vermos virtude na acção concertada, no
trabalho conjunto e colectivo, na resistência à redução do
nosso trabalho associativo aos dois encontros anuais
organizados pela Ordem.

II. Passados 3 (três) anos desde que aquelas palavras


foram proferidas, se os desafios não aumentaram, não há
dúvidas que se mantêm. Para além disso, temos assistido, a
cada Exame Nacional de Acesso, a reprovações em massa,
sem que a Ordem possa fazer muito para melhorar a
qualidade dos examinados. Um dos aspectos essenciais da
advocacia, referida nas declarações do Dr. Rui Baltazar, é a
qualidade dos profissionais que exercem a advocacia, quer
do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista ético. Hoje,
a Ordem vai lançar uma colectânea das decisões do
Conselho Jurisdicional, que servirá como acto de prestação
de contas dos advogados da sua qualidade ética. É que tem
sido questionada a qualidade ética dos advogados, também
porque, diz-se, há muito corporativismo na advocacia e no
Conselho Jurisdicional. Esse corporativismo – mas o mau
corporativismo6 - existe no seio da nossa organização e
todos estamos cientes que deve ser combatido.
6 Como tão bem aponta JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Bastonadas – Vitórias e
Derrotas na luta pelo Estado do Direito, cit., pp. 86-89, na advocacia o bom
corporativismo, que não existe de forma automática e sem esforço, é a pedra de
toque da nossa organização: o orgulho de pertencer a um grupo social, a
3
III. Fui, durante 5 (cinco) anos, Presidente do
Conselho Jurisdicional e sei do que falo e sei que a situação
se mantém nos dias de hoje. Houve, em tempos,
reclamações da magistratura de que uma vez que os
Conselhos Superiores das Magistraturas têm advogados,
porque razão o Conselho Jurisdicional da Ordem dos
Advogados não tinha magistrados, supostamente porque
isso traria não só reciprocidade, mas, também, o controlo
por entidades externas do cumprimento das regras éticas e
deontológicas.
Ainda que por razões diferentes – até porque não só
não é obrigatória a indicação de advogados para os
Conselhos Superiores das Magistraturas, como a Ordem
não é ouvida ou achada nessa indicação -, creio que chegou
a altura de incluir outros profissionais no órgão de
disciplina dos advogados. Como diz o velho ditado, quem
não deve não teme. Aliás, considerando a situação em que
se encontra o nosso país, os advogados devem ser rigorosos
no cumprimento das regras éticas e deontológicas, pelo que
a inclusão de outros profissionais no Conselho
Jurisdicional, pode ser um bom ponto de partida para uma
desejada moralização da advocacia.

IV. É sabido que os advogados têm uma função social


estruturante do Estado de direito democrático que nunca os
pode dispensar na administração da justiça, considerada
nos seus diferentes planos. Por isso, é necessário colocar o
discurso da Ordem no diálogo com as instituições e entre os
intervenientes judiciários, procurando o justo equilíbrio
entre uma profissão de luta pela defesa dos direitos

dignidade ética sem orgulho ou vaidade, coragem de punir os advogados


indignos, a alegria com que se ensina os mais jovens e a defesa dos interesses
dos advogados. Pelo contrário, mau corporativismo é o sacrifício dos interesses
gerais pelos particulares, a recusa em afastar do nosso seio os prevaricadores, a
recusa à abertura da profissão a novos membros e a manutenção secreta de
códigos, de procedimentos e de regras sem as quais se não pode exercer a
profissão.
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fundamentais, opondo-se aos poderes instituídos, e ser
capaz de dialogar com esses poderes para obter soluções.
A Ordem deve ser um instrumento de pressão, mas
deve também ser uma instituição de diálogo e de
colaboração, uma vez que não basta ser contra – que para
isso existem os sindicatos e as redes sociais... – ela tem de
apresentar soluções, sabendo que não vai obter tudo o que
ela deseja.

V. A defesa do papel da advocacia, uma profissão com


protecção constitucional e de interesse público, é um ponto
de partida muito relevante para a Ordem dos Advogados e
para os seus órgãos sociais. Ainda assim, a existência de
várias realidades na advocacia moçambicana – uma
advocacia societária com poucos grandes escritórios, uma
advocacia de pequenos escritórios, pouco estruturados e
susceptíveis a práticas pouco “republicanas” e outra de
prática individual – é um enorme desafio, pois não permite
que se possa falar de uma Ordem inclusiva. Estas
assimetrias da advocacia – que se têm visto no Exame
Nacional de Acesso em que, aparentemente, são sortudos os
que estão integrados nas grandes sociedades de advogados
– também ocorrem na luta por mais e melhor trabalho.
Por isso, a Ordem não pode se preocupar em formar –
mal, em nossa opinião – os estagiários nos primeiros dois
anos da sua formação e depois deixá-los à sua sorte. Depois
disso, não há nenhum controlo sobre a qualidade dos
advogados ou sobre a sua continuada e necessária
formação.
Deste modo, é imprescindível a existência de um
processo de formação contínuo e obrigatório para todos os
advogados. Aliás, os advogados estão sujeitos a uma
formação ajustada ao exercício do mandato judicial, isso em
prejuízo dos que não querem esse tipo de advocacia e,
sobretudo, em prejuízo da especialização.

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VI. Na verdade, a Ordem deveria não só valorizar,
como estar na linha da frente da especialização, o que vai
contribuir para a prestação de melhores serviços, a exemplo
do que acontece nas outras profissões como engenharia,
medicina, informática, etc. Sobre a qualidade da justiça,
basta ver a ausência de especialização que, tal como na
advocacia, existe na magistratura: sem qualquer
experiência, um advogado está na área criminal, para no dia
seguinte estar na área comercial ou laboral; um juiz sai de
uma secção criminal para, no dia seguinte, sem qualquer
formação, ir a uma secção cível ou laboral. Se juntarmos a
isso a pouca experiência de trabalho, a pouca formação
intelectual de base e a ausência de condições de trabalho, o
resultado só pode ser esta justiça que temos, que não é
capaz de responder às especificidades e aos desafios que a
vida cada vez nos trás.
Se há alguns anos a grande preocupação dos
advogados era a procuradoria ilícita praticada por
estrangeiros - que hoje já está até oficializada pelo Governo
e pelas grandes empresas públicas nacionais -, actualmente
a jovem advocacia se debate com a pequena procuradoria
ilícita – constituída por imobiliárias, empresas de
contabilidade, técnicos e assistentes do IPAJ - que, tal como
disse Abdul Nurdin, mais do que roubar clientes, prejudica
o cidadão. Trata-se, aliás, de uma função que pode e deve
ser exercida pela Ordem dos Advogados, até porque esta
não só foi criada porque o legislador entendeu que o então
INAJ tinha cumprido o seu papel7, como também porque
nas suas funções, a Ordem tem a responsabilidade do
patrocínio judiciário às pessoas economicamente
carenciadas8. Aliás, no caso dos técnicos e assistentes do
IPAJ – que me recuso a chamá-los de Defensores Públicos,
uma vez que não só essa designação é ilegal como
escamoteia o exercício ilegal da profissão em prejuízo de
7 V Preâmbulo da Lei n.º 7/94, de 14 de Setembro, que cria a Ordem dos
Advogados de Moçambique e aprova o respectivo Estatuto.
8 V. art. 4, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique,

aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 29 de Setembro.


6
pessoas economicamente carenciadas -, nos tempos em que
as instituições públicas são das maiores violadoras dos
direitos e liberdades individuais, não se compreende que se
coloquem à margem da protecção dos direitos e liberdades
das pessoas. E o desafio aqui será não só o da regulação
interna, mas também a questionada existência de fronteiras
no exercício da profissão, quando, em pleno século 21, fala-
se já dum mercado aberto. Ainda assim, se queremos um
mercado fechado – e nisso os advogados são soberanos para
decidir e têm reiteradamente decidido dessa forma -, é
necessário ponderar em que termos é que isso deve ocorrer
e se deveremos nos manter como se estivéssemos na
advocacia dos meados do século 20, que era essencialmente
de prática isolada, limitada às fronteiras da área onde se
encontrava o advogado e não estava sujeita à dinâmica
resultante das tecnologias de informação.

VII. Para além disso, a existência de outras profissões


que, cada vez mais, exercem serviços jurídicos, leva-nos ao
desafio da exclusividade e da razoabilidade da existência
dos actos próprios da profissão, quando, todos sabemos,
ninguém os respeita, em prejuízo do cidadão e de uma
melhor prestação de serviços.
Tudo isso nos recorda a importância de uma Ordem
dos Advogados atenta e disponível para estar aberta aos
vários desafios que se lhe apresentam. É que a advocacia é
uma profissão conservadora, muito alérgica a novos
desenvolvimentos. No entanto, numa altura em que as
tecnologias de informação e as redes sociais dominam o
mundo, já não se compreende que a comunicação de actos
judiciais seja feita presencialmente. Hoje, todos os
advogados já têm meios electrónicos de contacto na palma
da sua mão, pelo que não podem fugir ao desafio das
tecnologias. É, aliás, de saudar o projecto recentemente
inaugurado pelo Tribunal Supremo, de gestão processual
com o uso das novas tecnologias de informação. Aliás, não
só a advocacia, como qualquer outra profissão, como as
7
magistraturas, são desafiados a entrar e a usar as novas
tecnologias de informação.
Isso tudo impõe que a Ordem dos Advogados deva
lutar por um melhor sistema judicial, porque mesmo
aqueles que não exercem o mandato judicial, sabem da
importância de uma justiça transparente e célere.

VIII. É tempo de concluir esta intervenção, mas ainda


haveria muito para dizer, justamente porque haverá sempre
mais a fazer, a cada dia que passa. Mas o mundo dinâmico,
contingente e complexo em que vivemos coloca-nos novos
desafios, que podem e devem ser superados, só que isso só é
possível com uma advocacia mobilizada e uma Ordem
mobilizadora. Infelizmente não temos nem uma advocacia
mobilizada, muito menos uma Ordem mobilizadora.
Provavelmente os novos ares que nos trazem os
candidatos aos órgãos sociais possam ser o ponto de partida
para essa Ordem mobilizadora. Precisamos, cada vez mais,
de uma advocacia que, tal como o próprio Direito, seja
cidadã, até porque, como diz Elísio Macamo9, o Direito só é
Direito quando age como consciência cidadã, uma vez que
ao fazer isso, ele participa na reprodução da sociedade e
garante a sua continuidade mesmo mudando e renovando-
se.
Como tenho dito, os advogados só se ouvem em dois
momentos: na campanha eleitoral para as eleições dos seus
órgãos sociais e na discussão da revisão dos estatutos para
discutir (e proibir) a advocacia por estrangeiros, para
discutir (e limitar) o regime das incompatibilidades e para
discutir (e proibir) a discussão pública de questões
profissionais. Isso é muito pouco para uma Ordem com 25
anos de existência, num país com tantos problemas para
discutir e desafios por enfrentar. É por isso que estou
descrente, justamente porque estes advogados que conheço,
não estão suficientemente interessados por uma Ordem dos

9Da consciência cidadã em acção, in o nosso Ordem no Estado de Direito –


Visão e Perspectivas do Bastonato, W Editora, Maputo, 2016, p. 15.
8
Advogados dinâmica, forte e mobilizadora. Se não
queremos continuar a ouvir as más línguas a nos chamarem
de arrogantes, devemos elevar o nosso compromisso com o
que faz de nós a consciência da sociedade. Devemos nos
articular mais ainda e gritarmos “presente” sempre que for
necessário.
Muito obrigado.

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