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Ficha Técnica

Copyright © 2011 by Mohamed ElBaradei


Todos os direitos reservados.
Tradução para a língua portuguesa © Texto Editores Ltda., 2011
Título original: The Age of Deception

Diretor editorial: Pascoal Soto


Editora: Mariana Rolier
Produção editorial: Sonnini Ruiz
Marketing: Léo Harrison

Coordenação editorial: Estúdio Sabiá/Carochinha Editorial


Preparação de texto: Sílvia Almeida
Revisão: Ceci Meira, Hebe Lucas e Valéria Sanalios
Capa e projeto gráfico: Ana Carolina Mesquita
Imagem de capa © Eric Bouvet/VII Network/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP-Brasil)


Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.
E37 ElBaradei, Mohamed, 1942-
A era da ilusão : a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros / Mohamed ElBaradei ; tradução: Luís Fragoso e Elvira Serapicos. – São Paulo : Leya,
2011.
Tradução de: The Age of Deception.
ISBN 9788580446975
1. Política nuclear. 2. Controle de armas nucleares.
3. Não proliferação nuclear. I. Título.
11-0115 CDD 327.174

Texto Editores Ltda.


Uma editora do Grupo LeYa
Av. Angélica, 2163 – Conj. 175/178
01227-200 – Santa Cecília – São Paulo – SP
www.leya.com
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Introdução
1 • Iraque, primeiro round
DEPOIS DA GUERRA
2 • Coreia do Norte
O CASO DO PLUTÔNIO DESAPARECIDO
3 • Iraque, segundo round
A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO
4 • Coreia do Norte
O CLUBE DAS POTÊNCIAS NUCLEARES GANHA MAIS UM MEMBRO
5 • Irã
TAQQIYA
6 • Líbia
7 • O “bazar” nuclear de A. Q. Khan
8 • De Viena a Oslo
9 • Irã
“NEM UMA CENTRÍFUGA SEQUER”
10 • Dois pesos e duas medidas
11 • Irã, 2007–2008
OPORTUNIDADES DESPERDIÇADAS
12 • Irã, 2009
Conclusão
A BUSCA PELA SEGURANÇA
Agradecimentos
Introdução

“Ajudem-nos a ajudar vocês.”


Do outro lado da mesa, o homem sorriu, mas não era satisfação que se via em seu rosto.
Seus olhos esmoreciam e o canto de seus lábios definhava. Tristeza? Cansaço? Eu não sabia ao
certo.
Era 9 de fevereiro de 2003. Fazia mais de doze anos que o Conselho de Segurança da ONU
emitira, pela primeira vez, sanções ao Iraque. Em pouco mais de um mês, haveria uma nova
invasão liderada pelos EUA. Pouco tempo antes, Saddam Hussein voltara a admitir a inspeção
de armas da parte da ONU. Hans Blix e eu, na condição de líderes das equipes internacionais,
fazíamos nossa terceira visita a Bagdá. Era nossa última noite no país. Naji Sabri, ministro
iraquiano das Relações Exteriores, nos convidara para participar de um jantar com nossos
principais especialistas e um grupo de colegas do Iraque.
O restaurante era o mais sofisticado da cidade. A infraestrutura de Bagdá beirava o colapso,
deixando visíveis os efeitos das sanções que foram impostas ao país. O jantar, porém, ostentava
elegância, com impecáveis toalhas de mesa de linho escarlate e muita cortesia da parte dos
garçons. O peixe grelhado, recém-pescado no rio Tigre, era servido à vontade. O tempero dos
espetinhos de carneiro (kebab) estava perfeito. E, na mesa, outro regalo: vinho. Isso causava
surpresa, já que o consumo de álcool em público era proibido de acordo com um decreto de
1994. Naquela noite, porém, para seus convidados de fora da cidade, os iraquianos abriram
uma exceção.
O homem sentado à mesa, do lado oposto a mim, era o general Amir Hamudi Hasan al-
Sa’adi. O título de “general” era, basicamente, honorífico. Homem urbano e negociador
carismático, com Ph.D. em Química e Física, Al-Sa’adi era fluente tanto em inglês quanto em
árabe e preferia ternos feitos sob medida aos uniformes militares. Embora não fosse membro
do Partido Baath, desempenhava um papel de liderança na área científica para o governo
iraquiano.
Durante o jantar, Blix e eu havíamos conduzido a conversa para um tema crucial: a
necessidade de obter maior cooperação e documentação mais completa. “Vocês afirmam que
não possuem armas de destruição em massa”, nós dissemos. “Vocês nos dizem que não
reativaram nenhum de seus antigos programas de armas de destruição em massa, porém não
podemos simplesmente arquivar os casos cujos registros estão incompletos. Precisamos de
mais provas. Quanto mais transparência vocês tiverem, mais documentos e provas materiais
poderão mostrar, e isso será melhor para o Iraque no cenário mundial. O que mais vocês
podem apresentar para preencher as lacunas em relação às informações sobre seu país?
Ajudem-nos a ajudar vocês.”
Sentado ao lado de Al-Sa’adi estava Husam Amin, líder do grupo iraquiano que fazia a
interface com a ONU. Ele inclinou-se para a frente e respondeu: “Vamos ser francos. Primeiro,
não podemos lhes oferecer nada, porque não há mais nada a oferecer”. Desviou o olhar na
direção de Blix, e então de volta para mim. “Mas, em segundo lugar, vocês não têm como nos
ajudar, porque esta guerra irá acontecer, e nada que vocês ou nós possamos fazer irá impedir
isso. Todos nós sabemos. Não importa o que façamos, é fato consumado.”
E voltou a ajeitar-se na cadeira. Al-Sa’adi assentiu com a cabeça, mas não disse nada. A
tristeza continuava em seu sorriso.
Apesar da posição de Amin, eu me recusava a acreditar que a guerra era inevitável. A
Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão da ONU responsável pelas inspeções
de armas nucleares do qual eu era o diretor, vinha fazendo consideráveis progressos. Isso
incluía seguir cada uma das pistas que nos eram dadas, mesmo sem achar nada. Em meu
relatório para o Conselho de Segurança da ONU, em 27 de janeiro, afirmei: “Até o momento,
não temos nenhuma prova de que o Iraque reativou seu programa de armas nucleares”. Essa
declaração provocou duras críticas de autoridades de governo ocidentais e de analistas da
mídia, que já estavam convencidos do contrário. Mas esses críticos baseavam-se em hipóteses
circunstanciais, caracterizando-as como provas. Eu havia dito a verdade.
A AIEA ainda não estava preparada para emitir um “atestado de plena saúde” ao Iraque.
Mas eu havia conclamado o Conselho para que deixasse os inspetores fazer seu trabalho.
Argumentei que mais alguns meses representariam “um valioso investimento em favor da paz”.
Se a justificativa para uma invasão preventiva do Iraque estava baseada nos reconstituídos
programas de armas de destruição em massa de Saddam Hussein, então onde estavam as
provas? Onde estava a ameaça iminente? Se Amin estava dizendo a verdade e o Iraque não
“tinha mais nada a oferecer”, então as implicações eram significativas: não havia ameaça
nenhuma.
Uma guerra sem razão certamente levaria a um número maior de hostilidades em uma
relação já cindida entre os países detentores e os não detentores de tecnologia nuclear. Tanto os
EUA quanto o Reino Unido possuíam armas nucleares, não demonstrando a mínima disposição
de renunciar a elas. Entretanto, eles ameaçavam o Iraque por supostamente também buscar
adquirir tais armas. Para os países em desenvolvimento, e particularmente para as sociedades
árabes e muçulmanas, isso era, ao mesmo tempo, irônico e extremamente injusto. Saddam
Hussein gozava de relativa popularidade diante dos povos árabes em virtude de suas posições
contrárias ao tratamento dado por Israel aos palestinos e devido à sua atitude desafiadora em
relação ao Ocidente. Ele não era a personalidade predileta da maioria dos governantes árabes
pró-Ocidente, especialmente após sua invasão do Kuwait, em 1990; entretanto, causava-lhe
irritação ver o Iraque ser tratado com tamanho desdém. Se uma guerra de fato eclodisse, e
particularmente um conflito assentado em acusações forjadas sobre armas de destruição em
massa, a sensação de ultraje entre os povos árabe e muçulmano aumentaria drasticamente.
Ainda assim, com o passar das semanas, mesmo com toda a crença que eu depositava no
processo de inspeção, comecei a sentir uma inquietação crescente. A retórica proveniente dos
EUA e do Reino Unido era cada vez mais estridente. Apenas quatro dias antes do jantar em
Bagdá, o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, apresentara seus argumentos ao
Conselho de Segurança: gravações de conversas telefônicas interceptadas e imagens de
instalações iraquianas registradas por satélite. Tais registros, afirmou, demonstravam “padrões
de comportamento inquietantes” da parte de Saddam Hussein e de seu regime, “uma política
evasiva e dissimulada”. Para o grupo de inspetores, a apresentação de Powell era,
essencialmente, um misto de conjecturas, um encadeamento de dados não verificados,
interpretados à luz do pior cenário possível. Não havia nenhuma prova conclusiva. Porém, para
muitos ouvintes, sobretudo para não especialistas, os argumentos de Powell eram
contundentes.
Ao longo das seis semanas posteriores, nada seria capaz de impedir a crise iminente, nem
mesmo um sinal de progresso durante as inspeções ou uma intervenção diplomática. A AIEA
revelou que documentos confidenciais essenciais, supostamente associando Saddam Hussein a
tentativas de comprar urânio do Níger, haviam sido forjados. A descoberta, porém, teve
pequeno impacto. Um encontro dos líderes árabes em caráter emergencial, em Sharm el-
Sheikh, a fim de elaborar uma solução ou pensar numa reação unificada desses Estados,
terminou em confusão. Uma derradeira tentativa de evitar a ação militar, feita pelos britânicos,
fracassou.
No início da manhã de 17 de março, recebi um telefonema da missão norte-americana em
Viena, aconselhando nossa equipe de inspetores a deixar Bagdá. A invasão estava prestes a
acontecer.

“Se existe um perigo no mundo, este é compartilhado por todos; da mesma forma... se existe a
esperança na mente de uma nação, esta deve ser compartilhada por todas.” Essas foram as
palavras do presidente dos EUA Dwight D. Eisenhower, em 1953, no discurso intitulado
“Átomos para a paz”, que permitiu o nascimento, quatro anos mais tarde, da AIEA. Trata-se de
uma mensagem extraordinária, proferida em meio a uma crescente corrida armamentista e
dirigida a uma comunidade internacional que ainda tinha em mente a devastação provocada
pela Segunda Guerra Mundial.
O conceito de “Átomos para a paz” de Eisenhower – a ideia de que tanto os benefícios
quanto as inseguranças contidas na ciência nuclear devem ser abordados de modo coletivo pela
comunidade internacional – é o princípio central da diplomacia nuclear. Ele se transformaria
em um compromisso praticamente universal com o intuito de estimular a cooperação
tecnológica para o uso pacífico da energia atômica, bem como impedir a proliferação das
armas nucleares – um duplo compromisso consagrado pelo Estatuto da AIEA e pelo histórico
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1970.
Na condição de jovem advogado egípcio e professor de Direito Internacional em Nova York
no início da década de 1980, eu me considerava em sintonia com os ideais de “Átomos para a
paz”. Associei-me à AIEA em 1984, tornando-me consultor jurídico da organização três anos
depois. Na época da Guerra do Iraque, em 2003, eu ocupava o cargo de diretor-geral da AIEA
havia mais de cinco anos e já era membro havia quase duas décadas. Estava completamente
imerso na missão de diplomacia nuclear da agência. O fato de que uma guerra seria travada
com base em acusações infundadas de posse de armas de destruição em massa – e de o papel
de diplomacia nuclear da AIEA estar sendo posto de lado, servindo de mero instrumento para
acobertar procedimentos ilegítimos – era, para mim, uma distorção grotesca de tudo aquilo que
defendíamos. Isso contrariava praticamente meia década de trabalho árduo, realizado por
profissionais comprometidos – cientistas, advogados, inspetores e servidores públicos – de
todos os continentes. Eu estava perplexo diante do que estava testemunhando. Estava
plenamente convencido de que nada que Blix ou eu tivéssemos presenciado poderia justificar a
ida à guerra.

O general Amir al-Sa’adi, com quem partilhei aquele melancólico jantar, rendeu-se às Forças
de Coalizão em 12 de abril de 2003, ao tomar conhecimento de que era o número 32 na lista
dos iraquianos mais procurados e visto como uma peça inútil no tabuleiro. Ele pediu à ZDF,
emissora alemã de TV, que filmasse sua rendição. Falando diante da câmera, anunciou: “Não
temos armas de destruição em massa, e o tempo confirmará o que estou dizendo”. Foi então
que ficou claro para mim que nossa conclusão provisória sobre as armas nucleares estava
correta, pois naquele momento Al-Sa’adi não tinha motivos para mentir.
Desde então, diversas fontes confirmaram que a premissa usada para a invasão de março de
2003 – a acusação feita pelos EUA e pelo Reino Unido de que os programas de armas de
destruição em massa representavam uma ameaça iminente – era infundada. Posteriormente, o
Grupo de Inspeção no Iraque, nomeado pelos EUA, gastaria bilhões de dólares para constatar a
veracidade das afirmações dos inspetores internacionais: o Iraque não havia reativado seus
programas de armas de destruição em massa. Aparentemente, a suposta ameaça nuclear
tampouco foi a real motivação para a agressão liderada por EUA e Reino Unido. O célebre
memorando que vazou de Downing Street em julho de 2002 é um forte indicativo de que a
decisão de ir à guerra fora tomada muito antes de as inspeções terem início.
Não sou capaz, ainda hoje, de ler tais declarações sem pensar nos milhares de soldados
mortos, nas centenas de milhares de civis iraquianos assassinados, nos milhões de pessoas
mutiladas e desabrigadas, nas famílias dilaceradas, nas vidas arruinadas – e fico espantado que
não tenha havido um autoexame e uma introspecção maior da parte dos principais
protagonistas do episódio. A vergonha dessa guerra desnecessária nos força a levar em conta o
que deu errado no caso do Iraque e a refletir sobre como as lições ensinadas por essa tragédia
podem ser aplicadas a crises futuras.
As tensões sobre o desenvolvimento de programas nucleares que hoje inquietam o planeta,
particularmente em relação ao Irã, indicam a possibilidade de repetirmos a catástrofe do Iraque,
com consequências ainda mais sérias para a segurança global. Quando considero os desafios
que permanecem diante de nós, sou remetido à cena de nosso jantar de fevereiro de 2003, em
Bagdá, porque ele serve de protótipo para os principais aspectos do dilema que enfrentamos na
condição de comunidade global em busca de uma segurança duradoura e coletiva: a crescente
desconfiança entre diferentes culturas; os efeitos corrosivos de um sistema de longa data, que
opõe os detentores de tecnologia nuclear aos que carecem dela; a insanidade de certas práticas
políticas arriscadas; e a certeza do fracasso, caso sejamos incapazes de aprender com os erros
do passado. A cena daquele jantar também é importante pelo elemento que lhe falta: os
principais protagonistas – no caso, os EUA e o Reino Unido –, cujas decisões, de fato,
determinariam o resultado dos acontecimentos. A ausência deles se transformaria num tema
recorrente nos anos que se seguiriam, especialmente no Irã: a distância, os EUA ofuscavam
negociações, moldavam seus resultados ao mesmo tempo que se furtavam a uma participação
direta. A diplomacia nuclear é uma disciplina prática que requer envolvimento direto,
comedimento e compromissos a longo prazo. Ela não pode ser operada por controle remoto. Se
a intenção é usar o diálogo como ferramenta para a resolução de tensões nucleares, este não
pode ser limitado a uma conversa entre os inspetores e o país que está sendo acusado. Os EUA
e seus aliados devem estar genuinamente envolvidos nos debates, dialogando com os que
julgam ser seus adversários, demonstrando – para além do discurso retórico – seu compromisso
com a resolução pacífica das inseguranças que lhes são inerentes. Enfim, todas as partes devem
sentar-se à mesa de negociações.
O jantar em Bagdá – chamado sarcasticamente por alguns de meus colegas de “A última
ceia” – foi apenas uma das múltiplas crises ocorridas no início de 2003. A Coreia do Norte
acabara de expulsar os inspetores da AIEA que monitoravam o “congelamento” de suas
instalações nucleares e anunciou a intenção de retirar-se do Tratado de Não Proliferação
Nuclear. Acompanhado de vários colegas da AIEA, eu estava prestes a fazer minha primeira
visita a uma usina de enriquecimento nuclear em construção, em Natanz, e apenas começando
a examinar a extensão do programa nuclear iraniano. Em breve, a Líbia começaria a fazer
propostas de negociação aos EUA e ao Reino Unido, relacionadas à dissolução de seus
programas de armas de destruição em massa. E começava a ser formado o ainda vago esboço
de uma rede ilícita e obscura de suprimentos nucleares. Posteriormente, encontraríamos sinais
de sua atividade em mais de 30 países.
Hoje, sabemos muito mais a respeito de cada um desses casos de proliferação de armas
nucleares, sejam eles reais ou em potencial. No Irã e particularmente na Coreia, as
circunstâncias continuam fluidas e imprevisíveis. Ainda não dispomos de uma abordagem
prática e da capacidade de reagir diante desses casos ou de situações futuras, por isso
precisamos de um compromisso com a diplomacia nuclear.

A Primeira Era Nuclear representou uma corrida pela bomba atômica: uma competição entre
um número relativamente pequeno de países que dispunham da sofisticação tecnológica
necessária, ou que então eram capazes de obter, de modo clandestino, o conhecimento
científico necessário para produzir armas nucleares. O clímax daquela corrida – a destruição de
Hiroshima e Nagasaki – foi atingido com a vitória dos Estados Unidos. Mas os demais
competidores não desistiram. Num intervalo de poucos anos, mais quatro países conseguiram
produzir a bomba.
O período que denominamos de Guerra Fria consistiu na Segunda Era Nuclear. Embora
vários países possuíssem armas nucleares e outros continuassem a desenvolvê-las, esta foi, de
fato, a era de dois gigantes: os Estados Unidos e a União Soviética, ambos acumulando
dezenas de milhares de ogivas, numa filosofia conhecida como MAD, sigla em inglês para
Destruição Reciprocamente Garantida, disfarçada sob o nome de “força de dissuasão nuclear”.
A Terceira Era Nuclear, a era atual, teve início após o colapso da União Soviética. No vácuo
de poder que se seguiu, a comunidade política não foi capaz de capitalizar as oportunidades
para promover um desarmamento nuclear. Como resultado, cada vez mais países começaram a
cogitar a possibilidade de ter um programa de armas clandestinas, ou então um ciclo completo
de combustíveis nucleares que lhes desse a capacidade de produzir uma arma nuclear
rapidamente, caso a situação, no que diz respeito à segurança, assim exigisse.
Atualmente, o problema essencial não é o cenário MAD – ataques pesados com o uso de
arsenais nucleares a varrer as grandes metrópoles que abrigam tanto o capitalismo quanto o
comunismo –, mas a ameaça de uma guerra atômica assimétrica: a aquisição e o uso de armas
nucleares por grupos extremistas, por um país “de patifes” comandado por um ditador
agressivo, ou ainda por uma grande potência contra um Estado desprovido de tecnologia e
armas nucleares.
Essa situação é fatalmente instável, e os desdobramentos ocorridos em anos recentes só
fizeram exacerbar tal instabilidade. Testemunhamos agressões em locais onde não havia uma
ameaça iminente (Iraque); a falta de ação e a hesitação em um momento de real ameaça
(Coreia do Norte); e um impasse prolongado, estimulado por insultos e por um exibicionismo
público em vez de um diálogo significativo (Irã). Ao longo dos anos, trouxemos à tona uma
rede nuclear ilícita e próspera, pronta para suprir programas nucleares clandestinos. Enquanto
isso, a autossuficiência de alguns países em relação às armas nucleares continua sendo um
constante estímulo para que outras nações as adquiram.
Essa instabilidade crescente significa que estamos no crepúsculo da Terceira Era Nuclear.
De um modo ou de outro, estamos à beira de uma mudança significativa. Se não fizermos nada,
numa tentativa de manter o statu quo que opõe os países detentores de tecnologia nuclear aos
não detentores, é provável que a mudança assuma a forma de uma verdadeira proliferação em
efeito cascata ou, pior ainda, uma série de conflitos nucleares. Os sinais já são visíveis,
sobretudo na reação de países vizinhos no momento em que surgem ameaças nucleares, reais
ou aparentes. O recente crescimento do número de países no Oriente Médio envolvidos em
diálogos sobre tecnologia e conhecimento nucleares, ou que têm começado a adquiri-los, é
apenas um exemplo disso. Outro exemplo foi a resposta do Japão ao primeiro teste com armas
nucleares na Coreia do Norte: iniciar debates sobre um programa de armas nucleares
japonesas.
Há também uma saída. Podemos alterar o rumo das coisas e adotar uma abordagem diferente
para essa assimetria: um genuíno progresso na direção do desarmamento nuclear global. Um
novo acordo de redução de armas firmado entre os gigantes nucleares do planeta em que eles
assumam responsabilidades pela necessidade de desarmamento – esses são os caminhos que
poderiam nos conduzir em direção a um futuro de maior segurança. Se prestarmos atenção às
lições do passado recente e se pudermos enfrentar a ameaça real que está bem diante de nós,
seremos capazes de evitar a aniquilação mútua e garantir que o início da Quarta Era Nuclear
seja marcado pela resolução de tensões no plano nuclear: o desarmamento e a paz duradoura.

1 • Iraque, primeiro round


DEPOIS DA GUERRA

Para que se possa contemplar o cenário nuclear de 2003, é necessário retornar ao início da
década de 1990, quando dois programas nucleares vieram à tona: primeiro, o programa secreto
de Saddam Hussein de desenvolvimento de armas nucleares, descoberto depois do término da
Guerra do Golfo, em 1991; em segundo lugar, o desvio de plutônio e o ocultamento de
instalações nucleares pela Coreia do Norte, revelados pela AIEA no ano seguinte.
No caso do Iraque, o conhecimento da agência sobre o programa nuclear do país no início da
primeira Guerra do Golfo se limitava, basicamente, ao Centro de Pesquisas Nucleares
Tuwaitha, situado ao sudeste de Bagdá, a poucas horas de carro da capital. Em suas
negociações com a AIEA, o Iraque declarou possuir dois reatores para pesquisas situados em
1

Tuwaitha, bem como um pequeno laboratório para a fabricação de combustível e instalações


para seu armazenamento. Duas vezes ao ano, a agência inspecionava essas instalações, a fim de
certificar-se de que nenhuma parte das substâncias nucleares declaradas fosse desviada do uso
pacífico para o desenvolvimento de armas.
Terminada a guerra, os inspetores da AIEA encontraram evidências de outras atividades
nucleares não declaradas em Tuwaitha, além de uma série de instalações ilícitas pelo país. A
AIEA foi responsabilizada por não ter detectado antes esses aspectos clandestinos do programa
nuclear iraquiano. No entanto, essa culpa deve ser pelo menos parcialmente atribuída às
limitações impostas às autoridades de inspeção da AIEA. Esperava-se apenas que a agência
verificasse os dados que um determinado país tivesse declarado. Nossa autoridade e nossos
mecanismos eram restritos para proceder à busca de materiais ou instalações nucleares que não
tivessem sido formalmente declarados.
Isso pode soar um tanto ingênuo, e de fato era. Para regimes dispostos a ocultar suas
atividades ilícitas, a AIEA era como um policial que faz a ronda de olhos vendados. Contudo,
as perguntas se multiplicavam: por que a AIEA não contestou a incompletude das declarações
feitas pelos iraquianos? Por que não foram solicitadas inspeções especiais? Como é que podem
ter “escapado” à AIEA as ambições maiores do Iraque, no plano nuclear?
Essas perguntas têm boas respostas. Além das limitações impostas à autoridade da agência,
havia na época poucas informações substanciais sobre os programas nucleares clandestinos do
Iraque. Ou, pelo menos, se tais informações existiam, elas não eram compartilhadas com a
AIEA. Mas, para a verdadeira compreensão da situação, é necessária uma perspectiva
adicional: (1) alguns aspectos relacionados ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, do qual
deriva grande parte da autoridade de verificação da AIEA; e (2) uma visão de conjunto básica
do ciclo de combustíveis nucleares, a fim de corrigir eventuais concepções equivocadas.

O TNP, ou Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, foi implementado em 1970. A


despeito de todas as suas lacunas, ele permanece sendo um dos acordos que mais receberam
adesão em toda a história. No final de 2010, 189 países eram signatários. Apenas três países –
Índia, Paquistão e Israel – jamais concordaram em assiná-lo, e a Coreia do Norte retirou sua
adesão.
O TNP está estruturado em torno de “três pilares” com os quais seus signatários estão de
acordo. O conjunto desses “pilares” inclui uma negociação de delicado equilíbrio.
Em primeiro lugar, os países-membros que não possuem armas nucleares, também
conhecidos como Estados sem armas nucleares (NNWS, na sigla em inglês), comprometem-se
a não buscar ou desenvolver tais armas. Cada um dos países-membros tem a obrigação de
firmar um acordo bilateral juridicamente compulsório com a AIEA, conhecido como “acordo
de salvaguardas abrangente”. Segundo as cláusulas, o país promete colocar todas as suas
substâncias nucleares sob a proteção da AIEA, para garantir, por meio de controles concretos e
rigorosos procedimentos contábeis, que esse material não seja desviado para a fabricação de
armas nucleares. Esse acordo confere à agência a autoridade de verificar o cumprimento dos
termos.
Em segundo lugar, todos os signatários do TNP se comprometem a conduzir negociações
“em boa-fé”, com a finalidade de buscar o desarmamento nuclear . De modo significativo, isso
2

inclui os cinco Estados que o TNP reconhece como detentores de armas nucelares: China,
França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, aos quais se refere como Estados com armas
nucleares (NWS, na sigla em inglês) . Os países NWS também se comprometem a sob
3

nenhuma circunstância ajudar os países NNWS a adquirir armas nucleares.


O terceiro aspecto é que todos os signatários concordam em facilitar o uso da energia
nuclear para fins pacíficos em todos os países-membros, com uma particular atenção às
necessidades dos países em desenvolvimento. Isso inclui a troca de equipamentos relevantes,
de substâncias e de informações científicas e tecnológicas.
O tratado contém inúmeras falhas. Como já apontei, sua execução é frágil: durante décadas,
a expectativa foi que a AIEA apenas inspecionasse, ou “verificasse”, o que fora declarado
pelos signatários do TNP. Os aspectos do tratado relacionados ao desarmamento são ainda
mais débeis: não existe nenhum mecanismo capaz de verificar o progresso prometido pelos
membros no que diz respeito às negociações, nem um órgão de fiscalização, tampouco
qualquer penalidade pelo descumprimento de suas cláusulas. Por fim, o tratado contém um
aparente paradoxo: ao obedecer à terceira parte da negociação – facilitando a troca de
equipamentos e substâncias nucleares, além de informações para fins pacíficos –, os signatários
do TNP estão, simultaneamente, aumentando a capacidade dos países NNWS de buscar armas
nucleares, particularmente quando a tecnologia do ciclo de combustível nuclear está envolvida.
Esse dilema está relacionado ao duplo potencial da ciência e da tecnologia nucleares e se
encontra no cerne da diplomacia nuclear. A ciência nuclear é o exemplo extremo de um dilema
clássico: as sociedades humanas são capazes de usar seus avanços tecnológicos para o bem ou
para o mal. Não importando se seu uso final será uma nuvem de cogumelo ou um isótopo
medicinal utilizado na cura do câncer, grande parte da ciência e da tecnologia será exatamente
a mesma. As intenções é que diferem: o conhecimento nuclear adquirido será usado para fins
de agressão militar e ampla destruição? Ou para a obtenção de um grande número de
benefícios nucleares que já são garantidos aos cidadãos dos países industrializados – energia e
medicina, por exemplo, ou produtividade agrícola, controle de pragas, controle das águas
subterrâneas, ou testes industriais? Uma coisa é negar aos outros países a possibilidade de
possuir armas nucleares, porém negar-lhes o direito de usar a ciência nuclear para fins
pacíficos não se justifica de modo algum e anularia por completo a razão da existência do TNP.

Uma palavra em relação ao ciclo de combustível nuclear: termos como “enriquecimento”,


“conversão de urânio” e “separação de plutônio” passaram a fazer parte do vocabulário
comum, sendo mencionados em artigos da imprensa tradicional e em documentos de políticas
públicas. Entretanto, constantemente me deparo com concepções equivocadas a respeito da
natureza, das intenções e da legitimidade desses processos nucleares. Para poder entender os
interesses envolvidos na diplomacia nuclear dos anos recentes, um leigo precisaria ter pelo
menos uma compreensão básica do ciclo de combustível como um todo, assim como quais
partes desse ciclo são mais vulneráveis à proliferação de armas.
Trata-se de tarefa arriscada, mesmo para o mais bem versado advogado, fazer
esclarecimentos sobre tecnologia nuclear. Portanto, limitarei minha explicação do ciclo de
combustível nuclear a uma série simples de passos.

[1] Mineração: O minério de urânio é extraído da terra. Assim como ocorre na natureza, o
urânio é predominantemente formado pelo isótopo de urânio-238. Apenas 0,7% é de urânio-
235, que é “físsil”, ou seja, ele pode sustentar uma reação nuclear em cadeia.
[1] Moagem: O minério é processado através da moagem e da filtragem química, a fim de
produzir o yellowcake, que constitui um concentrado de urânio.
[2] Conversão: Por meio de uma série de processos químicos, o yellowcake é transformado em
gás hexafluorido de urânio (UF6), a matéria-prima para o enriquecimento em centrífugas.
Nesta etapa, o UF6 ainda é considerado “urânio natural”, já que a concentração relativa de
U-238 e U-235 não foi alterada.
[3] Enriquecimento: À medida que as centrífugas são alimentadas com o UF6, a concentração
do U-235 é aumentada e há um equivalente decréscimo da concentração de U-238. O
enriquecimento aumenta a capacidade do urânio de produzir energia nuclear.
[4] Produção de combustível: O urânio enriquecido é convertido em pó, processado em
pastilhas de cerâmica e colocado dentro de varetas de combustível que, em seguida, serão
dispostas em elementos de combustível que impulsionarão o núcleo do reator.
[5] Armazenamento: Depois de utilizado no reator, o combustível nuclear empobrecido – em
grande parte, agora, U-238, não havendo U-235 em quantidade suficiente para sustentar a
reação – normalmente é armazenado em um “reservatório de combustível queimado”. O
combustível empobrecido também contém 1% do plutônio físsil, criado como um
subproduto no reator.
[1] Reprocessamento: Considerando que apenas uma pequena porcentagem da energia nuclear
é utilizada em um ciclo normal de reator, alguns países reciclam o combustível queimado,
recuperando (ou “separando”) o urânio e o plutônio para a reutilização.

As centrífugas de gás usadas no enriquecimento de urânio têm a aparência de cilindros


4

compridos e finos, com canos de descarga embutidos. Elas giram em alta velocidade – mais de
20 mil r.p.m., o suficiente para que os átomos do urânio-238, com três núcleos mais pesados do
que o urânio-235, se desloquem para o exterior do tubo e possam ser separados à medida que
saem. No momento em que as centrífugas múltiplas são alinhadas, ou “em cascata”, o gás UF6
passa de uma para outra e é gradualmente “enriquecido” até obter uma porcentagem mais alta
de U-235. Como o U-235 consiste apenas de uma diminuta porcentagem do urânio natural, é
necessário um grande volume de material bruto para produzir um volume bastante pequeno de
substância enriquecida. Isso faz com que as centrífugas tenham de permanecer girando durante
semanas ou meses a fio, o que significa que não é fácil projetá-las ou construí-las e que podem
ser fabricadas apenas com metais especiais, capazes de suportar tal impacto.
A maioria dos reatores a água leve, que utilizam o combustível nuclear para a produção de
eletricidade, necessita do urânio enriquecido a um nível de aproximadamente 3,5% de U-235.
O “urânio altamente enriquecido” (HEU, na sigla em inglês) está relacionado a qualquer nível
de enriquecimento que ultrapasse 20%. O urânio enriquecido a 90%, ou a uma porcentagem
maior, geralmente é classificado na categoria de arma; entretanto, muitos reatores de pesquisa
em todo o mundo também usam o combustível de urânio enriquecido a 90% para fins
pacíficos, como por exemplo a produção de isótopos medicinais.
Contrariando as concepções equivocadas mais comuns, os passos de 1 a 7 são elementos de
um ciclo de combustível nuclear para fins pacíficos. A despeito do que artigos da imprensa às
vezes possam sugerir, o enriquecimento de urânio (ou a separação de plutônio) não é um
indicador inerente da intenção de desenvolver armas nucleares. Dado que o plutônio e o HEU
são as substâncias que podem ser usadas de modo direto nas armas nucleares, os dois aspectos
do ciclo de combustível mais diretamente associados à proliferação são, respectivamente: o
reprocessamento, no qual o plutônio é separado; e o enriquecimento, que pode produzir o
HEU. Porém, tanto o HEU quanto o plutônio também podem ser usados como combustíveis do
reator, a fim de gerar eletricidade. Assim, nenhuma dessas operações de ciclo de combustível é
“ilegal”; todas elas fazem parte dos direitos de qualquer Estado signatário do TNP. Cabe
atentar para algumas advertências: as instalações e atividades relevantes devem ser
“declaradas” ou comunicadas à AIEA, e meios de proteção devem ser empregados a fim de
verificar se o material utilizado está devidamente registrado, e não é desviado para a utilização
em armas nucleares.
Uma dúzia de países realiza operações de ciclo de combustível nuclear. Portanto, um
número razoável de Estados sem armas nucleares possui reservas de plutônio (separadas por
meio do reprocessamento de combustível nuclear queimado) que podem ser prontamente
aplicadas a um programa de armas nucleares. Assim, à medida que um número maior de países
se industrializa e o conhecimento sobre a energia nuclear é disseminado, aumenta a
probabilidade de mais Estados levarem em consideração estratégias econômicas e de outra
natureza associadas à utilização do ciclo de combustível nuclear.
É nesse ponto que a situação se complica. A disseminação da tecnologia nuclear vem
acompanhada de um risco crescente de sua proliferação. Assim, os Estados que já dominam o
ciclo de combustível nuclear não estão dispostos a renunciar a esse conhecimento, mas
preferem que nenhum outro país os adquira. Os países sem tal tecnologia ressentem-se dessa
avareza. E, de fato, sob as cláusulas de negociação do TNP, os países detentores de tecnologia
nuclear são obrigados a compartilhá-lo. A queixa vem, sobretudo, do fato de os Estados com
tal tecnologia não terem cumprido sua parte no trato: negociar “em boa-fé” e “o mais breve
possível” condições que conduzam ao desarmamento nuclear. Os Estados que detêm a
tecnologia gozam de um status invejado pelos demais, já que as armas nucleares tornaram-se
sinônimo de influência e poder políticos, bem como uma segurança contra possíveis ataques.
Olhando em retrospecto, a emergência dos primeiros programas nucleares clandestinos no
Iraque e na Coreia do Norte, no início da década de 1990, talvez não devesse causar surpresa.
Com a Guerra Fria chegando à sua fase final, não era mais possível se fiar no equilíbrio de
poder entre a União Soviética e os Estados Unidos para manter uma relativa paz. Países não
explicitamente protegidos sob um “guarda-chuva nuclear”, como era o caso dos membros da
OTAN ou de outros aliados dos EUA, talvez estivessem se deparando, e de modo justificável,
com uma crescente sensação de insegurança. É possível política de segurança mais eficaz do
que o desenvolvimento oculto de armas nucleares?

É nesse contexto que o programa nuclear do Iraque foi descoberto no final da Guerra do Golfo,
em 1991. Embora os EUA tenham apontado as emergentes ambições nucleares do Iraque como
uma das muitas razões para empreender uma ação militar , na verdade, sabia-se muito pouco
5

sobre o verdadeiro potencial nuclear daquele país antes da guerra. Fontes do Serviço de
Inteligência norte-americano teriam afirmado que o Iraque supostamente tinha ambições em
relação às armas nucleares – baseadas, entre outros indícios, em tentativas do país de adquirir
componentes para o enriquecimento nuclear e outras tecnologias nucleares de vários países
europeus . Essa informação, contudo, não foi apresentada à AIEA. Até dois meses antes da
6

guerra, inúmeros veículos da mídia começaram a divulgar reportagens irrefletidas e


inconsistentes sobre o potencial nuclear do Iraque . Porém, o melhor indício da extensão das
7

informações secretas em poder do Ocidente, no período anterior à guerra, é a afirmação de que


os Estados Unidos tinham apenas duas instalações nucleares em sua lista de alvos para
bombardeio, ao passo que, na inspeção pós-guerra, 18 instalações foram identificadas pela
AIEA. Na realidade, foi a invasão e a ocupação do Kuwait por Saddam Hussein que ofereceu à
coalizão liderada pelos EUA a justificativa para a invasão.
Em 3 de abril de 1991, menos de dois meses depois do final da guerra, o Conselho de
Segurança da ONU emitiu uma resolução com um extenso conjunto de regras a serem
cumpridas pelo Iraque. Naturalmente, ela incluía obrigações tais como respeitar os limites da
fronteira entre Iraque e Kuwait, a devolução de bens e propriedades do Kuwait, e indenizá-lo
pelos feridos, por perdas e danos. Mas parte significativa da resolução dedicava-se às
demandas do Conselho para que o Iraque se livrasse das armas de destruição em massa.
Em relação à questão nuclear, a Resolução 687 exige do Iraque a total honestidade – que o
país faça uma declaração completa de todas as suas instalações nucleares e de suas substâncias
nucleares classificadas na categoria de armas. Ela solicita ao diretor-geral da AIEA que inicie
inspeções imediatas baseadas nas declarações do Iraque e que desenvolva um plano dentro de
45 dias para destruir ou retirar do país quaisquer instalações industriais associadas a armas
nucleares. A resolução instala também a UNSCOM, Comissão Especial das Nações Unidas, à
qual foi conferida uma missão semelhante, relacionada aos programas de armas biológicas e
químicas e sistemas de entrega de mísseis de longo alcance do Iraque .
8

Tanto a AIEA quanto a UNSCOM receberam carta branca para buscar e eliminar os
programas de armas de destruição em massa do Iraque “a qualquer momento, em qualquer
lugar”. Do ponto de vista de um inspetor, tal medida parecia idílica. Mas somente funcionou
porque o Iraque tinha sido recentemente derrotado e não dispunha mais de recursos militares.
Nenhum outro país teria aceitado tais condições.
A primeira equipe de inspeção da AIEA, liderada pelo inspetor-chefe Demetrius Perricos,
aterrissou em Bagdá em 14 de maio de 1991, dirigindo-se diretamente para a instalação nuclear
de Tuwaitha. Após ver uma série de imagens aéreas, a equipe esperava deparar-se com um
cenário de destruição após a Guerra do Golfo. E, de fato, todos os principais edifícios de
Tuwaitha haviam sido alvo de bombardeios.
O primeiro objetivo dos inspetores era localizar e proteger o combustível de urânio
altamente enriquecido, destinado aos dois reatores de pesquisa. Os peritos técnicos iraquianos
pareciam bastante dispostos a colaborar. Revelou-se, então, para a surpresa dos inspetores, que
o combustível irradiado havia sido deslocado no auge do bombardeio, segundo os iraquianos.
Eles reenterraram esse combustível em poços de concreto construídos apressadamente, numa
gleba de terra sem qualquer característica marcante, no distrito vizinho de Garf al Naddaf, para
evitar que fosse destruído ou perdido. Com a colaboração dos iraquianos, os inspetores se
dispuseram, de imediato, a localizar e a iniciar a verificação de todas as substâncias nucleares
em questão, baseados em inventários elaborados antes da guerra.
No entanto, atingir o segundo objetivo essencial – desvendar quaisquer atividades nucleares
não declaradas anteriormente – se revelaria uma tarefa nada simples. Aparentemente, sem
contar toda a destruição causada pelos bombardeios, os iraquianos foram além da destruição de
edifícios e construções. Tudo indicava que os equipamentos de alguns deles haviam sido
retirados e havia sinais de registros operacionais e outros documentos queimados. Certificar-se
quanto ao objetivo das instalações de Tuwaitha que não tinham sido alvo de inspeções prévias
da AIEA revelou-se uma tarefa complicada.
Observações de natureza semelhante foram feitas em outra instalação, em Tarmiya, ao norte
de Bagdá, onde havia boatos sobre atividades nucleares. Os iraquianos afirmaram que as
instalações de Tarmiya eram usadas para a manufatura de transformadores elétricos. Porém, na
avaliação da equipe da AIEA, tal explicação não condizia com certos fatos: por exemplo, a
enorme quantidade de carga elétrica exigida pelas instalações de Tarmiya, bem como o volume
e a disposição dos equipamentos elétricos de distribuição. Quando tais discrepâncias eram
apontadas, os colegas iraquianos não conseguiam apresentar explicações plausíveis (ou se
recusavam a tanto).
Já em sua primeira inspeção, começavam a ser delineados os desafios que os inspetores de
salvaguarda da agência teriam de enfrentar.
Aqui, mais uma vez, é importante que se corrija uma concepção comumente equivocada. Os
inspetores da AIEA não são detetives, tampouco agentes de segurança ou policiais. Estão
acostumados a buscar e a apontar discrepâncias qualitativas – incluindo ocultamentos
deliberados – e não se furtam a enfrentar o grupo que está sendo inspecionado, mediante a
apresentação de provas. Mas o estilo deles é respeitoso, não importando se o alvo de inspeção é
o Canadá, a África do Sul, o Japão ou a Holanda – ou, nesse caso, o Iraque. De minha parte,
tenho uma firme convicção de que tal respeito, característico das inspeções da AIEA, tem se
mostrado, repetidas vezes, uma importante qualidade da agência.
Além disso, a AIEA não é uma agência de espionagem. Nossos inspetores não se envolvem
com espionagem, tampouco usam métodos fraudulentos para chegar à verdade. Não temos
acesso ao banco de dados das equipes policiais, da Interpol ou de serviços de inteligência
nacionais, a menos que essas organizações optem por colocar à nossa disposição informações
que possam ser relevantes. As informações são disseminadas dentro da AIEA apenas à medida
que a necessidade surge.
No início da década de 1990, no Iraque, na Coreia do Norte e em outros países, o
relacionamento entre os serviços de inteligência e as organizações de inspeção internacional
ganhou contornos de uma dança excêntrica. Em contrapartida, por terem compartilhado
informações privilegiadas com a AIEA e a UNSCOM, os serviços de inteligência demandavam
o acesso privilegiado aos resultados da inspeção. Estava perfeitamente claro o porquê disso: a
AIEA e a UNSCOM tinham um maior acesso in situ e conseguiam, desse modo, fazer uso das
informações confidenciais com alta eficiência, desvendando e relatando os fatos de uma
maneira que os serviços de inteligência não eram capazes de fazer. Porém a AIEA se recusava
a aceitar um acordo nesses termos. O fluxo de informações, pela própria necessidade da
circunstância, deveria ser de mão única: para manter sua integridade e legitimidade, a AIEA
não poderia divulgar informações privilegiadas ao serviço de inteligência de um país, como
uma espécie de favor.
A agência se mostrava inflexível em relação à sua independência, situação que, às vezes,
criava conflitos com alguns Estados. Isso ficou evidente durante a negociação da Resolução
687 do Conselho de Segurança, momento em que os Estados Unidos tentaram conferir à
UNSCOM a liderança do processo de inspeções, em detrimento do interesse da agência. Para
mim, os motivos eram claros. A UNSCOM era um órgão novo; por necessidade, ela seria uma
organização ad hoc, um órgão subsidiário ao Conselho de Segurança, cujos atores principais
seriam capazes de exercer grande influência sobre suas operações. Os inspetores da UNSCOM
foram rapidamente selecionados em órgãos e laboratórios governamentais, que lhes ofereciam
as habilidades necessárias a essas tarefas (familiaridade com toxinas biológicas e químicas e
com a tecnologia de mísseis de longo alcance). Assim, seria mais fácil infiltrar-se na
UNSCOM do que na AIEA, uma organização já estabelecida, com conhecimentos na área
nuclear e com ação independente.
Na condição de consultor jurídico da agência, à época eu estava em Nova York durante a
negociação da resolução. Encontrei-me várias vezes com Robert Gallucci, diplomata e
acadêmico norte-americano e futuro vice-diretor executivo da UNSCOM. A AIEA tentou, a
todo custo, insistir em sua independência para o manuseio dos arquivos nucleares. Em grande
medida, fomos bem-sucedidos. Posteriormente, Gallucci reconheceu a existência de
divergências internas em certos círculos governamentais norte-americanos, nos quais reinava
uma grande insegurança quanto à capacidade da AIEA em lidar com essa tarefa. Por outro
lado, para outras pessoas, a preocupação era a de que conferir à UNSCOM a autoridade
principal significaria causar danos à credibilidade da AIEA . A linguagem de
9

comprometimento contida na resolução soava bastante branda: à AIEA caberia cumprir sua
missão “com a assistência e a cooperação da Comissão Especial”. Porém, para Gallucci, essa
linguagem dava à UNSCOM o poder de colocar o “focinho de seu camelo dentro da barraca”
da AIEA .
10

Decerto, era importante que existisse cooperação entre as duas agências, particularmente na
área logística. Considerando que muitas das instalações que nós devíamos inspecionar haviam
sido bombardeadas, havia riscos de segurança associados a arsenais não detonados. A
UNSCOM recrutara peritos em descarte de arsenais explosivos para acompanhar as equipes de
ambas as agências. De sua parte, ela tinha muito a aprender com a organização e a disciplina
das equipes da AIEA, que vinham trabalhando juntas havia muitos anos e, em alguns casos,
estavam familiarizadas com seus colegas iraquianos e com o modo iraquiano de operar.
Não resta dúvida de que as personalidades envolvidas influenciaram o relacionamento entre
as duas agências. Hans Blix, o então diretor-geral da AIEA, ocupara o posto de ministro das
Relações Exteriores da Suécia. Rolf Ekeus, que foi nomeado diretor da UNSCOM, também foi
diplomata sueco. No que diz respeito às relações exteriores, Blix ocupava um posto mais alto
na hierarquia, porém visivelmente não gostava de receber instruções de Ekeus em assuntos nos
quais a UNSCOM assumira a liderança. Tampouco ajudava o fato de a UNSCOM ter sua sede
em Nova York, onde recebia grande parte da atenção da mídia, em um momento em que a
AIEA era um tanto quanto obscura. O relacionamento entre ambas foi facilitado, em parte, por
Maurizio Zifferero, cientista italiano que ocupava o cargo de diretor do Grupo de Ação da
AIEA no Iraque, mostrando grande eficácia na resolução de conflitos entre as duas
organizações.

Na época da segunda inspeção no Iraque, entre 22 de junho e 4 de julho de 1991, o cenário já


estava preparado para o drama. Um determinado serviço de inteligência partilhou imagens de
reconhecimento com a AIEA que mostravam um aumento repentino das atividades iraquianas
ocorridas imediatamente após a partida da primeira equipe de inspeção, numa área próxima às
instalações de Tuwaitha. Um conjunto de grandes discos metálicos fora desenterrado do local e
levado para um novo lugar.
Também vieram à tona informações sobre um suposto programa de enriquecimento que os
iraquianos vinham conduzindo em segredo, por meio de uma técnica denominada “separação
de isótopo eletromagnética” (EMIS, na sigla em inglês). Nesse método, era usada uma
máquina chamada “calutron”, uma espécie de espectrômetro de massas posicionado entre
eletroímãs de grande escala, inventado na Universidade da Califórnia. Tal processo não tem
grande eficácia e consome uma quantidade enorme de eletricidade. Especialistas que já
conheciam o programa Calutron do Projeto Manhattan examinaram as imagens dos inspetores
11

da AIEA, bem como relatórios sobre as instalações de Tarmiya, e concluíram que havia
indícios de operações de enriquecimento do tipo EMIS.
Os iraquianos continuavam negando a posse de um programa não declarado de
enriquecimento de urânio, portanto era importante encontrar os equipamentos que pudessem
comprovar tal fato. Desde cedo, a segunda inspeção transformou-se numa espécie de caça.
Afirmou-se que o novo local dos discos desenterrados, suspeitos de serem ímãs para
processamento por EMIS, era um campo militar. Quando a equipe da AIEA chegou, conforme
estava agendado, o acesso lhes foi negado. Seus membros protestaram junto aos altos escalões
do governo iraquiano e, três dias depois, o acesso foi autorizado. A essa altura, entretanto, o
equipamento não estava mais no local.
Alguns dias depois, a equipe recebeu informações sobre a nova localização: outro amplo
campo militar. Dessa vez, um grupo de inspetores da AIEA apareceu sem aviso prévio.
Novamente, foram barrados na porta. Porém, dois membros da equipe subiram pela escada
externa da torre de água ao lado; do topo, puderam avistar um comboio de caminhões deixando
o local pela saída dos fundos do campo. Dois outros integrantes passaram a persegui-los em
um carro da ONU, “costurando” caoticamente por entre os mercados locais, até conseguir
encontrar a estrada correta. A persistência rendeu frutos: quando acharam o comboio,
descobriram cerca de cem veículos carregados com equipamentos aparentemente de natureza
nuclear, grande parte dos quais nem chegara a ser coberto, na pressa da fuga. Foi um avanço
significativo ter apanhado os iraquianos nessa flagrante tentativa de ocultamento.
No início de julho, Blix e eu viajamos para Bagdá. Na ocasião, éramos membros de uma
delegação de alto nível formada pelo secretário-geral da ONU, Javier Pérez de Cuéllar. Para
grande desgosto de Blix, a delegação era chefiada por Ekeus. Nosso objetivo era pressionar o
governo iraquiano para que deixasse de impedir o processo de inspeção e apresentasse uma
declaração completa de seu programa nuclear, sem nada ocultar.
A princípio, os iraquianos continuavam negando. O presidente do Comitê de Energia
Atômica iraquiano, Dr. Human Abdel Khaliq Ghaffour , insistia em que Blix e eu
12

confiássemos nas palavras dos iraquianos. Quando estávamos juntos no carro, ele nos jurou –
apesar das provas no sentido contrário – que o Iraque não realizara quaisquer atividades de
enriquecimento não declaradas. Insistiu em dizer que o programa nuclear iraquiano era
totalmente pacífico.
Mas a pressão internacional era crescente. O Conselho de Segurança da ONU estabeleceu
um prazo, deixando claro que estava pronto para autorizar ações extras. Uma nova equipe de
inspeção da AIEA chegou ao local, preparada para seguir novas pistas.
Em 7 de julho, as autoridades iraquianas finalmente cederam, fornecendo à AIEA uma
extensa lista de equipamentos, acompanhada de sua localização. Essa nova declaração incluía
não apenas o enriquecimento do tipo EMIS, mas também atividades de enriquecimento
químico e em centrífugas, bem como o reprocessamento que haviam realizado a fim de separar
alguns poucos gramas de plutônio. A declaração incluía ainda uma lista de instalações de
manufatura e de manutenção. Revelava a existência de quase 400 toneladas de urânio não
enriquecido, parte das quais fora importada do Brasil, do Níger e de Portugal, mas que jamais
tinham sido declaradas à AIEA.
Guardo uma lembrança nítida de uma cena dessa visita. Blix e eu havíamos acompanhado os
membros de uma equipe de inspeção, que incluía funcionários tanto da UNSCOM quanto da
AIEA, a um local no meio do deserto. Os iraquianos nos mostraram, então, o que alegavam ser
equipamentos calutron, que haviam destruído e enterrado para que não fossem detectados.
Estávamos em pleno verão iraquiano, com altíssimas temperaturas; nossos inspetores, tendo de
medir e catalogar aqueles enormes pedaços de metal, claramente tinham diante de si uma tarefa
exaustiva.
De modo abrupto, David Kay – um ex-gerente de nível médio no Programa de Cooperação
13

Técnica da AIEA, com pouca ou nenhuma experiência prévia em inspeções de salvaguardas –


decidiu que um dos principais cientistas iraquianos devia ser interrogado ali mesmo. Erguendo
o braço de um modo melodramático, gritou: “Vamos dar início às investigações!”. Blix e eu
ficamos constrangidos. De imediato, chamamos Kay de lado e lhe dissemos que não era esse o
nosso estilo de realizar as inspeções. Nesse caso, nosso objetivo era trabalhar a fim de
conseguir a plena cooperação da parte dos iraquianos. Para nós, a intimidação e a humilhação
não eram táticas úteis.
Na época, a nomeação de Kay como inspetor de salvaguardas da AIEA era, para mim, um
mistério. Até onde eu sabia, ele não tinha nenhuma experiência científica ou tecnológica; sua
formação era na área de Relações Internacionais. Ele me parecia uma pessoa brilhante, cortês e
articulada. Mas, assim que a AIEA o nomeou como integrante da Equipe de Ação no Iraque,
ele visivelmente passou por uma metamorfose. Viajamos juntos para Nova York na época em
que estava sendo discutida a implementação da Resolução 687. Sem me consultar nem me
avisar previamente, Kay havia agendado seus próprios encontros com autoridades do governo
dos EUA, um notável e radical desvio em relação às práticas usuais da AIEA.
Analisando em retrospecto, é bem possível que o serviço de inteligência norte-americano
estivesse trabalhando por intermédio de Kay para passar informações que pudessem ser
utilizadas pela equipe de ação da AIEA no Iraque. Sua nomeação para integrar a equipe da
AIEA tinha, inicialmente, objetivos administrativos e gerenciais; no entanto, lhe foi atribuída,
de algum modo, a função de liderar duas das inspeções mais importantes. Se Blix ou Zifferero
sabiam de alguma conexão entre Kay e o serviço de inteligência dos EUA, não tenho
conhecimento.
O estilo de inspeção de Kay – ao qual Robert Gallucci se referiu como “estilo caubói” – 14

era, felizmente, incomum entre os inspetores da AIEA, mas com a UNSCOM a situação era
diferente. Na mesma viagem ao deserto, testemunhei a cena de um importante cientista
iraquiano em prantos, indignado com o tratamento que recebera de um inspetor da UNSCOM,
que o acusara publicamente de ter mentido. Mais tarde, na viagem de ônibus voltando do
deserto, olhei ao redor. Havia inúmeros norte-americanos no ônibus. Muitos deles eram
provenientes de laboratórios domésticos nos EUA. Tecnicamente, eles eram altamente
qualificados, mas não faziam a menor ideia de como deviam conduzir inspeções internacionais,
tampouco das nuances de como se comportar diante de culturas diferentes. A julgar pelo tom
insolente de suas conversas, eles claramente acreditavam que, tendo sido enviados para um
país derrotado, tinham a liberdade de comportar-se como bem entendiam.
Conversei com algumas das pessoas sentadas perto de mim, no ônibus. Eu lhes dei
informações básicas sobre a abordagem feita pela AIEA: um profissionalismo com marcas de
tenacidade e respeito. Percebi que esse profissionalismo era uma característica de nossos
inspetores e havia sido desenvolvido ao longo de anos de experiência. Eu era crítico à rispidez
que notava no comportamento dos membros da UNSCOM.
O que se viu na sequência foi impressionante. Uma versão distorcida da conversa foi
retransmitida e ganhou impulso. Finalmente, chegou à revista New Yorker como relato
supostamente factual, em um artigo de Gary Milhollin, diretor do Projeto Wisconsin sobre o
controle de armas nucleares:

ElBaradei, recém-chegado àquele cenário, incorporava a tradição da AIEA. Diante de um incrédulo grupo de inspetores, ele
anunciava, como lembra Kay: “Os iraquianos não possuem um programa de enriquecimento de urânio. Sei disso porque
eles são meus amigos e me garantiram isso”. ElBaradei estava errado, é claro. Mas estava seguindo as instruções
determinadas por seus superiores da AIEA.15

Não afirmei nada disso. Os iraquianos já haviam começado a admitir que operavam por
meio de calutrons, e nós tínhamos acabado de ver enterrado o material que eles alegavam ser
componentes de calutron. Começavam a surgir, de vários lugares, provas de componentes e
instalações associadas ao enriquecimento. Teria sido um tanto quanto estúpido de minha parte
insistir na inexistência desses programas. No entanto, isso não afetou aquilo que foi publicado,
nem mesmo as histórias associadas ao episódio que circularam, as quais falavam na
incompetência da AIEA.
Alguns inspetores da UNSCOM continuavam a abusar de sua autoridade, sem o devido
respeito a aspectos religiosos e culturais. Eles irrompiam em mesquitas e igrejas, sem provas, a
fim de buscar armas de destruição em massa. Faziam inspeções durante feriados religiosos
locais, quando não havia urgência para tal procedimento. Posteriormente, insistiram na
necessidade de inspecionar os palácios de Saddam Hussein, não porque tivessem sólidas pistas
fornecidas por serviços de inteligência, mas aparentemente apenas para mostrar que eram
capazes de tais ações. Eu me perguntava, às vezes, como eles se sentiriam se estivessem no
lugar dos iraquianos.
Embora a maioria dos iraquianos sentisse repugnância a Saddam Hussein por seu cruel estilo
de governar, eles – como grande parte do mundo árabe – viam essas ações como uma afronta à
dignidade dos iraquianos e como humilhação. Longe de estimular a cooperação no Iraque, o
comportamento invasivo ao estilo “caubói” dos inspetores naturalmente provocou um
crescente ressentimento em meio aos iraquianos, sobretudo porque essas intrusões arbitrárias
jamais deram resultado.
O verão de 1991 já estava no fim, e ainda não tínhamos provas concretas sobre as intenções
do Iraque em relação às armas nucleares. Estava claro que o país ocultara suas atividades de
enriquecimento de urânio e de separação de plutônio. Porém, eles continuavam a sustentar a
posição de que a finalidade do programa era pacífica.
O momento decisivo ocorreu no final de setembro, durante a sexta inspeção da AIEA.
Novamente, informações secretas valiosas nos tinham sido transmitidas, dessa vez apontando
para dois edifícios no centro de Bagdá, escritórios do Ministério da Indústria e da
Industrialização Militar. Um lapso no sistema de segurança iraquiano deixara uma significativa
coleção de registros nesses edifícios. Quando os inspetores chegaram ao local, sem aviso
prévio, puderam analisar e apoderar-se de muitos desses documentos.
Os iraquianos proibiram a equipe de deixar o local com esses documentos; no entanto, os
inspetores – liderados por David Kay, da AIEA, e Robert Gallucci, da UNSCOM – recusaram-
se a ceder, permanecendo acampados no estacionamento. O impasse durou três dias e três
noites e foi televisionado ao vivo. A cena ficou famosa como o “confronto do estacionamento”.
No final, os iraquianos cederam. A documentação apreendida incluía um relatório de
atividades que, em linhas gerais, continha os esforços iraquianos em relação ao
desenvolvimento de armas. Embora o documento provasse que ainda precisariam de um ou
dois anos até que pudessem construir uma arma nuclear, ele demonstrava claramente as
intenções do governo iraquiano, provando que esse aspecto de seu programa nuclear era amplo,
bem organizado e com bases sólidas.
Meses depois, quando Kay recebeu um prêmio da agência, o embaixador iraquiano na
AIEA, Dr. Rahim al-Kital, apresentou uma queixa oficial a Blix. A queixa denunciava a
ocorrência de uma série de ações específicas – por exemplo, os inspetores teriam jogado
documentos oficiais no chão e pisado sobre eles, ou ameaçado trazer aviões de guerra dos
EUA. De acordo com o memorando de Al-Kital, membros da equipe de inspeção teriam
derrubado cercas, cortado linhas telefônicas e “aparecido nus no pátio do edifício, à vista dos
moradores dos apartamentos residenciais ao redor” .16
Essas acusações jamais foram confirmadas. Mas ficou claro que Kay e os outros membros
da equipe julgavam necessária alguma dose de agressividade, a fim de conseguir a cooperação
dos iraquianos. Embora no caso do confronto no estacionamento possa ser usado o argumento
de que certo grau de intimidação era justificado e tinha eficácia, em geral creio que o uso de
tais táticas é, em última instância, improdutivo. A longo prazo, uma abordagem agressiva e
arrogante destrói a cooperação. Independentemente de suas motivações, o comportamento da
equipe deixou uma impressão duradoura, particularmente no Iraque e no mundo muçulmano.
Após acabar de perder uma guerra, os iraquianos não tinham outra escolha a não ser aceitar tais
comportamentos.
No entanto, a ação mais prejudicial foi a decisão tomada por Kay e Gallucci de enviar ao
Departamento de Estado dos EUA o documento decisivo, antes que a AIEA ou a UNSCOM o
tivessem recebido. Gallucci argumentou que eles agiram dessa forma pelo fato de essa linha de
comunicação ser “mais confiável” . Entretanto, o resultado dessa ação causou danos à
17

reputação de ambos os órgãos não apenas aos olhos dos iraquianos, que acusaram a agência de
ter se transformado num “órgão de inteligência disfarçado de científico sob a tutela dos
Estados Unidos e seus aliados”, como também em toda a comunidade internacional. Apesar do
amplo apoio internacional dado às inspeções, os Estados-membros estavam atentos ao modo
como as inspeções vinham sendo conduzidas, e muitos deles tinham grande habilidade em
detectar quaisquer indícios de que os inspetores internacionais estavam conspirando junto aos
EUA ou a outros serviços de inteligência. Essa percepção continuaria a atormentar a
UNSCOM, em particular, e terminaria levando ao seu colapso.
A série posterior de inspeções nucleares no Iraque percorreu três caminhos paralelos. O
primeiro deles buscava aprofundar nossa compreensão dos aspectos relacionados às armas no
programa nuclear iraquiano, incluindo a identificação de locais planejados para testes com
altos explosivos. Um segundo caminho dava início à preparação para a remoção do urânio
altamente enriquecido do país . Um terceiro caminho tinha como foco a destruição dos
18

equipamentos de enriquecimento que haviam sido acumulados. Rotores de centrífugas foram


destruídos. Ímãs foram retalhados por meio de ferramentas de corte especializadas, feitas de
plasma. Aparelhos usados no manuseio de material nuclear, tais como células quentes e caixas
de luvas, foram inutilizados com o rompimento dos cabos de controle e o preenchimento de
contêineres com cimento.
Depois de pouco menos de um ano no local, o cumprimento da missão da AIEA no Iraque,
sob a Resolução 687, estava bem encaminhado. A origem do programa de armas nucleares de
Saddam Hussein tinha ficado clara – assim como, em grande parte, suas motivações. Os
aspectos clandestinos do programa começaram a aparecer em 1982, pouco depois do
bombardeio do reator de pesquisa de Osirak por Israel – reator este que estava sob a
salvaguarda da AIEA antes de começar a operar. Fossem quais fossem as inclinações prévias
de Hussein e seus colegas para buscar as armas de destruição em massa, isso só foi
intensificado pela humilhação provocada por essa experiência. O perceptível desequilíbrio da
região, sendo Israel o único detentor de armas nucleares, ficou em grande evidência. A
condenação da ação israelense pelo Conselho de Segurança, como clara violação do Direito
Internacional, não teve a mínima consequência. Israel simplesmente ignorou as solicitações do
Conselho de que colocasse suas próprias instalações nucleares sob a salvaguarda da AIEA e de
que o Iraque fosse indenizado. Assim, Saddam Hussein tomou para si a responsabilidade de
enfrentar o problema. Somos testemunhas, hoje, do resultado de tudo isso .
19
Logo após a descoberta do programa nuclear clandestino do Iraque, fiz duas visitas a
Washington e tive várias reuniões com indivíduos do Congresso e do Poder Executivo. A
pergunta que todos me faziam era: por que, ao longo dos anos, a construção do programa
nuclear não declarado do Iraque não fora detectada pela AIEA? Respondi de modo claro sobre
as falhas do sistema. Enfatizei que a agência deveria ter maior autoridade jurídica. O momento
era oportuno. Ninguém seria capaz de argumentar que o sistema de salvaguardas do TNP
funcionava de modo adequado. O programa iraquiano fora revelado somente depois de sua
derrota militar.
De volta a Viena, na Secretaria da AIEA, começamos a elaborar o conceito de um modelo
de Protocolo Adicional, a fim de dar maior solidez e maior clareza à autoridade de verificação
da agência dentro dos países. Da forma como foi concebido, o Protocolo Adicional seria um
adendo ao acordo de salvaguardas que cada país-membro do TNP devia assinar com a AIEA.
A iniciativa era complexa: uma mescla de considerações técnicas, jurídicas e sobre linhas de
ação. Um foco frequente de debates era: em que medida os Estados-membros seriam capazes
de tolerar as inspeções? Não se tratava de uma questão nova. No momento de negociação do
TNP, uma questão problemática central era a falta de disposição dos países para conferir a
excessiva autoridade de inspeção da AIEA . A descarada dissimulação protagonizada pelo
20

Iraque deixara claro que a implementação da salvaguarda internacional por meio de um


“código de honra” não era mais uma medida adequada; não bastava tampouco inspecionar
apenas aquilo que os países declaravam; a autoridade da AIEA também não bastava. Porém tal
realidade, embora fosse amplamente reconhecida, não nos dava nenhuma garantia de que os
Estados-membros se sujeitariam a uma inspeção mais ostensiva.
Infelizmente, o processo de desenvolvimento do modelo do Protocolo Adicional causou um
desentendimento entre Blix e mim. Eu era favorável ao envolvimento dos Estados-membros.
Blix, por sua vez, defendia que se deixasse o desenvolvimento do protocolo a cargo da
secretaria. Nós possuíamos os conhecimentos necessários, argumentava ele. Os funcionários da
AIEA deveriam esboçar um projeto do documento, trazê-lo para a apreciação do Conselho de
Governadores – composto de representantes de 35 Estados-membros – e continuar com um
processo de análise e revisão até que ele fosse aprovado. Na opinião de Blix, deixar a primeira
versão do documento a cargo dos Estados-membros era um indício de que o protocolo não iria
longe.
Logo ficou claro que a abordagem de Blix não estava funcionando. Para poderem aceitar o
conceito do Protocolo Adicional, os Estados-membros deveriam envolver-se em sua criação.
Propus a Blix que criássemos um grupo de trabalho com o envolvimento dos membros do
Conselho. Blix mostrou total reticência em relação à ideia.
Vários Estados-membros passaram a interpretar a sua própria exclusão como uma falta de
vontade da parte da AIEA de desenvolver aquilo que claramente se tornaria um mecanismo de
políticas decisivo e capaz de exercer influências. Representantes de um grupo de dez países
ocidentais, aos quais nos referíamos como “os anjos brancos”, devido ao seu firme apoio à não
proliferação, me contactaram. Queriam que eu pedisse a Blix que abandonasse o “apego” da
Secretaria ao Protocolo Adicional, permitindo um envolvimento do Conselho. É claro que falei
com Blix a esse respeito, e é claro que ele não gostou do fato de esses representantes não terem
falado diretamente com ele.
Esse incidente um tanto quanto trivial representou um marco nas claras tensões que
continuariam a existir entre nós dois. Talvez ele tenha achado que eu estava agindo às suas
costas. De qualquer modo, foi lamentável – sobretudo porque foi Blix quem me contratou para
trabalhar para a agência, e foi sob sua supervisão que eu rapidamente escalei os degraus da
hierarquia interna, passando de consultor jurídico a assistente do diretor-geral de Relações
Exteriores.
A controvérsia prosseguiu a portas fechadas. Por fim, o presidente do Conselho à época, o
embaixador canadense Peter Walker, simplesmente informou a Blix que ele assumiria a tarefa,
solicitando o apoio da Secretaria. Richard Hooper, um diretor do Departamento de
Salvaguardas que tinha bastante familiaridade com os conceitos de salvaguarda, foi nomeado
chefe do pessoal técnico. Quanto a mim, passei a atuar como líder em questões jurídicas e na
elaboração de políticas. O presidente do Conselho presidia também o grupo de trabalho. Blix
não compareceu a nenhuma das sessões. Era uma tarefa longa e complicada, diante da qual
muitos governos se colocavam em postura defensiva. As batalhas mais acirradas eram as
políticas; em grande parte, o sucesso se devia à hábil diplomacia praticada por vários dos
principais protagonistas.
Em 13 de maio de 1997, o modelo do Protocolo Adicional foi finalmente aprovado pelo
Conselho de Governadores da AIEA. Tratava-se de um decisivo instrumento jurídico que
fortaleceria a eficácia do sistema de salvaguarda do TNP. Então, o que havia mudado? Nos
países que adotaram o Protocolo Adicional, os inspetores da AIEA passaram a ter maior
liberdade in situ, com maior acesso às informações e aos locais inspecionados, podendo agora
realizar uma busca mais eficaz de instalações e substâncias nucleares não declaradas. No
passado, a AIEA teoricamente podia recorrer ao seu direito de buscar instalações e substâncias
não declaradas por meio de um mecanismo de “inspeção especial”. No entanto, era difícil
convocar tais inspeções, e o mecanismo praticamente não era colocado em prática. O Protocolo
Adicional permitia maior acesso às inspeções de rotina.
A adoção do modelo de Protocolo Adicional, um marco importante na história da
salvaguarda nuclear, tinha o potencial de provocar uma grande mudança. Os países que tinham
em vigor apenas um acordo de salvaguarda esperavam que a AIEA lhes desse uma garantia de
que as instalações e as substâncias nucleares declaradas não seriam desviadas para finalidades
não pacíficas. Mas, para os que passaram a adotar o Protocolo Adicional, a AIEA também seria
capaz de proporcionar uma segurança igualmente importante no tocante à ausência de
instalações e materiais nucleares não declarados.
Havia uma armadilha: enquanto o acordo de salvaguarda era compulsório para os membros
do TNP, o Protocolo Adicional era um mecanismo facultativo. E permanece sendo, até hoje.
Os membros do TNP não são obrigados a aceitá-lo, por mais que a AIEA ou os demais
Estados-membros os incitem a fazê-lo.
Eis outro importante obstáculo à compreensão pública do papel da AIEA. Em certo sentido,
a agência está à mercê dos países que inspeciona. Ela pode apenas exercer a autoridade que lhe
é conferida. Quando comecei, por exemplo, a viajar pelos países árabes na condição de diretor-
geral da AIEA, frequentemente fui alvo de críticas pela incapacidade da AIEA de “fazer algo”
a respeito do programa nuclear de Israel. Eu poderia me desdobrar em explicações, alegando
que não tínhamos autoridade para realizar inspeções em instalações israelenses: Israel, embora
fosse membro da AIEA, jamais assinou o TNP, muito menos um acordo de salvaguarda
abrangente com a AIEA . Para os povos árabes, no entanto, isso pouco importava; na visão
21

deles, éramos tendenciosos e estávamos nos esquivando de nossas responsabilidades.


Na verdade, se o grande público tivesse a plena compreensão da natureza irregular da
autoridade da AIEA, creio que haveria uma preocupação ainda maior. O desafio, hoje, é como
expandir essa consciência pública.
Considere a circunstância atual. No final de 2010, 13 anos depois da introdução do modelo
de Protocolo Adicional, muitos países signatários do TNP sequer colocaram em prática os
acordos de salvaguarda firmados com a AIEA . E, entre 189 membros do TNP, até agora em
22

apenas 102 o Protocolo Adicional começou a vigorar. Considerando o elevado número de


países que ainda não o adotaram, quando se trata de oferecer à comunidade internacional a
segurança que ela deseja, as mãos da AIEA continuam atadas.
É possível que outro Saddam Hussein esteja solto por aí, despercebido, operando com armas
nucleares clandestinas? A resposta é: no que se refere aos países que não aceitaram o Protocolo
Adicional, realmente não sabemos.

Em meados da década de 1990, a AIEA e a UNSCOM deram continuidade às suas operações


no Iraque. Todas as substâncias nucleares que poderiam ser aproveitadas como armas foram
retiradas do país, e todo o restante – aproximadamente 500 toneladas de urânio natural em
variadas formas e quase duas toneladas de dióxido de urânio de baixo enriquecimento – foi
colocado sob o controle da AIEA. Passos semelhantes foram dados em relação aos estoques de
armas químicas.
Até outubro de 1997, a AIEA havia completado uma série de 30 amplos programas de
inspeção no Iraque. Cerca de 500 inspeções locais haviam sido feitas, envolvendo mais de 5
mil dias de trabalho. Os inspetores da AIEA acompanharam a destruição de mais de 50 mil m²
de instalações nucleares, aproximadamente 2 mil substâncias usadas no ciclo de combustível
ou relacionadas à fabricação de armas e mais de 600 toneladas métricas de ligas especiais. Por
exemplo, as instalações de Al-Atheer, projetadas para desenvolvimento, teste e produção de
armas nucleares, foram destruídas por meio de demolição de explosivos, sob a supervisão da
AIEA e da UNSCOM. Todos os equipamentos e instalações para o enriquecimento de urânio
foram desmantelados.
Gradualmente, à medida que o trabalho autorizado pela Resolução 687 ia sendo completado,
o foco de ambas as agências foi sendo alterado, passando do desmantelamento dos
equipamentos e da remoção de material à monitoração e à verificação. A tarefa da AIEA de
eliminar o programa nuclear do Iraque, sob a Resolução 687, estava basicamente completa.
Porém os norte-americanos, agindo por meio do Departamento de Estado e outros órgãos
administrativos, instaram a AIEA a não reportar suas conclusões ao Conselho de Segurança.
Sua intenção era continuar pressionando Saddam Hussein.
Para tanto, os Estados Unidos sugeriram que a AIEA esperasse para reportar a conclusão de
seu trabalho até que a UNSCOM fizesse o mesmo. É claro que não havia lógica nisso –
conforme a argumentação de Blix, em suas discussões com os EUA. Ele lhes disse que
deveriam pensar na UNSCOM e na AIEA como dois cavalos numa corrida, e que não havia
nada de errado se um dos dois cruzasse antes a linha de chegada.
Blix concluiu seu relatório final para o Conselho de Segurança quando ocupava o posto de
diretor-geral, mas já prestes a deixar o cargo, em outubro de 1997. Sua percepção era a de que,
já que estava saindo, lhe seria mais fácil resistir às pressões dos EUA, e assim comunicou ao
Conselho que a AIEA tinha praticamente completado a “fase de desarmamento” no Iraque e
passara para a fase seguinte. Segundo o relatório, a agência dedicava agora a maior parte de
seus recursos no Iraque à “monitoração e à verificação em curso”, com apenas algumas poucas
questões pendentes.
A situação da UNSCOM era consideravelmente mais complicada. Desde o início das
inspeções no Iraque, a AIEA e a UNSCOM vinham apresentando enormes divergências tanto
no que dizia respeito à sua formação quanto ao estilo de inspeção. Mas uma diferença ainda
mais perturbadora surgiu posteriormente, na década de 1990. Os iraquianos acusaram a
UNSCOM de ser, na realidade, uma agência de espionagem dos serviços de inteligência dos
EUA e de Israel, tentando colher informações além dos limites de seus desígnios – isto é,
usando a eliminação das armas de destruição em massa como um biombo, atrás do qual estaria
coletando e transmitindo informações relacionadas a armas convencionais e ao potencial
militar que os governos ocidentais poderiam utilizar a fim de criar alvos militares.
Essas acusações feitas por Bagdá se intensificaram no momento em que Richard Butler, um
experiente diplomata na área de controle de armamentos do Serviço de Relações Exteriores da
Austrália, assumiu em 1997 o cargo de diretor da UNSCOM, sucedendo Rolf Ekeus. Butler,
Scott Ritter – um dos inspetores-chefe – e outros funcionários da UNSCOM foram acusados
pelos iraquianos de cooperação com a CIA por meio da espionagem dos equipamentos
militares de Saddam Hussein. Além dessas acusações feitas pelo Iraque, Butler e Ritter
começaram a fazer críticas recíprocas.
Dois anos mais tarde, tanto o Washington Post quanto o Boston Globe noticiaram que os
membros da UNSCOM haviam colaborado com uma operação de escuta eletrônica dos EUA
que permitira aos agentes do seu serviço de inteligência monitorar mensagens militares no
Iraque . E o próprio Scott Ritter admitiu que a UNSCOM estava sendo, em grande medida,
23

manipulada . Em 2002, em uma entrevista à Fox News, afirmou:


24

Richard Butler permitiu que os EUA utilizassem o processo de inspeção de armas da ONU como um Cavalo de Troia, a
fim de infiltrar recursos do Serviço de Inteligência no Iraque não aprovados pela ONU e que não facilitavam o processo de
desarmamento, mas cujo foco era a segurança de Saddam Hussein e dos alvos militares... Richard Butler facilitou a
espionagem norte-americana no Iraque. Richard Butler tornou mais fácil a manipulação do processo de inspeção para os
EUA... Em quatro situações, de março de 1988 até minha saída do órgão em agosto de 1998, escrevi a Richard Butler um
memorando, dizendo: “Chefe, se você continuar neste caminho, estará facilitando a espionagem. Essa não é nossa intenção,
e você não pode deixar isso acontecer”. Ele recebeu o memorando e desconsiderou meu alerta. No final das contas,
façamos a nós mesmos a pergunta: por que os inspetores não estão no Iraque, hoje?

Butler negou com veemência tais acusações, dizendo que a alegação de Ritter de que ele
havia vendido o ouro à CIA era dramaticamente inverídica. Butler disse que, na verdade, ele
retrocedera ao estágio em que a UNSCOM fez uso das informações do serviço de inteligência
devido a preocupações sobre a reputação e a necessidade de proteger “a independência de
atividades de desarmamento multilaterais”. Admitiu que os membros da UNSCOM, em
ocasiões pontuais, se reportavam aos seus governos de origem, mas negou categoricamente que
a UNSCOM estivesse sendo dominada pelos EUA, qualificando as acusações de Ritter como
“quintessencialmente ridículas” . 25

O que parece claro é o fato de Butler ter ideias claramente preconcebidas sobre o Iraque e as
intenções do governo de Saddam Hussein. Antes que Rolf Ekeus deixasse o cargo de primeiro
diretor da UNSCOM, em 1997, ele relatou que a maior parte de suas incumbências – no que
diz respeito à neutralização das armas químicas e biológicas iraquianas – estava perto de ser
concluída . Richard Butler discordava. Afirmava que o Iraque continuava mantendo ocultas
26

suas armas de destruição em massa. Seu relatório ao Conselho de Segurança em 15 de


dezembro de 1998 apresentou um cenário impiedoso da falta de cooperação da parte do Iraque
– um documento considerado desproporcional e injusto por muitos.
O relatório de Butler acabou se tornando a justificativa para a operação de bombardeios
norte-americana conhecida como Operação Raposa do Deserto. Os EUA sugeriram que a
UNSCOM retirasse seus inspetores do país, por razões de segurança, exatamente no mesmo dia
em que Butler entregou seu relatório – uma indicação não muito sutil de que os EUA sabiam
do conteúdo do documento . Butler deu ordens para a retirada dos inspetores da UNSCOM em
27

15 de dezembro, à meia-noite, horário de Nova York. Pela manhã, quando os diplomatas


acordaram, a retirada dos inspetores já era fato consumado.
A essa altura, eu assumira o cargo de diretor-geral da AIEA, em substituição a Hans Blix.
No início da manhã de 16 de dezembro, horário de Viena, fui despertado por um telefonema de
John Ritch, o então embaixador norte-americano da AIEA. Ritch me informou sobre o
conselho dado por seu governo de retirar os inspetores da AIEA e da UNSCOM, e comentou
que Butler já tomara providências para seguir tal conselho. Como a AIEA dependia da
UNSCOM no que dizia respeito ao apoio logístico, não tínhamos outra opção a não ser partir.
Depois da conversa com Ritch, telefonei a Kofi Annan, secretário-geral da ONU, que estava
no Marrocos, para discutirmos a ação de Butler. Fiquei chocado ao saber que Annan não estava
ciente dessa decisão.
Os inspetores partiram naquele dia. A operação de bombardeios, de quatro dias de duração,
começou imediatamente, supostamente tendo como alvo várias instalações militares iraquianas,
incluindo as de pesquisa e desenvolvimento de armas. Oficialmente, o bombardeio ao Iraque
ficou caracterizado como uma resposta ao seu constante descumprimento das resoluções do
Conselho de Segurança da ONU e à sua interferência no trabalho dos inspetores da
organização.
A UNSCOM caiu em descrédito. O relatório de Butler foi taxado de evidentemente injusto.
Os governos da China, da França e da Rússia se irritaram com a desmedida influência dos
EUA sobre a UNSCOM como órgão de inspeção internacional. A UNSCOM perdera a
credibilidade para servir a comunidade internacional na condição de representante confiável da
ONU.
Em janeiro de 1999, redigi um documento oficioso intitulado “Inspeções de armas no
28

Iraque” para o Conselho de Segurança, expondo os parâmetros de como restaurar e manter a


integridade e a credibilidade de um sistema de verificação de armas de destruição em massa.
Nele, expus claramente a necessidade de dissociar o órgão de inspeção do Conselho de
Segurança, a fim de evitar sua politização. Recomendei que a organização contratasse
funcionários públicos da comunidade internacional, para que ela não dependesse de
“especialistas” sobre detalhes de seus governos, pessoas que pudessem colocar a lealdade a
seus países em primeiro plano. Sugeri que fossem estabelecidas regras mais claras para as
inspeções, que contivessem objetivos técnicos mais bem definidos. Expliquei a importância de
uma equipe de inspetores técnicos que fosse mais diversificada do ponto de vista geográfico. E
solicitei que a organização respeitasse as particularidades religiosas e culturais do país
inspecionado – simplesmente ignoradas pela UNSCOM no Iraque, em muitos casos.
Tanto Kofi Annan quanto os russos e outros países me felicitaram pela elaboração do
documento. O Departamento de Estado dos EUA, no entanto, ficou enfurecido com o fato de
eu não tê-los consultado antes de divulgar o documento. John Ritch abordou-me para alertar
que alguns funcionários do governo norte-americano estavam ameaçando pedir a William
Safire, Charles Krauthammer e outros colunistas conservadores que lançassem uma investida
contra a minha credibilidade.
No que dizia respeito ao Iraque, a reputação da UNSCOM deixara de ter qualquer
importância. O estrago já havia sido feito. Naquele mesmo ano, a Comissão Especial foi
dissolvida pelo Conselho de Segurança e substituída pela UNMOVIC , uma nova agência com 29

regras de operação distintas. Porém, tendo sido alvo da Operação Raposa do Deserto, Saddam
Hussein não concordaria em readmitir inspetores da AIEA e da ONU durante quatro anos. Tal
proibição estabeleceu as bases para a suposição de que Saddam Hussein estava reconstituindo
seus programas de armas de destruição em massa – o que, por sua vez, criaria o pretexto para
uma nova guerra.
Embora a dissolução bem-sucedida do programa nuclear iraquiano pela AIEA tenha
silenciado muitos de seus críticos e detratores, dando provas da eficácia da agência, do ponto
de vista do Iraque o processo de inspeção culminara na Operação Raposa do Deserto,
enviando-lhes uma dura mensagem. Os norte-americanos não estavam interessados na
eliminação do programa nuclear do Iraque. Os iraquianos compreenderam que, não importando
quais fossem suas atitudes, não havia luz no fim do túnel. A Operação Raposa do Deserto
convenceu algumas pessoas de que o objetivo não era a eliminação das armas de destruição em
massa, e sim a mudança de regime. De qualquer modo, sua desconfiança no processo de
inspeção só cresceu.
Quatro anos mais tarde, quando as inspeções foram retomadas, notamos esse sentimento
desolador estampado no olhar de desalento e nas cínicas afirmações feitas por nossos colegas
iraquianos.
1 O IRT-500, um reator de pesquisas refrigerado a água, do tipo “swimming pool”, fornecido pelos soviéticos; e o Tammuz-2, um
reator de pesquisas, também do tipo “swimming pool”, fornecido pela França.

2 A citação exata do Artigo VI do TNP: “Cada um dos signatários do tratado se compromete a buscar negociações em boa-fé
sobre medidas efetivas relacionadas à cessação da corrida de armas nucleares o mais breve possível, bem como ao desarmamento
nuclear, e sobre um acordo visando ao desarmamento geral e completo”.

3 O artigo IX do tratado define um Estado com armas nucleares como “aquele que produziu e explodiu alguma arma nuclear ou
outro aparato explosivo nuclear antes de 1o de janeiro de 1967”. À época, a União Soviética era um dos cinco Estados com tal
status; porém, após seu desmantelamento, apenas a Rússia manteve sua condição de Estado com armas nucleares. Os três outros
países da ex-União Soviética que possuíam armas nucleares abdicaram delas.

4 O uso de centrífugas é apenas uma das várias técnicas de enriquecimento de urânio.

5 Pouco depois do início dos bombardeios, em 16 de janeiro de 1991, o presidente George Herbert Walker Bush deu a seguinte
declaração, em rede nacional de televisão: “Estamos determinados a neutralizar o potencial de bombas nucleares de Saddam
Hussein”. Citado em “Iraq and the Bomb: Were They Even Close?”, de David Albright e Mark Hibbs, Bulletin of the Atomic
Scientists, março de 1991.

6 “Early Western Assessments: What Did We Know and When Did We Know It?”. Federation of American Scientists.
Disponível em: <www.fas.org/nuke/guide/iraq/nuke/when.htm>.

7 Um bom exemplo disso foi a afirmação de William Safire, no New York Times, de que os cientistas iraquianos estavam
enriquecendo urânio com 26 centrífugas. Referência feita por Albright e Hibbs, “Hyping the Iraqi Bomb”.

8 Sabia-se que o Iraque havia usado armas químicas durante a guerra contra o Irã entre 1980 e 1988.

9 “Reflections on Establishing and Implementing the Post-Gulf War Inspections of Iraq’s Weapons of Mass Destruction
Programs”, transcrição de uma palestra de Robert Gallucci no Institute for Science and International Security, 14/6/2001.

10 Ibid.
11 Projeto liderado pelos EUA para o desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial.

12 Posteriormente, Ghaffour seria nomeado ministro iraquiano do Ensino Superior e da Pesquisa Científica.

13 David Kay seria posteriormente nomeado pelo presidente Bush, em 2003, como chefe do Grupo de Inspeção no Iraque.

14 Palestra de Gallucci, ver nota 9.

15 “The Iraqi Bomb”, New Yorker, 1/2/1993.

16 A descrição de Robert Gallucci sobre esta inspeção em particular deixa claro que, embora ela fosse chefiada pela AIEA,
apenas três dos 42 membros da equipe eram, de fato, inspetores da AIEA. Os demais eram indivíduos com “habilidades
especiais”, cujos conhecimentos não eram da área de ciência nuclear ou de armas de destruição em massa, em hipótese alguma; a
implicação é a de que eles foram designados para integrar a equipe a fim de garantir que os documentos fossem conseguidos, não
importando os meios necessários para isso. Como disse Gallucci, “A equipe era muito, muito especial”. Ver palestra de Gallucci,
em suas “Reflexões”.

17 De acordo com Gallucci, “Como eu não sentia confiança em meu interlocutor em Nova York, decidi contatar o Departamento
de Estado”. Ibid.

18 Em meados de setembro, como parte da quinta inspeção pela AIEA, já haviam sido feitos os preparativos para que se
removessem do Iraque os seis gramas de plutônio clandestinamente produzidos.

19 Fazia tempo que Saddam Hussein vinha sendo considerado um bem valioso pelos EUA, pela Europa e pelos países árabes,
que estimularam, apoiaram e financiaram a guerra entre seu país e o Irã, entre 1980 e 1988, como maneira de “conter a revolução
iraniana”. É claro que esse aspecto contribuiu para a desconfiança e o ressentimento do Irã em relação ao Ocidente, e é tido por
muitos como a gênese do programa nuclear iraniano, depois da utilização de armas químicas pelo Iraque, durante a guerra entre
os dois países.

20 Na época, o foco da verificação da AIEA eram os grandes países industriais, tais como Japão, Alemanha, Itália e Canadá,
considerando que a maioria dos países em desenvolvimento não tinha uma infraestrutura nuclear significativa.

21 Esse é um aspecto que geralmente causa confusão. Ao tornar-se um membro da AIEA (tornando-se um “Estado-membro”),
um país se compromete a defender os princípios do estatuto interno, passando a ter acesso às discussões sobre proliferação
nuclear. Entretanto, isso não obriga esse país a aceitar a verificação, da parte da AIEA, de suas instalações e substâncias
nucleares. Tal obrigação passa a existir com a assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear e no momento em que se
celebra um acordo de salvaguarda abrangente com a AIEA.

22 Embora seja compulsório para os países signatários do TNP firmar acordos de salvaguarda com a AIEA, a agência não tem o
poder de penalizar os países que não o fizerem.

23 “U.S. Spied on Iraq via U.N.”, Barton Gellman, Washington Post, 2/3/1999. Uma matéria semelhante foi publicada no Boston
Globe.

24 Posteriormente, Ritter ficaria célebre por suas críticas à política externa dos EUA. Em março de 2003, defenderia
publicamente que o Iraque não possuía armas de destruição em massa em quantidade significativa.

25 “The Lessons and Legacy of UNSCOM: An interview with ambassador Richard Butler”, Arms Control Today 29, n. 4, jun.
1999.

26 S/1997/301. Relatório do diretor-executivo da UNSCOM, 11/4/1997. Na conclusão de seu relatório, Ekeus escreveu: “Os
efeitos acumulados com o trabalho realizado ao longo de seis anos, desde o início do cessar-fogo entre o Iraque e a coalizão, é de
natureza tal que não há muitas informações ignoradas sobre o potencial de retenção de armas ilegais pelo Iraque”. Ekeus relatou
ainda que os esforços empreendidos entre outubro de 1996 e o início de 1997 se concentravam em conformar “as principais
questões pendentes a uma quantidade administrável”, mencionando a satisfação generalizada em relação às questões dos mísseis
e das armas químicas. Observou que a apresentação feita pelo Iraque sobre as armas biológicas continuava sendo “um tanto
quanto caótica”.
27 No livro de Butler, Saddam Defiant: The Threat of Weapons of Mass Destruction, and the Crisis of Global Security (Nova
York: Weidenfeld and Bicolson, 2000), ele afirma que foi o embaixador norte-americano Peter Burleigh, seguindo instruções
dadas por Washington, que sugeriu a Butler que retirasse a equipe da UNSCOM do Iraque, a fim de protegê-la dos iminentes
ataques aéreos dos EUA e do Reino Unido (p. 224).

28 No jargão diplomático, um documento oficioso consiste numa proposta por escrito ou um conjunto de ideias apresentadas de
modo informal, sem compromisso e geralmente sem atribuição formal de crédito, como um modo de gerar debates ou sugerir
bases para a negociação. (N. dos TT.)

29 Sigla em inglês para a Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção das Nações Unidas, criada pela Resolução 1284 de
seu Conselho de Segurança, em dezembro de 1999.

2 • Coreia do Norte
O CASO DO PLUTÔNIO DESAPARECIDO

Ao chegar em Pyongyang, na Coreia do Norte, em 4 de dezembro de 1992, o primeiro


sentimento que tive foi gratidão, pois o avião pousou em segurança. Meus colegas e eu
viajamos de Pequim a Pyongyang pela Air Koryo, a companhia aérea norte-coreana, e nossa
aeronave era um decadente modelo soviético. Não pude deixar de notar, momentos antes da
partida, que o piloto verificou a pressão do ar dando leves pontapés nos pneus da aeronave.
As pessoas que nos receberam nos amontoaram dentro de viaturas oficiais – velhos Volvos
série 200 – e nos conduziram rumo à cidade. Era uma tarde de sexta-feira. Disseram-nos que o
transporte básico para o indivíduo comum era caminhar; havia metrô, mas ele não
interconectava a cidade inteira, e a maioria das pessoas era pobre demais para possuir
bicicletas. Tínhamos permissão para andar pela cidade, mas vimos pouca gente nas ruas.
Pyongyang era uma cidade fantasma. A sensação é de que o lugar era, de modo geral, sinistro,
com os espaços públicos dominados por enormes estátuas de Kim Il Sung, o “Grande Líder” (e
pai do atual “Querido Líder” Kim Jong Il). Fomos informados de que na manhã de sábado
todos os funcionários de governo norte-coreanos compareceriam à sede do partido para
“receber instrução formal”.
Fomos instalados no Hotel Koryo, o melhor da cidade. O conforto material era limitado; o
hotel era demasiadamente caro para os serviços que oferecia. Havia pouca ou nenhuma luz
elétrica. A alimentação consistia apenas do essencial, com poucas opções: macarrão
instantâneo, carne e kimchee; nenhuma fruta ou salada. Se você quisesse comer uma laranja,
poderia encontrá-la apenas na loja isenta de taxas do hotel, mediante pagamento com moeda
forte. E, apesar de ser inverno, o aquecimento do hotel estava no mínimo. Tínhamos de usar
pilhas de cobertores à noite.
No quarto, liguei a televisão. Era um velho modelo preto e branco. Os únicos canais que
consegui sintonizar passavam filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Coreia,
com ênfase no sofrimento e na matança dos norte-coreanos nas mãos dos norte-americanos e
seus aliados.
Na noite seguinte, nossos anfitriões nos levaram ao Teatro da Ópera, como entretenimento.
O programa consistia numa série de canções patrióticas encenadas no palco. Todas elas
terminavam com soldados coreanos matando seus adversários norte-americanos. A cena me
remeteu a um espetáculo que assisti em Pequim em 1977, logo após o fim da Revolução
Cultural.

Essa visita a Pyongyang em 1992 surgiu como resultado de graves preocupações criadas acerca
do programa nuclear da Coreia do Norte. O país assinara o Tratado de Não Proliferação
Nuclear em 1985, mas levou sete anos até que cumprisse plenamente os termos compulsórios
de seu acordo de salvaguarda abrangente com a agência, permitindo que a AIEA verificasse o
programa nuclear do país. O acordo de salvaguarda entrou em vigor em abril de 1992. Em 4 de
maio, conforme requisitado, a Coreia do Norte submeteu à AIEA sua declaração inicial de
substâncias nucleares. Segundo a declaração, o país possuía sete instalações específicas e cerca
de 90 gramas de plutônio sujeitos à inspeção da AIEA. Como é de praxe em todos os acordos
de salvaguarda, a agência tinha agora a responsabilidade de certificar-se de que essas
substâncias e as instalações nucleares eram usadas exclusivamente para fins pacíficos.
Porém, por volta do meio do verão, começaram a surgir dúvidas. Segundo a Coreia do
Norte, as substâncias nucleares eram resultado de um simples reprocessamento de varetas de
combustível defeituosas, ocorrido em 1989. Dos 90 gramas de plutônio produzidos, 60 foram
verificados pela agência durante sua primeira inspeção. Os norte-coreanos alegavam que a
extração dos 30 gramas restantes não fora bem-sucedida e que tal quantidade estava presente
no lixo nuclear. No entanto, não era o que comprovava a análise de amostras ambientais
colhidas.
A raiz dessa discrepância era a seguinte: a composição do plutônio presente nas amostras de
lixo nuclear não correspondia ao plutônio trazido para verificação. Blix, com sua usual
habilidade no uso de metáforas, comparou a situação com um par de luvas descasadas. Do
ponto de vista técnico, isso significava duas coisas. Primeiro, deveria existir, em algum lugar,
outro ajuntamento de lixo que correspondesse ao produto verificado. Segundo, deveria haver,
em alguma parte, uma quantidade de plutônio adicional que ainda não tínhamos visto. Um
problema essencial era que não sabíamos qual era a quantidade de plutônio “adicional” que
buscávamos – se estávamos falando de gramas ou de quilogramas.
Os norte-coreanos ficaram visivelmente surpreendidos com a sofisticação da análise feita
pela agência. Nossas técnicas de amostragem ambiental nos permitiram determinar não apenas
a exatidão das declarações norte-coreanas, mas também se elas estavam ou não completas.
Eles começaram a mudar a versão de sua história. O país reconheceu que havia realizado
“um pequeno experimento”, ao qual atribuíra a disparidade constatada na análise da AIEA.
Mas essa explicação não era adequada, do ponto de vista técnico. O reator em questão, uma
máquina experimental Magnox, de 5 megawatts, de design soviético, começara a operar em
agosto de 1984. A partir da análise das amostras, os peritos da agência determinaram que o
reprocessamento de combustível do reator para fins de separação do plutônio ocorrera durante
um período mais longo de tempo e numa complexidade maior do que a admitida. Os inspetores
concluíram que, durante os sete anos de operação do reator, a Coreia do Norte provavelmente
reprocessara combustível queimado em pelo menos três ou quatro ocasiões, realizando
certamente mais do que “um pequeno experimento” como diziam.
Uma segunda discrepância tinha a ver com o ocultamento das instalações nucleares. O reator
Magnox estava localizado em Yongbyon, uma instalação a aproximadamente 100 quilômetros
ao norte de Pyongyang, num percurso de carro em meio a vilarejos, entre duas e três horas e
meia – dependendo do clima. A agência sabia da existência de uma instalação de
armazenamento de lixo nuclear no mesmo local, conhecida como Edifício 500. Além disso,
tínhamos visto uma série de imagens de satélite, fornecidas pelos EUA, que mostravam o
ocultamento gradativo de um prédio de dois andares, que se supunha ser outra instalação para
lixo nuclear. Por fim, os norte-coreanos ocultaram o prédio todo sob a terra, cobrindo-o e
plantando árvores em volta. Também foram identificados dois locais para testes de altos
explosivos, um deles próximo ao reator em Yongbyon e um segundo a 20 quilômetros de
distância dali.
No final de agosto de 1992, momento em que havia apreensão crescente diante das respostas
inadequadas que os norte-coreanos nos forneciam, houve uma nova inspeção. Novamente, o
resultado foi um misto de cooperação e ocultamento.
A visita foi coordenada por funcionários militares, e quem cuidou pessoalmente de grande
parte foi o comandante de Yongbyon. Os norte-coreanos pareciam estar testando os inspetores,
para ver até onde ia nosso conhecimento. Nossa solicitação inicial, de inspecionar os dois
locais de armazenamento de lixo e de testes com altos explosivos, foi terminantemente
recusada; a seguir, eles cederam e permitiram que os inspetores visitassem o Edifício 500, bem
como as instalações com altos explosivos. No entanto, a cooperação plena não passava de uma
ilusão. Numa das ocasiões, as pessoas que nos receberam conduziram-nos ao lugar errado, e
então se mostraram zangadas quando lhes apontamos o engano. No final, nossos colegas norte-
coreanos negaram até mesmo a existência do segundo local de armazenamento de lixo,
insistindo que aquilo não passava de trincheiras militares e proibindo os inspetores da agência
de inspecioná-las.
Entre setembro e o final de outubro, à medida que as tensões cresciam, a AIEA realizou, em
sua sede em Viena, uma série de reuniões com o ministro de Energia Atômica norte-coreano
Choe Hak Gun e a delegação do país. Cada vez que a AIEA lhes fornecia estatísticas que
refletiam sua análise, os norte-coreanos faziam ajustes em suas declarações, conforme
requeriam as circunstâncias. Entretanto, ainda assim eles não foram capazes de apresentar uma
declaração que julgássemos completa e adequada.
Finalmente, Blix decidiu me enviar a Pyongyang, numa missão em que eu apresentaria as
discrepâncias, pressionaria para obter uma total transparência e insistiria para que fossem
apresentadas à AIEA uma declaração nova e exata sobre o programa nuclear do país, incluindo
as instalações e as substâncias nucleares que, acreditávamos, ainda não tinham sido reveladas.
Resumindo: estávamos lhes pedindo que cumprissem suas obrigações previstas no acordo de
salvaguarda firmado com a agência; caso contrário, teríamos de convocar uma “inspeção
especial”, instrumento usado como último recurso para ter acesso a locais suspeitos.
Portanto, a visita de dezembro de 1992 não foi totalmente amistosa; tínhamos pela frente
uma longa e árdua tarefa. Àquela altura, eu já tinha assumido o posto de diretor de Relações
Externas da AIEA. Eu estava acompanhado de Sven Thorstensen, diretor de salvaguardas
norueguês, responsável pelos assuntos norte-coreanos, e Olli Heinonen, um finlandês que
trabalhava para Sven na época e que estivera plenamente envolvido com as inspeções iniciais.
As discussões foram um verdadeiro tormento. Os norte-coreanos se revelaram excelentes
negociadores. Entre os membros de sua delegação, havia uma divisão do estilo “bom/mau
policial”. Alguns deles nos acusavam de ser agentes dos EUA e, diante de minha veemente
reação a isso, ensaiaram um pedido de desculpas. Outros adotavam uma abordagem mais
branda e, quando não funcionava, davam vez aos colegas mais severos. Esse procedimento se
repetia com relação a diversos assuntos. Enquanto isso, a mídia norte-coreana começou a fazer
ataques a Blix, a mim e à agência de modo geral, acusando-nos de agir como fantoches dos
EUA.
Essa rotina durou três penosos dias. No final de cada um, eu telefonava para Blix do hotel
para lhe dizer que não estávamos tendo progresso; ele respondia que precisávamos solicitar
uma inspeção especial. Estávamos certos de que nossos anfitriões faziam a escuta clandestina
de nossas conversas, portanto passamos a mencionar a inspeção especial como uma forma de
pressioná-los.

Na última noite, estava claro que não houvera avanço significativo em nossa visita. Fomos
convidados para um jantar com o vice-ministro das Relações Exteriores Kang Sok Ju, evento
em que os norte-coreanos nos serviram um hambúrguer com ovo frito por cima.
No início de nossa conversa, fiz uma pergunta ao vice-ministro que tinha mais a intenção de
estabelecer um diálogo do que a de provocar: “Por que o seu país tem um ressentimento tão
grande em relação aos Estados Unidos?”.
A resposta dele não teve nada de casual. Transformou-se numa arenga de 45 minutos, uma
prolongada história das relações entre a Coreia do Norte e os EUA, que remontava à chegada
da embarcação USS General Sherman à península Coreana em meados do século XIX. O vapor
subira o rio Taedong até a periferia de Pyongyang. Numa operação tida como uma vitória
heroica contra invasores estrangeiros, os nativos queimaram o navio e mataram toda a sua
tripulação. Conta-se que o bisavô do Grande Líder Kim Il Sung participou do ataque.
E assim transcorreu o encontro: enquanto a comida permanecia intocada diante de nós, o
vice-ministro recontava todas as interações entre Coreia do Norte e EUA desde aquela época.
Quando finalmente houve uma pausa, eu lhe fiz, por educação, uma pergunta simples, dando
continuidade à conversa. Ele continuou durante mais 15 minutos. Sua obsessão era clara: a
Coreia do Norte estava completamente enredada numa longa luta contra os EUA, certa de que
os norte-americanos estavam determinados a tentar mudar o regime do país.
No final da interlocução, olhei para os pratos. Nossos ovos fritos tinham, agora, um
indescritível tom cinza. Mas a diplomacia não nos dava grandes oportunidades de escolha.
Começamos a comer.

De volta a Viena, depois de uma série de consultas, Blix decidiu solicitar uma inspeção
especial. Muito raramente a agência adotava esse tipo de medida. Acontecera apenas uma vez,
na Romênia, logo após a deposição de Nicolae Ceaus¸escu, quando o próprio novo regime
romeno solicitou uma inspeção especial, numa tentativa de desacreditar ainda mais o ex-
presidente comunista . No caso da Coreia do Norte, o pedido de uma inspeção especial das
30

instalações de armazenamento de lixo significaria que a AIEA estava aumentando o valor das
apostas.
Como era de esperar, os norte-coreanos recusaram. Estavam determinados a negar o acesso
solicitado pela agência.
O Conselho de Governadores da AIEA convocou uma sessão especial. Foi uma reunião
memorável, a portas fechadas, restrita a poucos participantes. As preocupações da agência em
relação ao programa nuclear da Coreia da Norte foram apresentadas em três partes: primeiro, o
conhecimento técnico no que dizia respeito às discrepâncias observadas e analisadas; segundo,
os argumentos que justificavam um acesso mais amplo da parte da agência; e terceiro, as
provas de ocultamento.
A parte relativa às provas de ocultamento envolveu a apresentação de imagens fornecidas
pelo Serviço de Inteligência dos EUA. Até então, as imagens de satélite das instalações norte-
coreanas só nos haviam sido disponibilizadas durante relatos apresentados pela missão dos
EUA, situação em que um agente de segurança, um senhor idoso, ficava postado à porta da sala
– supostamente para certificar-se de que os inspetores da AIEA não fugiriam levando as
imagens. Os Estados Unidos alteraram substancialmente a resolução das imagens, a fim de
disfarçar seu verdadeiro potencial de vigilância. Mesmo assim, as janelas do edifício estavam
claramente visíveis nas imagens.
Pela primeira vez na história da AIEA, sua secretaria partilhava informações fornecidas pelo
serviço de inteligência de um Estado-membro, numa reunião de conselho. Historicamente, os
Estados-membros se mostravam pouco à vontade em relação à utilização, da parte da agência,
de quaisquer informações obtidas através dos serviços de inteligência dos países. O caso do
Iraque era uma exceção, mas as inspeções realizadas no país ocorreram sob a autoridade
extraordinária da Resolução 687 do Conselho de Segurança. Essa reunião do conselho sobre a
Coreia do Norte representou, portanto, um marco discreto: em anos posteriores, as referências
ao uso de informações dos serviços de inteligência passariam a ser cada vez mais frequentes.
Cinco semanas depois, o Conselho da AIEA propôs uma resolução com referência ao
descumprimento norte-coreano às determinações do Conselho de Segurança da ONU. A
resposta de Pyongyang foi rápida e decisiva. O regime de Kim Il Sung baixou decretos
sucintos, restringindo as inspeções da agência e tornando praticamente impossível a
continuação das investigações sobre a história de seu programa nuclear. Entretanto, a Coreia do
Norte permaneceu no TNP, e a agência pôde ao menos dar continuidade ao processo de
verificação das substâncias nucleares declaradas por aquele país.
É possível que essa abertura tenha sido possível pelo fato de o Conselho de Segurança não
ter empreendido nenhuma ação violenta. A China, com sua ênfase no diálogo e na moderação,
recusou-se a endossar certas medidas, tais como a imposição de sanções ou a adoção de uma
resolução solicitando à Coreia do Norte que concordasse em não produzir armas nucleares e
em não se retirar do TNP. Em razão da oposição feita pela China, a resolução que finalmente
foi adotada “solicitava”, mas não “exigia” que a Coreia do Norte permitisse inspeções
adicionais da AIEA. A Resolução 825 foi aprovada em maio de 1993, com a abstenção da
China e do Paquistão.
Instalou-se, então, um impasse, que continuou ao longo de boa parte de 1993. Os inspetores
da AIEA tinham de negociar cada inspeção individualmente, mesmo quando estavam a serviço
do monitoramento e da verificação de filmes por parte da agência. Finalmente, na primavera de
1994, a situação atingiu seu clímax. Os norte-coreanos anunciaram que começariam a remover
o núcleo do reator de Yongbyon – um total de 8 mil varetas de combustível queimado – para
fins de armazenamento e um possível reprocessamento. Foi um momento decisivo. A partir de
uma série específica de amostras, os inspetores da agência poderiam, a essa altura, verificar o
histórico das operações do reator. A questão central era: tratava-se do núcleo original do reator,
ou em algum momento do passado um núcleo anterior fora removido e substituído, sem que a
AIEA fosse comunicada? Considerando que a operação dos reatores produz o plutônio, um
núcleo não declarado de combustível queimado poderia já ter sido utilizado secretamente, para
a separação de plutônio. Pela análise do material nessas amostras, a AIEA seria capaz de
determinar a quantidade de combustível queimado (e, por tabela, a quantidade de plutônio) que
a Coreia do Norte poderia desviar para a fabricação de armas.
Os norte-coreanos não pareciam dispostos a cooperar, e a certa altura descarregaram uma
quantidade tão grande de combustível que a AIEA perdeu a continuidade dessa história. Mais
uma vez, esse confronto foi motivo para a elaboração de um relatório ao Conselho da AIEA;
novamente, a discussão levou ao envio de um relatório ao Conselho de Segurança. Dessa vez, a
resolução foi mais drástica: ordenou-se que fossem feitos cortes na cooperação técnica que a
agência tradicionalmente dava ao país em áreas como assistência médica, agrícola e outras
aplicações humanitárias da tecnologia nuclear.
A Coreia do Norte revidou, abandonando sua condição de membro da AIEA, declarando que
se retiraria do TNP. Na sequência, tal retirada foi “suspensa” devido à insistência dos Estados
Unidos, apenas um dia antes de ela entrar em vigor. Entretanto, a cooperação do país com a
agência estava em processo de rápida deterioração.
No verão de 1994, os Estados Unidos começaram a negociar diretamente com a Coreia do
Norte em Genebra, num acordo bilateral com a intenção de melhorar a situação. O ex-
presidente Jimmy Carter teve um enorme envolvimento nisso, na condição de cidadão; seus
encontros com Kim Il Sung em Pyongyang contribuíram para o progresso das negociações. O
resultado foi o documento assim chamado “Estrutura de Acordo” (Agreed Framework): um
acordo ad hoc, único no gênero, que permaneceria em vigor nos anos seguintes.
A “Estrutura de Acordo” baseava-se no princípio de “uma ação em troca de outra”, seguindo
um cronograma preestabelecido. Suas condições básicas determinavam que a Coreia do Norte
congelaria as operações de seu programa nuclear, incluindo o reator de pesquisa de 5
megawatts e as instalações de reprocessamento de combustível nuclear de Yongbyon e duas
outras instalações que estavam sendo construídas: um reator de 50 megawatts e outro de 200
megawatts. Em contrapartida, nesse meio-tempo Pyongyang receberia dois reatores nucleares
de 1.000 megawatts resistentes à proliferação, sem qualquer custo, além do suprimento de
petróleo bruto para atender às necessidades de energia. O acordo culminaria com a retomada,
da parte da Coreia do Norte, de sua plena participação no TNP, assumindo o compromisso de
normalizar suas relações com os Estados Unidos.
Simplificando, a “Estrutura de Acordo” foi concebida a fim de subornar os norte-coreanos.
Segundo Robert Gallucci, funcionário do governo norte-americano que negociou o acordo, isso
era o melhor que poderia ser feito. A esperança era a que o regime norte-coreano implodisse
internamente, antes da plena implementação do pacto.
Minha reação inicial diante da “Estrutura de Acordo” foi adotar uma postura crítica. A
AIEA não participara das negociações sobre o modo como as verificações nucleares
ocorreriam. Juridicamente falando, considerando que a Coreia do Norte havia “suspendido”
sua decisão de retirar-se do TNP, cabia à AIEA a retomada das inspeções de salvaguarda
abrangentes. Entretanto, segundo as cláusulas do acordo entre o país e os EUA, esse
procedimento era vetado à agência durante a fase inicial da “Estrutura de Acordo”.
Essa situação colocou a Coreia do Norte em um estado automático de descumprimento às
normas. A AIEA só poderia restabelecer a verificação do programa nuclear muito mais tarde,
depois que a Coreia do Norte e os EUA tivessem cumprido seus compromissos e que os norte-
coreanos tivessem retomado por completo o TNP. Na visão da AIEA, a aceitação desse acordo
era algo estranho, política e juridicamente falando. Além disso, esse pacto não solucionou as
discrepâncias relacionadas ao plutônio contidas na declaração da Coreia do Norte, tampouco
respondeu às questões feitas pela AIEA sobre as instalações não declaradas. Do ponto de vista
técnico, as limitações impostas às nossas inspeções sob a “Estrutura de Acordo” poderiam mais
tarde impossibilitar que se voltasse a acompanhar o desenvolvimento do programa nuclear
norte-coreano.
O papel da agência consistia em monitorar o “congelamento” – o estado de inatividade – das
instalações nucleares de Yongbyon: em especial, as instalações de reprocessamento e o reator
de 5 megawatts. Entretanto, não poderíamos inspecionar, por exemplo, os outros dois reatores
em construção. O aspecto mais importante de nosso papel de monitoramento era nos
certificarmos de que o combustível queimado de Yongbyon não seria reprocessado com a
finalidade de extrair o plutônio e ser usado na fabricação de armas. A fim de monitorar o
“congelamento”, os inspetores da AIEA usavam lacres à prova de manipulação e vigilância por
vídeo ao realizar inspeções em que o aviso era dado com pouca antecedência.
Do ponto de vista técnico, não era necessário que nossos funcionários permanecessem no
país o tempo todo; isso equivaleria a assistir ao crescimento da grama. Entretanto, alguns
Estados-membros, incluindo os Estados Unidos, julgavam que nossa presença era importante
do ponto de vista político; assim, mantivemos dois ou três inspetores no local. Era possível ter
acesso a refeições decentes onde nos hospedamos, mediante pagamento em moeda forte; mas
os inspetores não podiam sair dali ou da área ao redor, portanto era como se estivéssemos em
um centro de detenção. Alternávamos os inspetores em um período entre três e seis semanas,
para evitar que eles começassem a sofrer de algum distúrbio psicológico.

A descoberta de discrepâncias e do ocultamento de plutônio na Coreia do Norte representou


um sucesso no programa de verificação da AIEA. O que não fica tão claro, olhando em
retrospectiva, é em que medida a solicitação da agência para realizar uma inspeção especial em
1993 foi a abordagem correta. Tínhamos relativa certeza de que a Coreia do Norte negaria a
solicitação e de que muito provavelmente o resultado seria um confronto. Baseados em nossa
experiência anterior, poderíamos prever que o Conselho de Segurança, encarregado pelo
Estatuto da AIEA de garantir o cumprimento das normas, não adotaria medidas enérgicas.
Assim, a AIEA e a comunidade internacional talvez teriam agido melhor se dessem
continuidade às negociações com a Coreia do Norte, pressionando para conseguir progressos
ainda significativos.
O único trunfo que a Coreia do Norte tinha à sua disposição era seu potencial nuclear; era
evidente que ela tiraria a maior vantagem possível desse fato. A crença de que os EUA estavam
determinados a conseguir a deposição do regime era um fator recorrente, que influenciou as
negociações na área nuclear. Para Pyongyang, a prioridade não era o bem-estar de seu povo,
nem o impacto de qualquer potencial repercussão advinda de suas atividades nucleares, mas
sim a sobrevivência do regime. Da mesma maneira, a utilização de penalidades para exercer
alguma pressão sobre a Coreia do Norte surtiria pouco efeito; o emprego da força bruta
tampouco era uma alternativa. Seul, a apenas 30 quilômetros da fronteira, poderia muito bem
ser pulverizada. De qualquer modo, essa foi a última tentativa da agência de usar as inspeções
especiais como instrumento de verificação. Continuaríamos limitados à nossa capacidade de
verificação de atividades não declaradas até a criação do modelo do Protocolo Adicional, em
1997.
Depois do fracasso da abordagem por meio das inspeções especiais, o único caminho
sensato que restava à comunidade internacional era a gradual reconstrução da confiança mútua
com a Coreia do Norte, para então tentar barganhar com eles em suas alternativas nucleares,
mantendo as tensões em um nível mínimo, e ao mesmo tempo esperando a mudança de regime.
Foi esse o objetivo almejado pela “Estrutura de Acordo”. Entretanto, esse pacto, no final das
contas, foi solapado por seus aspectos bilaterais. Quando os Estados Unidos deixaram de
cumprir seus compromissos com a Coreia do Norte, sobretudo no que diz respeito à entrega
dos reatores de energia prometidos, os norte-coreanos claramente interpretaram isso como
ausência de boa-fé por parte dos norte-americanos.
A experiência coreana pode ser considerada um caso clássico da inconveniência de tratar
apenas os sintomas do sentimento de insegurança, em vez de desenvolver uma abordagem
ampla e a longo prazo, com a finalidade de amenizar as causas da tensão. As garantias de
segurança e o auxílio em relação ao desenvolvimento são sempre mais eficazes do que medidas
punitivas que, inevitavelmente, acabam por provocar o aumento das tensões.
30 O novo governo desejava mostrar que, no regime de Ceaus¸escu, a Romênia havia reprocessado 100 miligramas de plutônio
sem informar o fato à AIEA.

4 • Coreia do Norte
O CLUBE DAS POTÊNCIAS NUCLEARES GANHA MAIS UM MEMBRO

Por volta do final de 2002, menos de um mês depois de os inspetores da ONU receberem a
permissão para retornar ao Iraque, a saga norte-coreana teve sua própria reviravolta dramática.
Nos anos seguintes, seria possível observar os dois principais protagonistas desse drama – a
Coreia do Norte e os EUA – desempenhando papéis em um enredo incrivelmente familiar de
provocação e revanche, lances diplomáticos arriscados e negociações intermitentes, uma
dinâmica que o restante da comunidade internacional não tinha instrumentos para mudar.
Já fazia tempo que o bastão nuclear fora passado a Kim Jong Il, filho de Kim Il-Sung, e
poucas mudanças ocorreram. A Estrutura de Acordo, pacto firmado com os EUA que
especificava medidas a fim de resolver tensões sobre o programa nuclear da Coreia do Norte,
ainda vigorava. Porém ambos os lados estavam frustrados: os norte-coreanos, em razão do
atraso dos EUA na entrega dos dois reatores a água leve, prometidos em troca de uma
paralisação nas conhecidas operações nucleares da Coreia do Norte; e os norte-americanos,
porque o regime não entrou em colapso, tampouco permitiu o acesso às suas atividades
nucleares do passado. Entre um e outro, a AIEA continuava presente em Yongbyon,
monitorando a paralisação das instalações nucleares, mas incapaz de realizar verificações
significativas de salvaguarda em outras partes do país . 57

Houve indícios de reaproximação na relação entre os EUA e a Coreia do Norte nos últimos
meses de 2002. A secretária de Estado, Madeleine Albright, prestes a deixar o cargo, prestara
uma homenagem em Washington ao emissário de Kim Jong Il . Pyongyang convidara o 58

presidente norte-americano para uma visita. A própria Albright foi calorosamente recebida por
Kim Jong Il. Pouco tempo depois, o novo secretário de Estado, Colin Powell, deu sinais de sua
intenção em continuar o diálogo. “Temos, realmente, planos de estabelecer relações
significativas com a Coreia do Norte, continuando o trabalho a partir do ponto deixado pelo
presidente Clinton e sua administração”, disse Powell. “Elementos promissores foram deixados
na mesa de negociação, e vamos examinar tais elementos” . No entanto, as perspectivas do
59

presidente Bush eram diferentes. Em um encontro naquele mesmo mês com Kim Dae Jung,
presidente sul-coreano que ganhara o Prêmio Nobel da Paz por sua “Política Raio de Sol”, de
abrandamento das hostilidades com seu vizinho do norte, Bush deixou clara sua aversão ao
contato com o regime norte-coreano. Em janeiro de 2002, a Coreia do Norte passou a ser
considerada membro do “eixo do mal”, ao lado do Irã e do Iraque. Bush teria se referido a Kim
Jong Il como “criança mimada” e “pigmeu” .60

Os últimos e frágeis sinais de progresso surgiram mais tarde, naquele verão, quando – com
muitos anos de atraso – o primeiro bloco de concreto foi finalmente colocado no local das
prometidas instalações dos reatores de energia nuclear a água leve, que pretendiam se
transformar na pedra angular de um programa de energia nuclear pacífico da Coreia do Norte.
Em setembro, o primeiro-ministro japonês Junichiro Koizumi foi recebido por Kim Jong Il em
Pyongyang – uma importante conquista diplomática –, e os dois países anunciaram sua
intenção de normalizar as relações . Foi quando tudo mudou. O fator desencadeador foi um
61

relatório enviado a Washington pelo secretário-assistente de Estado norte-americano para


assuntos da Ásia Oriental e do Pacífico, James Kelly, com relação a um encontro recente com
autoridades do governo norte-coreano. Os detalhes desse encontro continuam obscuros até
hoje, mas, aparentemente, Kelly acusou os norte-coreanos de conduzir um programa secreto de
enriquecimento de urânio. Segundo Kelly, seu colega norte-coreano havia reconhecido a
existência desse programa; contudo, não foram revelados detalhes sobre sua natureza ou
extensão.
Os Estados Unidos exigiram a inspeção desse suposto programa de enriquecimento. A
notícia vazou para a imprensa: imediatamente, surgiram relatos na mídia afirmando que a
Coreia do Norte havia trapaceado com os termos da Estrutura de Acordo. Em vez de continuar
o diálogo e investigar a origem dessas “revelações”, abordando-as dentro dos limites da
Estrutura de Acordo, os EUA persuadiram o Conselho Executivo da Organização de
Desenvolvimento de Energia da Península Coreana (ou KEDO, na sigla em inglês, organização
formada para implementar as cláusulas da Estrutura de Acordo) a suspender a entrega de óleo
combustível pesado para a Coreia do Norte . Assim, as remessas desse componente energético
62

essencial para aquele país foram abruptamente interrompidas.


A resposta de Pyongyang foi enérgica: declarou extinta a Estrutura de Acordo – devido à
interrupção norte-americana do fornecimento de petróleo – e anunciou que retomaria a
operação do reator de Yongbyon. A Coreia do Norte ameaçou expulsar os inspetores da AIEA,
reiniciar as operações de reprocessamento de seu combustível queimado e retirar-se do TNP.
Não era blefe. No dia seguinte, Pyongyang solicitou oficialmente à AIEA que retirasse seus
lacres e equipamentos de vigilância das instalações de Yongbyon. Durante alguns dias,
trocamos mensagens com nossos colegas norte-coreanos. Era época de Natal, e eu trabalhava
em um resort numa praia em Colombo, no Sri Lanka, onde minha família passava as férias.
Concedi entrevistas por telefone à CNN de nosso quarto de hotel, usando meu filho, Mostafa,
como assistente. Mantive o Conselho de Governadores da AIEA informado sobre a situação
que se deteriorava. Em coordenação com minha equipe em Viena, tentamos todos os
argumentos possíveis para dissuadir Pyongyang de uma ação intempestiva.
Em 26 de dezembro, dei uma declaração condenando essas ações em virtude das “sérias
preocupações com a proliferação” por elas geradas, criticando a Coreia do Norte por suas
atitudes diplomáticas arriscadas no plano nuclear”. Porém ninguém estava disposto a ceder. O
diretor-geral do Departamento Geral de Energia Atômica da Coreia do Norte, Ri Je Son, nos
solicitou formalmente a remoção imediata de nossos inspetores. Não tivemos outra escolha a
não ser trazê-los de volta a Viena.
Numa reunião de emergência, o Conselho da AIEA aprovou uma resolução lamentando as
ações unilaterais da Coreia do Norte e exigindo do país a cooperação em relação aos protocolos
de verificação da AIEA. Quatro dias depois, em 10 de janeiro de 2003, a Coreia do Norte
anunciou sua saída do TNP. No período de algumas semanas, técnicos norte-coreanos
começaram a remover e a desabilitar os equipamentos de monitoração da AIEA. Deram início
a reparos a fim de reiniciar o reator, começaram a transportar as varetas de combustível e
adotaram medidas para reiniciar o reprocessamento de combustível queimado.
Insisti publicamente para que Pyongyang revertesse sua decisão, argumentando que isso era
contraproducente diante dos esforços de alcançar a paz e a estabilidade na península coreana.
Na verdade, autoridades de governo em nível ministerial encontraram-se posteriormente,
naquele mesmo mês, a fim de buscar uma saída diplomática. Mas estava claro que o dano já
tinha sido feito, pelo menos temporariamente.

Os políticos linha-dura dos EUA estavam claramente satisfeitos com essa interrupção do
processo de reaproximação com a Coreia do Norte. Para eles, a mera ideia de envolver-se com
o regime de Kim Jong Il era repugnante. Tampouco lhes agradava a Estrutura de Acordo, que
eles caracterizavam como um pacto que recompensava a Coreia do Norte por sua violação do
TNP. Embora a Estrutura de Acordo contivesse imperfeições, a alternativa a ela iria se revelar
muito pior.
O Conselho da AIEA encaminhou o caso ao Conselho de Segurança, mas este não tomou
nenhuma medida. Sua atenção, bem como a do restante do mundo, estava totalmente voltada à
catástrofe que acontecia no continente ao lado, no Iraque. Mas a razão verdadeira foi a China,
membro do P5, que exercia seu poder de veto e cujas decisões tinham grande influência. A
China se ateve à sua crença habitual, e justificável, de que a única maneira de resolver a crise
norte-coreana ou questões semelhantes era por meio das negociações e do diálogo. Assim, em
abril de 2003, Pequim serviu de anfitriã para conversas diretas entre os EUA e a Coreia do
Norte. Porém as duas partes fizeram pouco progresso; as tentativas de diplomacia a portas
fechadas davam lugar a exigências, a acusações públicas e à recusa de propostas.
Logo depois, a Coreia do Norte anunciou a cessação de seu último pacto de não
proliferação: um acordo bilateral com a Coreia do Sul para retirar armas nucleares da
península. Sem mostrar sinais de desânimo, a China continuou a pressionar no intuito de uma
solução diplomática, abrigando o primeiro entre os assim chamados encontros “de seis nações”
ou “seis partes”: uma longa série de negociações que, além da Coreia do Norte e dos EUA,
incluiria Japão, Rússia e Coreia do Sul.
À AIEA não coube papel nenhum nos encontros entre as seis partes. Na verdade, em todos
os sentidos práticos, os anos subsequentes à saída da Coreia do Norte do TNP, em 2003, foram
uma caixa-preta. Ficamos completamente no escuro. Não tínhamos autoridade de inspeção
naquele país. Embora eu fosse favorável aos esforços de envolver os norte-coreanos em um
diálogo, por meio dos encontros com as demais partes, o fato de não haver uma resposta
internacional unificada e consistente à escalada norte-coreana estava, a meu ver, criando um
perigoso precedente. Por um lado, no caso do Iraque, o governo havia convidado os inspetores
internacionais de armas, que não encontraram provas da continuação dos programas de armas
de destruição em massa; no entanto, as conclusões da inspeção foram descartadas, favorecendo
o argumento pró-invasão (supostamente baseado em uma “ameaça à paz e à segurança
internacionais”). Por outro lado, o governo norte-coreano não respondera às questões sobre o
plutônio escondido, sobre as instalações secretas e sobre seu supostamente não declarado
programa de enriquecimento; inspetores da agência foram expulsos do país, e os norte-
coreanos se retiraram do TNP, dando assim fortes sinais quanto às suas intenções. Ainda assim,
não houve nenhuma condenação coletiva feita pelo Conselho de Segurança, e a AIEA, órgão
encarregado da prevenção da proliferação nuclear, nem sequer fazia parte das conversas que
estavam em curso .
63

Em cada reunião do Conselho da AIEA, manifestei minha preocupação e nossa disposição


de trabalhar com as partes envolvidas na busca de uma solução abrangente, que contemplaria
tanto os interesses norte-coreanos na área de segurança quanto as prioridades da comunidade
internacional em relação à não proliferação. Nos bastidores, pedi aos membros das seis partes
envolvidas que me fornecessem informações, mas não parecia haver muito que relatar.
Também fui a fóruns públicos a fim de expressar minha insatisfação. Durante um debate
aberto no Conselho de Relações Exteriores, disse ao grupo: “O que me preocupa em relação à
Coreia do Norte é que eles nos enviam os piores sinais de serem potenciais proliferadores: se
você está disposto a proteger a si mesmo, deve acelerar seu programa nuclear, pois, assim, de
alguma maneira estará imune. Dessa maneira, as pessoas se sentarão à mesa de negociação
com você. E se isso não for feito o mais rápido possível, estará sujeito a uma possível ação
preventiva” – referência, é claro, à ação militar no Iraque .
64

Encontrei-me com Colin Powell em Washington, em junho de 2004. Àquela altura, as seis
partes estavam prestes a terminar sua terceira rodada de encontros, sem que nenhum progresso
significativo tivesse sido alcançado. Powell me disse que estava disposto a adotar uma postura
mais flexível em relação à Coreia do Norte. Para ele, no entanto, os norte-coreanos iriam
obstruir o diálogo até novembro. “Se eu fosse os norte-coreanos”, disse ele, “esperaria o
resultado das eleições, pois se os democratas chegarem à Casa Branca é bem provável que
adotem uma abordagem mais flexível.”
A partir das informações que pude obter, além da construção dos dois reatores de energia, a
Coreia do Norte estava pressionando para obter maior assistência, bem como garantias de
segurança e, no fim, uma normalização das relações com os EUA em troca da renúncia ao seu
programa nuclear. Os Estados Unidos, e em certa medida o Japão, pressionavam no sentido
contrário. Queriam que a Coreia do Norte desmantelasse completamente suas instalações
nucleares, impedindo o reinício da operação do ciclo de combustíveis; os EUA também
exigiram que se suspendesse a ajuda internacional até que a Coreia do Norte adotasse medidas
de peso e passíveis de verificação. A China, a Rússia e a Coreia do Sul eram favoráveis a uma
abordagem mais moderada, baseada na adoção de atitudes de ambas as partes.
Nenhuma das partes cedia.
O cenário diplomático ficava gradativamente mais sombrio. No momento da quarta rodada
de encontros, a Coreia do Norte se recusou a comparecer, culpando os EUA por sua postura
“hostil”. Quando visitei a Coreia do Sul e o Japão, durante a primavera, percebi que os demais
membros dos encontros entre as seis partes também se mostravam insatisfeitos com a postura
linha-dura dos norte-americanos. O vice-ministro das Relações Exteriores da Coreia do Sul
atribuiu o problema a uma diferença de perspectiva: segundo ele, para os EUA, a Coreia do
Norte era simplesmente mais um caso de país envolvido com armas de destruição em massa,
enquanto “para nós, os norte-coreanos são nossos inimigos, mas também nossos irmãos”. O
Japão, segundo me disseram, preferiria centrar o foco no processamento de plutônio pela
Coreia do Norte, um risco de proliferação que não estava sendo contestado, e postergar a
questão do suposto enriquecimento de urânio. Com a AIEA fora do país, não havia
“paralisação” em vigor que pudesse impedir a Coreia do Norte de reprocessar seu combustível
queimado, processar plutônio ou construir armas nucleares.
Perto do final daquele ano, Bill Richardson, governador do Novo México, me procurou em
segredo. Eu conhecia Richardson desde a época em que exerceu o cargo de embaixador dos
EUA na ONU, entre 1997 e 1998, e posteriormente, quando foi secretário de energia. Ele
queria saber se eu poderia mediar o debate e estava interessado em ir para a Coreia do Norte na
condição de meu enviado – uma proposta incomum, porém aceitável. Acrescentou que gostaria
de manter a linha-dura em questões de política externa, com as quais obviamente não estava
lidando em sua função de governador.
Richardson tinha experiência com a diplomacia norte-coreana: no cargo de representante do
Congresso dos EUA em 1996, garantiu com êxito a libertação de Evan Hunziker, cidadão
norte-americano mantido sob a custódia norte-coreana; e no início de janeiro de 2003, quando
a situação norte-coreana estava entrando em colapso, Pyongyang mandou seus enviados para
um encontro com Richardson no Novo México, com a suposta expectativa de usá-lo como
intermediário. Ele fora também enviado a Bagdá para garantir a libertação de dois
trabalhadores norte-americanos da indústria aeroespacial, durante a presidência de Bill Clinton,
e viajara a Bangladesh em 1996, quando conseguira a absolvição de uma mulher norte-
americana acusada de tráfico de heroína. Portanto, ele tinha um histórico de sucessos como
mediador em áreas problemáticas, que geralmente recebiam uma significativa cobertura da
mídia.
Concordei em apoiar a missão de Richardson. Seu objetivo era obter, também, a aprovação
do Departamento de Estado, que se materializou na forma de promessa de transporte aéreo
militar, acompanhada do alerta de que ele não negociaria em nome do governo dos EUA. Logo
em seguida, Richardson me enviou um fax: os norte-coreanos, que tinham se mostrado
receptivos à sua visita, haviam mudado de ideia.
Em outra curiosa reviravolta, amigos sul-coreanos que eu conhecera na Conferência de
Pugwash pediram que eu me encontrasse com um banqueiro sueco chamado Peter Castenfelt –
65

segundo eles, o consultor de uma autoridade de governo norte-coreana equivalente ao cargo de


primeiro-ministro. Embora cético, concordei com o encontro. A aparência de Castenfelt, no
escritório da AIEA em Viena, não me transmitia a mínima confiança: suas roupas estavam
amarrotadas; seu cabelo, despenteado. Sorriu ao apertar minha mão, me olhando através de
seus óculos demasiadamente grandes.
Ao sentarmos, Castenfelt foi direto ao ponto. Kim Jong Il, disse ele, enfrentava um dilema.
Desejava a abertura do país para tirar a Coreia do Norte de sua situação de isolamento. O
problema eram os velhos generais do exército da geração de seu pai, que se opunham a
qualquer medida de reaproximação com a comunidade internacional. Segundo Castenfelt, os
norte-coreanos reconheciam a importância do restabelecimento de relações com a AIEA. Eles
haviam redigido uma carta me convidando a visitá-los, mas adiaram o envio pelo fato de eu ter
dado uma declaração sobre eles que não lhes agradou. Castenfelt prometeu marcar um
encontro com o embaixador norte-coreano na ONU durante minha viagem a Nova York.
Porém o encontro não aconteceu.
Peter Castenfelt era uma figura enigmática, uma espécie de empresário político a serviço de
vários governos. Pelo que pude descobrir, ele estivera a serviço da Rússia na época de Boris
Yeltsin, intercedendo para obter empréstimos para a Rússia junto ao Fundo Monetário
Internacional. Posteriormente, a Alemanha e a Rússia o enviaram aos Bálcãs para persuadir
Slobodan Miloševic´ a cessar o bombardeio do Kosovo. Ele parecia ter conexões de alto nível
em toda parte, incluindo Estados Unidos e Irã. Nunca consegui saber ao certo o que ele
buscava com esse papel de mediador ad hoc, e ele abandonou a cena norte-coreana da mesma
maneira repentina que nela entrou.

De repente, o cenário foi tomado por nuvens negras. A quarta rodada dos encontros entre as
seis partes chegou a um impasse em agosto de 2005, mas foi retomada em setembro, quando
todos os envolvidos chegaram a uma consensual Declaração Conjunta, que estabelecia os
princípios com base nos quais abordariam a situação norte-coreana. A declaração incluía a
aceitação, da parte da Coreia do Norte, de abandonar o programa de armas nucleares e de
retornar ao TNP e à salvaguarda da AIEA.
O que havia mudado? A meu ver, a diferença essencial foi Condoleezza Rice, a então
secretária de Estado, que conseguiu convencer Bush (a despeito da oposição de seus colegas,
particularmente Dick Cheney e seu grupo) sobre a necessidade de uma mudança de rumo. A
influência dela ficou evidente com a nomeação do embaixador Christopher Hill como chefe da
delegação dos EUA para os encontros dos seis países e como secretário-assistente de Estado
para assuntos da Ásia Oriental e do Pacífico alguns meses depois. Hill, um homem pragmático
que acreditava na gradativa construção do sentimento de confiança por meio do diálogo,
rompeu com os hábitos precedentes e começou a contatar diretamente seus colegas em
Pyongyang. Considero Hill uma commodity rara, um funcionário de alto nível da administração
Bush capaz de uma abordagem não ideológica e dotado de bom senso para lidar com crises
geopolíticas. Hill foi extraordinariamente habilidoso ao se utilizar de diplomacia com os norte-
coreanos; correram boatos de que os japoneses começaram a tratá-lo, em situações reservadas,
como “Chris Jong-Hill”.
Ficou claro que Hill tinha pouca paciência para lidar com os políticos linha-dura de
Washington; a certa altura, enquanto conversávamos a sós, ele me disse: “O corpo de John
Bolton pode não estar mais aqui, mas as mãos dele estão” – em referência à contínua influência
exercida por Bolton em Washington. Hill e eu geralmente concordávamos sobre questões de
cunho preocupante: o valor do diálogo, a falta de visão tão característica das atitudes sem
comprometimento e a importância de uma abordagem pragmática, comprometida e adotada
passo a passo em relação à Coreia do Norte. Infelizmente, segundo ele me confidenciou no
final, surgiu todo tipo de obstáculos para impedir seu progresso na situação nuclear da Coreia
do Norte. Certa vez, mencionei a ele que achava insuficiente o número de funcionários no
Departamento de Estado com o devido conhecimento sobre controle de armas. Ele deu um
largo sorriso e disse que era por isso que estava sendo tão mal aconselhado.
Diferentemente da Estrutura de Acordo, a Declaração Conjunta não incluía prazos
específicos, nem mesmo um roteiro. Algumas pessoas nos EUA se referiam a ela como a “filha
da Estrutura de Acordo”, sugerindo com isso que, três anos depois de descartar a Estrutura de
Acordo, a administração dos EUA simplesmente a substituiu por uma alternativa de qualidade
inferior. Ainda assim, era um importante passo adiante. A Coreia do Norte prometeu fazer
concessões em troca de assistência no plano energético. Os Estados Unidos declararam não ter
intenção de invadir a Coreia do Norte, que providenciariam uma garantia de segurança com
esse propósito, e comprometeram-se a respeitar a soberania norte-coreana.
Então, mais uma vez, as negociações foram interrompidas. Os EUA, mencionando uma
investigação, ainda em curso, do Departamento do Tesouro norte-americano, congelou
aproximadamente US$ 25 milhões em bens norte-coreanos no Banco Delta Asia em Macau,
alegando que eles estavam associados a lavagem de dinheiro e a falsificações. Isso provocou a
ira de Pyongyang, mas os norte-coreanos propuseram retomar os encontros entre os seis países
caso os EUA liberassem os fundos. Os EUA se recusaram, dizendo que não havia relação entre
questões nucleares e financeiras.
Com as conversas ainda em impasse, a Coreia do Norte anunciou que realizaria seu primeiro
teste nuclear. E seis dias mais tarde, em 9 de outubro, Pyongyang cumpriu a promessa. A
detonação foi bastante pequena pelos padrões dos testes; nos círculos nucleares, havia grandes
dúvidas em relação à eficácia da tecnologia norte-coreana. Mas não havia como negar um
aspecto bastante sério: mais um país – isolado, empobrecido, sentindo-se enormemente
ameaçado pelos EUA, porém ainda assim com uma postura de desafio – havia se juntado ao
clube exclusivo dos Estados detentores de armas nucleares.
Se a intenção do teste nuclear norte-coreano foi chamar a atenção, foi bem-sucedida. O
Conselho de Segurança da ONU emitiu uma resolução condenando o teste, acrescentando
sanções pouco enérgicas e que, em alguns casos, repetiam o que já estava em vigor. O ex-
secretário da Defesa dos EUA, William Perry, em artigo no Washington Post, afirmou que o
teste foi uma demonstração do “total fracasso das políticas da administração Bush em relação à
Coreia do Norte” . O ex-presidente Jimmy Carter adotou uma postura mais conciliadora,
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observando que ainda era possível retomar a Declaração Conjunta de 2005: “O que se deve
evitar”, escreveu, “é permitir que um Estado nuclear sitiado tenha a convicção de que está
permanentemente excluído da comunidade internacional, permitir que seu povo sofra privações
terríveis e que os adeptos da linha-dura exerçam total controle das condições militares e
políticas existentes no país” .
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Uma perspectiva radicalmente oposta, mas que refletia os pontos de vista dos falcões dos
EUA, foi apresentada por David Frum, que trabalhara redigindo os discursos do presidente
Bush e que alegava ser o autor do conceito de “eixo do mal”. Em artigo no New York Times,
um dia após os testes, ele defendeu medidas severas: acelerar o emprego dos sistemas de
defesa contra mísseis dos EUA; cessar a ajuda humanitária à Coreia do Norte; trazer vários
países asiáticos para dentro da OTAN. Frum ainda teve outra ideia: “Os EUA”, escreveu,
deveriam “estimular o Japão a renunciar ao Tratado de Não Proliferação Nuclear e criar seus
próprios impedimentos nucleares” . Suspirei aliviado por Frum ter deixado de fazer parte do
68

processo de elaboração de políticas.


Com um novo clima de urgência pairando no ar, os encontros entre as seis partes
rapidamente foram retomados. Condoleezza Rice, num encontro no final de outubro,
perguntou-me se eu achava que a AIEA poderia desempenhar algum papel para ajudar na
resolução do impasse da Coreia do Norte. “Não basta a mera declaração da Coreia do Norte de
sua disposição de desnuclearizar a península coreana”, disse ela. “É necessário que se faça algo
de concreto.”
Sem dúvida, estávamos dispostos a um envolvimento capaz de amenizar a crise.
“Poderíamos começar com algumas atividades de inspeção consensuais”, respondi, “e agir
progressivamente a partir daí.” Condoleezza concordou. Não pude deixar de pensar que, depois
de todo aquele tempo, estávamos, no fundo, reinstaurando a abordagem “uma ação em troca da
outra”, própria da Estrutura de Acordo, descartada havia tempos. Mais peculiar ainda,
considerando o que veio à tona no Iraque sobre o presente comportamento dos EUA em
relação ao programa nuclear do Irã, era o fato de que os norte-americanos estavam retomando
sua participação em conversas com os norte-coreanos – e mostrando-se aparentemente abertos
à possibilidade de ceder aos desejos desse país – quase imediatamente depois que eles
detonaram sua primeira arma nuclear.
A fim de amenizar as tensões, os Estados Unidos começaram a estudar uma maneira de seus
advogados e elaboradores de políticas “descongelarem” os fundos norte-coreanos no banco de
Macau. Em fevereiro de 2007, a Coreia do Norte concordou em iniciar o fechamento do reator
de Yongbyon e permitiu que os inspetores nucleares da AIEA retornassem ao país em troca de
assistência – o primeiro passo para um novo acordo de desarmamento. No dia 23 do mesmo
mês, recebi uma carta-convite para visitar o país. O convite citava meu comentário de que a
única forma de resolver a questão coreana era por meio do diálogo e do engajamento pacíficos,
e não por meio de pressão. Foi um sinal de boas-vindas. Publiquei o documento, afirmando que
“este é um passo na direção correta”.
Numa conversa telefônica com Condoleezza, no dia seguinte, brincamos a respeito de minha
visita iminente. “Muito obrigado”, disse ironicamente, “por ter providenciado minha próxima
visita à Coreia do Norte durante o inverno.” Relatei a ela o frio que fazia em minha visita
anterior, em 1992, lembrando o quanto tremi no quarto do hotel.

Minha partida rumo a Pyongyang foi precedida de uma revelação impressionante. Trata-se de
um artigo veiculado pela Agence France Presse , baseado em testemunhas parlamentares,
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afirmando que a confiança dos EUA nas informações secretas sobre o suposto programa de
enriquecimento de urânio norte-coreano – informações que haviam arruinado a Estrutura de
Acordo em 2002 – encontrava-se em um “nível médio”, o que significava que ainda havia
informações duvidosas ou conflituosas.
Fiquei perplexo. O programa secreto de enriquecimento de urânio foi a razão apresentada
pelos EUA para cortar o fornecimento de combustível para a Coreia do Norte, o fator que
desencadeou uma sequência inteira de manobras políticas nos quatro anos subsequentes – a
expulsão da Coreia do Norte da AIEA, seu abandono do TNP, a aceleração de seu programa de
armas, as conversações intermitentes, as ameaças e sanções e, por fim, o teste de um aparato
nuclear. Tudo isso teve origem em uma alegação incerta. A revelação foi um golpe adicional à
credibilidade e ao manuseio competente de informações secretas do Serviço de Inteligência dos
EUA.
Posteriormente, Christopher Hill me disse que lera as atas do encontro original, no qual a
Coreia do Norte fazia “confissões” ao seu predecessor, James Kelly. Ele fez uma careta e deu
de ombros; parecia-me óbvio que Hill não estava convencido da natureza das confissões.
Na condição de diretor da AIEA, eu não podia expressar abertamente a minha discordância
em relação à forma como a questão estava sendo tratada. Mas não precisei fazer isso: vários
críticos, incluindo alguns que se mantiveram em silêncio na época da invasão do Iraque, agora
expressavam sua opinião. A reação exagerada a informações secretas questionáveis levara uma
nação pária a um isolamento ainda maior. E esse isolamento dera aos generais e cientistas
norte-coreanos o tempo e a motivação adicionais para desenvolver e detonar uma arma nuclear.
O aspecto fundamental é que Pyongyang agora estava numa posição mais sólida para
negociar do que anteriormente. Trata-se de um exemplo infeliz de ideologia e de absolutismo a
atravancar o caminho do bom senso e do pragmatismo.
Meu retorno à Coreia do Norte, em março de 2007 – o primeiro em 15 anos –, foi marcado por
um revés. Eu havia feito, com antecedência, uma solicitação ao governo chinês para que
marcasse um encontro com o alto escalão dos norte-coreanos. A caminho de Pequim, fui
informado de que desagradou aos norte-coreanos o fato de eu não tê-los abordado diretamente,
tendo em vista que foram eles, afinal de contas, que me enviaram o convite para retornar ao seu
país. Expliquei que a AIEA não dispunha mais de um embaixador norte-coreano oficialmente
reconhecido, um canal direto de comunicação. Mas estava claro o ponto principal da
declaração deles: não queriam ser vistos como um satélite da China.
A única companhia aérea a voar entre Pequim e Pyongyang era a Air Koryo, a empresa
oficial da Coreia do Norte. Tendo em mente a lembrança de minha experiência com a Air
Koryo em 1992, decidimos voar em um pequeno jato privado. Quando chegamos, o aeroporto
de Pyongyang estava deserto.
Até onde pude perceber, não havia outros voos chegando ou partindo. Éramos os únicos
passageiros no terminal. Disseram-me que o volume total de tráfego aéreo em Pyongyang
consistia em um único voo para Pequim a cada dois dias.
O mesmo clima orwelliano das lembranças de minha visita de 1992 impregnava a cidade:
nas ruas, não havia carros particulares, motocicletas, nem mesmo bicicletas, apenas alguns
veículos oficiais. A maioria das pessoas que vimos na rua eram pedestres. Tocava-se música
patriótica nos alto-falantes em vários locais da cidade, incluindo a área em que ficamos
hospedados.
O Hotel Koryo estava deserto, com exceção dos funcionários e um punhado de estrangeiros,
entre os quais uma delegação australiana que fora à cidade debater a assistência humanitária.
Reservaram-me um quarto de primeira classe: uma suíte deteriorada de cor bege desbotada,
contendo um quarto e uma sala grande. A mobília era uma miscelânea de estilos dos anos
1950. As instalações do banheiro também eram velhas. Não havia serviço de quarto. A diária
era de aproximadamente 200 dólares.
A situação financeira do país era evidentemente sombria. Mesmo na condição de convidados
do governo norte-coreano, tivemos de bancar todas as despesas, incluindo os carros que nos
levavam de um local a outro. A comida do hotel era adequada, mas o chefe da equipe
australiana comentou que 60% das crianças norte-coreanas com menos de dois anos tinham
traços evidentes de crescimento atrofiado, causados por desnutrição. O chargé d’affaires
egípcio me disse que, até mesmo nos setores diplomáticos, eles só podiam contar com
eletricidade e água encanada durante poucas horas do dia.
Minha expectativa com essa breve visita era organizar as bases para o restabelecimento das
relações entre a Coreia do Norte e a AIEA. Uma pequena equipe da AIEA me fazia
companhia, e estávamos prontos para examinar questões técnicas e políticas a fundo, caso
Pyongyang nos desse o sinal verde. Nossa agenda de reuniões, que incluía vários níveis do
governo norte-coreano, parecia promissora.
No entanto, a boa recepção que tivemos foi seguida de uma frustrante série de sinais
políticos ambíguos, típicos de Pyongyang. Nosso encontro com o vice-ministro, que
representava a Coreia do Norte nos encontros entre as seis partes, foi cancelado na última hora.
Informaram-nos que ele estava doente, mas grande parte da mídia interpretou o gesto como
uma descortesia intencional.
Antes do encontro com o vice-diretor do Presidium, ou Parlamento, nos levaram a um
pequeno tour. Na Câmara dos Deputados, tivemos de esticar o pescoço para avistar uma
estátua, de 15 metros de altura, de Kim Il-Sung, o “eterno” presidente. A situação me lembrou
o encontro com o emir de Zaria, no norte da Nigéria, onde os habitantes locais são obrigados a
engatinhar no chão como sinal de respeito. Aqui, um semelhante status de divindade era
atribuído a uma pessoa falecida. “Retomemos o encontro”, eu disse, com visível irritação.
Na hora do tradicional chá de ginseng, o vice-diretor começou a descrever a “política norte-
coreana centrada no exército”, afirmando que todo o país “compartilha da mesma opinião”.
Respondi dizendo que os países e os governos são, em última instância, julgados pela
satisfação de seu povo, com o direito de viver em liberdade e com dignidade. Nenhum país
podia se permitir o isolamento do resto da comunidade internacional. O intérprete riu de modo
nervoso com meus comentários críticos, me deixando na dúvida se o vice-diretor havia
compreendido a mensagem.
O encontro seguinte, com o vice-ministro das Relações Exteriores, também pareceu seguir
um roteiro ensaiado. A Coreia do Norte, disse ele, tinha um “histórico desagradável” de
situações em que se deparou com a postura tendenciosa da AIEA. Garanti ao vice-ministro que
tentávamos cumprir com nossas responsabilidades de maneira objetiva. Os norte-coreanos
assentiram com a cabeça e disseram que gostariam de olhar para o futuro. Eu lhes sugeri que
considerassem a possibilidade de voltarem a ser membros da agência. O vice-ministro afirmou
que, antes de tudo, eles teriam de ver como os Estados Unidos iriam se comportar, mas me
elogiou por ter apoiado publicamente uma resolução pacífica da questão nuclear e por ter
enfatizado a necessidade de levar em conta as preocupações com a segurança e a economia do
país.
O encontro mais agradável que tivemos foi com Ri Je Son, diretor-geral da Agência Geral
de Energia Atômica da Coreia do Norte. Ocorreu em nosso hotel e incluiu refeições saborosas:
pratos coreanos tradicionais à base de carne e peixe, kimchee e legumes acompanhados de
vinho e soju, um destilado feito de arroz. Numa impressionante demonstração de honestidade,
Ri Je Son confessou, em resposta a uma pergunta minha, que seu povo não tinha condições de
alimentar-se com carne todos os dias. Do ponto de vista diplomático, contudo, ele também
aderiu cuidadosamente às orientações do partido – a “experiência ruim” que tiveram com a
AIEA, no passado, e o desejo de concentrar-se no futuro.
De volta à gelada suíte do hotel, me dei conta de que, a despeito de toda a pose dos norte-
coreanos e de não ter havido avanços significativos, a mera retomada do diálogo contribuiria
para facilitar as interações que teríamos nos meses seguintes. Liguei a TV e assisti à
programação previsível: mais filmes de guerra descrevendo as atrocidades cometidas pelos
EUA e o Japão no país. Senti alívio por estar numa visita breve.

Em 19 de março de 2007, Chris Hill declarou que os fundos norte-coreanos retidos no Banco
Delta Asia estavam sendo “descongelados”, em resposta às ações positivas de Pyongyang. A
transferência, de fato, fora adiada para junho, quando os russos intervieram para ajudar no
transporte físico dos fundos de Macau para a Coreia do Norte. A Coreia do Sul também
desempenhou um papel no processo, enviando uma significativa remessa de óleo combustível
ao vizinho do norte, em julho. Quando, naquele mês, me encontrei com o presidente sul-
coreano Roh Moo Hyun, ele lamentou a ineficácia do processo de negociações e o tempo
perdido. “Levamos cinco anos”, disse ele, “apenas para convencer os norte-americanos a
conversar bilateralmente com Pyongyang.”
A transferência de fundos teve como resultado um rápido progresso. Os norte-coreanos
começaram a fechar o reator em Yongbyon, conforme prometido. A AIEA também respondeu
prontamente. No dia 17 de julho, uma equipe de dez inspetores da agência concluiu a
verificação do fechamento de todas as instalações nucleares da Coreia do Norte, aplicando
lacres da AIEA e dando início à instalação dos equipamentos de vigilância.
A série de fatos que se seguiram, num período que se prolongaria durante quase todo o ano
de 2008, marcou o mais significativo e constante progresso na resolução de assuntos
relacionados ao programa nuclear norte-coreano desde o final de 2000. Os encontros das seis
partes continuaram, entrando numa “segunda fase” de ações sob a Declaração Conjunta.
Remessas de óleo combustível continuavam a chegar, conforme prometido. O Japão e a Coreia
do Norte decidiram restabelecer suas relações. Os norte-coreanos concordaram em apresentar
uma declaração completa e precisa de seus materiais e instalações nucleares. O
desmantelamento das instalações continuava seguindo o cronograma estipulado. Foi dada a
permissão para que delegações de especialistas dos EUA, China e Rússia visitassem
Yongbyon. Quando Chris Hill viajou a Pyongyang para participar de outras reuniões, levou
consigo uma carta cordial do presidente Bush, endereçada a Kim Jong Il.
Organizações da mídia ocidental chegaram a ser convidadas a visitar as instalações
nucleares fechadas. Em fevereiro de 2008, Christiane Amanpour, da CNN, fez uma reportagem
ao vivo nas instalações de Yongbyon, declarando que a Coreia do Norte havia “retirado o véu
nuclear”. Técnicos do Departamento de Energia dos EUA estavam no local, disse Amanpour,
ajudando a desmantelar partes das instalações nucleares norte-coreanas. “Parece haver uma
enorme diferença em relação às hostilidades evocadas pelo ‘eixo do mal’ . A Filarmônica de
Nova York e seu regente Lorin Maazel desembarcaram em Pyongyang – um pequeno passo na
longa estrada rumo à normalidade”, nas palavras de Amanpour .
70

Entretanto, o status da AIEA perante a Coreia do Norte estava numa espécie de limbo.
Quando as seis partes nos pediram para verificar o fechamento das instalações de Yongbyon,
respondemos prontamente. Porém, sob os termos da Declaração Conjunta, os EUA haviam
começado a desabilitar as instalações da Coreia do Norte sem o envolvimento da AIEA,
preferindo agir de modo bilateral. Eu hesitava em me queixar, pois o progresso na direção do
desmantelamento em si estava sendo estimulante. A AIEA obtivera um acordo tácito dos EUA
de que os norte-americanos envolvidos “observariam” o processo, mantendo registros a fim de
garantir que a agência continuasse recebendo as devidas informações, mas nossos inspetores,
ainda assim, tinham a preocupação de que, se não estivessem presentes ao longo de todo o
processo, perderiam informações essenciais, o que, posteriormente, tornaria a verificação do
controle das substâncias nucleares mais difícil.
John Rood, subsecretário de Estado interino de Controle de Armas e Segurança
Internacional, veio ao meu encontro em Viena, em 6 de maio de 2008. Disse-me que os EUA
tinham a expectativa de que a Coreia do Norte apresentasse sua declaração nuclear aos
chineses, e que a AIEA verificasse essa declaração para certificar-se de que a reaproximação
com a Coreia do Norte era um processo multilateral, e não bilateral. Eu disse que teríamos
prazer em fazê-lo, mas transmiti a ele a informação que ouvíramos dos norte-coreanos de que
os EUA não queriam o envolvimento da agência.
Concordaríamos em fazer o processo de verificação independentemente das circunstâncias,
mas fiz questão de que Rood compreendesse a posição ambígua da AIEA. Na visão de alguns
países, incluindo a maior parte dos países europeus e o Japão, a Coreia do Norte continuava
sendo membro do TNP – nesse caso, cabia à AIEA a obrigação jurídica de verificar suas
declarações. Outros países, como os EUA, acreditavam que a Coreia do Norte não mais
integrava o TNP. Em minha opinião como advogado, estava claro que a Coreia do Norte
apresentara uma notificação jurídica de sua saída do TNP em janeiro de 2003, e, por esse
motivo, não era mais membro do tratado.
Insisti com o Conselho da AIEA para que tivéssemos um esclarecimento de nossa situação.
As partes do TNP, disse eu, deviam decidir se a Coreia do Norte continuava ou não sendo
membro do tratado e fornecer à agência as devidas orientações. De minha parte, queria ter a
certeza de que a agência não poderia ser culpada por não pressionar para exercer suas
responsabilidades. Não recebi resposta; na verdade, a questão continua sem solução até hoje.
Em 26 de junho, as autoridades norte-coreanas entregaram à China a sua declaração, com
ampla documentação descrevendo o passado de seu país e o atual programa nuclear. Um dia
depois, em um gesto simbólico, a demolição de uma torre de resfriamento de 18 metros de
altura, no reator de Yongbyon, foi assistida por uma pequena multidão de jornalistas e
diplomatas internacionais. Logo em seguida, Chris Hill desembarcou em Viena para me
colocar a par de suas negociações com Pyongyang em relação às modalidades de verificação.
As seis partes queriam que a agência desempenhasse um papel de liderança, mas a Coreia do
Norte mostrou-se intransigente em relação ao nosso envolvimento. Tal opinião vinha do alto
escalão do governo. Aparentemente, para alguns norte-coreanos, as inspeções feitas pela
agência em 1993 eram uma lembrança desagradável. Ouvi também que a Coreia do Norte tinha
a expectativa de que uma inspeção realizada pelas seis partes seria uma “verificação
superficial”, se comparada com a abordagem rigorosa da agência.
Fosse qual fosse o caso, Hill mostrou-me o projeto de uma proposta que sugeria que a AIEA
agisse como “órgão consultor quando relevante” para as seis partes. A verificação real e a
avaliação dos resultados da verificação seriam feitos pelos seis. A agência trabalharia, assim,
sob seus “auspícios”.
Rejeitei os termos da proposta. Disse a Hill que não aceitava que a autoridade de verificação
e o papel da AIEA fossem comprometidos daquela maneira. Claro que eu compreendia que as
seis partes desejavam uma credibilidade que resultaria do envolvimento da agência, mas na
verdade o contrário é que ocorreria: as inspeções não teriam credibilidade caso fossem
realizadas sob os auspícios de um grupo ad hoc de países. Realizaríamos as verificações sob os
auspícios da comunidade internacional, como vínhamos fazendo havia 50 anos, ou então eles
estavam livres para encontrar alguém disposto a tal tarefa. Pedi que meus colegas da AIEA
transmitissem a mesma mensagem aos demais membros dos encontros das seis partes.
Quando li uma cópia da declaração norte-coreana, que deveria conter todas as atividades
nucleares, passadas e presentes, ficou evidente que o documento estava incompleto. Nele,
constava a declaração da quantidade de plutônio produzido, mas não havia nenhuma
informação sobre o programa de armas nucleares do país no passado, ou sobre a quantidade de
armas. Também não havia nenhuma menção às supostas atividades de enriquecimento de
urânio.
Hill concordou: para ele, os norte-coreanos provavelmente continuariam a manter suas
armas nucleares durante o tempo que fosse possível. Entretanto, tinha havido um verdadeiro
progresso, pois pelo menos o programa de armas do país fora congelado no nível atual, como
resultado do desmantelamento das instalações. Seriam necessários mais tempo e paciência para
que se chegasse a uma resolução final. Até mesmo a verificação do plutônio declarado
significaria um processo longo e complexo.
Na época, fiz uma anotação particular do comentário feito por Hill de que, tendo em vista a
percepção do Japão quanto à sua própria segurança, alguns observadores não mais excluíam a
possibilidade de o Japão repensar seu status de potência nuclear. Hill não aprofundou a
questão, e eu não o pressionei para fazê-lo. Mas lembrei que, em outubro de 2006, tanto o
ministro das Relações Exteriores japonês, Taro Aso, quanto o presidente do Partido Liberal
Democrata, Shoichi Nakagawa, sugeriram que se iniciasse um debate sobre um programa de
armas nucleares japonês . Na visão de acadêmicos japoneses, esse foi um evento
71

impressionante. O apoio dado pelo Japão ao TNP era considerável; até mesmo a menção
pública sobre o fato de o país considerar seu potencial nuclear era um tabu de longa data.
Isso apenas reforçou minha opinião de que, para qualquer país, as considerações sobre a
intenção de desenvolver, possuir ou utilizar armas nucleares estão sujeitas a mudanças a
qualquer momento, dependendo da maneira como esse país percebe sua atual situação quanto à
segurança. Enquanto as alternativas estiverem em aberto, jamais poderão ser excluídas.
Mudanças de percepção sobre a segurança nacional ou regional podem ser o suficiente para
que políticas de longa data sejam revertidas.
No entanto, o pêndulo voltou a oscilar no verão de 2008. Pyongyang desentendeu-se com
Washington pelo fato de os EUA não terem retirado a Coreia do Norte de sua lista de países
que apoiam o terrorismo. Sob os termos da Declaração Conjunta, esse era o combinado depois
que a Coreia do Norte desmantelasse suas instalações em Yongbyon. O problema, me
disseram, era que os adeptos da linha-dura na administração dos EUA tinham a expectativa de
conseguir “algo a mais” da Coreia do Norte antes de retirarem o país da lista: em particular, um
progresso maior na verificação da declaração norte-coreana de não ter armas nucleares.
Naturalmente, Pyongyang interpretou isso como um sinal de recuo dos EUA diante de mais
um compromisso. De imediato, os especialistas nucleares norte-coreanos receberam a ordem
de começar a reinstalação dos equipamentos nos locais desmantelados. Em 8 de outubro de
2008, os inspetores da AIEA foram proibidos de realizar novas inspeções em Yongbyon.
Três dias depois, os EUA recuaram. A Coreia do Norte foi retirada da lista dos países que
apoiam o terrorismo. No dia seguinte, a Coreia do Norte recomeçou seu processo de
desmantelamento. Mais uma vez, a AIEA pôde ter acesso às instalações de Yongbyon.
Porém, na primavera de 2009, surgiria um novo obstáculo. A despeito da pressão
internacional no sentido contrário, em 5 de abril a Coreia do Norte fez um “lançamento de
satélite”, uma espécie de teste de seus mísseis de longo alcance. O presidente Barack Obama
qualificou o teste como “provocação”, e insistiu para que o Conselho de Segurança da ONU
agisse. Em 13 de abril, o Conselho condenou a Coreia pelo lançamento. Pyongyang respondeu
com uma ira previsível, declarando que o país jamais participaria novamente dos encontros
entre as seis partes. Os inspetores da AIEA foram novamente solicitados a deixar o país.
Naquela época, a Coreia do Norte enfrentava uma crise. A pobreza atingira níveis extremos:
a quantidade de arroz destinada a cada habitante caíra para 200 gramas por dia, muito abaixo
do mínimo recomendado em uma dieta nutricional. Enquanto isso, a saúde precária de Kim
Jong Il criava um conflito entre o já idoso ditador – que desejava fazer de um de seus filhos,
Kim Jong Un, o seu sucessor – e os generais de alta patente do exército, que viam a situação
como uma oportunidade de tomar o poder. Qualquer confronto externo era um pretexto para
que os adeptos da linha-dura exigissem uma atitude dramática.
O pêndulo não se inclinara completamente para o outro lado. Em 25 de maio de 2009, a
Coreia do Norte testou sua segunda arma nuclear, obtendo êxito. Para os padrões, era um
artefato pequeno, mas nitidamente mais poderoso do que o primeiro. O teste foi condenado
pelo Conselho de Segurança da ONU e pelos outros cinco Estados que compunham o grupo
dos seis, cujas conversas estavam então suspensas.
O programa de enriquecimento do país – que há muito se alegava estar em desenvolvimento
– também voltou à tona. Dessa vez, na forma de uma usina de enriquecimento de urânio
completamente equipada e orgulhosamente revelada pelos norte-coreanos, em novembro de
2010, para Siegfried S. Hecker, professor da Universidade de Standford e ex-diretor do
Laboratório Nacional de Los Alamos . Hecker e seus colegas foram conduzidos a uma
72

sofisticada sala de controle e a um salão de enriquecimento equipado com 2 mil centrífugas


que, segundo os norte-coreanos, já produziam urânio de baixo enriquecimento. As instalações
estavam situadas em um antigo centro de produção de combustível, deixando claro que a usina
de enriquecimento fora construída depois de abril de 2009 – data da última visita dos
inspetores ao país. A velocidade da construção levou muitos a supor que a Coreia do Norte
provavelmente tinha outras operações de enriquecimento de urânio em outras partes do país . 73

A revelação era mais uma prova impressionante da futilidade das tentativas de conter as
ambições de proliferação por meio de confrontos, de sanções e do isolamento.

A meu ver, o segundo teste nuclear norte-coreano foi muito mais decepcionante do que o
primeiro. Nos dois anos seguintes, houve um considerável progresso no caso norte-coreano. E
a detonação aconteceu numa época em que, considerando as políticas da nova administração
norte-americana, as perspectivas de progresso em relação ao desarmamento nuclear global
eram melhores do que jamais foram no passado recente.
Mas a maior fonte de frustrações tem sido, de longe, observar os altos e baixos nas relações
da Coreia do Norte com o Ocidente. As ações e reações da Coreia têm sido, em grande parte,
previsíveis. No momento em que Pyongyang esteve envolvida em diálogos significativos, a
situação, de modo geral, melhorou. Quando o diálogo foi interrompido e houve troca de
insultos, e quando foi reinstaurada uma política de isolamento, a situação se deteriorou. É
absurdamente simples.
Assim, a condenação do lançamento do míssil norte-coreano, feita pelo Conselho de
Segurança, certamente agravou a situação. Muito possivelmente, com a nova administração
dos EUA no poder, a Coreia do Norte agiu de modo provocativo, na expectativa de atrair a
atenção da administração Obama e de receber um tratamento melhor do que tivera com Bush.
De qualquer modo, os norte-coreanos certamente reagiriam exageradamente, como em cada
uma das situações anteriores. Eu me perguntava: será que os diplomatas e políticos haviam tido
sua atenção voltada de tal forma à questão específica do momento que acabaram perdendo de
vista as etapas finais do processo de desarmamento?
Invariavelmente, ao lidar com a Coreia do Norte ou com outro caso de proliferação nuclear,
o Conselho de Segurança parecia estar excessivamente dividido ou limitado em suas
alternativas de apresentar algo que fosse além de declarações inócuas ou atitudes que causavam
consequências indesejadas. Em cada caso particular, as atitudes tomadas pelo Conselho de
Segurança em resposta à ameaça de proliferação nuclear foram superficiais e ineficazes. Para
que o Conselho fosse bem-sucedido, vários ajustes eram necessários: o foco nas causas
primordiais – e não apenas nos sintomas – da insegurança; uma agilidade maior e realismo ao
lidar com o descumprimento das normas, prevenindo em vez de remediar; medidas eficazes de
aplicação das normas que teriam como alvo os regimes em questão, em vez de civis inocentes;
e consistência na abordagem ao lidar com situações semelhantes .74

Em nenhuma outra situação essas necessidades de ajuste seriam mais dramáticas do que na
abordagem do programa nuclear da República Islâmica do Irã.
57 Os inspetores da AIEA estavam lá para garantir que a Coreia do Norte não estava reprocessando seu combustível queimado
em plutônio, mas as atividades de verificação da agência limitavam-se às instalações declaradas e sujeitas a paralisação.

58 Vice-marechal Cho Myong Rok, considerado o segundo-comandante por Kim Jong Il.

59 “Did Bush Bungle Relations with North Korea?”, Jake Tipper, Salon, 15/3/2001.

60 “I Sniff Some Politics”, de Howard Fineman, Newsweek, 27/5/2002.

61 Declaração Japão–DPRK, Pyongyang, 17/9/2002.

62 A KEDO foi fundada em 1995 pelos EUA, Coreia do Sul e Japão com o objetivo de implementar as principais cláusulas
relacionadas à energia na Estrutura de Acordo, incluindo a construção dos dois reatores nucleares de água leve. Até que a
construção dos reatores fosse concluída, a Coreia do Norte receberia 500 mil toneladas métricas de óleo combustível pesado
anualmente. Como já dito, o país asiático já se queixava da falta de boa-fé da parte dos EUA e da KEDO em razão dos atrasos na
construção do reator. A suspensão das remessas de petróleo foi a gota d’água.

63 Tendo em vista que a saída do TNP leva três meses para entrar em vigor, a decisão da Coreia do Norte tornou-se oficial em 10
de abril de 2003. Embora o Conselho da AIEA tenha encaminhado a questão para que o Conselho de Segurança tomasse
medidas, este não emitiu nenhuma resolução sobre o assunto; após um encontro a portas fechadas, em 9 de abril, o presidente do
Conselho, Adolfo Aguilar Zinser, do México, simplesmente disse aos repórteres que seus membros “expressaram suas
preocupações” e continuariam a deliberar sobre a questão.

64 14/5/2004. O debate foi moderado por Graham Allison, diretor do Centro Belfer para a Ciência e Assuntos Internacionais,
John F. Kennedy School of Government, Harvard University.

65 A Conferência de Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais é um evento anual em que um grupo internacional busca
identificar soluções para ameaças à segurança internacional, incluindo a proliferação de armas nucleares. A Conferência de
Pugwash e seu líder, Joseph Rotblat, receberam o Prêmio Nobel da Paz em 1995 por seu trabalho pela promoção do
desarmamento nuclear.

66 “In Search of a North Korea Policy”, 11/10/2006.

67 “Solving the Korean Stalemate, One Step at a Time”, New York Times, 11/10/2006.

68 “Mutually Assured Disruption”, New York Times, 10/10/2006.

69 “U.S. Now Uncertain About North Korea Uranium Enrichment”, AFP, 1/3/2007.

70 “North Korea Lifts Nuclear Veil”, CNN, 26/2/2008.

71 Em 18/10/2006, durante uma sessão do Comitê do Congresso, o ministro das Relações Exteriores afirmou: “Uma
possibilidade é não permitir debates, nem mesmo falar a respeito da posse das armas nucleares no momento em que um país
vizinho está prestes a adquiri-las, mas é importante que haja vários debates”. No dia seguinte, ele teria dito: “O Japão tem a
capacidade de produzir armas nucleares”. Mas acrescentou: “Não estamos dizendo que temos planos de possuir armas nucleares”.

72 “North Koreans Unveil New Plant for Nuclear Use”, de David E. Sanger, New York Times, 20/11/2010.

73 “U.S. Concludes North Korea Has More Nuclear Sites”, de David E. Sanger, New York Times, 14/12/2010.

74 O Conselho certamente deve ser reconstituído para se tornar representativo do século XXI. É um absurdo o fato de o P5 – os
membros permanentes do Conselho – não incluir países como o Brasil, a Índia e a África do Sul.

5 • Irã
TAQQIYA

Como se não bastassem duas situações dramáticas de verificação nuclear em meados de 2002,
a AIEA começou a receber informações sobre um terceiro caso. Imagens de satélite de Natanz,
pequena cidade da província de Isfahan, região central do Irã, mostravam a construção de uma
grande instalação industrial com detalhes perceptíveis, sugerindo que podia se tratar de uma
usina de enriquecimento de urânio. Por volta de agosto, o Conselho Nacional de Resistência do
Irã reuniu uma coletiva de imprensa em Washington, na qual afirmou que o país estava
75

construindo uma usina nuclear secreta em Natanz.


A agência iniciou as investigações. Em setembro, na Conferência Geral da AIEA, evento
anual realizado em Viena, abordei Gholamreza Aghazadeh, um homem de baixa estatura e
sério que ocupava dois cargos: vice-presidente do Irã e diretor da AEOI, sigla em inglês para a
Organização de Energia Atômica do Irã. Chamei-o de lado. “Conte-me sobre essa usina em
Natanz”, eu lhe pedi; “ela é usada para o enriquecimento, como as imagens do satélite
sugerem? Talvez precisemos fazer uma visita ao local.”
Aghazadeh sorriu. “Em breve convidaremos vocês para uma visita, sem dúvida”, respondeu
de modo afetuoso. “Então, esclareceremos tudo.”
A ambiguidade da resposta de Aghazadeh não me tranquilizava. Ainda mais inquietante foi
a longa lista de desculpas para o adiamento da prometida visita: o presidente Khatami estava
“em viagem”; o presidente Khatami estava “doente”; as datas escolhidas eram
“inconvenientes”. Essa situação se prolongou durante meses.
Nesse ínterim, em um encontro em Washington com Colin Powell e Richard Armitage, vice-
secretário de Estado, eu lhes informei que a política dos EUA no Irã – de alta dependência de
sanções e de um boicote, a fim de impedir o desenvolvimento de armas – não estava sendo
eficaz. A meu ver, as ações punitivas, que não se relacionavam com as razões implícitas à
busca de desenvolvimento nuclear da parte de um país, não constituíam uma política –
tampouco uma estratégia, em nenhum sentido pragmático – e, em último caso, só provocariam
o atraso de um programa de armas nucleares. Se um país como o Irã estivesse disposto a
adquirir armas nucleares, as medidas dos EUA não seriam o bastante para impedi-lo. Powell
não fez comentários a esse respeito, mas Armitage concordou comigo, o que interpretei como
um sinal de esperança.
Naquela época, eu me inspirava nas experiências da AIEA com a Argentina, o Brasil e a
África do Sul. A despeito de anos de restrições às exportações para tais países, os dois
primeiros desenvolveram o desejado know-how nuclear para o ciclo de combustível, enquanto
o terceiro, de fato, adquiriu armas nucleares (renunciando a elas, posteriormente) . Pelo que
76

pudemos observar repetidas vezes, uma política de isolamento e de sanções servia apenas para
estimular o sentimento de orgulho nacional de um país; na pior das hipóteses, ela poderia fazer
do projeto nuclear do país-alvo uma questão de prioridade nacional.
Quando os iranianos finalmente marcaram uma visita para a terceira semana de fevereiro de
2003, seu timing estava longe de ser o ideal. A Coreia do Norte acabara de se retirar do TNP. O
Conselho de Segurança da ONU travava batalhas internas sobre o uso da força no Iraque,
portanto uma invasão militar parecia iminente. Nossa equipe de inspeções havia – no mínimo –
atingido os seus limites.
Mas ainda precisávamos obter respostas em relação a Natanz. Aceitei o convite e pedi a
Pierre Goldschmidt, cientista nuclear belga que atuava como vice-diretor-geral de salvaguardas
na agência, que me acompanhasse, junto com Olli Heinonen.
No encontro de abertura em Teerã, Aghazadeh e seus colegas da AEOI admitiram, de
imediato, que as instalações em construção em Natanz eram uma usina de enriquecimento de
urânio. Contudo, enfatizaram o fato de que não tiveram a intenção de escondê-la da agência . 77

Segundo eles, seu acordo de salvaguardas não lhes impunha nenhuma obrigação jurídica de
passar informações à AIEA até 180 dias antes das primeiras experiências com as substâncias
nucleares. E nos garantiram que, em relação a esse ponto, seus registros respeitavam os limites
legais: nenhuma substância nuclear fora usada e nenhum processo de enriquecimento fora feito
dentro das instalações.
No dia seguinte, nos dirigimos a Natanz, pequena cidade nas colinas, famosa por seus
pomares, e oculta em meio a templos religiosos esparsos. Estávamos acompanhados de
Aghazadeh e seu vice, Mohammad Saeedi, além de um grupo de engenheiros e técnicos
iranianos. Nossa primeira parada foi em uma construção inclassificável, de coloração bege,
parecida com um armazém quando vista por fora. Dentro, um amplo salão dividido em seis
blocos de concreto. Segundo Aghazadeh, esta era uma usina-piloto de enriquecimento.
Aproximadamente 20 centrífugas haviam sido montadas. Cada um dos blocos, no final,
abrigaria uma longa série de 164, em um total de pouco menos de mil.
Descemos, então, ao subsolo. Mesmo munidos de algumas informações prévias sobre o que
iríamos encontrar, ficamos impressionados com o imenso salão principal. Estava
completamente vazio, mas fora construído para abrigar mais de 50 mil centrífugas – um projeto
muito mais ambicioso. Aghazadeh e seus colegas se mostravam de bom humor e falantes,
orgulhosos por nos apresentarem as instalações e respondendo de bom grado às perguntas de
natureza técnica feitas por Pierre e Olli.
Dois aspectos dessa visita chamaram a atenção. Primeiro, a escala das ambições nucleares
do país, que exigiram uma atenta reavaliação de nossa parte. Até então, o traço distintivo do
programa nuclear do Irã era um reator de energia em fase de construção em Bushehr, para o
qual a Rússia firmara um contrato de fornecimento de combustível de urânio enriquecido . No
78

entanto, Natanz, quando estivesse em plena operação, teria a capacidade de suprimento de


combustível para dois ou três reatores de 1.000 megawatts. Que outras usinas a AEOI estaria
planejando ou construindo?
O segundo aspecto era ainda mais inquietante. Aghazadeh nos relatou que o programa de
centrífugas do Irã foi integralmente desenvolvido no país. Os iranianos ainda enfatizaram que
não usaram nenhuma substância nuclear em testes no local. Nossos especialistas receberam a
notícia com ceticismo.
Tal ceticismo só foi reforçado pelo encontro que tive com o presidente do Irã, Sayyid
Mohammad Khatami. Elegante e poliglota, Khatami, líder religioso e ex-diretor da Biblioteca
Nacional do Irã, assumira o poder em 1997, apoiado numa plataforma de reformas sociais. No
plano doméstico, defendia a liberdade de expressão e apoiava a expansão da sociedade civil,
além de ser internacionalmente conhecido por sua defesa de um “diálogo entre civilizações”.
Embora não tivesse realizado todas as reformas prometidas, Khatami manteve sua
popularidade entre os moderados e particularmente em meio à juventude iraniana, que a ele se
referia como o “homem com o manto de chocolate”, em razão das roupas na cor marrom que
ele apreciava vestir.
Em nosso encontro, Khatami estava acompanhado apenas de Ali Akbar Salehi , embaixador
79

iraniano na AIEA, que atuou como intérprete. Khatami me cumprimentou de forma calorosa,
com o tradicional beijo nas duas bochechas. Líder religioso instruído no Alcorão, ele falou em
árabe durante alguns minutos antes de passar para o persa [parse], com a tradução feita por
Salehi. “Você não tem motivos para se preocupar com nosso programa”, disse Khatami.
“Usamos apenas o gás inerte na operação de nossa cascata de centrífugas.”
Esse detalhe em sua declaração me pareceu estranho. O presidente Khatami, líder religioso
por formação, acabara de se referir a um meio de testar uma centrífuga a frio sem o uso de
substância nuclear. Seu argumento era que o Irã não violara nenhuma exigência de declaração
de substâncias nucleares. Mas por que Khatami possuiria conhecimentos sobre o teste com gás
inerte? Era o que eu me perguntava.
Nos meses seguintes, a AIEA começou a revelar algumas respostas.

Informações confidenciais nos alertaram sobre a Kalaye Electric Company, uma usina na
periferia sul de Teerã onde os iranianos haviam testado um pequeno número de centrífugas do
mesmo modelo que as de Natanz. Kalaye não era uma instalação nuclear declarada. Nossos
colegas iranianos nos garantiram que somente “estudos de simulação” haviam ocorrido ali e
que nenhuma substância nuclear fora usada nessas simulações. Se isso era verdade, então era
direito deles não ter reportado o fato à AIEA. Mas como poderíamos ter certeza disso se não
tivemos permissão para verificar? Estávamos presos em um beco sem saída no TNP: os
iranianos não haviam declarado a Kalaye Electric Company em seu acordo de salvaguarda,
portanto não tínhamos autorização para inspecioná-la, já que, segundo eles, estava isenta de
substâncias nucleares. Essa era a lacuna fundamental que levou à criação do Protocolo
Adicional, mas o Irã não havia aderido a ele.
Decidimos desmascarar o Irã. Fazendo menção aos compromissos públicos e privados de
Teerã com a total transparência em suas negociações com a AIEA, solicitamos aos iranianos a
permissão para visitar Kalaye. Pedimos autorização também para colher amostras ambientais.
A autorização foi dada de má vontade e de modo gradativo. O Irã permitiu que a agência
tivesse acesso a Kalaye, mas negou a coleta de amostras. Por fim, eles deixaram que os
inspetores retornassem e colhessem amostras ambientais com o uso de “cartões magnéticos” –
pequenos quadrados de pano, que eram passados sobre algumas superfícies selecionadas. Os
inspetores observaram que as instalações haviam sido consideravelmente alteradas desde a
primeira visita, e a preocupação era que tais mudanças poderiam afetar a exatidão das análises.
Porém, quando os cartões foram analisados nos laboratórios dos Estados-membros (com o uso
de duplos-cegos, a fim de ocultar sua origem), os resultados se mostraram definitivos: o
espectro das partículas de urânio enriquecido nas amostras demonstrava que substâncias
nucleares haviam sido usadas nos testes com as centrífugas. O Irã foi pego, e havia provas para
acusar o país.
Pouco a pouco, a história começou a mudar. Apesar das alegações da AEOI de que seu
programa de centrífugas fora desenvolvido dentro do país, os especialistas em centrífugas da
AIEA notaram uma grande semelhança com o design europeu. Ao ser confrontada com os
resultados de amostras que também foram colhidas na usina-piloto de centrífugas em Natanz –
que indicou a presença de partículas de baixo e de alto enriquecimento –, a AEOI admitiu que
os componentes foram realmente importados, aventando a possibilidade de que a origem das
partículas fossem as peças contaminadas. Na verdade, viríamos a descobrir que a quase
totalidade da tecnologia de centrífugas iraniana fora importada de outros países.
A questão de as centrífugas do Irã terem ou não sido produzidas no próprio país era
relevante. A resposta, pendendo para um lado ou outro, nos forneceria as informações de que
tanto precisávamos. Se o Irã tivesse produzido as centrífugas em nível doméstico, isso teria
envolvido uma operação de pesquisa e desenvolvimento muito mais elaborada do que a que
estava sendo reconhecida, quase certamente incluindo testes com substâncias nucleares. Se, por
outro lado, o Irã tivesse importado todas as peças, isso significava que outro país ou países
haviam fornecido a tecnologia.
Também começaram a surgir substâncias nucleares não declaradas. Reservas de urânio
natural importado da China foram descobertas no laboratório multiúsos Jabr Ibn Hayan (JHL),
no Centro de Pesquisa Nuclear de Teerã. Nem a substância nem o laboratório foram
previamente declarados à AIEA. Grande parte desse urânio fora convertida em metal de urânio,
um formato com um número relativamente baixo de aplicações nucleares pacíficas. Três
cilindros de gás de urânio na forma de UF – a matéria-prima para o enriquecimento – foram
80

encontrados no estoque; revelou-se que um dos cilindros menores era de “gás desaparecido”.
Os colegas iranianos disseram que ele devia “ter vazado”.
Desde cedo, me dei conta de que estávamos lidando com pessoas dispostas a praticar fraudes
a fim de alcançar seus objetivos, portanto não deveríamos aceitar nenhum certificado sem a
devida verificação do local. Certamente, a verificação é um princípio central das inspeções da
AIEA em qualquer circunstância, mas ela era duplamente essencial nesse caso, devido à fraude
que, de modo inquietante, fora endossada e levada adiante nos altos escalões do governo
iraniano. Já em maio de 2003, Aghazadeh proferiu um discurso diante das missões
diplomáticas em Viena, no qual negou categoricamente que o Irã houvesse usado qualquer
substância nuclear em seu teste com centrífugas.
Todos os principais líderes iranianos com que me reuni – o presidente Khatami, o porta-voz
do Majlis (parlamento do Irã), Mehdi Karroubi, e o ex-presidente do Irã e atual diretor do
Conselho dos Guardiães Ali Akbar Rafsanjani – insistiam no fato de que o programa nuclear
iraniano tinha objetivos unicamente pacíficos. O discurso deles era eloquente e transmitia
convicção; suas camisas impecavelmente engomadas e mantos bem cortados emprestavam à
sua fala um ar de sofisticação e de devoção. Todos se mostravam completamente atualizados e
com amplas noções sobre o programa de enriquecimento.
Rafsanjani, com quem me encontrei no palácio6, e que me pareceu o político mais sensato
do grupo, falou de modo efusivo: “Vi muitas pessoas de nosso povo sendo assassinadas pelas
armas químicas durante a guerra contra o Iraque. Não posso defender o diálogo entre as
civilizações e, ao mesmo tempo, desenvolver armas nucleares”.
Fui informado por várias pessoas, incluindo o então presidente Mubarak, do Egito, que,
segundo preceitos da teologia xiita, é aceitável, em determinadas situações, ludibriar alguém
por uma causa justa. Esse conceito é chamado taqqiya, que significa proteger a si mesmo ou a
outrem contra algum dano. Deixei claro para nossos colegas iranianos que, independentemente
das origens desse comportamento, suas negativas e ocultamentos haviam afetado seriamente a
sua credibilidade perante a comunidade internacional. Desde o início, eles cavaram um buraco
que iria minar suas próprias iniciativas diplomáticas, uma atitude que considerei um “déficit de
confiança”.
No entanto, mesmo depois de terem sido confrontados com provas que atestavam suas
fraudes, os iranianos não pareceram particularmente constrangidos. Eles fizeram menção a um
longo histórico daquilo que consideravam atitudes hipócritas da parte do Ocidente. Na era do
xá, o Irã anunciou planos de construir 23 grandes reatores de energia nuclear, com o apoio
manifesto de EUA, Alemanha, França e outros países. Em 1975, o país assinou contrato com a
Kraftwerk Union, uma empresa alemã, para a construção da primeira usina em Bushehr. O Irã
também adquiriu 10% das ações da Eurodif, companhia multinacional que operava uma usina
de enriquecimento de urânio na França. Porém, tudo mudou com a Revolução de 1979. A
Kraftwerk Union recusou-se a continuar com a construção das usinas em Bushehr. Os Estados
Unidos interromperam o fornecimento de combustível para o reator de pesquisas. A França
também se negou a continuar fornecendo urânio enriquecido para o Irã – apesar das inúmeras
tentativas e do investimento iraniano na Eurodif.
Considerando seu próprio histórico, os iranianos insistiam no fato de que suas atitudes se
justificavam. A ciência e a tecnologia nucleares com fins pacíficos continuavam a ser centrais
nos objetivos nacionais do país. O argumento era que precisavam de um ciclo de combustíveis
por não contarem com fornecimento de combustível do exterior, além daquele que recebiam
dos russos – que nem sempre era confiável, pois lhes cobravam preços excessivos. Em relação
aos seus segredos do passado, insistiam em dizer que essa tática havia sido necessária: as
sanções impostas a eles pelos EUA e seus aliados proibiam qualquer importação de itens
relacionados à área nuclear, incluindo tecnologia para fins pacíficos. Apesar de conduzir suas
operações em segredo, haviam pago o dobro, o triplo ou mais pela tecnologia e pelas
substâncias que compravam do exterior. Ter mantido o programa em segredo pelo tempo que
fosse possível foi uma necessidade política, insistiam eles.
Em círculos diplomáticos em Viena, os norte-americanos não estavam dispostos a levar em
conta os argumentos do Irã – a despeito do fato de, há mais de duas décadas, ocuparem a
liderança dos esforços para isolar o país. O Irã ter mentido era, na visão deles, a prova
definitiva da intenção de Teerã de produzir armas nucleares. É claro que essa conclusão era
totalmente prematura em termos de um processo de verificação; o que a AIEA precisava era de
provas concretas. Mas as declarações norte-americanas, expressando a certeza quanto à
intenção do Irã com as armas nucleares, logo começaram a encontrar ressonância no Ocidente.
Por outro lado, vários representantes dos países em desenvolvimento mostraram empatia
quanto à necessidade do Irã de agir secretamente, a fim de escapar das sanções.
O precedente criado pelo Irã era perturbador, e me preocupava o fato de o Conselho de
Governadores da AIEA começar a divergir em termos de uma divisão norte-sul entre os países.

Discrepâncias e questões sérias relacionadas ao programa iraniano continuaram a emergir ao


longo do verão e do outono de 2003. Resultados de amostras adicionais e observações feitas
pelos inspetores tornaram o relato iraniano ainda mais implausível. Os inspetores estavam cada
vez mais convencidos de que o amplo programa nuclear do Irã não poderia ter atingido
tamanho nível de sofisticação sem que tivesse havido um número maior de experimentos e
testes do que os iranianos revelavam.
As visitas da AIEA a um laboratório de laser em Lashkar Ab’ad, por exemplo, revelaram a
sofisticação no uso de laser a vapor, que poderia ter tido uma aplicabilidade direta no
enriquecimento de urânio ; entretanto, os iranianos declararam não ter feito nenhum
81

enriquecimento a laser. Os inspetores observaram também que os projetos do IR-40, um reator


de pesquisas a água pesada, programado para ser construído em Arak em 2004, não incluíam
planos para “células quentes”, câmaras especiais equipadas com um equipamento de manuseio
remoto, de modo que o processamento de material radioativo, incluindo a separação do
plutônio, pudesse ocorrer sem qualquer risco de radiação; porém, havíamos tido provas dos
esforços iranianos para obter, no exterior, os manipuladores e as janelas de chumbo que seriam
usadas nas células quentes . As usinas de conversão de urânio em Isfahan e em laboratórios em
82

outras partes do Irã tinham um design sofisticado e eram amplamente equipadas; entretanto, os
iranianos alegavam que não haviam sido feitos testes com a conversão de urânio. Somente
quando lhes foram apresentados resultados contraditórios de amostras e com as insistentes
questões formuladas pelos inspetores da agência, os iranianos, ainda que relutantes, recuaram
em sua postura de negação, passando a aceitar o fato de que os cientistas nucleares iranianos
realmente realizaram experiências em quase todas as fases da conversão de urânio.
Era o momento de confrontar os iranianos. Em 16 de outubro, retornei a Teerã, dessa vez
para uma reunião com Hassan Rowhani, secretário do Conselho Nacional de Segurança do Irã.
Este encontro foi essencial. Após a costumeira troca de gentilezas, apresentei uma série de
questões substanciais – o teste com as centrífugas, a separação do isótopo de laser, a conversão
de urânio, o projeto do reator a água pesada e os resultados das amostras da AIEA – de maneira
inequívoca. Disse a ele que não era mais possível manter sua política de fraudes e recuos.
Rowhani veio preparado para o encontro. Sem desculpar-se diretamente pelos ocultamentos
e pelas fraudes do passado, afirmou que o Irã estava disposto a começar uma nova fase em suas
relações com a agência. Segundo ele, as lideranças iranianas haviam concordado em apresentar
à AIEA, ao longo da semana seguinte, uma declaração completa das atividades passadas e
atuais do Irã. O país estava também preparado para firmar um Protocolo Adicional e, até que
ele começasse a vigorar, a agir em conformidade com suas cláusulas, permitindo à agência um
amplo acesso às inspeções.
Nos bastidores, Rowhani estivera negociando, em nome do Irã, com os ministros das
Relações Exteriores da França, da Alemanha e do Reino Unido (o EU-3). Em 21 de outubro, os
quatro Estados emitiram uma declaração à qual se referiam como Declaração de Teerã, que
reafirmava os compromissos básicos que Rowhani assumira diante de mim, dias antes, quanto
à intenção do Irã de cooperar com a AIEA e de implementar um Protocolo Adicional. A
declaração também incluía a aceitação do Irã de suspender suas atividades de enriquecimento e
reprocessamento enquanto as negociações com o EU-3 estivessem em curso, visando ao
estabelecimento de relações de confiança. Em contrapartida, o EU-3 concordou em reconhecer
os direitos nucleares do Irã, bem como descrever maneiras específicas para que o país
apresentasse “garantias objetivas” sobre a natureza pacífica de seu programa nuclear. Uma vez
apresentadas tais garantias, o EU-3 facilitaria ao Irã o acesso à tecnologia moderna, incluindo a
nuclear.
Dois dias depois, a AIEA recebeu uma carta de Aghazadeh, na qual declarava que o Irã
estava “iniciando uma nova fase de confiança e de cooperação”. Em sua mensagem, reconhecia
as inúmeras atividades que o país negara anteriormente e acrescentava novas e significativas
informações sobre o programa nuclear iraniano. Revelou-se que o Irã testara centrífugas com
substância nuclear na Kalaye, usando o gás UF6 que “desaparecera” de um dos cilindros no
JHL. O país fizera experiências com enriquecimentos a laser ao longo dos anos 1990,
conduzira experiências de reprocessamento no Centro de Pesquisas Nucleares de Teerã e
separara uma pequena quantidade de plutônio. Uma quantidade adicional de substâncias
nucleares, não declaradas anteriormente, fora usada em inúmeras experiências de conversão de
urânio. Nenhuma dessas atividades apontava, de modo explícito, na direção de um programa
de armas nucleares, mas o conjunto delas constituía um programa de ciclo de combustível
nuclear de significativa abrangência, a maior parte do qual fora conduzida em segredo.
Em 10 de novembro de 2003, submeti meu relatório ao Conselho de Governadores da
AIEA. O documento era detalhado e completo, com uma grande quantidade de informações.
Descrevi as inúmeras vezes em que o Irã, num longo período de tempo, deixou de declarar
substâncias e instalações nucleares à AIEA. Afirmei que a postura do país, durante as
inspeções recentes, foi a de adotar uma “política de ocultamento” e oferecer uma cooperação
“limitada” e “reativa”. Por outro lado, elogiei a iniciativa iraniana de mudar, prometendo uma
“plena cooperação” com a agência, conduzindo seus passos na direção da transparência,
dispondo-se a suspender as operações de enriquecimento e reprocessamento e tomando a
decisão de assinar e implementar um Protocolo Adicional.
Nada disso se revelaria polêmico. Porém, nos parágrafos finais do relatório, incluí a
conclusão provisória da AIEA sobre o Irã em relação à proliferação de armas nucleares: “Até o
momento”, escrevi, “não há provas de que as substâncias e as atividades não declaradas
previamente às quais se faz referência neste relatório estejam relacionadas a um programa de
armas nucleares. No entanto, tendo em vista a postura de ocultamento do país no passado,
levará algum tempo até que a agência possa concluir que o programa nuclear iraniano tem fins
exclusivamente pacíficos”.
Tratava-se de uma afirmação fatual, imparcial e direta. Mas causou uma reação negativa.
John Bolton, subsecretário de Estado norte-americano para o Controle de Armas e Segurança
Internacional, ficou furioso com o fato de a AIEA não ter adotado uma postura mais linha-dura
com o Irã. Veio à tona uma discussão descabida nos bastidores diplomáticos em relação ao
termo ‘provas’, tal como usado no relatório da AIEA. Bolton elaborou uma réplica severa. O
embaixador norte-americano na AIEA, Ken Brill, recebeu ordens de ler um comunicado
dizendo que “a instituição encarregada pela comunidade internacional de examinar os riscos de
proliferação nuclear está descartando fatos importantes, descobertos em sua própria
investigação”. “Levaria tempo”, continuava a declaração, para “reparar os danos causados à
credibilidade da agência.”
Em um gesto atencioso, Brill compartilhou comigo uma cópia da declaração, antes de expô-
la ao grupo. Ainda assim, fiquei irritado quando ela foi lida em voz alta para o Conselho. Pedi
a palavra ao presidente e dei minha resposta ali mesmo, de improviso, defendendo a
integridade da agência e de seus inspetores. Chamei a atenção para o enorme progresso que
havíamos feito ao apresentar um quadro do programa nuclear iraniano – em dez meses, um
progresso mais significativo do que os melhores serviços de inteligência do mundo haviam
obtido nos dez anos anteriores. Apresentei também uma violenta refutação ao enfoque
obsessivo – e logicamente incorreto – naquilo que eles chamavam de “provas” das intenções
iranianas em relação às armas nucleares. Meu exemplar do Blackstone Legal Dictionary, dos
tempos da Faculdade de Direito da New York University, trinta anos antes, novamente mostrou
serventia.
“Francamente”, disse eu, “vejo pouca sinceridade no fato de este termo, ‘provas’, ter se
transformado, de repente, em objeto de polêmica. Na verdade, a credibilidade da agência
aumentou desde o episódio do Iraque por causa de nossa objetividade.” Minhas referências
eram claras: se alguém perdera a credibilidade devido ao uso pouco cauteloso do termo
“provas”, esse alguém foram os norte-americanos e seus aliados, em sua catastrófica pressa de
declarar guerra contra o Iraque. Deparávamo-nos com provas diárias, no Iraque, das
consequências da avidez norte-americana e britânica em apresentar informações secretas não
verificadas como provas. Atacar a AIEA por sua fidelidade aos fatos era uma atitude
descaradamente hipócrita.
A sala ficou em silêncio. As pessoas ficaram impressionadas diante da discussão pública
entre os norte-americanos e o diretor-geral da AIEA, que ocorria em um ambiente diplomático.
Permaneci sentado; não levantei o tom de voz. Porém, a franqueza de minhas observações não
dava margens a equívocos. Quando o presidente da assembleia dirigiu a atenção ao próximo
que faria uso da palavra, percebi que precisava deixar a sala para me recompor. Após a
reunião, vários membros do Conselho me disseram que havia sido um “dia histórico”, por
terem deparado com um funcionário público internacional enfrentando a intimidação imposta
pelos Estados Unidos, o país que, como todos nós sabíamos, era responsável pelo suprimento
de 25% de nosso orçamento.

Logo após a revelação pública das atividades não declaradas do Irã, escrevi um artigo para a
revista The Economist solicitando que a operação do ciclo de combustível nuclear ocorresse
sob um controle multinacional conjunto. Essa ideia não era nova; ciclos de combustível
operados internacionalmente haviam sido objeto de estudo e assunto discutido em comitês já
em meados da década de 1970. Até mesmo o discurso “Átomos para a paz” de Eisenhower,
presidente dos EUA, em 1953, fazia alusão a esse objetivo.
Porém, em virtude da rápida disseminação da tecnologia e do know-how nucleares, tanto por
meios legítimos quanto clandestinos, havia uma urgência renovada. Se cada país começasse a
desenvolver seu próprio ciclo de combustíveis, seria aberta uma caixa de Pandora de riscos de
proliferação. A adoção de uma abordagem multinacional – por meio da construção de
instalações centralizadas de ciclo de combustível sob os auspícios de vários países e para a
utilização de todos os participantes – seria capaz de recolocar a tampa sobre a caixa. Os
usuários legítimos da energia nuclear poderiam garantir um fornecimento de combustível
confiável para os seus reatores. As vantagens econômicas eram consideráveis: seria eliminada
a necessidade de fábricas, extremamente onerosas e adaptadas às particularidades de cada país,
para o enriquecimento de urânio e a produção de plutônio. Mais importante que tudo: cairia
drasticamente o risco de substâncias nucleares serem desviadas para a fabricação de armas
nucleares.
O artigo teve grande repercussão, e a ideia ganhou vida própria. Os Estados Unidos e seus
aliados começaram a pressionar em prol de uma “Parceria Global de Energia Nuclear
(GNEP)”. O presidente russo, Vladimir Putin, sugeriu a criação de uma rede de centros
internacionais de ciclo de combustível. A Alemanha propôs o estabelecimento de uma central
na qual a AIEA operaria uma usina internacional de enriquecimento de urânio.
Uma abordagem criativa foi apresentada por Ted Turner e Sam Nunn , este último diretor da
83

Iniciativa contra a Ameaça Nuclear , que convenceu o investidor e filantropo norte-americano


84

Warren Buffett a contribuir com US$ 50 milhões para financiar uma reserva de combustível
sob a custódia da AIEA. Os fundos destinados ao projeto motivaram os governos a contribuir
também, reservando US$ 100 milhões como um primeiro e simbólico passo no caminho da
multinacionalização do ciclo de combustível.
No entanto, um sentimento de desconfiança logo surgiu. Estados Unidos, Rússia, França,
Alemanha, Holanda e Reino Unido apresentaram uma proposta à AIEA que começava de
modo generoso, garantindo o fornecimento de combustível para o reator, mas apenas se os
países beneficiados abdicassem dos direitos que lhes foram garantidos pelo TNP – de
enriquecimento e reprocessamento.
Isso indicava uma diferença fundamental no tipo de abordagem. A meu ver, a criação de
centros multinacionais do ciclo de combustíveis era a primeira de várias etapas de um processo
que reduziria a divisão existente entre os países detentores de tecnologia nuclear e os não
detentores, restringindo a proliferação e, em última instância, abrindo caminho na direção do
desarmamento nuclear. A proposta dos seis países atendia apenas ao objetivo mais imediato – a
prevenção de casos “adicionais” de proliferação. E ainda de uma maneira que só fazia
exacerbar as divisões na área nuclear: basicamente, continuamos possuindo a tecnologia e
ninguém mais tem acesso a ela. Tratava-se de um mandato agressivo e provocativo, um pedido
franco e direto para que os países participantes abdicassem de um direito que lhes era caro.
Eu conseguia ver o desastre iminente: implorei aos defensores da proposta para que não
condicionassem o plano à renúncia dos países aos seus direitos. Mas os Estados Unidos
insistiram: essa condição continuaria válida. A proposta foi repassada a todos os membros do
Conselho.
O resultado, como eu havia previsto, foi um grande sentimento de apreensão não apenas
entre os países em desenvolvimento, mas também do Canadá, da Itália e da Austrália, países
que não possuíam um ciclo de combustíveis completo, mas que desejavam manter suas opções
em aberto para o futuro. Outros países, tais como Japão, Alemanha, Holanda, Brasil e
Argentina, se colocaram em cima do muro: não possuíam armas nucleares, mas tinham o
know-how para produzir substâncias nucleares, o que elevava seu status. Nenhum dos países
que dispunha de tal vantagem estava disposto a abdicar dela a fim de dar continuidade a um
programa multinacional que reduziria o risco de proliferação.
Essa primeira proposta envenenou a água do poço. Os países sem tecnologia nuclear
avançada passaram a enxergar com suspeita cada uma das propostas subsequentes – como uma
série de artifícios cujo objetivo era privá-los de seus direitos. Essa desconfiança entre os países
com tecnologia nuclear e os que carecem dela começaria a dominar lentamente os bastidores
da diplomacia nuclear internacional.
Desde a época em que a primeira bomba atômica foi lançada sobre Hiroshima, o fato de um
número limitado de países deter armas nucleares tem servido como provocação e estímulo à
competição para aqueles que não as têm. A recusa da parte da maioria dos Estados detentores
de armas nucleares em reconhecer essa relação de causa e efeito só confirma isso. Embora o
TNP tenha deixado claro que o fato de apenas cinco países possuírem armas nucleares
representa apenas uma fase transitória, uma passagem para o desarmamento nuclear, 35 anos
depois o desarmamento se encontrava em um virtual estado de paralisação. Cada simples
declaração feita por um dos Estados detentores de armas nucleares a fim de “reafirmar” o valor
restringente das armas, cada atitude visando à renovação ou à modernização de um arsenal
nuclear, significava, para os países sem essa tecnologia, um sinal adicional de falta de boa-fé.
Cada vez mais esse contexto determinou a natureza do debate entre os membros do
Conselho da AIEA em relação às atividades nucleares iranianas do passado e às mais recentes.
Poucos deles – ou nenhum – mostraram-se indulgentes com o desenvolvimento secreto pelo Irã
de um programa nuclear, embora pudessem compreender as razões para tanto. Todos exigiam
do Irã uma completa transparência. Porém, ao mesmo tempo, muitos se ressentiam do caráter
de exclusividade do clube nuclear e eram capazes de entender o desejo iraniano de adquirir a
tecnologia do ciclo de combustíveis. Na ausência de provas de que o Irã estava, de fato, em
busca de armas nucleares, esses países não se dispunham a condenar abertamente as ações de
Teerã. A pressão exercida pelos Estados ocidentais servia apenas para aprofundar essa divisão.

O período entre o fim de 2003 e a primavera de 2005 marcou uma fase discreta no confronto
entre o Irã e a comunidade internacional quanto ao programa nuclear iraniano. Caracterizado,
de um lado, pelo otimismo transmitido pela Declaração de Teerã e pelo anunciado
compromisso de mostrar transparência e, de outro, por sérias divergências internacionais sobre
como lidar com o caso iraniano, esse período foi marcado por uma extraordinária e complexa
controvérsia em relação ao desenvolvimento nuclear do Irã: o sacrifício do pragmatismo ao
mais vago dos “princípios”; os resultados negativos da tática adotada pelos adeptos da linha-
dura; e o constante aumento dos riscos que acompanhavam cada nova atitude de oposição.
Da perspectiva da agência, durante esses anos a AIEA – ou, mais especificamente, as
reuniões de nosso Conselho – se transformou em um campo de batalha no qual posições
conflitantes sobre o Irã se enfrentavam. Um dos primeiros exemplos disso ocorreu antes da
reunião do Conselho em março de 2004, durante a qual expressamos a preocupação sobre
respostas que havíamos recebido do Irã. Uma das questões estava relacionada à tecnologia de
centrífugas do país. Tais centrífugas estavam em conformidade com um design chamado P-1,
fornecido pelo Paquistão. Contudo, por meio de inspeções e investigações fora do Irã, a AIEA
passou a ter motivos para suspeitar que o Irã talvez tivesse adquirido um modelo mais
avançado, o P-2. Aparentemente, ambos os modelos foram concebidos no estilo de centrífugas
europeias mais antigas e copiados pelo cientista nuclear paquistanês A. Q. Khan na época em
que ele trabalhou para a Urenco, uma usina de enriquecimento na Holanda.
Até então, os inspetores da AIEA não tinham detectado nenhum indício de trabalhos
realizados nas máquinas P-2. Mas sabíamos que os iranianos haviam tentado levar adiante a
pesquisa e o desenvolvimento do maior número possível de aspectos do ciclo de combustíveis
nuclear. O modelo P-2 era mais avançado que o P-1, com uma capacidade maior de
enriquecimento. Parecia pouco provável que os iranianos, caso tivessem tido a oportunidade, se
recusassem a trabalhar com os modelos P-2.
Os inspetores da agência insistiram nesse aspecto. Em janeiro de 2004, os iranianos
reconheceram que, em 1994, eles de fato receberam projetos do modelo da centrífuga P-2.
Engenheiros de uma empresa privada em Teerã realizaram um número limitado de testes – sob
contrato com a Organização de Energia Atômica do Irã – em um design P-2 modificado. O Irã
foi negligente ao não incluir a menção a esse fato em sua declaração à agência feita em outubro
de 2003.
Outra questão envolveu o Centro de Pesquisas Técnicas Lavizan-Shian, situado em um
subúrbio de Teerã, que foi citado como um possível instituto de pesquisas de armas de
destruição em massa. A agência recebeu informações de que detectores de radiação haviam
sido adquiridos para ser usados nesse local. Imagens de satélite mostravam que, após agosto de
2003, o local foi destruído, suas construções derrubadas e o terreno, esvaziado, o que indicava
uma tentativa de ocultamento.
Os iranianos afirmaram que Lavizan-Shian havia sido uma instalação do Ministério da
Defesa, que realizava pesquisas sobre como reagir a ataques e acidentes nucleares. O local foi
destruído depois que o ministério foi instruído a devolver a terra à prefeitura de Teerã, após
uma controvérsia entre as duas organizações governamentais.
Naturalmente, tendo em vista as práticas anteriores do Irã de ocultamento e de fraudes, tanto
os testes com as centrífugas P-2 quanto a demolição de uma suposta construção para armas de
destruição em massa imediatamente levantaram suspeitas. A situação era complexa. De modo
geral, o Irã deu passos significativos em sua cooperação com a AIEA; desde outubro de 2003,
devido à implementação provisória de seu Protocolo Adicional, podíamos visitar instalações de
enriquecimento e outros fins sem a necessidade de discutir se substâncias nucleares tinham
sido utilizadas. Nossa percepção era que estávamos, enfim, obtendo uma compreensão mais
ampla das atividades nucleares iranianas.
Porém, em outros aspectos, o Irã não estava facilitando as coisas para si mesmo: algumas
atitudes faziam a cooperação parecer esporádica. A agência havia marcado uma inspeção, para
meados de março, da usina-piloto de enriquecimento de combustíveis em Natanz, além de
visitas a locais relacionados à atividade da centrífuga P-2. Em 5 de março, as autoridades
iranianas repentinamente adiaram as inspeções da AIEA, alegando a proximidade da data com
as celebrações do Ano-Novo iraniano. É claro que isso era bobagem: a época do Ano-Novo
não era exatamente algo imprevisto, mas o Irã pareceu pouco disposto a revelar a causa
verdadeira do atraso. Novamente, os iranianos passaram a impressão de que escondiam algo.
Com esse pano de fundo, Hassan Rowhani me procurou duas vezes para pedir que a agência
retirasse o programa nuclear da agenda da reunião do Conselho em março. Na expectativa do
Irã, isso seria interpretado como um sinal de que nosso nível de preocupação havia diminuído.
Os europeus deram apoio à solicitação. A delegação francesa me perguntou por que eu
produziria um novo relatório sobre o Irã. No entanto, os norte-americanos, que pressionavam
para submeter o caso iraniano ao Conselho de Segurança, insistiram para que esse item
permanecesse na agenda.
A todas as delegações meu recado foi o mesmo: a agenda do Conselho não seria usada como
instrumento para negociações políticas. Seu conteúdo era resultado de avaliações técnicas.
“Terei satisfação de remover este item da agenda amanhã”, eu disse aos iranianos e aos
europeus, “mas somente se as questões pendentes no Irã forem resolvidas. Enquanto ainda
tivermos questões não respondidas, o programa nuclear iraniano continuará na agenda do
Conselho.”
De qualquer modo, o instrumento oficial dos Estados-membros da AIEA para registrar suas
posições sobre o programa nuclear não era a agenda, e sim as resoluções adotadas nas reuniões
do Conselho. Habitualmente, as resoluções são esboçadas e negociadas por cada representante
dos Estados-membros, sem nenhum envolvimento da Secretaria. No caso do Irã, os projetos
geralmente eram esboçados pelo grupo EU-3 – tendo em vista sua iniciativa ao tentar encontrar
uma solução –, e depois apresentados aos demais países.
No entanto, nesse ponto o processo se mostrava igualmente confuso. Havia uma divisão sem
precedentes entre os países ocidentais. Os norte-americanos, apoiados pelos canadenses e
australianos, insistiam na inclusão de uma linguagem mais veemente, condenando o Irã. Já os
países do EU-3 tentavam amenizar o tom da resolução. No Irã, os negociadores da questão
nuclear vinham anunciando à imprensa iraniana e ao establishment político os benefícios de
uma maior cooperação com a AIEA; portanto, eles provavelmente perderiam o apoio
doméstico caso o Conselho da AIEA emitisse uma resolução negativa. Os países em
desenvolvimento também não estavam nada satisfeitos com a linguagem empregada no esboço
inicial do documento.
Adotando uma medida incomum, os iranianos insistiram comigo para que eu os ajudasse. O
embaixador norte-americano também apresentou uma mensagem de Colin Powell, que
indagava se eu podia me envolver com sua posição. No final, todos assinaram uma resolução
consensual, que agradou tanto aos iranianos quanto aos norte-americanos. A reunião foi
encerrada sem maiores empecilhos, mas as controvérsias que a precederam demonstravam em
que medida as ações do Conselho estavam se transformando em um palco de confrontos sobre
o Irã, representando um presságio de divisões ainda mais profundas no futuro.

Poucos dias depois da reunião do Conselho, viajei para Washington a fim de encontrar o
presidente Bush. Fiquei um pouco surpreso com o convite. Não havia muito tempo, o New
York Times publicara um artigo meu falando do desarmamento, no qual abordei assuntos sobre
os quais Bush também havia opinado . Colin Powell me telefonou logo depois, dizendo que
85

Bush gostaria de se encontrar comigo. Naturalmente, aceitei o convite, mas esperei a reunião
do Conselho, em março, para evitar qualquer aparente indício de influência dos EUA sobre
meu relatório ao Conselho ou sobre quaisquer declarações que eu pudesse dar.
Antes de meu encontro com Bush, conversei com Richard Armitage, vice-secretário de
Estado. Ele lembrou-me da solidariedade que os EUA prestaram ao Irã, após o devastador
terremoto em Bam . O plano era fornecer assistência humanitária, oferta que foi rejeitada,
86

embora o país tenha recuado da decisão dias mais tarde. Coincidentemente, o terremoto
ocorreu apenas uma semana depois de o Irã ter assinado seu Protocolo Adicional, uma
concessão significativa. Alguns comentaristas observaram que a convergência desses eventos
talvez tenha criado uma oportunidade para expandir a cordialidade nas relações com os EUA,
particularmente depois que Colin Powell apoiou a possibilidade de um diálogo futuro . Porém,
87

até então, não houvera nenhum sinal de tal expansão.


“Ouvi dizer que você torce para o Yankees?”, foi um dos primeiros comentários de Bush na
Sala Oval. O presidente estava acompanhado de Armitage, de Condoleezza, do secretário da
Energia, Spencer Abraham, e de Bob Joseph, que trabalhava com Condoleezza no Conselho de
Segurança Nacional. A meu lado estava David Waller, vice-diretor-geral de administração dos
EUA e amigo de confiança.
“Sim”, respondi sorrindo, “e acho que pagamos uma quantia alta demais pela contratação de
Alex Rodriguez.” Os Yankees tinham acabado de comprar Rodriguez do Texas Rangers. Eu
sabia que Bush tinha sido coproprietário do Rangers. Ele explicou alguns dos termos da
negociação com Rodriguez, e logo passamos a falar de negócios. “Ouvi dizer que você tem
sugestões para fortalecer o regime de não proliferação”, começou ele.
Mencionei, de memória, alguns dos conceitos que abordei em meu artigo. “Primeiro,
precisamos nos livrar de todo urânio de alto enriquecimento que possa existir no ciclo civil”,
eu disse. Afirmei que havia cerca de cem instalações em 40 países com esse tipo de urânio.
Muitas delas eram reatores de pesquisa que poderiam ser convertidos para o uso de urânio de
baixo enriquecimento, diminuindo assim o risco de proliferação. Regulamentar todo o urânio
de alto enriquecimento custaria cerca de 50 milhões de dólares anuais, no período de quatro ou
cinco anos.
“Bem, não me parece uma quantia muito grande”, respondeu Bush. Ele olhou para Spencer
Abraham. “Spencer, isso é viável?”
“Sim, é claro que podemos fazer isso”, respondeu Abraham. Como eu viria a saber mais
tarde, o Departamento de Energia já estava trabalhando em um plano semelhante, porém, após
essa reunião, as ordens que lhes vinham de cima partiam do presidente.
Falei sobre a necessidade de controlar a disseminação das instalações de ciclo de
combustível, observando que havia 13 países com potencial para o reprocessamento, ou então
para o enriquecimento. “Se tentarmos impedir os outros de se juntarem a esse grupo”, eu disse,
“os que estão prestes a desenvolver esse potencial não ficarão muito satisfeitos.” Tal
comentário nos levou à questão do Irã. Como a discussão caminhava bem, decidi ousar. “A
meu ver”, eu disse, “teologias e ideologias à parte, temos de subornar o Irã” – com um pacote
de incentivos atraentes demais para ser rejeitado – “e então pressionar por uma moratória
voluntária para quaisquer outros países que estejam desenvolvendo um ciclo de combustível.”
“Gosto do estilo pragmático desse rapaz”, Bush afirmou, me surpreendendo. Ele disse que
gostaria de decretar uma moratória legal, permitindo que os países com instalações de ciclo de
combustível as mantivessem, mas impedindo que novos países se juntassem ao grupo.
Observei que isso faria que fossem negados aos Estados-membros os seus direitos previstos no
TNP. Havia uma maior probabilidade de êxito por meio da combinação de uma moratória
voluntária e a garantia de fornecimento de combustível – além de uma reafirmação, da parte
dos Estados detentores de armas nucleares, de seu compromisso com o desarmamento . Em 88

relação ao Irã, enfatizei a necessidade de não apenas fazer ameaças, mas de oferecer
recompensas. “Uma solução baseada na diplomacia e nas verificações”, concluí, “é a melhor
saída possível para a questão iraniana.”
Bush me surpreendeu novamente: “Não é apenas a melhor solução”, respondeu ele, “é a
única solução – além da apresentada por Israel. Você sabe que existe a preocupação de os
israelenses quererem empregar a força”.
Esperei para ouvir o que mais ele teria a compartilhar comigo sobre os detalhes da ameaça
israelense, mas ele se mostrou bastante vago, parecendo não saber se Israel estava disposto a
lançar uma ofensiva militar. Ou, pelo menos, não me revelou nada a respeito. Deixou implícito
que a abordagem dos EUA de aumentar a pressão sobre o Irã tinha a intenção de evitar que
Israel empreendesse tal ação. Lembrei-me de uma conversa que tive com Jack Straw e com o
ministro das Relações Exteriores alemão Joschka Fischer, na qual eles afirmaram que o EU-3
estava tentando agir como uma espécie de “escudo humano”, por meio de seu diálogo com o
Irã, a fim de proteger-se contra o risco de ações militares da parte dos EUA ou de Israel.
Naquela época, havia uma divergência interna considerável no governo dos EUA: os falcões
pareciam defender um ataque militar e a mudança de regime em Teerã, apesar das lições da
Guerra do Iraque. Eles viam o Irã como uma ameaça a Israel e se opunham a qualquer diálogo
com Teerã que pudesse “legitimar” o regime iraniano. Outros – entre os quais, pelo que me
constava, o presidente Bush e Condoleezza Rice, apesar de sua retórica em público –
acreditavam que o melhor caminho era a diplomacia, mas que seria necessário preencher uma
série de pré-requisitos antes de negociar. Outros, ainda, como Powell e Armitage, eram
favoráveis à negociação e ao diálogo sem pré-condições em busca de uma solução diplomática.
Eu trouxera comigo uma mensagem escrita por Hassan Rowhani, em nome do regime
iraniano, afirmando que o Irã estava pronto para iniciar um diálogo com os EUA sobre todas as
questões, incluindo o programa nuclear iraniano e assuntos mais amplos, relacionados à
segurança regional. A mensagem foi escrita em folha de papel não timbrado e não foi assinada
quando a recebi. Entreguei-a a Bush, garantindo-lhe a autenticidade do documento, enfatizando
o quanto eu considerava importante que os EUA iniciassem o diálogo com o Irã.
“Eu gostaria de conversar de líder para líder”, respondeu Bush, “mas não estou certo de que
o líder iraniano esteja disposto a ter esse diálogo.” Ele se referia ao aiatolá Khamenei, Líder
Supremo do Irã. “Acho que ele está determinado a destruir Israel.”
Ele abordou outras questões, incluindo os cerca de 40 agentes da Al-Qaeda de origem
saudita ou egípcia que estavam sendo retidos pelo Irã, indivíduos nos quais os Estados Unidos
tinham interesse. Segundo Bush, os iranianos estavam mantendo esses detentos para uso como
moeda de troca.
Minha percepção foi a de que Bush, a seu modo, estava confirmando meu ponto de vista de
que um diálogo entre os EUA e o Irã poderia proporcionar benefícios múltiplos e recíprocos,
entre os quais a assistência na área de segurança que o Irã poderia oferecer ao Iraque, em razão
de seus vínculos com a população xiita desse país. O diálogo, disse eu, era um sinal de
respeito, e o respeito – especialmente no ambiente cultural do Oriente Médio – era o primeiro
passo na direção de uma resolução pacífica de conflitos. Muitos membros do establishment
político iraniano desejavam, acima de tudo, restabelecer conexões com os Estados Unidos, de
preferência como parte de uma “grande negociação” que envolveria a segurança, o comércio, a
percepção de Israel quanto a uma ameaça militar iraniana e outras questões referentes à
completa normalização das relações. Essa era a ideia central da mensagem de Rowhani. Porém,
na época, nem Bush nem Condoleezza pareciam abertos a tais perspectivas.
Perto do final da reunião, sugeri a convocação de um encontro internacional a fim de
discutir modos de fortalecer os pedidos de não proliferação. Condoleezza concordou: “Sempre
achei que precisávamos organizar um encontro como esse”, disse ela. Os EUA estavam
claramente em busca de alguma forma de demonstrar sua liderança, particularmente em um
ano de eleições no qual o assunto das armas de destruição em massa e do terrorismo ganhava
enorme evidência .
89

Saí animado. Meu encontro com Bush revelou-se muito mais substancial do que eu
esperava. Um estímulo ainda maior nasceu durante meu encontro seguinte, em Langley, na
Virgínia, com George Tenet, diretor da CIA, um profissional que demonstrou franqueza em
sua fala. Percebi nele certa cautela e a preocupação em não fazer afirmações exageradas. Tal
postura era bastante distinta das alegações feitas pelos serviços de inteligência que ouvimos no
período que antecedeu a Guerra do Iraque.
O próprio Tenet tinha convicção de que dentro do programa nuclear iraniano havia a
intenção de desenvolver armas nucleares, mas admitiu não ter provas, tampouco “informações
que justificariam a adoção de medidas legais”, expressão do jargão dos serviços de
inteligência. Basicamente, a expectativa dele era a de que os iranianos, em algum momento do
processo de inspeção, cairiam em contradição.
O ponto de vista de Tenet me permitiu compreender melhor a retórica política da campanha
da mídia norte-americana, que vivia repetindo que os EUA “sabiam” que o Irã possuía um
programa de armas nucleares, mas não apresentavam nenhuma prova concreta. A julgar pelas
informações de que eu dispunha, a CIA, por meio de escutas telefônicas e outros tipos de
vigilância, provavelmente tinha indícios de que a Guarda Revolucionária do Irã estava
envolvida no processo de aquisição e em outros aspectos do programa nuclear; no entanto, não
havia nenhum indício de associação com o desenvolvimento de armas. A única estratégia dos
EUA, portanto, era exercer pressão sobre o Irã por meio da AIEA e da imprensa, na
expectativa de que provas essenciais viessem à tona, ou que um informante aparecesse com
uma “prova definitiva”.
O Irã não estava colaborando para melhorar o quadro. O ocultamento de suas operações com
a centrífuga P-2 e o cancelamento repentino das inspeções em Natanz e em outras instalações
só contribuíram para aumentar nosso sentimento de inquietação. Era o momento de lhes
transmitir uma mensagem firme, que decidi fazer pessoalmente, numa visita a Teerã.
Em todos os meus encontros naquela viagem – com líderes como o presidente Khatami e o
ministro das Relações Exteriores Kamal Kharazi –, eu afirmei que estava farto de seus
adiamentos e atrasos. Diante do presidente Khatami, mostrei frieza, já que ele havia trapaceado
em nossa conversa anterior. Não o confrontei em relação a isso de modo direto, mas deixei
claro que minha postura diante dele havia mudado. Também esclareci para ele e para os demais
que a paciência do Conselho da AIEA estava se esgotando; o Irã perdia apoio entre alguns
Estados-membros, e a questão, de modo geral, estava virando motivo de discórdia. Qualquer
atitude dos iranianos que não demonstrasse uma transparência plena e consistente só
contribuiria para depor contra eles. Transmiti a Rowhani e a Khatami os aspectos essenciais de
minha conversa com o presidente Bush: o ceticismo em relação à disposição dos iranianos em
ter um diálogo sério; e que os EUA queriam, com urgência, que os detentos da Al-Qaeda
fossem repatriados para seus respectivos países. Mencionei ainda que a recusa inicial do Irã em
aceitar a ajuda norte-americana depois do terremoto representou um abalo na confiança dos
EUA.
Khatami ficou indignado com o ceticismo dos EUA. Fez menção à reaproximação entre os
países durante a administração Clinton, quando deu o primeiro passo, com o pedido de
desculpas às famílias dos norte-americanos mantidos reféns em Teerã. Madeleine Albright
respondeu com o reconhecimento do papel da CIA no golpe de 1953, que causou a destituição
do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh e reempossou o xá, seguido da suspensão das
proibições à importação de determinados artigos de luxo iranianos, tais como pistache, caviar e
carpetes, um gesto simbólico que valia milhões de dólares.
Foi a administração Bush, insistiu Khatami, que minou o progresso das relações entre os
EUA e o Irã. O Irã apoiou os norte-americanos durante a Guerra do Afeganistão e em seus
preparativos para a Guerra do Iraque. Khatami fez menção a reuniões específicas em
Sulaymaniyah, no Curdistão iraquiano e em Londres, das quais o Irã participou. “Como
retribuição à nossa participação e cooperação”, disse Khatami, irritado, “a única coisa que
recebemos em troca foi o rótulo de fazermos parte de um ‘eixo do mal’.”
Kharazi, ministro das Relações Exteriores, também estava indignado com a oferta feita pelos
EUA após o terremoto. “Depois de décadas de sanções e boicotes”, observou, “os EUA ainda
nos insultam, nos oferecendo 10 milhões de dólares como gesto de caridade?” Ele balançou a
cabeça. “Essas pessoas não compreendem a mentalidade dos outros.” Kharazi disse que o
governo iraniano teria prazer em discutir o assunto dos detentos da Al-Qaeda, mas também
desejava obter dos EUA uma ajuda para as negociações com o Mujadehin-e Khalq, grupo de
dissidentes iranianos que defendia a destituição do governo do Irã.
Os iranianos concordaram em intensificar a cooperação com a AIEA, mas enfatizaram que a
percepção predominante em Teerã era a de que o trabalho conjunto com a agência não levara a
nada. Os adeptos iranianos da linha-dura, que haviam recentemente conquistado a maioria no
parlamento Majlis, consideravam a suspensão voluntária das atividades de enriquecimento do
Irã como uma traição, um ato de curvar-se diante do Ocidente. Já os “moderados”, que eram a
favor de uma solução diplomática e da normalização de relações com o Ocidente, estavam
perdendo terreno. Rowhani disse que, se meu relatório a ser entregue em junho ao Conselho da
AIEA fosse negativo, duvidava que ele e seus colegas conseguiriam manter o atual nível de
cooperação com a agência, ou até mesmo os seus cargos. A expectativa dos moderados era, no
mínimo, ter uma reação positiva da parte dos europeus, de modo que pudessem relatar à
opinião pública iraniana que suas políticas eram compensadoras.
A meu ver, a dificuldade dos iranianos era que seu governo havia superestimado os méritos
de seu programa nuclear. Eles o haviam apresentado como a joia da coroa de Teerã, uma
conquista científica para a nação. Com isso, ficou difícil para o país explicar o porquê de estar
suspendendo o programa. É claro que eles foram negligentes ao não mencionar para a opinião
pública que a suspensão ocorreu como consequência de terem enganado a AIEA durante anos.
Em vez disso, argumentaram que a pressão dos EUA sobre a agência estava atrasando o
processo de verificação.
Eis outro traço distintivo da situação iraniana não muito diferente de outras crises nucleares,
como a do Iraque ou a da Coreia do Norte: a desculpa utilizada, tanto em Teerã quanto em
Washington, da suposta má vontade da outra nação. Uma vez liberto, era difícil de conter esse
gênio da lâmpada. O tratamento a mim dado pela mídia iraniana refletia o modo como se
formava a opinião pública; por exemplo, um artigo no Tehran Times noticiou que
“observadores em Viena disseram que ElBaradei... ficou deprimido e mostrou-se passivo”,
devido à extrema pressão que eu vinha sofrendo dos norte-americanos . Durante minha visita,
90

repórteres iranianos me perguntaram, repetidas vezes, como eu estava lidando com tal pressão.
“Sofro pressão de todos os lados”, respondi, sorrindo. “Dos norte-americanos, dos iranianos e
de todos os demais.” Mas minha preocupação era maior do que eu deixava transparecer. Para
mim, as perguntas que me faziam e a atitude demonstrada pela imprensa iraniana deixavam
claro que o programa nuclear estava se transformando numa questão de orgulho nacional. Isso
não era um bom sinal.
As autoridades iranianas também acreditavam ter as próprias cartas para usar nesse jogo. Se
as relações com os norte-americanos não melhorassem, disse Rowhani, o Irã estava certo de
que podia dificultar ainda mais a situação no Iraque. Desaconselhei qualquer tipo de retaliação.
Ao retornar da viagem a Teerã, insisti com Ken Brill, embaixador dos EUA, e John Wolf,
secretário-assistente de Estado, para que buscassem uma forma de iniciar o diálogo com o Irã
ou, pelo menos, dessem um aceno positivo. “Se temos um objetivo em comum – de que não
queremos armas nucleares no Irã –, devemos elaborar uma estratégia coerente”, eu disse. Fiz
propostas semelhantes aos embaixadores do EU-3. Expliquei que os adeptos da linha-dura no
Irã estavam consolidando seu poder devido aos resultados negativos da cooperação com a
AIEA. A política de exercer pressão, isoladamente, não funcionaria, acrescentei,
“especialmente porque ninguém no Ocidente tem provas concretas de um programa de armas
nucleares iraniano”. Não contando com nenhum incentivo, os iranianos poderiam tomar uma
série de medidas, tais como reiniciar seu programa de enriquecimento, recuar de seu Protocolo
Adicional, ou mesmo retirar-se do TNP.
Talvez eu devesse ter poupado minhas energias. Em junho, o Conselho da AIEA emitiu uma
resolução em que “lamentava” a ausência de uma cooperação “plena, oportuna e proativa”
iraniana. É claro que as críticas tinham algum fundamento, mas os iranianos ficaram
enfurecidos. Os adeptos da linha-dura dentro do governo podiam agora dizer “Eu avisei
vocês”. Menos de uma semana depois, o país informou à AIEA que retomaria a fabricação e o
teste com as centrífugas, embora sem o uso de substâncias nucleares. Pedi a eles que
reconsiderassem a decisão, mas sem sucesso. Os lacres da agência foram removidos e os
engenheiros das centrífugas iranianas voltaram ao trabalho, interrompendo a suspensão
voluntária da pesquisa do programa de enriquecimento.
Após a reunião do Conselho, em junho, fiz apelos durante encontros com Colin Powell e seus
colegas no Departamento de Estado para que tratassem diretamente com o Irã. Dentro de seis
meses, o programa de enriquecimento de urânio do país se tornaria um fato consumado, e o
preço para interrompê-lo seria muito mais alto. Também avaliei que não haveria nenhuma
vantagem em submeter o caso iraniano ao Conselho de Segurança da ONU, como, mais uma
vez, alguns estavam recomendando. O Irã poderia se retirar do TNP, e então teríamos mais
uma Coreia do Norte em mãos.
Durante meu encontro com Powell, ele disse: “Se dependesse de mim, iria encontrar o
ministro das Relações Exteriores Kharazi amanhã de manhã”. No entender de Powell, o
problema era que o ressentimento em relação ao Irã, desde a crise envolvendo os reféns,
continuava muito presente nos Estados Unidos. Seria difícil iniciar um diálogo direto.
Condoleezza Rice também foi surpreendentemente receptiva, me perguntando a respeito de
Rowhani, que, na época, ocupava uma função mais ou menos equivalente à dela. “Que tipo de
personalidade ele tem?”, perguntou, me passando a impressão de que pelo menos ela aventava
a possibilidade de tratar com os iranianos.
Uma contribuição construtiva foi dada pelo presidente russo Vladimir Putin, que visitei em
sua casa de veraneio em Moscou. Contrariando algumas afirmações feitas em certas ocasiões
pelo Ocidente, Putin era totalmente contrário à obtenção de armas nucleares pelo Irã,
questionando sua necessidade de enriquecimento nuclear; porém concordava que deveria ser
oferecida àquele país uma assistência com elementos atrativos, incluindo a tecnologia nuclear,
e era favorável a uma garantia internacional de fornecimento de combustível para reatores.
Putin também apresentou a proposta de um repositório internacional para combustível
queimado, que elogiei. Um depósito controlado de forma multilateral contribuiria para
minimizar os riscos de proliferação desse estágio sensível do ciclo de combustível e
incrementaria a expansão de energia nuclear segura. Passei a alimentar esperanças de que a
Rússia pudesse ajudar a encontrar uma solução para a situação iraniana .
91

Enquanto isso, os inspetores da AIEA redobravam os esforços a fim de determinar a origem


das partículas de urânio enriquecido encontradas em vários locais do Irã. Para comprovar ou
refutar a argumentação iraniana – de que tal origem consistia na contaminação de componentes
de centrífuga importados do Paquistão –, precisávamos de amostras ambientais de centrífugas
paquistanesas para compará-las com os resultados de nossa amostragem do equipamento do
Irã. O Conselho da AIEA fez um apelo aos principais “países do Terceiro Mundo” para que
ajudassem a esclarecer a questão, mas, segundo o embaixador paquistanês Ali Sarwar Naqvi,
os norte-americanos haviam dito ao Paquistão que deram suficiente apoio à AIEA.
Aparentemente, alguns indivíduos em Washington não estavam preocupados em solucionar a
questão da contaminação.
Farto dessa manipulação nos bastidores e do lento progresso que dela resultava, pressionei
os paquistaneses para obter sua colaboração, pois eles (que não fazem parte do TNP) relutavam
em permitir a inspeção das instalações de enriquecimento, localizadas em bases militares.
Concordaram, porém, em apenas colher amostras para nós, utilizando técnicas de análise que
minimizariam qualquer potencial de manipulação dos resultados.
Em meados de agosto de 2004, recebemos nossas primeiras análises. As amostras estavam
fortemente correlacionadas à maior parte da contaminação com urânio altamente enriquecido
que havíamos encontrado em Natanz e na Kalaye Electric Company. As provas ainda não eram
definitivas, mas tendiam a confirmar as explicações dadas pelo Irã.
Com a aproximação da reunião do Conselho, em setembro de 2004, pressenti surgir um já
conhecido comportamento de manipulação política. Pouco antes, ou mesmo ao longo da
reunião, viria a público uma afirmação sensacionalista acusando o Irã de um novo ocultamento.
Instalou-se, na sequência, uma blitz liderada pelos norte-americanos, a qual apresentava de
modo sensacionalista a importância dessas “novas provas” sem garantia, exigindo uma ação
enérgica. Os iranianos, de sua parte, poderiam fornecer à agência informações essenciais ou o
acesso a um local solicitado de última hora, dando às vezes um tiro no próprio pé, pelo fato de
não haver tempo suficiente para incluir a análise da AIEA no relatório do Conselho.
Dessa vez, o impulso para exercer influência sobre as discussões do Conselho foi dado,
como de hábito, por John Bolton. Em entrevista ao programa Newsnight, da BBC2, ele chamou
a atenção para a renovada fabricação de centrífugas pelo Irã. O fato, disse ele, de o caso
nuclear iraniano estar sendo cuidado pela AIEA, “uma agência maravilhosa porém obscura de
Viena”, não era mais suficiente . Em vez disso, o caso iraniano deveria ser submetido ao
92

Conselho de Segurança da ONU. A situação era irônica, considerando que Bolton raramente
defendia uma postura de multilateralismo.
Assim, no terceiro dia de reunião do Conselho, pouco antes dos debates sobre o programa
nuclear do Irã, o Instituto para a Ciência e a Segurança Internacional (ISIS, na sigla em inglês)
– grupo de especialistas com sede nos EUA que tem como foco as questões de proliferação
nuclear – divulgou uma série de imagens de satélite de uma base militar em Parchin, situada a
cerca de 40 quilômetros a sudeste de Teerã. As imagens foram mostradas na ABC News,
acompanhadas de comentários técnicos e dramáticos de David Albright, presidente da ISIS,
sobre o potencial dos testes com explosivos relacionados à área nuclear em Parchin . No dia
93

seguinte, a Associated Press divulgou um artigo, no qual um “alto funcionário não identificado
da delegação dos EUA” na AIEA manifestava seu “alarme”, classificando de “omissão séria” o
fato de eu não ter mencionado Parchin em meu relatório ao Conselho . 94

Além de tolice, isso era uma tentativa nada sutil de convencer os Estados-membros de que a
AIEA agia, em certa medida, de modo tendencioso. A agência vinha examinando dados sobre
Parchin havia algum tempo, e tínhamos discutido com o Irã sobre nosso interesse em visitar
esse local e outras bases militares. Sabíamos que Parchin era uma instalação militar na qual o
Irã produzia e testava explosivos químicos. Continuaríamos a questionar o país sobre o local;
porém, a essa altura, não tínhamos nenhuma prova de atividades nucleares sendo
desenvolvidas ali. É claro que essas manipulações em nada contribuíam para interromper a
retomada da produção de centrífugas pelo Irã.

Uma conquista importante ocorreu em meados de outubro de 2004. Representantes do EU-3,


que continuavam em busca de uma solução diplomática, trouxeram de Teerã a notícia de que o
Irã estava disposto a iniciar sérias negociações sobre o futuro de seu programa nuclear. Como
pré-requisito, os líderes do EU-3 solicitaram novamente ao país que suspendesse a pesquisa e o
desenvolvimento do seu programa de enriquecimento e reprocessamento, e a resposta foi
positiva: os iranianos estavam dispostos a suspender voluntariamente todas as suas atividades
de enriquecimento e reprocessamento enquanto as negociações estivessem em curso.
O timing era decisivo. Os políticos do Irã demonstravam uma postura de vigilância cada vez
mais estreita. Eu acabara de conversar com Sirus Nasseri, importante negociador na área
nuclear e sagaz observador político. Praticamente todos os candidatos para a eleição
presidencial do ano seguinte, no entender de Nasseri, apoiariam um confronto com o Ocidente.
Uma plataforma anti-EUA contribuiria para que fossem eleitos, ainda que provavelmente
tentassem atribuir a eles próprios o crédito por ter chegado a um acordo com os EUA, um ano
mais tarde. Uma postura de confronto provavelmente também reforçaria a influência da Guarda
Revolucionária do Irã, provocando o retrocesso de reformas ocorridas nos últimos anos. Por
razões de ordem interna, seria impossível para o Irã, na visão de Nasseri, cessar de modo
permanente o seu programa de enriquecimento, independentemente de quem fosse eleito.
Nenhum político iraniano se arriscaria ao descrédito perante a opinião pública, interrompendo
um programa para o qual o país dedicou tamanho empenho. Eles tampouco estavam
preocupados com a possibilidade de ocorrerem ataques militares dos EUA ou de Israel às suas
instalações, assunto que fora discutido em profundidade, segundo Nasseri. Uma vez
desenvolvido o know-how tecnológico, os iranianos poderiam, em questão de meses,
reconstruir qualquer instalação que fosse destruída.
Nessas circunstâncias, uma suspensão voluntária representava uma grande oportunidade. O
problema era que as partes não chegavam a um consenso sobre a definição da extensão das
atividades de enriquecimento a serem suspendidas.
Essa discussão vinha de longa data. A Declaração de Teerã, de outubro de 2003, estava
parcialmente baseada na suspensão voluntária, da parte do Irã, de “todas as atividades de
enriquecimento de urânio e reprocessamento”. Porém isso incluía a fase preparatória da
conversão de urânio? Incluía a fabricação das centrífugas? Após horas de discussão sobre a
definição de tal suspensão, ficou óbvio que um árbitro externo se fazia necessário. E, assim, os
ministros dos países do EU-3 e seus colegas iranianos decidiram recorrer à AIEA.
Novamente, nos vimos na fronteira entre tecnologia e política. Segundo uma definição
puramente técnica, o caso demandaria apenas a suspensão da introdução de substâncias
nucleares em uma cascata de centrífugas de enriquecimento. Os iranianos ficariam satisfeitos
com isso; queriam estar sujeitos à mínima limitação possível. Porém, como a intenção era usar
a suspensão como um modo de fortalecer as relações de confiança, os europeus viram a
necessidade de uma definição mais ampla para o termo.
Apesar do empenho da AIEA em esclarecer os limites das “atividades de enriquecimento e
reprocessamento”, as divergências continuariam ao longo de todo o ano de 2004. Desagradara
ao Ocidente o fato de o Irã dar seguimento aos testes de seus processos de conversão, incluindo
os que envolviam a produção de UF6, matéria-prima para o enriquecimento. Mais
recentemente, em agosto, o Irã iniciara o processamento de 37 toneladas de yellowcake, um
concentrado de urânio, como teste em grande escala de sua linha de produção na usina de
conversão de urânio em Isfahan.
Por fim, a AIEA chegou a uma definição razoável que agradou a todas as partes envolvidas,
abrindo caminho para as negociações. Em 14 de novembro, em Paris, o Irã e o EU-3 assinaram
o documento que ficaria conhecido como Acordo de Paris. Ambos os lados se comprometeram
a negociar em boa-fé. O Irã concordou em suspender todas as atividades de conversão de
urânio, a montagem e os testes, e até mesmo a importação de componentes para as centrífugas.
Especificou-se, no acordo, que a fidelidade do Irã à suspensão seria um elemento necessário à
continuidade das negociações. Numa visão otimista, os limites projetados para as negociações
transcendiam em muito a questão nuclear, além de buscar acordos de cooperação sobre uma
série de questões de natureza econômica, política e de segurança, incluindo “garantias” para a
cooperação na área de tecnologia nuclear com fins pacíficos. O EU-3 prometeu apoiar as
negociações para que o Irã aderisse à Organização Mundial do Comércio. Ambos os lados
concordaram em combater o terrorismo, incluindo as operações da Al-Qaeda e do Mujahedin-e
Khalq. Ambos também confirmaram seu apoio ao processo político para instalar um governo
eleito constitucionalmente no Iraque.
No momento da assinatura do acordo, Rowhani, na condição de principal negociador da
questão nuclear no Irã, enfatizou alguns aspectos, pedindo a todos os governos envolvidos que
os reconhecessem. Primeiro, a suspensão era voluntária; não era, sob nenhum aspecto,
legalmente compulsória. Em segundo lugar, as negociações não deveriam transformar-se num
meio de pressionar o Irã na direção de uma cessação completa de suas atividades com o ciclo
de combustível nuclear. Isso estava fora de questão. Os europeus concordaram: não tinham a
expectativa de que a cessação ocorresse, mas tão-somente obter “garantias objetivas de que o
programa nuclear iraniano tivesse objetivos exclusivamente pacíficos”.
O Irã agiu rapidamente a fim de implementar o acordo. Uma semana depois, os inspetores
da AIEA confirmaram que a suspensão estava em vigor.
A assinatura do Acordo de Paris criou um clima otimista para a reunião do Conselho em
novembro. No início, até mesmo os norte-americanos pareciam satisfeitos, mostrando simpatia
em relação à abrangente sinopse que lhes fiz sobre as inspeções realizadas no Irã até aquele
momento. O acordo representava uma impressionante evolução diante da atitude anterior dos
EUA, quando haviam criado celeuma em relação às imagens de Parchin.
Em novembro, os norte-americanos chegaram a desistir da tentativa de bloquear a resolução
do Conselho sobre o Irã, embora não estivessem satisfeitos com ela. Jackie Sanders,
representante dos EUA e protegida de Bolton, insinuou que não ocorrera nenhuma mudança
significativa no caso iraniano, dizendo ao Conselho que as expectativas eram
“lamentavelmente familiares”. Ela deixou claro que os Estados Unidos estavam dispostos a, se
necessário, submeter o Irã unilateralmente ao Conselho de Segurança, sem a aprovação
consensual deste. Mas, ainda assim, a resolução foi aprovada.
De sua parte, os iranianos se sentiam esperançosos por terem chegado a um momento
decisivo. Sirus Nasseri fingiu dormir durante a fala de Sanders, na sala do Conselho. Hassan
Rowhani referiu-se ao endosso do Conselho ao Acordo de Paris como uma “grande vitória”.
Em declaração à BBC, disse que “o mundo inteiro recusou os apelos dos EUA” de submeter o
Irã ao Conselho de Segurança. Empregando, de certo modo, uma hipérbole – muito
provavelmente para agradar à sua plateia em Teerã –, descreveu a representante dos EUA na
AIEA como “descontrolada e em prantos”. As iminentes negociações eram, disse ele, uma
“oportunidade histórica para o Irã e a Europa provarem ao mundo que o unilateralismo está
condenado” .
95

Revelou-se que o acordo era a parte fácil do processo. Em minhas discussões com os
europeus, eles pareciam compreender claramente a importância de apresentar aos iranianos,
como resultado das negociações, um pacote concreto e significativo. Os alemães eram os mais
otimistas. Os britânicos se mostravam mais conservadores, tentando agradar aos norte-
americanos. Os franceses ficaram numa espécie de meio-termo. Mas as três partes pareciam
confiantes, além de contar com um endosso dado pelo G-8 a que fossem oferecidas
96

significativas concessões aos iranianos.


Durante vários meses, foi grande a expectativa de que as negociações conduzissem a uma
solução diplomática global. A cooperação entre o Irã e a AIEA permaneceu sólida; havia
apenas algumas questões de inspeção pendentes. Na reunião do Conselho de março de 2005,
pela primeira vez em quase dois anos o programa nuclear iraniano não foi incluído na pauta –
fato que os negociadores iranianos rapidamente interpretaram como indício de progresso.
Chegou a ser afirmado que os EUA estavam considerando a possibilidade de juntar-se à União
Europeia no esforço de oferecer incentivos ao Irã .
97

Entretanto, no Irã as preocupações eram crescentes. Não havia um progresso visível nas
negociações. Rowhani estava sofrendo pressão de seu governo para mostrar progressos – na
forma de “provisões” concretas – como resultado de sua abordagem cooperativa. Ele também
vinha pressionando seus colegas europeus para que ao menos permitissem aos iranianos
retomar brevemente algumas partes de suas operações nucleares, ainda que apenas no nível de
pesquisa e desenvolvimento. Pelo que pude compreender, o plano iraniano sempre foi concluir
uma usina de conversão e uma pequena usina-piloto de enriquecimento, e então concordar –
como parte de suas negociações com os europeus – em congelar as instalações de
enriquecimento em escala industrial em Natanz durante alguns anos.
Em março de 2005, Rowhani submeteu ao EU-3 um documento contendo a essência dessa
proposta. Ela previa que o Irã daria início ao enriquecimento com 500 centrífugas em sua
usina-piloto, passando, com o tempo, a ter 3 mil centrífugas – um número bastante aquém das
54 mil de uma usina operando em plena capacidade. Essa foi a proposta inicial, obviamente
aberta a discussões. Para Rowhani, o aspecto principal era ser capaz de transmitir à opinião
pública iraniana que o processo de enriquecimento do Irã ainda estava em curso. A AIEA
poderia monitorar de perto as atividades na usina-piloto. O Irã “congelaria” seu empenho de
operar em escala industrial. Em contrapartida, o país esperava obter a tecnologia nuclear –
entre outras –, acordos comerciais e incentivos adicionais.
As eleições presidenciais no Irã aconteceriam no mês de junho, e o clima de retórica política
estava em ebulição. Em maio, considerando que a ausência de uma proposta da parte dos
europeus era uma violação do Acordo de Paris, os iranianos ameaçaram interromper a sua
suspensão. Os europeus pediram mais tempo para elaborar uma proposta mais detalhada. O Irã
concordou em esperar até agosto.
No final de junho, o país elegeu Mahmoud Ahmadinejad, prefeito de Teerã, um homem
profundamente religioso e um dos adeptos mais fervorosos da linha-dura entre todos os
candidatos à presidência. Logo após a eleição, e muito antes de receberem a proposta europeia,
as autoridades iranianas começaram a dar sinais de que não manteriam completamente a
suspensão. O clima nos círculos diplomáticos rapidamente ficou sombrio.
Menos de dois meses depois, as negociações subitamente entraram em colapso. A proposta
feita pelos europeus continha poucos dos benefícios discutidos na época do Acordo de Paris.
Ela não incluía os reatores de energia nuclear, apenas os reatores de pesquisa. Os franceses
poderiam fornecer ao Irã a tecnologia de energia nuclear; porém, a Areva, empresa francesa
nessa área, não estava disposta a colocar em risco suas relações com os EUA, seu principal
mercado. Os EUA haviam se recusado a dar o sinal verde à Areva; portanto, a proposta dos
europeus simplesmente incluiu uma vaga declaração sobre conceder ao Irã o acesso aos
mercados estrangeiros de tecnologia nuclear.
Fui informado de que a tentativa dos europeus era imitar um “estilo-bazar” de negociações,
abstendo-se de apresentar sua proposta integral de um modo direto e aberto. A tática se revelou
um desastre. Além de a proposta ser escassa, o tom na qual foi apresentada era paternalista,
beirando a arrogância. Chegava a prometer que os europeus ficariam responsáveis pelos
cientistas iranianos que perderiam seus empregos no momento em que o enriquecimento fosse
suspendido. O Acordo de Paris, assim como a Declaração de Teerã original, fazia menção à
obrigação do Irã de apresentar “garantias objetivas” quanto à natureza pacífica de suas
atividades nucleares. Em oposição direta a todas as declarações feitas por Rowhani e seus
colegas, os europeus interpretaram tal obrigação como uma completa interdição das atividades
de ciclo de combustível nuclear.
Os iranianos tentaram convencer os europeus a considerar a possibilidade de pelo menos
continuar com a conversão de urânio. Isso os ajudaria a preservar sua imagem perante a
opinião pública iraniana, um sinal de que o país não abandonara completamente suas
conquistas no plano nuclear. Propagou-se a ideia de que o Irã era capaz de produzir UF6, e
então exportá-lo para a África do Sul para armazenamento. No entanto, os países ocidentais
não estavam sequer dispostos a fazer essa concessão. Pouco antes de a proposta ser divulgada,
insisti com os europeus – acolhendo uma sugestão dada por Nasseri – para que, em um
documento anexo, mencionassem no mínimo as operações de conversão como uma
possibilidade de discussão, na esperança de impedir um colapso completo nas negociações.
Tendo em vista que os franceses estavam elaborando os termos da proposta, enviei minha
solicitação diretamente ao representante político francês, Stanislas de Laboulaye, mas me
disseram que era tarde demais. Os europeus já haviam chegado a um consenso e não podiam
alterá-lo.
Pouco antes de a proposta da EU-3 ser divulgada, os franceses deram aos iranianos uma
indicação do que estava por vir. Quando os iranianos se deram conta da pequena quantidade de
benefícios que lhes estava sendo oferecida depois de meses de negociação, perderam
completamente a crença no processo todo.
Em 3 de agosto de 2005, Ahmadinejad tomou posse na presidência e começou a compor os
nomes de seu gabinete. Dois dias depois, Rowhani e sua equipe foram substituídos. Ali
Larijani foi anunciado como o novo secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional
do Irã. Os iranianos rapidamente começaram a alimentar com óxido de urânio uma seção não
lacrada da usina de conversão de Isfahan. Em 10 de agosto, após o recebimento formal da
proposta dos europeus, o país removeu os lacres da AIEA do restante da usina.
O Conselho da AIEA reuniu-se numa sessão especial e emitiu uma resolução exigindo que o
Irã restabelecesse sua suspensão. Em 24 de setembro, na reunião seguinte, o Conselho foi
além, caracterizando pela primeira vez o histórico iraniano de ocultamento e de não prestação
de contas como um “descumprimento das normas”. O uso de tal termo ratificou a certeza da
necessidade de submissão do caso iraniano ao Conselho de Segurança da ONU.
Começava uma nova etapa na crise nuclear iraniana.

O acordo-padrão de salvaguardas do TNP deixa a critério do Conselho da AIEA a decisão de


submeter os casos de “descumprimento” ao Conselho de Segurança da ONU. No caso iraniano,
há muito eu vinha sendo cauteloso, evitando o uso do termo “descumprimento”, preferindo
usar “rompimento” ou “violação”, a fim de não predispor os membros do Conselho. No
passado, o Conselho se recusara a enquadrar o Irã, mantendo tal possibilidade como uma
moeda de barganha nas negociações. A intenção dos norte-americanos era submeter o Irã ao
Conselho já desde o primeiro dia, tendo feito críticas específicas à agência por não empregar o
termo “descumprimento”.
O que fez a submissão do caso iraniano ao Conselho dar motivos para o cinismo é que não
havia nada de novo nesse seu “descumprimento” – tratava-se de um fato conhecido havia dois
anos. Desdobramentos recentes tinham sido positivos: a agência conquistara um progresso
substancial em sua verificação do programa nuclear iraniano. A submissão do caso ao
Conselho, quando ocorreu, foi basicamente uma tentativa de induzi-lo a interromper o
programa de enriquecimento do Irã, usando o Capítulo VII do Estatuto da ONU para
caracterizar o enriquecimento do país – legítimo, pelas cláusulas do TNP – como “uma ameaça
à paz e à segurança internacionais”.
Diversas vezes me perguntaram se eu não achava que a comunidade internacional perdera
uma oportunidade, a essa altura, de chegar a uma resolução pacífica da questão nuclear
iraniana. Se os europeus tivessem sido mais diligentes, ou se os norte-americanos não tivessem
bloqueado a exportação de tecnologia francesa e compreendido o valor dos incentivos dados ao
Irã, será que a crise já não teria sido solucionada?
Não há como saber o que teria acontecido se esta ou aquela variável tivesse sido diferente. A
situação era extraordinariamente complexa para cada um dos protagonistas envolvidos – e
ainda mais complexa na combinação de todos. Era praticamente impossível interpretar com
certeza as variadas intenções dos governos em questão – Irã, EUA, os países do EU-3 e outros.
O que é evidente, contudo, é a crença do Irã de que sua cooperação com a agência impediria
que seu caso fosse submetido ao Conselho de Segurança, e de que as negociações com os
europeus fossem vistas como um estágio intermediário, rumo a uma ampla negociação com os
EUA. Eram esses os objetivos essenciais de sua política. No momento em que esses resultados
não se materializaram – uma realidade que ficou dolorosamente transparente com a proposta de
agosto de 2005 e a posterior submissão do caso iraniano ao Conselho, por descumprimento de
normas –, o Irã imediatamente diminuiu seu nível de cooperação com a agência, muito
possivelmente na expectativa de obter uma concessão junto ao Ocidente.
Ficou igualmente evidente, nos meses e anos posteriores, que a insistência do Ocidente em
adotar a linha-dura – recusando a solicitação do Irã de que partes de seu programa nuclear
pudessem ser mantidas – não levou a nada. Mesmo o mais amorfo dos princípios defendia o
pragmatismo. Se o EU-3 tivesse oferecido ao Irã um pacote razoável, com benefícios
concretos, creio que os iranianos teriam se mostrado dispostos a suspender seu programa de
enriquecimento, ou pelo menos a limitar-se a uma operação reduzida de pesquisas e
desenvolvimento enquanto estivessem em curso as discussões visando a uma negociação
ampla. A demanda do Irã era ter acesso à tecnologia ocidental – tanto a tecnologia de energia
nuclear quanto outros tipos de tecnologia lhes tinham sido negados, devido às sanções dos
EUA. Em razão da oposição feita pelos EUA, tal proposta não se materializou. O resultado –
inevitável e facilmente previsível – foi uma elevação dos riscos: o Irã retomou as operações de
conversão de urânio e, posteriormente, o enriquecimento. À medida que o tempo passava, mais
elevado se tornava o “preço” do Irã.
A comunidade internacional não desistiu imediatamente de tentar buscar uma via de
negociação. Em novembro de 2005, foi feita uma nova proposta, que permitiria ao Irã a
conversão de urânio em Isfahan e o despacho do UF6 remanescente para a Rússia, para que
posteriormente fosse enriquecido para o uso no combustível do reator iraniano. No entanto, as
forças contrárias à proposta eram demasiadamente poderosas.
75 O NCRI (na sigla em inglês) é um grupo de oposição iraniano com sede em Paris, que se considera uma coalizão de
indivíduos e grupos democráticos iranianos com o objetivo de compor um governo provisório no caso de o regime atual ser
destituído. Tanto o Irã quanto os EUA classificam o NCRI como uma organização terrorista, mencionando seus laços com o
Mujahedin-e Khalq, organização religiosa filiada ao NCRI e com um histórico de violência. O NCRI fez repetidas declarações
sobre o programa nuclear clandestino do Irã, algumas das quais vieram a ser fundamentadas posteriormente por investigações da
AIEA. Tenho me perguntado, com frequência, se o NCRI foi usado pelos serviços de inteligência ocidentais a fim de disseminar
informações sobre as atividades nucleares do Irã.

76 Em cada um desses três casos, o programa nuclear foi desenvolvido antes de o país aderir ao TNP.
77 Tendo em vista as dimensões da usina de Natanz, é provável que a intenção dos iranianos não fosse simplesmente “escondê-
la”. Seu objetivo, acredito, era adiar a apresentação de um relato sobre esse local até onde fosse juridicamente possível, sob os
termos de seu acordo de salvaguardas, e retardar a inspeção da AIEA até que tivessem completado a construção da usina e obtido
todo o conhecimento e a tecnologia necessários, os quais vinham aprendendo por meio de canais clandestinos em razão das
sanções. Posteriormente, fui informado que o fato de declarar as instalações de Natanz deixaria exposta a rede de suprimentos dos
iranianos.

78 Durante uma década, os Estados Unidos fizeram tudo o que estava ao seu alcance, adotando medidas políticas em todo o
mundo para dissuadir os russos de auxiliar o Irã com o reator de Bushehr. O argumento era o seguinte: se os iranianos
adquirissem uma usina nuclear, teriam também um pretexto para desenvolver o ciclo de combustíveis. Mas os EUA não tiveram
êxito nessa política.

79 Salehi sucedeu Aghazadeh no cargo de diretor da AEOI, foi vice-presidente do Irã e, posteriormente, nomeado ministro das
Relações Exteriores.

80 Palácio dos Espelhos, um dos antigos palácios do xá.

81 Enriquecimento de urânio por meio do processo de separação isotópica atômica por laser de vapor, ou AVLIS, na sigla em
inglês.

82 Vidros ou câmaras de chumbo possibilitam que os operadores tenham uma visão interna do trabalho que está sendo feito, por
meio do uso de equipamentos manuseados por controle remoto.

83 Ex-presidente do Comitê das Forças Armadas do Senado dos EUA e um dos principais especialistas norte-americanos na área
de políticas de defesa, além de leal defensor dos ideais da AIEA.

84 A NTI (na sigla em inglês) é uma organização sem fins lucrativos que financia projetos selecionados com o objetivo de
reduzir as ameaças da proliferação de armas nucleares.

85 Tanto meu artigo quanto o discurso feito por Bush na National Defense University refletiam uma consciência emergente em
relação à rede clandestina de suprimentos nucleares de A. Q. Khan e seus comparsas. Uma discussão aprofundada sobre o
assunto se encontra no Capítulo 7.

86 O terremoto de 26 de dezembro de 2003 no sudeste do Irã, o mais devastador na história do país, matou mais de 25 mil
pessoas, deixando dezenas de milhares de feridos e desabrigados.

87 Paul Reynolds, “The Politics of Earthquakes”, BBC News Online, 30/12/2003.

88 Em meu artigo na The Economist, de outubro de 2003, deixei claro meu ponto de vista de que submeter as instalações de
ciclos de combustível a um controle multinacional era apenas um passo em um processo que, no final, conduziria ao
desarmamento nuclear.

89 Infelizmente, os planos de realizar um encontro internacional não foram adiante. Fui informado de que John Bolton era
contrário à ideia e encontrou uma maneira de evitar que o evento acontecesse.

90 “IAEA Breaches Legal Commitments Towards Iran”, Tehran Times, 19/2/2004.

91 Encontrei-me com Putin no recém-reformado Kremlin, durante o primeiro ano de seu mandato na presidência. Embora a
questão nuclear iraniana não fosse objeto de discussão naquele momento, notei um grande envolvimento dele com os assuntos
nucleares. Posteriormente, em diversas ocasiões, ele fez declarações de apoio à AIEA, em resposta às críticas feitas pelos EUA.

92 Entrevista com Gavin Esler sobre o tema “Iran’s Nuclear Capacity” no programa Newsnight da BBC2, 26/8/2004.

93 “Photos of Suspected Secret Iranian Nuclear Site Released”, Agence Free Press, 16/9/2004. A linguagem usada neste artigo da
AFP é um exemplo da tendência da mídia a dar uma promoção exagerada a tais questões. Parchin é descrito como “um amplo
complexo industrial oculto num aglomerado de vales e fissuras”; o artigo relata que a estrada de acesso ao local “serpenteia por
entre colinas desertas”.
94 George Jahn, “U.S. Alarmed Over Suspected Iran Nuke Site”, Associated Press, 16/9/2004.

95 BBC News, 30/11/2004.

96 O grupo G-8 é o fórum dos países industrializados mais importantes. Conhecido anteriormente como G-7, incluía Canadá,
França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos. Passou a ser denominado G-8 com a inclusão da Rússia, em
1997.

97 Robin Wright, “Bush Weighs Offers to Iran; U.S. Might Join Effort to Halt Nuclear Program”, Washington Post, 28/2/2005.

6 • Líbia

Tive o primeiro indício de que havia algo errado com as ambições nucleares da Líbia durante
um encontro na embaixada britânica, em Viena. Era maio de 2003. A primeira das revelações
feitas relacionava-se ao Irã; porém, quase que como uma reflexão tardia, um alto membro do
MI6, o Serviço de Inteligência britânico, mencionou que poderia também haver preocupações
relacionadas à Líbia. Ele se referia a um reator de pesquisas em Tajura, pequena cidade a leste
de Trípoli, mas não revelou o motivo. Quando perguntei por mais detalhes, ele prometeu que
me faria um convite para ir a Londres e me colocaria a par da situação.
No momento em que certos funcionários do Departamento de Estado dos EUA ficaram
sabendo que o MI6 tinha planos de me encontrar, intervieram, insistindo para que o Reino
Unido não passasse informações à AIEA. Isto era típico: os EUA tendiam a ser relutantes
quanto ao compartilhamento de serviços secretos, mesmo se o diretor da organização da ONU
fosse o encarregado de prevenir a proliferação de armas nucleares. Nesse aspecto, os britânicos
tinham uma postura mais relaxada . De qualquer modo, oito meses depois, eu ainda não tinha
98

sido colocado a par da situação conforme prometido.


Em 18 de dezembro de 2003, Graham Andrew, meu assistente e confidente britânico, veio
ao meu escritório. Segundo uma mensagem que ele recebera do Serviço de Inteligência
britânico, estava prestes a ocorrer um importante pronunciamento em relação à Líbia. Ele seria
feito pelo presidente Bush, em conjunto com o primeiro-ministro Blair. Graham sugeriu que
talvez fosse melhor eu adiar a viagem – planejada havia certo tempo – à Índia, marcada para o
dia seguinte. Naquela noite, recebi um telefonema de Matouq, Mohammed Matouq, vice-
ministro da Ciência e Tecnologia da Líbia. Ele disse que o ministro das Relações Exteriores
estava prestes a tornar pública a decisão da Líbia de desmantelar seus programas de armas de
destruição em massa. A existência do desenvolvimento de tais programas no país era novidade
para mim. Matouq perguntou se poderia me visitar em Viena, para me dar mais detalhes a
respeito. Minha viagem à Índia teria de esperar.
No dia seguinte, Matouq apareceu, acompanhado de um pequeno exército de cerca de 20
diplomatas, cientistas e outras autoridades da Líbia. Baixo, de olhar penetrante e com os
cabelos tingidos de preto, ele foi membro do alto escalão do país durante muitos anos. Era
respeitoso e profissional, mas seu tom não era o de quem pede desculpas. Realizadas as
apresentações, tivemos um encontro a sós, passando logo ao assunto principal.
Em resumo, a história é que a Líbia desenvolvia havia anos um programa de enriquecimento
de urânio . Eles tinham recebido equipamentos, know-how e suporte em design por intermédio
99

do cientista nuclear e empresário paquistanês A. Q. Khan e de uma rede de empresas e


indivíduos. Enquanto ouvia os líbios, me dei conta de estar recebendo pela primeira vez uma
explicação mais detalhada sobre a extensão e a complexidade do mercado negro nuclear.
Matouq falou sobre a assistência que a Líbia obtivera de contatos na África do Sul. Relatou um
incidente que, em sua própria revelação, continha um toque multinacional: uma pista dos
serviços de inteligência dos EUA e do Reino Unido motivara uma incursão feita pelos
italianos, na costa de Taranto, a um cargueiro alemão, o BBC China, flagrado no momento em
que trazia para a Líbia equipamentos nucleares produzidos por uma empresa na Malásia.
O mais inquietante é que, na mais recente visita de A. Q. Khan a Trípoli, ele carregava
consigo duas sacolas de compras que estampavam o nome de um alfaiate de Karachi (cidade
paquistanesa), contendo os projetos de uma arma nuclear. “Você pode precisar disso um dia”,
Khan teria dito a Matouq. Desde então, segundo Matouq, as sacolas do “alfaiate de boa
aparência” têm sido mantidas em seu cofre.
Fiquei impressionado com a extensão das atividades nucleares clandestinas da Líbia, do
modo como foram descritas por Matouq. Mas eu estava também antenado a um caminho
paralelo, analisando em que medida a Agência estava preparada para descobrir todas essas
atividades por meio das inspeções, já que a Líbia era membro do TNP.
Matouq revelou que durante nove meses a Líbia estivera em contato com autoridades
britânicas e norte-americanas, negociando um acordo por meio do qual renunciaria aos seus
programas de armas de destruição em massa. “Desde o início, nossa intenção foi informar a
agência”, disse Matouq, “mas eles não me permitiam.” Fiquei indignado, mas não disse uma
palavra.
No dia seguinte, representantes dos serviços de inteligência norte-americano e britânico
vieram me visitar. Eu estava irritado e deixei que minha indignação viesse à tona. “O que é que
não está claro em relação às suas obrigações legais com o TNP?”, perguntei a eles. “A Líbia,
os EUA e o Reino Unido são signatários do tratado. Se você descobre que um membro está
violando o acordo nuclear de salvaguardas, tem a obrigação legal de informar a organização de
inspeções, a AIEA, para que tomemos as medidas necessárias.”
Não fizeram nenhuma refutação a isso. Logo após a reunião, Jack Straw telefonou de
Londres, dizendo que apenas três ou quatro pessoas do governo britânico haviam tido acesso a
tais informações; pediu desculpas por eu não ter sido informado sobre isso. Colin Powell
também ligou, transmitindo basicamente a mesma mensagem: eles mantiveram as informações
em um nível de extrema restrição, devido às incertezas quanto ao resultado das negociações.
Não queriam passar por um constrangimento caso esse resultado não fosse o desejado.
A explicação de Powell não fazia o menor sentido. Fiquei sabendo, posteriormente, por um
funcionário do MI6, que a verdadeira razão para o segredo nas negociações com a Líbia era
manter as discussões longe do campo de ação dos EUA. O receio, me disseram, era que eles
pudessem tentar arruinar uma resolução pacífica do caso líbio. Assim, foram informados
apenas quando a negociação já estava concluída.
Resolvi tirar o melhor proveito possível da situação e seguir imediatamente para a Líbia.
Acompanhado de um pequeno grupo de especialistas da AIEA, voei para Trípoli, numa viagem
de alguns dias entre o Natal e o Ano-Novo. Fomos levados por nossos colegas líbios a uma
série de armazéns onde os equipamentos nucleares eram mantidos. A dimensão do programa
da Líbia era pequena. Disseram-nos que haviam começado a instalar algumas pequenas
cascatas de centrífugas apenas como teste, mas somente uma delas – de apenas nove
centrífugas – estava de fato completa, com os equipamentos elétricos e de processo já
conectados. Não foram usadas substâncias nucleares em nenhuma das centrífugas. Os líbios
afirmaram que ainda não haviam começado a construção de uma instalação em escala
industrial, tampouco a infraestrutura a ela associada. De qualquer modo, já estava em
funcionamento um programa de armamento nuclear.
No cômputo geral, eles aparentemente possuíam cerca de 20 centrífugas completas e
componentes para outras 200 do design P-1, o modelo de primeira geração que havíamos visto
no Irã. Fizeram o pedido de 10 mil centrífugas do modelo P-2, o mais avançado. Contudo,
muitos dos componentes do P-2, incluindo rotores essenciais, ainda não tinham sido
entregues . Aparentemente, a intenção de A. Q. Khan era que os rotores fossem produzidos
100

por uma empresa sul-africana e, quando isso se mostrou inviável, recorreu a uma firma da
Malásia. Porém, na época em que a Líbia revelou informações sobre seu programa, os rotores
ainda não tinham sido fabricados.
Ao transmitir à imprensa informações sobre o que tínhamos visto, caracterizei o estágio do
programa líbio como “nascente”. Mas eu estava preocupado. O equipamento de conversão de
urânio havia sido montado cuidadosa e metodicamente em um padrão modular – prova da
sofisticada assistência externa que os líbios haviam recebido. Esse padrão modular era
particularmente inquietante: tinha a aparência de uma espécie de “kit nuclear faça você
mesmo”. O projetista do equipamento parecia ter em mente a intenção de que o produto fosse
facilmente replicado.
Apenas um pequeno grupo teve acesso às transações feitas com a rede de Khan, embora
tenhamos ouvido a opinião de diversas pessoas e os boatos fossem abundantes. Além dos
interlocutores ali presentes, um pequeno número de altas autoridades da Líbia sabia das
quantias recebidas por Khan pelos seus produtos e serviços.
A inquietante pergunta que nos atormentava era simples: “Quem mais?”. Quem são os
outros clientes que fizeram compras nessa rede clandestina de suprimentos nucleares?

Em minha estadia na Líbia, fui convidado para um encontro com o coronel Muammar al-
Gaddafi, líder da Revolução. A reunião se deu no quartel militar de Bab al-Azizia, no centro de
Trípoli. Tive de aguardá-lo em uma sala fria perto da entrada, aliviado por estar vestindo meu
casaco. Bashir Saleh Bashir, um dos assistentes mais próximos de Gaddafi, apareceu para me
receber e reiterar a promessa de plena cooperação feita por seu governo. Pouco tempo depois, o
ministro das Relações Exteriores, Abd al-Rahman Shalgem, surgiu e me pediu que entrasse.
Fui conduzido a uma ampla biblioteca aquecida. Nela, poucos móveis, apenas uma grande
mesa na frente de fileiras de estantes contendo alguns livros em árabe. O coronel Gaddafi,
sentado à mesa e vestindo seu tradicional robe, pediu a Shalgem e a mim que ocupássemos as
cadeiras à sua frente. O clima da reunião combinava com o aspecto espartano do local.
Gaddafi era uma pessoa mais afável do que eu esperava, apresentando uma estranha mistura
de simpatia e reserva. Sua primeira fala foi memorável: “Não sei bem como dizer isso, mas por
que o governo egípcio odeia vocês?”. Acrescentou, rapidamente: “Os egípcios alegam ser
capazes de nos ajudar a abandonar nosso programa de armas com mais eficácia do que você e
seus colegas da AIEA”.
Gaddafi perguntou, então, se eu era nasserista. “Você cresceu durante o regime de Nasser no
Egito”, disse ele. “Deve ser um fã de Nasser.”
“Não sou”, respondi, provavelmente para sua decepção, já que supostamente Nasser era um
ídolo seu. “Nasser tinha uma visão de mundo e um conjunto de princípios muito bons, mas o
resultado disso tudo foi limitado.”
Gaddafi deu início a um monólogo sobre a decisão de encerrar seus programas de armas de
destruição em massa. Chegara à conclusão de que tais armas não contribuíam com a segurança
da Líbia. O país deveria livrar-se delas; não apenas a Líbia, mas também o Oriente Médio e
todo o resto do mundo. É claro que concordei energicamente.
Ele começou a divagar. Falava entusiasmado sobre o papel da Líbia nos assuntos mundiais,
histórias que nem sempre eram dignas de admiração. “Esta pequena Líbia”, dizia ele com
orgulho, referindo-se ao histórico de seu país em influenciar eventos mundiais.
Percebi que Gaddafi não estava tão bem informado sobre as alianças de segurança global e
suas estruturas. Quando, por exemplo, descrevi o “guarda-chuva nuclear” da OTAN, cuja
função é proteger seus membros, Gaddafi empunhou um lápis e um pequeno bloco, e começou
a fazer anotações. Porém falou com sinceridade de seu desejo de desenvolvimento da Líbia:
queria uma melhor infraestrutura no país; queria mais estradas; queria que os estudantes líbios
recebessem bolsas para frequentar universidades ocidentais; queria seu país na vanguarda nas
áreas de ciência e tecnologia. Perguntou se eu podia ajudá-lo a enfatizar esses aspectos a
George Bush e Tony Blair.
Também insistiu para que eu me referisse publicamente à Líbia como um exemplo para o
Oriente Médio abdicar das armas de destruição em massa. Garanti-lhe que eu era favorável a
um Oriente Médio livre de armas nucleares. Também concordei em conversar com meus
contatos norte-americanos e britânicos, em relação ao apoio econômico à Líbia. E, de fato, dei
continuidade a esse assunto com Jack Straw e algumas autoridades do governo dos EUA, que
disseram ter planos de atender às necessidades da Líbia. Para eles, seria vantajoso a todos se o
país melhorasse suas condições financeiras e econômicas, além de normalizar as relações com
a comunidade global.

Em Washington, o fato de eu ter ido imediatamente à Líbia, após a declaração conjunta de


Bush e Blair, não agradou algumas pessoas. Elas queriam ter certeza de que receberiam o
crédito exclusivo pela descoberta do programa clandestino da Líbia e pelas negociações com
Gaddafi. Para mim, tal crédito era o que menos importava. A meu ver, os governos do Reino
Unido e dos EUA não cumpriram a obrigação de informar a AIEA sobre as atividades
nucleares secretas da Líbia. Porém, agora que a agência estava na posse de tais informações,
era nossa obrigação legal dar continuidade às investigações desse material.
Em 2 de janeiro de 2004, o New York Times publicou uma matéria em que mencionava
Shukri Ghanim, primeiro-ministro líbio, compelindo os Estados Unidos a cumprir sua parte no
acordo – basicamente, a suspensão de sanções de longa data que haviam impedido empresas
petrolíferas dos EUA de trabalhar com a Líbia, além de congelar US$ 1 bilhão em bens do
país . Ghanim também deixou claro que considerava a AIEA a responsável pelo processo de
101

desarmamento nuclear da Líbia.


O comentário de Ghanim, feito logo após a minha visita, tocou em pontos claramente
delicados. A matéria também fazia menção a uma não identificada “autoridade importante da
administração Bush”, referindo-se à minha viagem como um golpe publicitário praticado sob
“maus conselhos”. Essa mesma autoridade sugeria que funcionários dos serviços de
inteligência britânico e norte-americano e especialistas nucleares “assumiriam, efetivamente, a
responsabilidade pelo desarmamento”. Aparentemente, não levaram em conta o fato de que
cabe unicamente à AIEA a jurisdição legal para verificar atividades nucleares em países
signatários do TNP.
Também desagradou aos norte-americanos que eu tenha caracterizado o programa nuclear
líbio, à primeira vista, como “nascente”. A manobra dos serviços de inteligência teria parecido
mais significativa caso o programa líbio tivesse uma extensão maior ou estivesse mais próximo
da produção de uma arma nuclear. De qualquer modo, minha avaliação foi confirmada quando
a equipe de inspeções da AIEA retornou ao país para verificar exaustivamente o programa, nas
semanas e meses seguintes.
Um bom exemplo disso foi a Usina de Conversão de Urânio em Salah Eddin. Revelou-se
que cientistas líbios vinham conduzindo atividades de conversão de urânio em escala
laboratorial e industrial desde a década de 1980, apoiados por um cientista estrangeiro. Em
1984, a Líbia encomendou a um país estrangeiro uma usina-piloto de conversão de urânio, na
forma de componentes portáteis. Os componentes foram entregues em 1986 e, em seguida,
armazenados em vários locais nos arredores de Trípoli até 1998, quando foram parcialmente
montados e transportados para uma instalação chamada Al-Khalla. Em fevereiro de 2002,
cientistas líbios iniciaram os testes a frio. Porém, dois meses depois, preocupados com uma
possível violação no sistema de segurança, eles desmontaram a usina, embalaram todos os
componentes e transportaram tudo para a sua atual localização, em Salah Eddin.
Portanto, qual é a extensão das instalações de conversão de urânio em Salah Eddin?
Conforme nossas análises de amostras, a Líbia jamais usou, de fato, o urânio na usina. A usina-
piloto tinha uma capacidade muito pequena e nenhum potencial para produzir o gás
hexafluoreto, matéria-prima para o enriquecimento de urânio. Mesmo em escala de laboratório,
os cientistas líbios nunca tiveram uma produção doméstica de UF6.
Havia limitações semelhantes quanto à extensão, à capacidade e ao know-how em outras
etapas do ciclo de combustíveis nucleares da Líbia. Basicamente, eles não realizavam
operações de mineração ou de moagem. Sua capacidade de enriquecimento, como observei,
limitava-se a um pequeno número de centrífugas, sem que houvesse a produção ou o teste de
substâncias nucleares. Eles tentaram adquirir equipamentos e máquinas de precisão para a
produção doméstica de centrífugas, mas as peças ainda se encontravam dentro dos caixotes de
remessa de mercadorias. Em seu reator de pesquisa em Tajoura, irradiaram algumas dúzias de
alvos de urânio, a maior parte deles com a dimensão aproximada de 1 grama, e, a partir de dois
desses alvos, separaram uma quantidade minúscula de plutônio. Não fizeram nenhum trabalho
no sentido de produzir armas nucleares. Receberam projetos de design de armas nucleares, mas
estes permaneceram trancados dentro do cofre de Matouq . 102

Nossas inspeções ainda estavam em curso quando a Reuters e outras agências começaram a
veicular notícias de que especialistas dos EUA e do Reino Unido estavam prestes a viajar a
Trípoli a fim de remover os equipamentos nucleares da Líbia. Imediatamente, telefonei para
Peter Jenkins, embaixador britânico na AIEA. Disse a ele que, se isso acontecesse antes que a
agência pudesse concluir seus trabalhos, eu convocaria uma reunião extraordinária do
Conselho. “Por favor, informe a seu governo”, disse eu, “que relatarei ao Conselho que não
estou mais na posição de cumprir minhas responsabilidades sob o TNP por causa da
interferência dos britânicos e dos norte-americanos.” Eu estava farto dessa palhaçada. Se fosse
necessário, traria essa questão a público. Se os EUA e o Reino Unido continuassem
determinados a querer assumir o papel e as responsabilidades das instituições multilaterais,
calado é que eu não iria ficar.
Poucos dias depois, Colin Powell me telefonou para dizer que enviaria Bolton e seu colega
britânico William Ehrman a Viena, para que discutissem comigo as possíveis formas de
cooperação com a Líbia. “Temos de respeitar os seus trunfos”, disse Powell, em referência aos
conhecimentos da agência e a suas áreas de jurisdição. “E é claro que temos nossos próprios
trunfos.”
“Compreendo”, respondi, “mas os Estados-membros da AIEA depositaram confiança em
mim, e eu não posso trair tal confiança.”
Powell não insistiu. “Encontrei-me com Bolton ontem à noite e nesta manhã”, disse, “e ele
quer muito ter uma reunião com você.”
Fiquei desconfiado. Eu havia me encontrado com Bolton uma vez, em 2001, assim que ele
assumira o posto de subsecretário de Estado para o Controle de Armas e Segurança
Internacional. Concordamos em realizar um trabalho conjunto sobre a não proliferação e outras
questões relacionadas ao controle de armas. “Sob vários aspectos, terei de agir de um modo
contrário à minha própria teoria”, disse ele em tom de brincadeira, em alusão, penso eu, a seus
irônicos comentários sobre a ONU . Era essa sua medida de apoio ao trabalho da AIEA.
103

Porém Powell me reconfortou: Bolton recebera a instrução explícita de não criar problemas.
E, de fato, não houve incidentes em nossas interações. Nosso encontro, uma espécie de
briefing técnico, ocorreu em 19 de janeiro de 2004 na missão permanente dos EUA, a menos
de um quarteirão da sede da AIEA. Bolton mostrou-se gentil: nos cumprimentamos e passamos
rapidamente ao assunto. Em um gesto louvável, ele centrou o foco na busca de um acordo, e eu
deixei claro, desde o princípio, que não hesitaria quanto ao papel da agência. Concordamos
que, antes de tudo, a agência precisava concluir seus trabalhos – mensurações, amostras e
outras medidas de verificação – e que somente depois os EUA e o Reino Unido poderiam
retirar os equipamentos do país, segundo o acordo que firmaram com a Líbia.
Ao final do encontro, o clima era visivelmente amistoso, para grande alívio de William
Ehrman, que aparentemente previa um conflito. No plano prático, nosso acordo também
funcionou: no próprio local das operações, o relacionamento entre os inspetores da AIEA e os
especialistas dos EUA e do Reino Unido se deu de maneira tranquila.
Os procedimentos foram facilitados com a plena e consistente cooperação da Líbia. Sua
disposição de fornecer informações e acesso fez o trabalho de verificação técnica dos
inspetores da AIEA se tornar, para nosso alívio, claro e objetivo. Matouq passou a me visitar
regularmente em Viena, a fim de garantir que as inspeções estavam saindo conforme o previsto
e para resolver possíveis pendências. Foi uma mudança marcante em relação às experiências
que tivemos no Iraque, na Coreia do Norte e no Irã. No fim de janeiro, os inspetores da agência
já tinham concluído grande parte do trabalho de verificação de substâncias nucleares sensíveis
e, logo em seguida, um grande conjunto de equipamentos de ciclo de combustível nuclear foi
desmontado e, nos termos do acordo entre Líbia e EUA, despachado para os Estados Unidos.
Em 23 de fevereiro, retornei a Trípoli para me atualizar sobre a situação. O hotel onde me
hospedei estava agitado, cheio de ocidentais, gente do meio empresarial. Uma notícia estava no
ar: em breve, as sanções seriam suspensas, e a Líbia estaria livre para a realização de negócios.
Notamos, em particular, um grande número de representantes de empresas petrolíferas na
expectativa de fechar negócios que lhes dessem acesso aos abastados recursos naturais da
Líbia. Ao presenciar as autoridades líbias tentando lidar com as rápidas mudanças em várias
frentes, era inevitável não prever o risco de eles estarem sendo explorados.
“O problema”, me disse Shalgem, o ministro das Relações Exteriores, “é a nossa carência de
administradores.” Isso era bastante claro. A Líbia estivera isolada durante mais de 20 anos.
Grande parte de seus mais talentosos profissionais deixara o país. À exceção de um punhado de
profissionais com formação no Ocidente, incluindo alguns cientistas nucleares, o país contava
com uma burocracia bastante inexperiente.
Moussa Koussa, chefe do Serviço de Inteligência, havia morado algum tempo nos EUA. Ele
se formou em sociologia pela Universidade de Michigan e escreveu uma biografia de Gaddafi
como dissertação de mestrado. Shalgem também morou fora do país durante muitos anos,
ocupando o posto de embaixador da Líbia na Itália. Ambos demonstravam ter uma sólida
compreensão dos assuntos mundiais. Conversamos sobre a importância de aprender a negociar
e obter um bom preço na venda de recursos e bens líbios. Discutimos também as relações
críticas entre a Líbia e outros países do norte da África e do Oriente Médio. A Líbia vinha
sendo alvo de inúmeras críticas do mundo árabe: a percepção era a de que o país agia como
“traidor” depois de ter adotado, por 30 anos, uma postura assim chamada “revolucionária” em
várias questões. Os egípcios, particularmente, ficaram irados com o fato de os líbios não os
terem informado a respeito de seus programas de armas de destruição em massa, tampouco
sobre as negociações feitas com EUA e Reino Unido. Poucos meses antes, o então presidente
Mubarak afirmou, em um discurso público: “Eu sei o que a Líbia tem em termos de armas de
destruição em massa: absolutamente nada”. Analisando friamente, contudo, vemos que essa
declaração é um tanto quanto constrangedora.
Os líbios enviaram Abdallah el-Senusi, chefe do Serviço de Inteligência militar e cunhado
de Gaddafi, para tentar solucionar as questões com Mubarak. Porém, quando as críticas à
decisão da Líbia de renunciar ao seu programa de armas começaram a ser divulgadas na mídia
egípcia, Gaddafi retaliou, impondo restrições aos cidadãos egípcios que desejassem cruzar a
fronteira com a Líbia. Foi uma medida severa: na época, cerca de meio milhão de egípcios
trabalhavam na Líbia. Com isso, os egípcios cessaram as críticas e enviaram um grupo de
ministros a Trípoli para pedir a Gaddafi que reconsiderasse sua decisão. Percebia-se, com
muita clareza, que as relações entre o Egito e a Líbia eram pautadas mais por caprichos e por
jogos de poder do que por um planejamento racional.
De sua parte, as autoridades líbias se mostravam bastante críticas em relação ao governo
egípcio. Segundo elas, Mubarak estava velho demais para exercer uma liderança significativa,
fosse na política doméstica, fosse no mundo árabe de modo geral. Certa vez, uma dessas
autoridades me disse: “O mundo árabe não é capaz de ir a parte alguma sem o Egito; se os
egípcios tomarem a liderança, os demais o seguirão”.

Um show exclusivo protagonizado na mídia pelo secretário da Energia dos EUA, Spencer
Abraham, não contribuiu para os esforços da Líbia de manter sua reputação no mundo árabe.
Fiquei sabendo do fato por meio de um telefonema de Matouq, em 16 de março. Ele estava
furioso. Um grupo de 45 jornalistas foi enviado, em voo fretado, para o Complexo Y-12 de
Segurança Nacional, em Oak Ridge, no Tennessee. O assunto, prestes a ser divulgado na
mídia, era uma dramática exibição de equipamentos nucleares da Líbia. O pódio de Abraham
foi estrategicamente colocado em frente a uma coleção de grandes caixotes de remessa, alguns
dos quais foram abertos, de modo a deixar visíveis os componentes de centrífugas. Ele
qualificou aquilo de “uma grande vitória, muito grande”, observando que o equipamento ali
exibido era apenas “a ponta do iceberg”.
“Segundo critérios objetivos”, afirmou Abraham, “os EUA e as nações do mundo civilizado
estão agora mais seguras com o resultado desses esforços de salvaguardar e remover as
substâncias nucleares da Líbia” . Deixando de lado o insulto implícito de Abraham ao sugerir
104

a existência de nações não civilizadas, sua avaliação sobre o programa líbio foi um tanto
pretensiosa. Sua alegação de que os líbios tinham 4 mil centrífugas era inexata, já que a
maioria das centrífugas estava incompleta. Especialistas em não proliferação contestaram as
declarações. David Albright, do Instituto pela Ciência e Segurança Internacionais, emitiu uma
réplica, observando que a exibição continha apenas as embalagens das centrífugas, sem os
rotores que as tornariam operacionais. “Não tenham dúvidas”, disse ele, “de que o programa
líbio era sério e que estamos satisfeitos por ele ter sido interrompido... O problema, a nosso
ver, é que a Casa Branca, que basicamente organizou a exibição, está tão preocupada em
receber os créditos por toda a operação que acaba exagerando na medida.” 105

Quando Matouq me telefonou, eu estava em Washington, onde teria um segundo encontro


com o presidente Bush. Matouq pediu que eu intercedesse junto aos norte-americanos. A
exibição no Complexo Y-12, disse ele, causara danos à Líbia perante a opinião pública árabe, e
também no plano doméstico, pois transmitira a impressão de que os norte-americanos, de modo
unilateral, desarmaram a Líbia utilizando a força. Das duas, uma: ou os norte-americanos não
perceberam o desrespeito envolvido nesse evento, ou então não lhe deram a menor
importância. Para os líbios, era importante que o desmantelamento tivesse sido resultado de um
acordo mútuo, após uma ampla negociação, e que os passos no sentido de interromper o
programa líbio de armas de destruição em massa fossem conduzidos sob a lei internacional e
por uma organização internacional. Considerando o crescente ressentimento no Oriente Médio
em relação aos EUA, na época, a última coisa que a Líbia queria era passar a impressão de ter
se submetido à intimidação norte-americana.
Encontrei-me com Bush no dia seguinte. Quando abordamos o assunto “Líbia”, ele logo de
início me agradeceu pela cooperação entre a agência e os Estados Unidos. Respondi que o
assunto era delicado sob vários aspectos, sendo um deles o efeito pernicioso da exibição
ostensiva dos equipamentos nucleares à mídia. Disse também que, a meu ver, os EUA
deveriam ter cuidado para não retratar Gaddafi perante o mundo árabe como um traidor que se
vendeu ao Ocidente. Os críticos a Gaddafi já existiam; se os EUA e o Reino Unido
continuassem a retratá-lo como um derrotado, sua nova parceria com a Líbia seria cada vez
mais difícil.
Bush compreendeu de imediato. Uma segunda exibição estava marcada, mas ele cancelou o
evento. Disse que Bill Burns, secretário-assistente de Estado para Assuntos do Oriente
Próximo, seria enviado a Trípoli como forma de demonstrar reconhecimento e respeito pela
decisão líbia. “Comprometo-me a normalizar nossas relações com a Líbia”, disse Bush, e me
pediu que, quando surgisse a oportunidade, transmitisse a Gaddafi essa mensagem sincera.
Ainda assim, a insistência dos EUA em mostrar um papel relevante no desarmamento da
Líbia não havia cessado. No fim de maio de 2004, Matouq me disse que John Bolton estava
pressionando a Líbia para assinar um acordo bilateral sobre as armas de destruição em massa.
O documento autorizaria os EUA a adotar medidas especiais, incluindo inspeções, caso a Líbia
violasse as obrigações previstas no acordo ou no TNP. Segundo Matouq, os norte-americanos
queriam que ele retirasse do acordo a cláusula de confidencialidade dos registros da AIEA
sobre a Líbia, de modo que os EUA pudessem ter acesso a eles.
Aconselhei Matouq que não fizesse nem uma coisa nem outra. A cláusula de
confidencialidade era um procedimento padrão para todas as atividades de salvaguarda da
agência; em minha opinião, ninguém deveria ter acesso aos novos arquivos. Além disso, eu
considerava que a Líbia não tinha necessidade de mecanismos adicionais de verificação de
cumprimento das cláusulas; os que constavam no acordo de salvaguardas com a agência
bastavam. A menos que os líbios quisessem dar aos EUA a liberdade de intervenção no
momento em que os norte-americanos bem entendessem; mesmo assim, essa não parecia ser
uma boa medida. Não foi difícil convencer Matouq disso.

No início de junho, encontrei-me com Shukri Ghanim, primeiro-ministro e posteriormente


ministro do Petróleo da Líbia, em uma conferência em Talloires, na França. Éramos amigos
desde a época em que ele foi diretor de estudos nos escritórios da OPEC, em Viena. Viria
acompanhado de uma pessoa que gostaria que eu encontrasse: Saif al-Islam al-Gaddafi,
segundo filho mais velho do coronel Gaddafi, que estava encarregado das negociações líbias
com os norte-americanos e os britânicos.
Quando chegaram à minha casa em Viena, Ghanim apresentou-me a Saif e depois foi
embora. Logo ficou claro que Saif queria saber meu ponto de vista e receber conselhos sobre
vários assuntos. Começou perguntando de que maneira os líbios eram vistos nos EUA e no
Ocidente, de modo geral.
Não vi nenhum sentido em esconder o jogo. “Eles não têm a mínima confiança em vocês”,
eu disse. “Vocês terão de construir essa confiança com o tempo.” Por outro lado, prossegui, os
líbios estavam agora demonstrando seriedade em suas intenções de conduzir o país a uma nova
direção, como membro responsável da comunidade internacional. Como tal, estariam aptos a
solicitar assistência em termos de educação, finanças e outros aspectos de necessidade
nacional.
Saif comentou sobre a escassez de administradores experientes e bem treinados nos círculos
governamentais líbios, o que era verdade. Sugeri a ele que enviasse alguns administradores de
nível médio para treinamento no exterior, ou então trouxesse para Trípoli um curso de
treinamento de administradores, acompanhado de assistência externa, para que começassem a
preencher tais lacunas. Quanto mais demorasse a tomar alguma atitude, maior a dificuldade de
reverter os danos à infraestrutura líbia.
Percebi que o isolamento da Líbia nas décadas recentes cobrara um preço altíssimo. Em
1964, havia um voo direto, sem escalas, entre Nova York e Trípoli, considerada na época uma
capital mediterrânea cosmopolita. Em 1970, o xeique Zayed bin Sultan al-Nahyan, então
presidente dos Emirados Árabes, viajou à Líbia para obter um empréstimo e fazer uma
cirurgia. Desde então, os Emirados se transformaram num importante polo de atividade
econômica, ao passo que a Líbia tem apresentado um constante declínio.
O estilo de Gaddafi como chefe de Estado era, para dizer o mínimo, singular. Em
determinado momento, proibiu a atividade dos barbeiros, por avaliar que não era uma profissão
produtiva. Durante certo tempo, os líbios foram obrigados a cortar o próprio cabelo, ou a se
encontrar com seus barbeiros secretamente.
Seu estilo de tratar os líderes mundiais também chamava a atenção. Segundo um relato,
quando Kofi Annan esteve no país, Gaddafi, insatisfeito com as sanções recém-impostas pela
ONU, anunciou que se encontraria com Kofi dentro de uma barraca no deserto, no meio da
noite. A comitiva de Gaddafi conduziu Kofi de carro até o local do encontro por um desvio,
numa estrada completamente escura, durante duas horas. O silêncio da noite era de vez em
quando rompido por ruídos de animais que Kofi não conseguia ver. Outra história envolveu a
primeira visita de Jacques Chirac à Líbia, em novembro de 2004. O encontro com Gaddafi
também foi em uma barraca. No meio da conversa, empregados da limpeza entraram para
passar aspirador de pó e, depois, uma cabra começou a perambular no ambiente. O significado
desses episódios bizarros – se forem mesmo verdadeiros – nunca ficou muito claro.
Supostamente, tinham o propósito de demonstrar insatisfação com certas políticas da ONU ou
da França, ou deixar claro que Gaddafi não obedecia a protocolos externos para receber esses
dignitários.
De qualquer modo, as consequências dos anos de isolamento da Líbia e de sua inexperiência
global permaneciam em evidência – em relação à sua escassez de administradores bem
treinados, à sua falta de infraestrutura moderna e à sua singular política externa e interna – à
medida que governos e empresas ocidentais avançavam a fim de lucrar com as posses do país.
Enquanto eu observava a reaparição da Líbia na cena internacional, uma série de insights me
deixava inquieto. Primeiro, me intrigava a facilidade de um país um tanto quanto isolado – sob
o efeito de sanções internacionais e dotado de uma sofisticação científica e industrial
relativamente mínima – em obter armas de destruição em massa, incluindo os elementos
básicos de um programa de armas nucleares.
Em segundo lugar, era vergonhoso constatar a avidez de alguns países da comunidade
internacional em providenciar um “conserto rápido” para tal situação. Na Líbia, como em
qualquer parte, as motivações e as condições que possibilitaram o surgimento de um programa
nuclear clandestino foram desenvolvidas ao longo de décadas. Não é possível transformar ou
erradicar tais motivações por meio de um acordo – muito menos com o emprego de sanções
concebidas de modo apressado, com uma rápida campanha de bombardeios, ou com acessos
esporádicos de diplomacia. A remoção de substâncias e equipamentos perigosos é apenas a
primeira etapa de um complexo processo. A mudança significativa, em tais casos, requer um
compromisso a longo prazo, com um relacionamento baseado no respeito mútuo e na
confiança. O relativo sucesso da Líbia em chegar a tal nível de relacionamento com seus
principais parceiros internacionais só poderá ser compreendido com o passar do tempo.
Por fim, foi inquietante constatar a disposição das várias partes em trapacear ou sonegar
informações, numa flagrante contradição dos compromissos firmados em nível internacional: a
Líbia, ao fingir ser um membro do TNP de boa reputação, ao mesmo tempo em que
desenvolvia programas secretos de armas de destruição em massa; os EUA e o Reino Unido,
por sonegarem informações sobre a atividade nuclear clandestina até o estágio em que lhes
convinha revelá-las para a AIEA, exagerando então sua importância a fim de obter dividendos
políticos. Pergunto-me: até que ponto a comunidade internacional será capaz de tolerar esse
tipo de comportamento, antes que a integridade das normas do TNP seja colocada em dúvida?
98 Essa não era a única diferença. Os norte-americanos geralmente mostravam pontos de vista definitivos em relação ao modo de
interpretar a informação bruta que recebiam, ao passo que os britânicos se revelavam menos dogmáticos, deixando que os fatos
falassem por si. Curiosamente, meus contatos no MI6 me disseram que, embora o diretor da CIA transmitisse informações ao
presidente dos EUA todas as manhãs, a CIA, diferentemente do MI6, raramente se envolvia com o efetivo processo de tomada de
decisões.

99 Fui informado de que a gênese do programa de armas nucleares da Líbia – bem como outros programas de armas de
destruição em massa de Gaddafi – ocorreu em retaliação aos bombardeios feitos pelos EUA em abril de 1986, nos quais a filha
adotiva de Gaddafi, Hannah, foi morta.

100 Rotor é o núcleo cilíndrico e oco de uma centrífuga, através do qual é escoado o urânio – a matéria-prima. Como esses
rotores giram numa velocidade extremamente alta durante longos períodos de tempo, exigem uma fabricação que envolva alta
precisão e materiais de alta qualidade, capazes de suportar uma grande pressão.

101 “Lybia Presses UN to Move Quickly to End Sanctions”. New York Times, 2/1/2004.
102 Para nosso alívio, os especialistas em armas da AIEA constataram que faltavam peças importantes nesses projetos de armas.
A. Q. Khan não era um projetista de armas, sendo muito provável que ele tenha repassado à Líbia todo e qualquer material que
conseguiu obter no Paquistão.

103 Creio que Bolton estivesse se referindo a declarações como aquela feita em um debate na Associação Federalista Mundial,
em 1994: “Não existe uma coisa chamada Nações Unidas”. E prosseguiu: “O prédio da Secretaria tem 38 andares. Se, hoje, você
perdesse dez desses andares não faria a menor diferença”. Citado em “Bolton: An Unforgiveable Choice as UN Ambassador”,
Council on Hemispheric Affairs, 10/3/2005. Disponível em: <www.scoop.co.nz/stories/WO0503/S00185.htm>.

104 Jody Warrick, “U.S. Displays Nuclear Parts Given by Libya”, Washington Post, 16/3/2004. Fico muitas vezes consternado
com afirmações discriminatórias como essa, feitas por políticos dos EUA inteligentes e de boa formação, dando a entender que o
“mundo civilizado” inclui apenas um determinado grupo especial de nações. Seria possível inferir, a partir dessa fala, que os
líbios e os países vizinhos podem ser considerados “não civilizados”.

105 “Was Lybian WMD Disarmament a Significant Success for Nonproliferation?”, de Sammy Salam, pesquisador-associado,
Center for Nonproliferation Studies, setembro de 2004. Disponível em: <www.nti.org/e_research/e3_56b.html>.

7 • O “bazar” nuclear de A. Q. Khan

A descoberta da rede de A. Q. Khan foi o marco da terceira de uma série de profundas


mudanças no statu quo nuclear. A primeira delas ocorreu no início da década de 1990, quando
países como o Iraque e a Coreia do Norte, ambos membros do TNP, violaram, de modo
deliberado e secreto, suas obrigações no acordo. A Líbia era apenas o exemplo mais recente.
A segunda mudança remonta à epoca dos ataques terroristas aos Estados Unidos, em 11 de
setembro de 2001, que levaram à constatação de que não apenas os Estados, mas também
grupos extremistas, eram consumidores de materiais radioativos. Para especialistas na área
nuclear, a sofisticação dos ataques de 11 de setembro fez soar um alarme: e se um grupo
extremista tivesse acesso a poderosas fontes radioativas a fim de construir uma bomba suja ? 106

Ou ainda pior: e se eles conseguissem substâncias nucleares em quantidade suficiente para


construir uma arma nuclear em estado bruto? O risco ficou ainda maior com o surgimento de
provas das pretensões da Al-Qaeda de obter armas de destruição em massa.
A comunidade internacional reagiu com uma reavaliação drástica do modo como os países
protegem suas instalações nucleares e suas substâncias radioativas. No período de alguns
meses, o orçamento anual de segurança na área nuclear da AIEA saltou de US$ 1 milhão para
US$ 30 milhões, quantia financiada, em grande parte, por contribuições voluntárias. A AIEA
enviou missões para localizar materiais radioativos abandonados na Geórgia e em outras áreas
da ex-União Soviética. Medidas de segurança foram aperfeiçoadas em usinas nucleares,
reatores de pesquisa e outras instalações em todo o mundo. Foram reavaliados cenários
propícios a uma potencial sabotagem das instalações nucleares.
A resposta à ameaça não foi uniforme. Governos ocidentais e até mesmo ONGs fizeram
significativas contribuições não solicitadas para ajudar no – cada vez mais volumoso – trabalho
relacionado à segurança nuclear. Todavia, grande parte dos países em desenvolvimento
opunha-se a qualquer tentativa de incluir a expansão do financiamento para a segurança
nuclear no orçamento básico da AIEA. Nos bastidores, eles mencionavam a tradição da
agência de manter o equilíbrio entre o financiamento voltado à promoção da tecnologia nuclear
– assim como o da assistência que damos ao tratamento do câncer ou a melhorar a
produtividade agrícola – e o financiamento voltado à regulação nuclear. Eles temiam que, se os
novos e substanciais investimentos em segurança nuclear se transformassem em parcela
permanente do orçamento da agência, uma contribuição nesse sentido lhes seria solicitada.
Esse dilema foi mais um indício perturbador da divisão entre Norte e Sul. Na avaliação de
muitos países em desenvolvimento, os alvos das ameaças à segurança nuclear eram,
essencialmente, os maiores países industrializados (ocidentais, sobretudo), e eles julgavam, por
esse motivo, que o Ocidente devia pagar o preço por isso. Tal visão era míope: a ameaça era
igualmente significativa em países menores e menos desenvolvidos, como ficou provado em
situações que testemunhamos de tentativas de contrabando de materiais nucleares e
radioativos, e também pela solicitação de nossos serviços de segurança em todo o mundo. De
fato, nos anos seguintes, a AIEA contribuiu com o aperfeiçoamento da proteção material em
mais de cem locais, em 30 países; realizou centenas de workshops e cursos sobre segurança
nuclear em aproximadamente 120 países; distribuiu mais de 3 mil instrumentos de detecção de
radiação; e colocou sob salvaguarda aproximadamente 5 mil fontes radioativas em países de
todo o mundo.
No início de 2004, baseados no que estávamos presenciando no Irã e na Líbia, sabíamos que
estávamos diante de uma terceira mudança no cenário nuclear: a expansão de um mercado
negro de substâncias e equipamentos nucleares. Na equação “oferta e demanda”, os dois
primeiros novos desenvolvimentos eram prova da existência da demanda – seja dos Estados
seja de grupos extremistas interessados na obtenção de substâncias perigosas e da tecnologia de
armas nucleares. O desenvolvimento de uma rede ilícita de obtenção de substâncias nucleares
chefiada por A. Q. Khan contribuiu com o lado “oferta”. Nos anos seguintes, à medida que
nossa monitoração e produção de relatórios se intensificava, nosso banco de dados chegaria a
registrar mais de 1.300 casos de tráfico ilícito de substâncias nucleares e radioativas. Foi o
início de nosso processo de revelação de um mercado nuclear virtual.

Que motivações pode ter um indivíduo como A. Q. Khan? Parte da resposta pode estar
associada à formação que recebeu. Quando adolescente na Índia, testemunhou o massacre de
muçulmanos pelos hindus; logo depois migrou com a família para o Paquistão, durante a
partilha do território, em 1947. Duas décadas mais tarde, enquanto cursava o doutorado na
Bélgica na área de metalurgia, o Paquistão foi devastado por uma guerra contra a Índia. O
exército de seu país foi dizimado e a porção leste do território, separada, transformando-se no
atual Bangladesh. Em 1971, mais ou menos na época em que a Índia explodiu seu primeiro
artefato, Khan começou a trabalhar para um subcontratante na Urenco , consórcio formado por
107

Reino Unido, Alemanha e Holanda que desenvolvia centrífugas de alta velocidade para o
enriquecimento de urânio e que rapidamente se tornou uma das maiores empresas a atuar no
mercado de combustíveis nucleares.
Terá sido o nacionalismo exacerbado que alimentou as iniciativas de Khan? Ou a ambição
pessoal e a cobiça? Ou foi o fanatismo religioso – uma forma de colocar armas nucleares nas
mãos dos muçulmanos, que se sentiam oprimidos? É difícil afirmar com certeza; jamais se
permitiu que a AIEA fizesse tal pergunta diretamente a Khan. Mas está claro que, quando ele
retornou ao Paquistão, assumindo a posição de diretor do Laboratório de Pesquisas em
Engenharia – posteriormente rebatizado Laboratório de Pesquisas Khan –, dispunha de meios
para expandir drasticamente a capacidade nuclear de seu país: cópias roubadas de projetos de
centrífugas da Urenco e um grande número de contatos e empresas que lhe poderiam fornecer
substâncias, equipamentos e outras partes do ciclo de combustível nuclear. Também é certo
que as proezas alcançadas por Khan no mercado negro nuclear, que aparentemente tiveram
início perto do final da década de 1980, lhe asseguraram uma considerável fortuna,
supostamente mais de US$ 400 milhões. Na época em que foi descoberta, a rede de
fornecedores, produtores e intermediários na área nuclear construída por Khan já tinha um
alcance sofisticado, complexo e de atuação global.
Depois que conseguimos obter uma visão parcial das atividades de A. Q. Khan no Irã e na
Líbia, Olli Heinonen, diretor da equipe de salvaguardas da AIEA e responsável pelo Irã,
iniciou uma profunda investigação dessa rede ilícita. Por meio da análise de Olli e de vários
colegas seus, conseguimos juntar muitas peças do quebra-cabeças: dezenas de transações,
nomes e endereços dos principais fornecedores e o modus operandi de alguns de seus
intermediários. Os maiores serviços de inteligência certamente estavam seguindo as mesmas
pistas, em operações muito maiores e mais sofisticadas, fornecendo-nos dicas relevantes para
nossa tarefa essencial: revelar a história dos programas nucleares no Irã, na Líbia, na Coreia do
Norte e em outros países.
Grande parte do trabalho investigativo da AIEA envolvia a localização da variada rede de
fornecimento. Endereços, nomes de empresas e contatos eram obtidos por meio de ordens de
compra, documentos de expedição de mercadorias, registros operacionais e extratos
financeiros. Etiquetas eram usadas na identificação de possíveis fornecedores; foram
pesquisados números de série para a identificação de datas específicas de produção de
materiais e sua localização (a menos que tivessem sido riscados); e, claro, também foram feitas
entrevistas, num exaustivo esforço de comparar as informações passadas pelos cientistas e
autoridades da Líbia com as histórias relatadas pelos intermediários que tinham algum papel
importante no processo.
O quadro começava a ser delineado.
A primeira transação da rede de Khan de que se tem notícia ocorreu em 1987, quando dois
parceiros dele e três iranianos chegaram a um acordo, num encontro em Dubai, sobre os termos
de uma venda de componentes e projetos de centrífugas. O único registro que a AIEA
conseguiu obter representando o indício de uma transação foi uma página manuscrita. Os itens
relacionados a substâncias nucleares que o Irã tinha a intenção de adquirir lembravam uma lista
de compras. Como parte da negociação, o país recebeu uma relação de empresas na Europa e
em outros locais para adquirir outras tecnologias que fossem essenciais ao seu programa.
O auxiliar mais próximo de Khan parece ter sido Buhary Sayed Abu Tahir, empresário do
Sri Lanka e proprietário da SMB Computers, empresa familiar no ramo de equipamentos
eletrônicos com sede em Dubai, que Tahir e seu irmão herdaram de seu pai. O primeiro contato
de Tahir com Khan ocorreu quando a SMB Computers assinou um contrato para vender
aparelhos de ar-condicionado para o Laboratório de Pesquisas Khan. Com o passar do tempo,
Tahir estreitou suas relações com Khan, tornando-se, mais tarde, seu ponto de contato com os
demais intermediários na rede nuclear. Quando o Irã fez um segundo grande pedido de
materiais, em 1994, Tahir foi o responsável pelo despacho, de Dubai ao Irã, de dois contêineres
de centrífugas usadas, utilizando um navio mercante de propriedade iraniana. Dubai, com seu
extenso comércio marítimo e suas normas alfandegárias liberais, era um centro de operações
conveniente. Khan adquiriu um apartamento no Al-Maktoum, bairro de classe alta na cidade, a
partir de onde passou a dirigir as operações da rede nuclear.
Outro local-chave era a Malásia: Tahir, cuja esposa era malasiana, contava com os serviços
da Scope , uma empresa de engenharia de alta precisão, para produzir componentes de
108

centrífugas. O suíço Urs Tinner, filho do engenheiro nuclear Friedrich Tinner – sócio de longa
data de A. Q. Khan –, ajudou Tahir na instalação da fábrica da Scope em Shah Alam, na
Malásia, e na inspeção das operações de manufatura. A matéria-prima, alumínio de alta
qualidade, era comprada de Cingapura. Como as peças – algumas das quais aproveitadas na
fabricação de outros aparelhos domésticos e comerciais – eram manufaturadas
individualmente, a administração da Scope não tinha informações a respeito de seu uso final
nem do perfil daqueles que as utilizavam.
Tendo realizado suas próprias investigações em cooperação com outras agências, a polícia
da Malásia prendeu Tahir em Kuala Lumpur, em maio de 2004, sob a acusação de ameaça à
segurança. A AIEA pressionou diversas vezes para poder entrevistá-lo e, após vários meses de
espera, nossos inspetores finalmente conseguiram marcar a entrevista.
A agência ficou sabendo que a rede não tinha nenhuma hierarquia; era uma frágil associação
de empresários, engenheiros, ex-conhecidos e, em alguns casos, membros da família. Havia
muitos intermediários. Alguns deles, no final, tornaram-se públicos, já que os governos de seus
países tinham a intenção de processá-los de acordo com vários estatutos jurídicos. Gotthard
Lerch era um cidadão alemão que residia na Suíça. Peter Griffin, cidadão britânico, vivia na
França e foi citado em processos judiciais na Alemanha e na África do Sul como integrante da
rede de Khan, admitindo conhecê-lo, mas negou envolvimento com programas nucleares
ilícitos, por isso não foi processado. Johan Meyer, sul-africano, era o proprietário de uma
empresa de engenharia. As acusações contra ele foram arquivadas depois de ele supostamente
ter concordado em depor contra Gerhard Wisser, um alemão que residia na África do Sul,
provavelmente seu ponto de contato com a rede. Daniel Geiges, engenheiro suíço residente na
África do Sul, também foi citado no depoimento de Meyer.
Também ficamos sabendo que, como em qualquer outro mercado, tanto os compradores
quanto os vendedores tomavam a iniciativa. O Irã, por exemplo, fez tentativas independentes
de obter equipamentos nucleares e de dupla finalidade em inúmeros países, além de manter
encontros com a rede de Khan. Uma importante autoridade da Comissão de Energia Atômica
da África do Sul me relatou que, em meados da década de 1990, o ministro da Energia do Irã
tentou adquirir tecnologia de material nuclear sensível junto à África do Sul. A proposta foi
recusada, pois a África do Sul tinha aderido recentemente ao TNP e sua “tecnologia” não
estava à venda.
Os métodos da rede, em geral, eram habilidosos. A obtenção de componentes rigidamente
controlados – qualquer coisa que pudesse despertar suspeitas devido aos controles de
exportação do governo de origem – era feita, de hábito, por meio de um intermediário,
mediante o uso de um certificado falso para camuflar o destino final. Assim como no caso da
Scope, o fornecedor geralmente não tinha conhecimentos sobre a utilização final –
especialmente quando o produto também podia ser empregado para a perfuração de petróleo,
no tratamento de água ou em outras operações industriais.
Em certos casos, o intermediário era uma empresa real; em outros, os sócios de Khan abriam
uma empresa de fachada em Dubai, completavam a transação e depois encerravam a empresa.
Os pagamentos eram feitos por meio de depósitos em contas de um terceiro país, de modo a
dificultar a localização da transação. Algumas das maiores aquisições iranianas foram pagas
em dinheiro vivo; Khan contava, então, com comerciantes de ouro ou outros negociantes
acostumados a manusear altas quantias e à lavagem de dinheiro.
Um dos produtos mais simples e mais valiosos de Khan era sua extensa lista de contatos:
indivíduos e empresas aptos a produzir ou obter tecnologias e substâncias essenciais para a
construção de um programa nuclear. Na época em que prestou serviços à Holanda, por
exemplo, trabalhou com a metalurgia de aços maraging, ou de alta resistência, para o
Laboratório Fysisch-Dynamisch Onderzoek (Pesquisa em Dinâmica Física), um subempreiteiro
da Urenco. Tinha contatos diretos com as firmas de engenharia e produção fornecedoras desse
tipo de aço, essencial na fabricação de certos rotores de centrífugas. Os contatos de Khan junto
a essas empresas davam aos seus clientes o acesso à rede.
Um dos projetos mais bem elaborados da rede foi desenvolvido na África do Sul, numa
fábrica em Vanderbijlpark, pequena cidade de mineração próxima a Joanesburgo. Envolvia a
construção de sistemas de processos modulares para o enriquecimento de urânio sem as
centrífugas. Apesar disso, os sistemas eram completos, com equipamentos necessários para
direcionar o fluxo de UF6 para as cascatas de centrífugas: bombas, válvulas, autoclaves de
alimentação, recipientes inoxidáveis e canos auxiliares. As cascatas eram configuradas em
etapas que enriqueciam o urânio natural, primeiramente a 3,5% de U-235 e posteriormente a
90% (grau de urânio altamente enriquecido, usado na produção de armas). O proprietário da
fábrica referia-se aos sistemas como uma “obra de arte”.
Em setembro de 2004, a polícia sul-africana, seguindo uma pista em conjunto com as
autoridades do serviço de antiproliferação e os inspetores da AIEA, chegou à fábrica. Os
109

sistemas haviam sido desmontados, peça por peça, e colocados dentro de contêineres, prontos
para serem despachados.
A revelação dessa ampla operação na África do Sul foi particularmente surpreendente para
os especialistas na área nuclear. Afinal, fazia tempo que esse país abandonara seu programa de
armas nucleares. Seus líderes tornaram-se firmes defensores da não proliferação e do
desarmamento nucleares. A descoberta de uma atividade nuclear clandestina em
estabelecimentos privados colocava em evidência a necessidade de um empenho nacional mais
concentrado para que se monitorassem a manufatura e o comércio associados às exportações de
substâncias nucleares e de dupla finalidade.
Certamente, a África do Sul não era o único país envolvido. Os detalhes sobre a rede foram
surgindo gradativamente, compondo uma espécie de diário de bordo. Um fornecedor alemão
havia contribuído com as bombas a vácuo e um intermediário na Espanha forneceu dois tornos
mecânicos especializados. Um consultor suíço viajou até a Malásia para produzir peças de
centrífugas baseadas em projetos do Paquistão originários da Holanda. Um oficial militar
israelense, nascido na Hungria, que trabalhava na África do Sul, foi preso em uma estação de
esqui em Aspen, no Colorado, por sua participação no fornecimento de faiscadores de disparo
rápido ao Paquistão, componentes que podem ser usados na fabricação de detonadores de
armas nucleares. Um engenheiro britânico foi o responsável pela elaboração de planos para
uma loja de componentes de centrífugas na Líbia. Fornos especiais foram adquiridos na Itália.
Conversores de frequência e outros equipamentos eletrônicos foram manufaturados em
oficinas da Turquia, com a utilização de peças importadas de outras partes da Europa. No total,
as investigações da AIEA desvendariam ligações com mais de 30 empresas no mesmo número
de países.

Apenas um ano antes disso, a AIEA fazia buscas no Iraque por armas inexistentes. No início de
2004, tínhamos a impressão de que, não importando para onde olhássemos, depararíamos com
novas e palpáveis provas de proliferação nuclear. A Líbia havia reconhecido suas ambições no
assunto. A Coreia do Norte estava prestes a construir sua primeira arma nuclear. O Irã
recentemente revelara, após minuciosa investigação, os resultados de um programa de 20 anos
visando à obtenção do ciclo de combustíveis nucleares. E não tínhamos nenhuma segurança
quanto ao nosso conhecimento sobre a real extensão da rede de Khan.
Em 12 de fevereiro de 2004, publiquei um artigo no New York Times, intitulado “Salvando a
nós mesmos da autodestruição”, no qual chamei a atenção para o perigo da rede de Khan.
Observei que as duas metades do mercado de proliferação, a oferta e a demanda, estavam
prosperando e propus uma série de medidas para interromper essa tendência: um maior rigor
nos controles de exportação; uma adesão universal ao Protocolo Adicional; a proibição,
imposta aos membros do TNP, de retirar sua adesão ao tratado; a retomada das negociações
sobre o Tratado de Interrupção de Materiais Físseis ; o aumento da segurança para as
110

substâncias nucleares já existentes; e um roteiro pró-desarmamento direcionado aos países


detentores de armas nucleares.
Percebi, porém, que essas medidas atingiam apenas a estrutura da situação. As verdadeiras
causas do problema tinham uma raiz muito mais profunda: as extremas desigualdades
econômicas e sociais existentes entre o Norte e o Sul; a assimetria do sistema de segurança
global, com seus procedimentos de dois pesos e duas medidas; e os conflitos e tensões que
continuavam a afetar algumas regiões em particular. “Devemos, também, dirigir nosso foco às
causas fundamentais da insegurança”, recomendei no artigo:

Em áreas de conflito de longa data, como o Oriente Médio, o sul asiático e a península coreana, é natural que deparemos
com a busca de armas de destruição em massa – embora ela jamais possa ser justificada – enquanto não apresentarmos
alternativas para reverter o déficit existente na área de segurança. Devemos abandonar o conceito de que é moralmente
censurável a atitude de alguns países buscarem armas de destruição em massa e, no entanto, moralmente aceitável que
outros países delas dependam para sua segurança – e, de fato, continuem a refinar seu potencial, planejando sua utilização.
Da mesma forma, devemos abandonar a tradicional abordagem da definição de segurança em termos de fronteiras – muros,
patrulhas, agrupamentos raciais e religiosos. A comunidade global tornou-se irreversivelmente interdependente, com a
contínua movimentação de pessoas, ideias, produtos e recursos. Em um mundo como este, devemos combater o terrorismo
com uma cultura da segurança contagiante e capaz de cruzar fronteiras – uma abordagem inclusiva e baseada na
solidariedade e nos valores humanos. Em um mundo assim, não há lugar para as armas de destruição em massa.

Poucos dias antes da publicação desse meu artigo, soube que o presidente Bush estava
prestes a apresentar seu próprio conjunto de medidas antiproliferação, em um discurso
proferido em 11 de fevereiro, na National Defense University, em Washington. O New York
Times concordou em adiar a publicação de meu texto em um ou dois dias, de modo que não
parecesse que eu estava me apropriando das ideias de Bush.
Poucas horas antes do discurso do presidente, Colin Powell me telefonou. Disse que Bush
planejava anunciar sete novas medidas para fazer frente à ameaça das armas de destruição em
massa. Insinuou que ele, pessoalmente, não concordava totalmente com as medidas. “Algumas
propostas são polêmicas”, disse. E acrescentou: “Elas precisarão ser submetidas ao Conselho
da AIEA para discussão”.
Agora sim ele havia me intrigado.
Revelou-se que havia uma considerável convergência entre as propostas de Bush e as
minhas. Ambos enfatizávamos a necessidade de controles de exportação mais rígidos,
incluindo a necessidade de criminalizar as ações que apoiavam deliberadamente a não
proliferação. Bush também propunha o aumento dos fundos para salvaguardar as reservas de
substâncias nucleares já existentes. Defendia um sólido apoio ao Protocolo Adicional,
recomendava uma expansão da Iniciativa de Segurança contra a Proliferação (PSI, na sigla em
inglês) e sugeria o bloqueio de países “novatos” que obtivessem as instalações para o ciclo de
111

combustíveis – nesse ponto uma abordagem bastante diferente da minha. É óbvio que não
havia nenhuma menção ao desarmamento. Porém, em muitas de suas propostas, havia a clara
intenção de preencher lacunas na regulamentação sobre a proliferação, que ficaram visíveis
com o que estávamos testemunhando na rede de Khan.
Duas das propostas, no entanto, pareciam equivocadas na escolha do alvo. A primeira
solicitava à AIEA que estabelecesse um comitê especial do Conselho, cujo foco estaria
centrado em salvaguardas específicas e em preocupações relacionadas à verificação. A segunda
recomendava à AIEA que proibisse a participação no Conselho de qualquer Estado-membro
que estivesse sendo investigado por possíveis violações à salvaguarda.
Posteriormente, fui informado por um importante membro da administração Bush que o
discurso fora escrito por John Bolton e Bob Joseph , sem passar pela análise do Departamento
112

de Estado. A ideia da criação de um comitê especial de salvaguardas – embora parecesse uma


boa maneira de fortalecer o programa de verificações da agência – nasceu do desejo deles de
controlar, nos mínimos detalhes, o trabalho de verificação da AIEA e, em particular, impor
uma abordagem mais linha-dura sobre o programa nuclear iraniano. A intenção por trás da
proposta de excluir do Conselho “os países sob investigação” – que tinha o Irã como principal
alvo – não foi sequer bem camuflada e não teria funcionado. Revelava, acima de tudo, uma
falta de compreensão: os protocolos de diplomacia multilateral e respeito mútuo que
possibilitam a eficácia das organizações multinacionais – assim como as leis que governam as
sociedades democráticas – não se beneficiam do preconceito, da intimidação ou de julgamentos
precipitados.
Quando me encontrei com o presidente Bush em Washington, em março de 2004, tocamos
no assunto da ameaça representada pelo emergente mercado negro nuclear. Mencionei que,
embora A. Q. Khan pudesse ser o líder da rede, estava claro que, pelo menos em alguns casos,
ele não operava sozinho. Por exemplo, no caso do Irã, membros do exército paquistanês talvez
estivessem envolvidos; e no caso da Coreia do Norte, pode ser que Khan estivesse agindo
como parte da cooperação entre Estados .
113

Minha avaliação estava parcialmente baseada em uma carta escrita à mão pelo próprio
Khan, à qual eu tinha tido acesso. Ele havia conseguido enviá-la para fora do Paquistão como
uma espécie de apólice de seguro, para o caso de ser preso pelas autoridades paquistanesas. O
conteúdo revelava que ele fora instruído por altos oficiais do exército paquistanês para que
cooperasse com o Irã e a Coreia do Norte.
Bush concordava com o fato de haver sinais definitivos apontando para a existência de
outros protagonistas no Paquistão. Porém estava claro que o complexo relacionamento entre os
dois países – que incluía a ampla assistência oferecida pelo Paquistão às operações norte-
americanas no Afeganistão – criaria uma situação delicada para que Washington pudesse
exercer uma forte pressão sobre o governo paquistanês.
Esforçando-me para adotar uma abordagem pragmática, concluí que nossa prioridade era
descobrir quem mais havia obtido essa tecnologia por meio da rede de Khan.
Nas semanas seguintes, ampliou-se com rapidez o apoio internacional às novas proibições
contra atores da cena internacional não classificados como Estados, concebidas
especificamente a fim de criminalizar e impedir as atividades clandestinas desempenhadas pela
rede de Khan. Em maio, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 1540, que
requeria dos Estados-membros da ONU a promulgação e a aplicação de leis que tivessem
como alvo os indivíduos que, de alguma forma, contribuíssem para a proliferação das armas de
destruição em massa. A resolução também exigia novos controles domésticos para tornar mais
rígido o acesso às substâncias suspeitas e relacionadas à área nuclear.
Mas nem todas as propostas de Bush tiveram sucesso. Por exemplo, aquela de impedir os
Estados-membros sob investigação de fazer parte do Conselho – um gesto simbólico com a
intenção de impor a humilhação – jamais foi levada a sério. E, nos dois anos seguintes, os
norte-americanos fizeram um lobby junto ao Conselho para que este aprovasse a criação do
comitê especial de salvaguardas. A meu ver, tal comitê teria um papel útil caso se concentrasse
em “formas e maneiras de fortalecer as salvaguardas”, por exemplo, contribuindo para o
aperfeiçoamento dos laboratórios forenses da AIEA, cujo estado era precário. Uma vez criado,
o comitê não teve vida longa. Significativas diferenças entre o Norte e o Sul rapidamente se
mostraram relevantes quanto à justiça e à eficácia do regime de não proliferação. Após uma
série de encontros desnecessários, o Conselho permitiu, nas palavras de um dos embaixadores,
que o comitê “tivesse uma morte discreta e natural”.

O surgimento da rede de Khan – a notícia de que uma autoridade de alto nível do governo
paquistanês estivera no comando de uma rede internacional de contrabando – criou um enorme
constrangimento para Islamabad. O presidente Musharraf não tinha outra escolha senão partir
para a ação. Em 4 de fevereiro de 2004, A. Q. Khan foi obrigado a confessar a uma rede de
televisão estatal que liderava uma rede nuclear internacional ilícita. Mas, já no dia seguinte,
Musharraf o perdoou, fazendo menção aos seus serviços prestados ao Paquistão – embora
Khan fosse mantido em prisão domiciliar até 2009. Para um público de fora do Paquistão, essa
sequência de eventos consistia em um mistério: o que justificava o perdão oficial e imediato
para o homem que, sozinho, arquitetou a proliferação nuclear em tão grande escala?
Musharraf não podia se permitir uma postura excessivamente crítica. O status de Khan
como herói nacional – a percepção de que Khan dera uma imensa contribuição à segurança
nacional do país ao ajudar Islamabad a construir uma instalação nuclear equiparável à da Índia
– garantiu-lhe a condição de imunidade em um possível processo penal. É também bastante
provável que Khan tivesse implicado outras pessoas dentro do governo do Paquistão. Houve
grande especulação sobre até que ponto o governo sabia das atividades de Khan, e em que
medida ele recebia o apoio de outras autoridades, militares ou do governo. Há registros de que,
em determinada ocasião, ele utilizou aviões do governo paquistanês para transportar
equipamentos de natureza nuclear a clientes não paquistaneses . Seu estilo de vida dispendioso
114

deixava claro que sua renda estava muito acima do salário que recebia do governo, uma
indicação direta de suas atividades extraoficiais. E reportagens indicavam que o Escritório
Contábil Nacional do Paquistão acumulara informações sobre ele em um extenso dossiê, mas
preferira não fazer nada a respeito .
115

À medida que a agência aprofundava sua compreensão sobre a natureza da rede de Khan,
também ficamos sabendo sobre a estratégia “observar e esperar”, empregada pelos serviços de
inteligência ocidentais. Autoridades norte-americanas afirmaram que sempre souberam das
atividades de Khan, mas preferiram ignorar o fato. Se for verdade, isso invalida a alegação dos
EUA de que a descoberta das armas de destruição em massa na Líbia foi uma conquista dos
serviços de inteligência. Ruud Lubbers, ex-primeiro-ministro holandês, afirmou que os
holandeses tentaram prender Khan já em 1970, e a CIA lhes teria dado ordens para não fazê-lo.
Essa informação foi ratificada por outras fontes. Seymour Hersh, em reportagem na revista
New Yorker em março de 2004, reproduz a fala de um alto funcionário do Serviço de
Inteligência: “Há 15 anos, tivemos todas as chances de dar um fim à rede de A. Q. Khan.
Algumas das pessoas hoje envolvidas no contrabando são os filhos daqueles que conhecemos
nos anos 1980. Já é a segunda geração” . Robert Einhorn, que ocupou o cargo de secretário-
116

assistente norte-americano para a não proliferação entre 1991 e 2001, deu uma declaração
semelhante tempos depois: “Poderíamos ter dado um fim à rede de Khan, nos moldes como a
conhecíamos, a qualquer momento. A questão era: damos um fim a ela agora ou passamos a
observá-la para compreendê-la melhor, de modo que estejamos mais preparados para arrancar
suas raízes mais tarde? A segunda opção prevaleceu” . 117

“Você é capaz de me dizer o que ganhamos com isso?”, senti vontade de perguntar. Onde
estavam os grandes peixes que deveriam estar prontos para ser pescados? De que modo a
AIEA poderia obter progresso contra a proliferação nuclear se informações vitais nos eram
sonegadas? Os Estados Unidos – e o Reino Unido, ou outros países que sabiam das operações
de A. Q. Khan – não eram capazes de reconhecer a sua obrigação, como membros do TNP, de
informar a AIEA sobre essas negociações clandestinas? E, o mais importante: não teria sido
muito mais sensato interromper os programas clandestinos do Irã, da Líbia e de outros países
ainda em sua fase inicial?
Fossem quais fossem as circunstâncias ou os argumentos usados na época, a decisão de
observar e esperar foi um erro magistral. Um dos sinais de que o tiro saiu pela culatra foi que
tal estratégia acabou alertando membros da rede. Entrevistas feitas com intermediários indicam
que, pelo menos em alguns casos, eles ficaram sabendo, durante algum tempo, que estavam
sendo vigiados. Isso lhes permitiu destruir um grande número de provas, o que, por sua vez,
dificultou a tarefa da AIEA e de outros investigadores de definir com clareza as dimensões da
rede, incluindo a identidade de seus outros clientes.
Khan tinha outros clientes? Robert Gallucci referiu-se a A. Q. Khan como o Johnny
Appleseed do enriquecimento nuclear devido ao seu papel na disseminação da tecnologia de
118

centrífugas em uma grande área territorial. As viagens de Khan o levaram ao Oriente Médio e à
África. Em grande parte dos casos, há poucos registros sobre o que ocorreu nesses locais.
Porém, os boatos persistem e, às vezes, surgem sinais inquietantes.
Quando visitei um dos países do Golfo, em 2004, por exemplo, um importante membro da
família real me disse que Khan tentara lhes vender hardware nuclear durante dois anos. O
governo fingiu ter interesse, enviando um agente para tentar obter informações sobre as
negociações da rede com o Irã. Outros países apresentaram relatos semelhantes. É muito
provável que variações dessa história tenham ocorrido em diversos locais. Não é provável que,
diante de tal oportunidade, alguns clientes tenham ido além de uma simples olhada nas
vitrines?
O pior de meus pesadelos é que a capacidade dessa rede de produzir materiais,
equipamentos nucleares e know-how, disponibilizando-os a qualquer um com dinheiro vivo em
mãos, pode ter levado à criação de uma pequena operação de enriquecimento numa área
remota, por exemplo, o norte do Afeganistão . Tendo em vista a crescente sofisticação
119

tecnológica dos grupos extremistas, isso não pode mais ser considerado um conto de fadas
macabro.
A morte de A. Q. Khan talvez tenha privado a rede de operações de seu mentor, mas não há
nenhuma garantia de que a organização não é mais capaz de suprir outros clientes que
manifestem interesse. Como foi observado por Sam Nunn: “Quando se constatam o tipo de
dinheiro e os riscos envolvidos e a disseminação desse tipo de tecnologia pelo mundo afora”, a
oferta de uma arma nuclear passa a ser virtualmente inevitável . Abdul Qadeer Khan dedicou
120

sua vida inteira a proporcionar oportunidades iguais aos países muçulmanos quanto às armas
nucleares, e estabelecer uma relação de igualdade, em termos de segurança, com o programa
armamentista de Israel e, nesse processo, ganhar dinheiro. Talvez ainda leve algum tempo para
que esse bazar nuclear seja erradicado.
Essa história tem uma tripla moral. Primeiro, como já foi ilustrado pelo papel de Israel no
Oriente Médio e pelo papel da Índia no sul asiático, proliferação gera proliferação. Em
segundo lugar, embora os controles de exportação devam ser significativamente mais rígidos,
eles não podem mais ser considerados uma solução: a tecnologia já ultrapassou a fronteira dos
laboratórios. E, por último, enquanto existirem armas nucleares que conferem poder e prestígio
àqueles que as detêm, continuaremos a nos deparar com a proliferação, particularmente em
países e regiões que se sentem ameaçados.
106 Uma bomba suja é um aparato bastante distinto de uma arma nuclear. Oficialmente chamada de “aparato de dispersão
radiológica”, consiste em explosivos convencionais embalados com material nuclear ou radioativo. Pelo fato de envolver um
processo de produção muito mais simples do que uma arma nuclear, e também porque o material radioativo é, em geral, menos
bem protegido do que o material nuclear classificado como arma, é muito mais alta a probabilidade de que terroristas a usem do
que uma arma nuclear. Alguns especialistas se surpreendem de que uma bomba suja ainda não tenha sido usada.

107 Sigla em inglês de “empresa de enriquecimento de urânio”.

108 A Scope – sigla de Scomi Precision Engineering – é uma subsidiária do grupo Scomi, empresa industrial de serviços de
petróleo. A principal atividade da Scope era produzir componentes que exigiam maquinário de alta precisão (corte, torneamento,
moagem etc.) para veículos e outros produtos na área de engenharia.

109 As autoridades eram do Conselho pela Não Proliferação de Armas de Destruição em Massa, uma agência do governo da
África do Sul.

110 Em 1993, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 48/75L, que exigia a negociação de um tratado multilateral para
proibir a produção de materiais físseis na produção de armas. As negociações continuam paralisadas na Conferência sobre o
Desarmamento, em Genebra.

111 A Iniciativa de Segurança contra a Proliferação (PSI) é um programa multinacional liderado pelos EUA que visa à interdição
dos navios suspeitos de transporte de substâncias nucleares. Embora muitos países tenham aderido a ela, a PSI não se encontra
sob os auspícios da ONU, como se esperaria de uma iniciativa que confere a si mesma a autoridade sobre assuntos governados
pela lei marítima internacional.

112 Entre 2001 e 2005, Joseph trabalhou ao lado de Condoleezza Rice no Conselho de Segurança Nacional, no cargo de diretor-
sênior para Estratégias de Proliferação, Antiproliferação e Defesa Nacional. Teve profundo envolvimento com Bolton no
desenvolvimento da Iniciativa de Segurança contra a Proliferação e nas negociações a fim de persuadir a Líbia a renunciar às suas
armas de destruição em massa.

113 Tendo em vista que o Paquistão não é membro do Tratado de Não Proliferação Nuclear, tampouco membro do Grupo de
Fornecedores Nucleares (que orienta o controle de exportações), não é obrigado a cumprir as obrigações impostas por nenhum
dos dois.

114 Douglas Frantz, “From Patriot to Proliferator”, Los Angeles Times, 23/9/2005.

115 Ibid.

116 Seymour M. Hersh, “The Deal”, New Yorker, 8/3/2004.

117 Robert Einhorn, citado por Douglas Frantz em: “A High-Risk Nuclear Stakeout”, Los Angeles Times, 27/2/2005.
118 John Chapman (1774 –1845) ficou conhecido como Johnny Appleseed (Johnny Semente de Maçã, em português) por ter
desbravado as terras secas do Centro-Oeste dos EUA semeando sementes de maçã e disseminando o protestantismo. Tornou-se
um grande herói lendário no país. (N. dos TT.).

119 Mencionado por Hersh, em “The Deal”.

120 Steve Coll, “The Atomic Emporium: Abdul Qadeer Khan and Iran’s Race to Build the Bomb”, New Yorker, agosto de 2006.

8 • De Viena a Oslo

No verão de 2004, quando meu segundo mandato como diretor da AIEA estava prestes a
terminar, eu estava inclinado a não tentar a reeleição, apesar do apoio de grande parte dos
Estados-membros. Esse cargo envolvia um estresse considerável, e minha família preferia que
eu renunciasse a ele. Foi quando houve a interferência dos EUA.
Fui levado a crer que, no caso de eu decidir me candidatar a um terceiro mandato, os
Estados Unidos respeitariam minha decisão. Em agosto, em minha casa de veraneio no Egito,
pediram que eu aguardasse um telefonema de Colin Powell, que confirmaria tal posição. Essa
manifestação de apoio não era tão surpreendente assim. Nos meses anteriores, havia ocorrido
uma série muito otimista de encontros com autoridades norte-americanas, um deles com o
próprio Bush.
Porém, não houve nenhum telefonema. Pouco depois de eu ter retornado a Viena, soube por
intermédio de David Waller que a postura dos EUA havia mudado. “Acabo de voltar de
Washington”, disse ele, “precisamos conversar.” Ao caminhar ao lado de David no Belvedere
Park, em frente à minha casa, ele me contou que John Bolton lançara uma campanha com o
objetivo de bloquear minha reeleição, invocando o raramente usado limite de dois mandatos
para o exercício de cargos de direção em agências da ONU. Bolton acrescentou que, se eu
concordasse em renunciar, os Estados Unidos expressariam seu caloroso reconhecimento pelo
trabalho que eu desenvolvera nos últimos oito anos.
Fiquei furioso. Ideologicamente falando, Bolton era o meu oposto, um adepto da política
externa “nós contra eles”; ele se opunha à diplomacia multilateral e operava sistematicamente
nos bastidores no sentido de colocar a AIEA em descrédito, frequentemente barrando esforços
que pudessem solucionar de modo pacífico as questões de proliferação nuclear. Empenhava-se
em minar tudo aquilo que eu defendia. Era inaceitável que ele ousasse determinar se eu seria
ou não candidato a um terceiro mandato. Não pude deixar de notar a ironia: os Estados Unidos,
que me deram apoio em meu primeiro mandato como diretor-geral, contrariando a preferência
pelo candidato do Egito, estavam agora pedindo minha saída1.
Naquela noite, conversei sobre isso com Aida, minha esposa. Rapidamente chegamos ao
consenso de que eu deveria, sim, me candidatar à reeleição. Se eu vencesse, isso significaria a
reivindicação de uma diplomacia multilateral e a clara autorização para que eu pressionasse a
fim de obter uma solução negociada no Irã e em outros locais problemáticos. Se perdesse,
ainda assim eu teria resistido à intimidação dos EUA. Na manhã seguinte, escrevi ao presidente
do Conselho da AIEA, anunciando minha candidatura à reeleição.

A tempestade começou quase imediatamente depois que anunciei minha decisão. Em setembro
de 2004, os norte-americanos tentaram apresentar uma emenda ao projeto da resolução sobre o
Irã, a fim de retirar a declaração-padrão de apreço, que fazia referência à agência como
“profissional e imparcial”. Aos olhos de um observador externo, isso poderia parecer
insignificante, mas nos círculos diplomáticos significava um insulto declarado. Peter Jenkins, o
embaixador britânico, me disse que considerava a medida “drástica e insignificante”.
Os Estados Unidos começaram, então, a busca de um candidato para concorrer comigo. O
Brasil foi consultado sobre a possibilidade de apresentar a candidatura de Sérgio de Queiroz
Duarte, alto representante da ONU para Assuntos de Desarmamento2. Consultaram a
Argentina quanto a Roberto Garcia Moritan, subsecretário do ministro das Relações Exteriores.
Sondaram o Japão em relação a Shinzo Abe, seu ex-embaixador em Viena. Pressionaram tanto
a Austrália quanto a Rússia para que apoiassem Alexander Downer, o ministro das Relações
Exteriores australiano. Tais solicitações não deram em nada, então os norte-americanos fizeram
um pedido formal aos europeus para que se juntassem a eles e pedissem ao Conselho da AIEA
para adiar o prazo de apresentação das candidaturas até o fim de dezembro. Os europeus
recusaram.
A campanha pela minha deposição adotou uma nova tática. Em novembro de 2004, perto da
época da reeleição de George Bush nos EUA, foi divulgada uma notícia sobre explosivos
desaparecidos em Al-Qa’qaa, no Iraque3. Seguiu-se a ela uma enxurrada de informações
desencontradas. Fabricou-se uma história sobre um programa clandestino de armas nucleares
que eu estaria tentando esconder. Outro artigo afirmava que Blix e eu tínhamos contas
bancárias secretas na Suíça, como “retribuição” pelo trabalho que realizamos no Iraque antes
da guerra. Outro, ainda, dizia que o Irã havia depositado mais de 600 mil dólares na conta
bancária de Aida na Suíça e me presenteado com tapetes persas, no valor de 50 mil dólares a
unidade.
Conforme noticiou Dafna Linzer, no Washington Post, meus telefones foram grampeados
numa tentativa de encontrar informações que pudessem me levar ao descrédito4. E não foi a
primeira vez: já tínhamos tido provas da interceptação de mensagens de texto de celulares da
AIEA, e também de conversas telefônicas. Mas dessa vez a notícia era veiculada por uma fonte
confiável5.
Fui informado de que a pista sobre os grampos havia vazado para o Washington Post por
indivíduos da CIA insatisfeitos com as ações de determinados membros do Departamento de
Estado. Isso não me causava espanto: entre meados de 2004 e meados de 2005, recebemos
cópias de memorandos, briefings e outras informações transmitidas em caráter confidencial por
funcionários do Departamento de Estado, a quem desagradava o comportamento arrogante e
insidioso de alguns indivíduos.
No final, os norte-americanos acabaram isolados em sua oposição à minha candidatura. Os
quatro países que normalmente seguem a sua liderança – Austrália, Canadá, Japão e Reino
Unido – se mantiveram, durante certo tempo, a distância dos acontecimentos, afirmando,
reservadamente, que me apoiavam, mas evitando dar qualquer declaração pública a fim de não
criar constrangimentos ou isolar os Estados Unidos.
Uma semana antes da sessão em que o Conselho da AIEA tomaria sua decisão, fui
convidado a uma reunião em Washington com Condoleezza Rice, na época secretária de
Estado. Com certa hesitação, decidi fazer a viagem. Em nosso encontro, ela e Steve Hadley,
que a substituiu no cargo de consultor sobre Segurança Nacional, não fizeram nenhuma
menção à situação pendente de minha reeleição ou à tentativa dos EUA de impedi-la,
restringindo nossa conversa a um assunto mais à mão: o programa nuclear iraniano e a
convicção norte-americana de que o Irã deveria ser impedido de colocar em prática qualquer
uma das etapas do ciclo de combustível. Quando mencionei a necessidade de medidas que
pudessem preservar a imagem do Irã com respeito ao seu programa de enriquecimento, Hadley
me interrompeu: “O Irã não pode ter nem uma centrífuga sequer em atividade”. Dali em diante,
essa declaração tornou-se um mantra para os EUA.
Somente mais tarde, quando Condoleezza e eu estávamos a sós, ela abordou o assunto de
minha reeleição. Segundo ela, a postura norte-americana em relação ao meu terceiro mandato
não tinha nada de pessoal, era apenas a aplicação sistemática da política dos EUA que
presumia dois mandatos para diretores de agências da ONU. No fundo, sabíamos que isso não
era verdade, mas também percebi que Condoleezza e Hadley estavam tentando se distanciar de
algumas das gafes diplomáticas de John Bolton. Ouvi dizer que ela, ao adotar uma nova
postura, recusou-se a manter Bolton no Departamento de Estado. Em vez disso, ele foi
nomeado diretamente por Bush como embaixador dos EUA na ONU – o mais escandaloso
descompasso entre qualificações profissionais e um cargo da história da diplomacia, ou então,
na época, a mais coerente expressão do estilo norte-americano de abordar o multilateralismo.
Não dissemos mais nada. Compreendi que o encontro com Condoleezza representava uma
mudança e que os Estados Unidos se juntariam, por fim, aos demais Estados-membros na
decisão que eles tomassem.
Eu sorri. “Devemos esquecer nossas desavenças do passado”, disse a Condoleezza. “Não há
necessidade de falar sobre histórias passadas.” Poucos dias depois, fui reeleito, por
unanimidade, para um terceiro mandato.
Depois de uma exaustiva temporada, a agência recebeu o mais revigorante dos presentes.
Era a manhã do dia 7 de outubro de 2005, e eu decidira ficar em casa em vez de ir ao escritório.
No final da manhã, eu ainda estava de pijama. Acabara de voltar de uma viagem cansativa, mas
isso nunca tinha sido motivo para que eu faltasse ao trabalho. A razão para isso acontecer foi
algo muito diferente.
Pelo segundo ano consecutivo, corriam boatos desenfreados de que a AIEA e eu éramos
favoritos na eleição para o Prêmio Nobel da Paz. Em 2004, os boatos circularam com tamanha
frequência que nossos profissionais no setor de comunicação começaram a cuidar dos
preparativos caso precisássemos lidar com a imprensa. No dia do anúncio, eu estava no Japão,
para um encontro com o ministro da Economia japonês. Ao chegar ao encontro, havia cerca de
50 cameramen à espera do anúncio que seria feito pelo comitê do Nobel. No meio da reunião,
Ian Biggs, meu assistente, deixou a sala. Alguns minutos depois, retornou e me passou um
bilhete com o nome da escolhida: Wangari Maathai. Quando eu deixei a sala de reuniões, havia
apenas um cameraman no lado de fora, que me abordou e disse, de um modo bastante gentil:
“Sinto muito”.
Naquele ano, evitei falar sobre o assunto com qualquer um da agência. Disseram-me, depois,
que ninguém estava lançando mau agouro em nossa candidatura. Naquela sexta-feira, eu não
estava disposto a aguentar uma reunião inteira com todos olhando constantemente para o
relógio, sobretudo porque, na véspera, os estabelecimentos de apostas elevaram repentinamente
nossas chances de vencer.
O anúncio estava previsto para as 11h da manhã. Por hábito, o comitê do Nobel telefona
para o vencedor com meia hora de antecedência. Às 10h45, meu estômago já havia parado com
as reviravoltas, e eu estava em paz com o fato de o comitê ter escolhido outra pessoa. Quando
Aida entrou no escritório para assistir ao anúncio na TV, me juntei a ela, curioso.
Mesmo em norueguês, reconheci o nome: “Det Internasjonale Atomenergibyrået”, seguido
de “Mohamed ElBaradei”. Fiquei ali parado, sem botar muita fé; então, quando foi dita a
tradução em inglês, Aida e eu nos abraçamos em meio a lágrimas6.
Em menos de um minuto, nossos telefones não paravam de tocar. Primeiro, meu irmão Ali,
ligando do Cairo, dizendo que estava grudado na TV. A seguir, minha secretária, Monika
Pinchler, ligando do escritório para dizer que o embaixador norueguês e seu vice estavam lá
com um buquê de flores7. O embaixador foi o único a ser informado com antecedência pelo
comitê do Nobel. Convidei-os a vir à minha casa. Em meio àquela enxurrada de telefonemas e
ao meu estado emocional, era tudo o que eu podia fazer para me recompor.
Após uma coletiva de imprensa organizada às pressas na AIEA, fiz um discurso de
improviso aos funcionários da agência, que se aglomeravam na sala do Conselho. O clima era
de enorme excitação: lágrimas, risos e ondas periódicas de aplausos. Dizer que estávamos
todos eletrizados e orgulhosos não é, nem de longe, o bastante para descrever a grandeza
daquele momento. Não tenho, nesta vida, a expectativa de passar novamente pela experiência e
alegria que é compartilhar uma declaração tão extraordinária: colegas meus, vindos de mais de
90 países, haviam feito um grande esforço coletivo para tornar o planeta mais seguro – o
prêmio representava o resultado do esforço coletivo da instituição, de 40 anos trabalhando pelo
bem comum.
As infindáveis manifestações de apoio rapidamente viraram uma avalanche. E-mails
entupiam minha caixa de entrada. Cartas se amontoavam em pilhas: funcionários da sala de
correspondências da AIEA precisaram de grandes sacos de supermercado para acomodar tantas
cartas. Particularmente emocionante em relação a essas mensagens é que elas vinham de
pessoas de todos os estilos, de todas as idades, etnias, religiões, de chefes de Estado a
estudantes. Um grupo de freiras italianas escreveu prometendo orar pelo nosso futuro.
Trezentas crianças espanholas de Fuenlabrada, no subúrbio de Madri, enviaram cartas
individualmente nos parabenizando8. Cidadãos egípcios de todas as origens e classes sociais
escreveram para expressar seu orgulho. Essa generosa demonstração de afeto é capaz de nos
tornar humildes e ao mesmo tempo ser imensamente inspiradora.
Senti a enorme responsabilidade, em meu discurso acadêmico, de transmitir minha
compreensão em relação à proliferação nuclear – como parte de um contexto muito mais amplo
de desigualdades globais e da busca por segurança. Há algum tempo venho tentando, discurso
após discurso, articular as conexões: a espiral negativa da sociedade teve início com a pobreza
e a desigualdade; tudo isso muito frequentemente era aliado à má administração, à corrupção e
ao abuso dos direitos humanos, o que, por sua vez, criava um terreno fértil para o extremismo,
a violência, as guerras civis, e, em alguns casos, em áreas de conflitos não resolvidos, a
tentação, da parte de alguns, de projetar uma imagem de poder ou de obter segurança mediante
a aquisição de armas de destruição em massa.
Laban, meu assistente de comunicações e responsável pela redação de meus discursos, e
Melissa Fleming, a porta-voz da agência, me disseram que o sentido exato de meus discursos
não estava sendo percebido por meus ouvintes, embora eles pudessem compreender a lógica de
minha fala. As conexões, do modo como eu as enxergava, existiam, mas eu não estava sendo
capaz de me comunicar. Precisava de algo mais concreto: uma imagem que pudesse captar a
mensagem.
Encontrei a resposta ao começar a refletir sobre como empregaria o dinheiro que
acompanhava o reconhecimento do Nobel. O prêmio foi conferido em conjunto, a mim,
diretor-geral, e à AIEA. A premiação totalizava pouco mais de 1 milhão de euros. O Conselho
da AIEA havia decidido que metade do dinheiro seria destinada ao tratamento do câncer e ao
combate à desnutrição infantil em países em desenvolvimento. Decidi que minha parcela do
prêmio seria destinada a uma causa que eu conheço desde criança: a necessidade de assistência
aos órfãos do Cairo. Minha cunhada estava diretamente envolvida com os orfanatos da cidade;
ela poderia verificar que os recursos fossem bem usados.
Eis a imagem de que eu precisava como tema para o meu discurso, na entrega do Nobel:
“Minha cunhada”, escrevi,

trabalha para um grupo que apoia orfanatos no Cairo. Ela e seus colegas cuidam de crianças abandonadas em circunstâncias
adversas. Eles as alimentam, vestem-nas e as ensinam a ler. Na Agência Internacional de Energia Atômica, meus colegas e
eu trabalhamos para que as substâncias nucleares sejam mantidas fora do alcance dos grupos extremistas. Inspecionamos
instalações nucleares em todo o mundo para garantir que atividades nucleares com fins pacíficos não sejam usadas como
disfarce para programas de produção de armas. Minha cunhada e eu, seguindo caminhos distintos, estamos trabalhando em
prol do mesmo objetivo: a segurança da família.

A busca pela segurança, argumentei, era a motivação por trás de inúmeros esforços. Porém,
pelo fato de nossas prioridades sociais terem sido invertidas, algumas nações gastam mais de
um trilhão de dólares anuais em armamentos, enquanto dois quintos da população terrestre
vivem com menos de 2 dólares por dia, e quase um bilhão de pessoas sente fome ao ir para a
cama todas as noites. As inseguranças levaram o mundo a um completo engano. Não era mais
possível sustentar tal modelo. “Hoje”, escrevi,

com a globalização nos aproximando cada vez mais, se optarmos por ignorar as inseguranças que nos afligem, elas
brevemente se transformarão nas inseguranças de todos. Da mesma forma, com o avanço da ciência e da tecnologia,
enquanto optarmos pela dependência das armas nucleares, continuaremos correndo o risco de que essas mesmas armas se
tornem cada vez mais atraentes.

Não era minha intenção terminar o discurso em um tom sombrio. Foi de Aida a sugestão de
concluir com um convite a um futuro melhor:

Imaginem o que aconteceria se as nações do mundo dedicassem ao desenvolvimento a mesma quantia que é gasta na
produção de máquinas de guerra. Imaginem um mundo no qual cada ser humano possa viver com liberdade e dignidade.
Imaginem um mundo em que todos derramem as mesmas lágrimas quando uma criança morre em Darfur ou em
Vancouver. Imaginem um mundo no qual nossas diferenças sejam resolvidas por meio da diplomacia e do diálogo, em vez
de bombas e armas. Imaginem se as únicas armas nucleares remanescentes fossem as relíquias de nossos museus.
Imaginem o legado que deixaríamos para os nossos filhos. Imaginem que um mundo assim está ao nosso alcance.

Chamar a cerimônia de Oslo de experiência inesquecível seria minimizá-la de maneira


brutal. O calor humano da recepção dos noruegueses e da família real foi impressionante. É
uma coisa extraordinária presenciar toda a capital do país interrompendo suas atividades,
durante três dias ao ano, a fim de celebrar a paz – de recitais de poesia e peças de teatro escritas
e encenadas por crianças e adolescentes, até o Concerto do Prêmio Nobel da Paz, transmitido
para mais de cem países diretamente da Oslo Spketrum Arena. Para mim, uma experiência
marcante foi caminhar pelo Museu do Nobel, onde pude ver as imagens daqueles que me
precederam, também laureados pelo prêmio.
Eu ainda estava nervoso quando me pediram para escrever no Livro do Nobel, onde há
textos de todos os contemplados. “Precisamos mudar nossa mentalidade”, escrevi. “Precisamos
compreender os valores comuns que partilhamos. Precisamos compreender que a guerra e a
força não poderão resolver nossas diferenças ou nos fazer caminhar na direção da paz. Somente
por meio do diálogo e do respeito mútuo poderemos evoluir como uma única família.” (Quis o
destino que eu escrevesse a palavra “família” com dois “eles”, um lapso pelo qual Aida zomba
de mim até hoje.)
No plano pessoal, aqueles poucos dias foram intensos. Minha família estava comigo –
esposa, mãe, filhos, irmãos e irmãs – e também amigos e colegas da agência e outros amigos
próximos. Minha mãe, como sempre, me fez sorrir. No Cairo, quando o anúncio foi feito, em
outubro, o grande assédio da mídia egípcia e internacional atingiu sua casa, onde minha família
estava reunida. Ela tornou-se uma celebridade instantânea, falando sobre minha infância com
lágrimas nos olhos. Em Oslo, apesar de seus 80 anos, ela circulava feliz de um evento a outro.
Ao ser conduzida do local da cerimônia para o hotel na limusine, acompanhada de escolta de
batedores da polícia, anunciou: “Isso parece um sonho. Me sinto uma rainha”.

A premiação do Nobel foi um momento determinante – não apenas pessoalmente, mas em um


sentido mais amplo, como reconhecimento público pelo trabalho da agência, trazendo à
Secretaria da AIEA, consequentemente, um sentimento de integração e orgulho. Em suas
reportagens de rotina, a mídia centrou o foco apenas em uma pequena parcela de nosso
trabalho – o papel dos inspetores de armas em alguns locais críticos – quando, na verdade,
verificávamos, ano após ano, mais de 900 instalações em 70 países. O teor do discurso feito na
entrega do prêmio deixava claro que o valor da AIEA não se limitava às atividades de
verificação de salvaguardas – o trabalho de apenas um dos departamentos –, mas também
incluía o nosso empenho em promover o uso seguro da energia nuclear em aplicações
pacíficas: na medicina, para o combate de doenças cardíacas, na hidrologia isotópica, para
localizar e administrar lençóis freáticos, ou na plantação de folhas de cevada que prosperam
nos Andes. O repentino crescimento da conscientização sobre o nosso trabalho – que tem
contado com uma mão de obra bem diversificada, originária de um espectro complexo de
culturas e perfis de natureza cultural, educacional e profissional – solidificou internamente a
convicção da organização de que todas as partes da agência trabalhavam em prol de um
objetivo comum.
Um segundo benefício foi o acesso que se tornou possível com uma maior visibilidade de
nosso trabalho. A missão realizada pela AIEA no Iraque, antes da invasão do país em março de
2003, colocou a agência sob os holofotes internacionais, transformando-a em uma das
instituições globais mais conhecidas. Porém a premiação do Nobel foi acompanhada de uma
expansão exponencial não apenas em termos da atenção da mídia – uma invejável lista de
convites em caráter permanente, feitos por veículos da imprensa em todo o mundo –, mas
também quanto à nossa capacidade de moldar nossas mensagens e transmiti-las ao nosso
público. Passamos a ter acesso sem precedentes a líderes políticos e de outras áreas, em todos
os continentes; conversas que habitualmente ocorriam em um nível de ministério passaram a
acontecer com chefes de Estado. Para a agência, as normas haviam sido redefinidas.
O reconhecimento do Nobel também deixou clara a importância da independência da AIEA
e, sob alguns aspectos, reforçou-a. Na condição de diretor-geral, eu me senti muito mais imune
a acusações de ter agido de modo tendencioso ou brando e aos indivíduos dispostos a
questionar minha integridade. Também usei esses holofotes para chamar a atenção para os
limitados recursos financeiros da agência, que restringiam nosso potencial tecnológico e, com
isso, ameaçavam nossa independência. Por exemplo, para buscar instalações nucleares não
declaradas, não poderíamos nos basear unicamente em imagens de satélite encaminhadas para
nós, selecionadas por dois ou três Estados-membros; precisávamos de recursos financeiros para
selecionar e adquirir nossas próprias imagens. Da mesma forma, precisávamos fortalecer a
capacidade nuclear forense de nossos laboratórios, em vez de dependermos – como acontecia
com os tipos de análises mais sensíveis de partículas de fissão – de um único laboratório
operado pela Força Aérea dos EUA. Passei a dar maior visibilidade pública à necessidade da
AIEA de consolidar a sua independência, conferindo-lhe maior autoridade jurídica, maior
capacidade tecnológica e apoio financeiro.
O Prêmio Nobel da Paz não fez diminuir, de modo algum, os imensos desafios que
enfrentamos no passado. Pelo contrário: ele certamente nos fortaleceu, renovando nossa
determinação de enfrentar outros obstáculos que se colocarão à nossa frente.
NOTAS

1 Na época de minha primeira eleição para o cargo de diretor-geral, em 1997, o Egito apoiou Mohamed Shaker, embaixador
egípcio no Reino Unido e amigo íntimo da família do então presidente Hosni Mubarak.

2 Na época, Duarte era o embaixador itinerante do Brasil para Assuntos de Desarmamento e Não Proliferação. Também ocupou o
cargo de embaixador na AIEA.

3 A história completa do incidente e suas consequências são relatadas no capítulo 4.

4 “IAEA Leader’s Phone Tapped”, 12/12/2004.

5 Repórteres da Reuters afirmaram, posteriormente, que diplomatas ocidentais lhes mostraram supostas transcrições de conversas
telefônicas interceptadas entre mim e o embaixador iraniano na AIEA. “Rice on WikiLeaks Spy Charges: We’re Just Diplomats”,
Lou Charbonneau, Reuters, 29/11/2010.

6 Naquela época, meu filho Mostafa trabalhava como diretor de estúdio no escritório da CNN, em Londres. Estava no meio do
expediente quando a notícia foi divulgada. Ele nos enviou uma mensagem pelo celular, com três palavras: “Oh, meu Deus!”, e
então fez uma pausa de dez minutos para se recompor. Mais tarde, nos revelou que tinha uma cédula de 50 libras no bolso e a
entregou ao primeiro mendigo que encontrou. Minha filha Laila, que também morava em Londres, estava no metrô, a caminho de
seu escritório de advocacia. Saiu da estação e percebeu que havia 30 mensagens na caixa postal de seu celular, então teve certeza
de que algo terrível estava acontecendo – até que conseguiu falar com seu irmão.

7 Posteriormente, o comitê do Nobel disse que, se eles tivessem telefonado para a AIEA, a notícia vazaria imediatamente. O
embaixador afirmou que também havia comprado um enorme buquê no ano anterior.

8 Dois exemplos: De Javier, 7 anos: “Ouvimos dizer que muitos espanhóis estavam dando apoio a vocês, assim os seus
inspetores teriam mais tempo e não haveria mais guerra no Iraque. É por isso que ficamos tão felizes com o seu Prêmio Nobel da
Paz, e esperamos que vocês continuem lutando pela paz no mundo. Parabéns!”; De Alicia, 12 anos: “Sou totalmente contra a
guerra, e agradeço muito a vocês por seus esforços para evitá-la no Iraque. Apesar de a estratégia de vocês não agradar
completamente aos EUA, vocês souberam mostrar firmeza ao afirmar que não havia armas nucleares no Iraque, ainda que
atraíssem, com isso, o ódio do país mais poderoso. Espero que no conflito com o Irã vocês tenham mais sorte e que as coisas
sejam solucionadas com o uso do diálogo, e não com armas. E que os políticos dos EUA aceitem as opiniões da ONU, e que não
façam sempre como quiserem para conseguir ganhos econômicos. Desejo sorte a vocês, e que continuem usando a sua principal
arma: o diálogo. Com afeto...”.

9 • Irã
“NEM UMA CENTRÍFUGA SEQUER”

Em janeiro de 2006, as complicadas e cambaleantes negociações entre a comunidade


internacional e o Irã, em relação ao programa nuclear do país, chegaram a um impasse. A
proposta europeia de ajuda e assistência tecnológica em troca da interrupção do
desenvolvimento nuclear foi considerada um insulto – na linguagem empregada – e pífia
quanto aos benefícios que oferecia, não sendo capaz de reconhecer as necessidades iranianas
nas áreas da segurança e da política. No momento em que cessaram as conversas sobre tal
proposta, o Irã retomou sua conversão de urânio, interrompendo a suspensão voluntária das
atividades nucleares. Isso levou o Conselho da AIEA a condenar o “descumprimento” das
obrigações do país com o TNP.
Não se viam progressos palpáveis no horizonte: o Irã agia de modo ousado; os preços do
petróleo estavam altos; a China dependia do petróleo e do gás iranianos; e a Rússia, que ainda
construía o reator em Bushehr, preocupava-se em manter as boas relações com o país.
Assim, o Irã assumiu um risco calculado, informando à AIEA, em 3 de janeiro, sua intenção
de dar um passo adiante, na retomada da pesquisa e do desenvolvimento do enriquecimento de
urânio. O país enviou uma carta à agência, solicitando a remoção dos lacres da usina de
Natanz.
O tamanho e a extensão desse risco estavam em iniciar as operações de uma pequena cascata
de enriquecimento na usina-piloto. Os iranianos não imaginavam que o Conselho de Segurança
lhes imporia sanções adicionais por causa dessa pequena operação-piloto. De qualquer modo, o
enriquecimento para fins pacíficos era um direito, de acordo com o TNP; a suspensão sempre
foi caracterizada como um ato voluntário de boa vontade, a fim de facilitar as negociações.
Tendo em vista que a maior parte do “descumprimento de normas” por Teerã havia sido
reparada nos últimos dois anos, e que sua pequena operação de enriquecimento era, afinal de
contas, legítima, era muito pouco provável que o Conselho de Segurança adotasse alguma
medida. Até onde eu podia compreender, os iranianos tinham a confiança de que não haveria
repercussão negativa, que as negociações com os europeus seriam retomadas e que eles
concordariam com uma moratória sobre o enriquecimento em escala industrial.
Os russos, por sua vez, tiveram o mérito de tentar fazer as partes chegarem a um meio-
termo, propondo que fosse permitido ao Irã realizar um pequeno programa de pesquisa e
desenvolvimento de 30 a 40 centrífugas, cuja especificidade seria determinada em consultas
com a AIEA. Os norte-americanos, contudo, mostravam-se intransigentes em relação a
qualquer acordo nesse sentido, e o Irã não endossou a proposta abertamente. Assim, os russos
retiraram a sugestão.
Em minha avaliação, a proposta russa era significativa e poderia ter indicado uma saída para
o nosso impasse. Foi o que eu disse a Bob Joseph, o substituto de Bolton, durante sua visita a
Viena. Pouco depois, Condoleezza Rice telefonou-me no hotel em Davos. “Nossos caminhos
parecem ter bifurcado desde que nos encontramos pela última vez”, disse ela, em um tom
pouco amistoso. Ela insinuou que eu estava dando apoio ao programa de pesquisa e
desenvolvimento iraniano, legitimando, com isso, o processo de enriquecimento conduzido
pelo país. Respondi a ela que não assumi nenhuma posição pública sobre o assunto, mas
acreditava que os benefícios da proposta russa eram muito maiores do que os custos, por duas
razões. Primeiro, era essencial que o Irã continuasse a implementar seu Protocolo Adicional.
Era necessário que a AIEA pudesse inspecionar possíveis atividades não declaradas naquele
país; também precisávamos dar início às negociações, caso quiséssemos interromper os
progressos do Irã na direção de um enriquecimento em escala industrial. No final de uma tensa
conversa, enfatizei que caberia aos Estados-membros da AIEA a decisão sobre como proceder,
mas que eu lhes devia, pelo menos, meu ponto de vista sobre o assunto .
121

Em fevereiro, o Conselho da AIEA inaugurou uma nova etapa na saga, submetendo o caso
iraniano ao Conselho de Segurança. Após mais de dois anos de tentativas, tanto do EU-3
quanto do Irã, de chegar a um acordo diplomático sobre o programa nuclear de Teerã, foi dado
o veredito. A votação do Conselho ficou dividida: de seus 35 membros, cinco países
desenvolvidos se abstiveram, enquanto três votaram contra a resolução, com a justificativa de
que a suspensão das atividades de enriquecimento do Irã havia sido voluntária e não estava
sujeita a um compromisso jurídico. Tal divisão era um fato raro: tradicionalmente, o Conselho
faz questão de tomar suas decisões de modo consensual, uma prática a que frequentemente se
refere como o “espírito de Viena”. A decisão não consensual, portanto, não era um bom sinal.
O contra-ataque do Irã se deu por meio da suspensão da implementação de seu Protocolo
Adicional . Tal decisão não causou surpresa: em setembro de 2005, numa ação retaliativa, o
122

Parlamento iraniano aprovou uma lei que sugeria ao governo suspender o Protocolo, caso o Irã
fosse submetido ao Conselho de Segurança. Essa medida limitaria, de modo significativo, os
recursos à disposição da AIEA para inspecionar substâncias e atividades nucleares não
declaradas. Assim, a saga nuclear iraniana passou a envolver a adoção de posturas mais rígidas.
Eu tinha nova viagem marcada para Washington. Em maio, tive um encontro com
Condoleezza e John Negroponte, diretor do Serviço de Inteligência Nacional. Negroponte
estava de pleno acordo com a avaliação dos inspetores de que, mesmo se a intenção iraniana
fosse desenvolver armas nucleares, isso ainda levaria alguns anos, em termos de capacidade
tecnológica para tal produção. Negroponte vivia repetindo essa declaração em público, talvez
como uma maneira de defender-se dos israelenses e dos adeptos da linha-dura, que davam total
apoio à ação militar.
Quanto a Condoleezza Rice, meu desejo era que nosso relacionamento voltasse ao normal.
Naturalmente, nossos pontos de vista nem sempre convergiam, mas, depois das tensas reuniões
que tivemos no período imediatamente anterior à Guerra do Iraque, nosso tratamento mútuo foi
respeitoso, chegando mesmo, em certas situações, a envolver certa dose de humor. Ela sempre
se mostrou mais sensata e pragmática do que ideológica, especialmente nas ocasiões em que
nos reunimos a sós. Decerto, sua opinião nem sempre prevalecia e sua obrigação era,
basicamente, implementar as decisões tomadas por Bush, a quem ela era extremamente fiel.
Raras foram as vezes em que pude ter certeza quanto às posições dela; no entanto, em meio à
administração Bush, eu a considerava um verdadeiro trunfo e uma adepta da diplomacia.
Depois de uma rápida conversa trivial sobre sua paixão por sapatos – certa vez, ela me
contou que às vezes comprava cinco ou seis pares de uma vez –, passei ao assunto que eu
pretendia enfatizar: os Estados Unidos precisavam, urgentemente, participar das discussões
com o Irã. “O diálogo”, eu lhe disse, “não irá progredir sem a participação de vocês.”
Antes de viajar aos EUA, encontrei-me com Ali Larijani, o mais importante negociador
nuclear do Irã. Ele me pediu que transmitisse uma série de mensagens a Washington: os
iranianos estavam interessados em negociar diretamente com os EUA. Estavam dispostos a
debater não apenas as questões nucleares, mas também as relacionadas ao Iraque, ao
Afeganistão, ao Hezbollah e ao Hamas. Larijani considerava que o Irã poderia exercer uma
grande influência em assuntos relacionados às próximas eleições dos EUA. O Irã poderia dar
assistência a Bagdá na área de segurança e colaborar no estabelecimento de um governo de
unidade nacional no Líbano. Nesse momento, percebi que o olhar de Condoleezza se
iluminara.
Enfatizei, diante dela e de Bob Joseph, que um pequeno programa de pesquisa e
desenvolvimento de centrífugas no Irã era uma questão menor, se comparada com a
proliferação nuclear. Se o Irã tivesse, de fato, a intenção de aperfeiçoar sua tecnologia de
enriquecimento numa larga escala, poderia fazê-lo facilmente de maneira clandestina, e
ninguém faria melhor do que eles. “Na verdade”, disse eu, “é um bom sinal que eles estejam
insistindo em levar seu programa adiante de maneira legítima.”
Repeti os argumentos que já havia exposto em meu telefonema a Condoleezza. O importante
era congelar qualquer movimentação que pudesse conduzir a um enriquecimento em escala
industrial e, ao mesmo tempo, manter a sólida atuação das verificações da AIEA no Irã. “De
que adianta”, perguntei, “uma verificação perfeita das atividades nucleares declaradas, se não
tivermos o Protocolo em vigor para garantir que eles não estejam operando um programa
clandestino, em segredo?” Além disso, acrescentei, havia uma grande diferença entre possuir o
know-how para a fabricação de armas e desenvolver a capacidade industrial e, de fato, produzi-
las. Novamente, insisti no fato de que permitir que o Irã conduzisse uma pequena operação de
pesquisa e desenvolvimento como uma medida para preservar a reputação do país não era um
preço alto demais a ser pago.
Fiquei satisfeito em perceber que Condoleezza estava realmente prestando atenção. Notei
que a única coisa que lhe chegava aos ouvidos, dia após dia, era a repetição compulsiva da
postura de “nem uma centrífuga sequer”, defendida por Steve Hadley. Essa “linha vermelha”
fora traçada a partir de uma declaração feita pelos britânicos durante a rodada anterior de
negociações com o Irã: o Reino Unido havia construído seu programa de armas nucleares com
base no conhecimento adquirido com a operação de 16 centrífugas. A política “nem uma
centrífuga sequer” adquiriu enorme importância para os ideólogos de Washington, que
consideravam os Estados Unidos um disciplinador global e que somente davam ouvidos uns
aos outros, perpetuando, com isso, crenças completamente dissociadas da realidade. Sempre
esteve claro que o Irã jamais eliminaria por completo o seu programa de enriquecimento.
Embora alguns norte-americanos refutassem completamente qualquer diálogo ou
reaproximação com o Irã – em abril, circularam relatos de planos ocultos dos EUA de atacar
instalações nucleares iranianas usando bombas arrasa-bunkers –, Condoleezza parecia
considerar que o Irã, no final, recuaria. “O Irã não é a Coreia do Norte”, disse ela. “O Irã não
quer permanecer isolado. Sob pressão, o país irá ceder.”
“Meu temor”, respondi, “é que o aumento da pressão sobre o Irã seja um tiro pela culatra.”
Eu percebia que a política norte-americana em relação ao país se resumia a dois mantras
simplistas: “nem uma centrífuga sequer” e “eles irão ceder”. Não havia nenhuma flexibilidade
para se ajustar à realidade ao redor.
Quando estivemos a sós, Condoleezza enfatizou que tanto ela quanto o presidente Bush
estavam dedicando grande empenho à busca de uma resolução pacífica para a questão iraniana,
sugerindo que não tinham a menor intenção de recorrer ao uso da força. Alguns dias depois,
Washington anunciou que estava pronta para iniciar um diálogo direto com Teerã, sob a
condição de que o Irã suspendesse todas as suas atividades relacionadas ao enriquecimento.
A declaração representou uma mudança radical na retórica pública dos EUA. Tratava-se,
claramente, de um meio-termo a que Condoleezza e seu grupo conseguiram chegar junto aos
adeptos da ideologia neoconservadora vigente, cuja posição era que qualquer espécie de
diálogo legitimaria o regime iraniano, numa época em que faziam a defesa aberta da mudança
de regime. No entanto, os Estados Unidos ainda exigiam do Irã algo que o país não podia
fornecer sem implodir internamente. Considerando que o programa nuclear iraniano havia se
tornado uma questão de orgulho nacional, o governo de Ahmadinejad se mostrava vulnerável
no plano doméstico. Não queria ser visto como submisso às vontades do Ocidente. Suspender o
programa de enriquecimento antes de iniciar o diálogo teria como efeito o enfraquecimento da
capacidade iraniana de negociar. Além disso, na visão de Teerã, a futura retomada do programa
seria colocada numa situação perigosa, caso se transformasse numa concessão a ser obtida
junto ao Ocidente. Era um risco que eles não estavam dispostos a correr.

Em junho de 2006, na ausência de diálogo direto entre Teerã e Washington, os europeus


começaram novamente a elaborar um conjunto de propostas em parceria com EUA, Rússia e
China. A intenção era apresentar ao Irã uma proposta que envolvesse dois percursos
simultâneos: um conjunto de incentivos, em troca de limites impostos ao programa nuclear
iraniano; e, em paralelo, um conjunto de possíveis sanções, no caso de o país recusar a
proposta. Tentei explicar a falácia dessa abordagem de um ponto de vista cultural: se, ao
mesmo tempo, eles oferecessem a cenoura e o chicote, isso daria a impressão de que o governo
do Irã estaria negociando sob ameaças. Em tais circunstâncias, não lhes restaria escolha a não
ser rejeitar a proposta como uma forma de preservar o respeito próprio e o apoio nacional.
A minha lógica não tinha nenhuma relação com a tecnologia nuclear. A concepção ocidental
de como abordar o Irã era semelhante a ir a um souk árabe e oferecer ao proprietário uma
quantia razoável pela mercadoria que se deseja adquirir, mas também ameaçar queimar o
mercado caso ele não aceite a proposta. Embora a tática possa ser eficaz num filme de Clint
Eastwood, estaria fadada ao fracasso desde o início em Teerã.
A título de experiência, os europeus concordaram secretamente em oferecer um conjunto de
incentivos, bem como um conjunto de sanções. No entanto, em 6 de junho, quando enviaram
Javier Solana a Teerã, como representante de seus países, coube a ele apresentar apenas os
123

incentivos.
Esse pacote de propostas, diferentemente do que foi apresentado em agosto de 2005, era
bastante generoso. Basicamente, propunha que se oferecesse ao Irã a tecnologia ocidental
convencional e a de energia nuclear. Discutia elementos de um acordo de comércio com o
Ocidente, e foi redigido sem o tom paternalista da primeira proposta, com referências
respeitosas aos direitos do Irã. No entanto, insistia para que o Irã suspendesse seu programa de
enriquecimento como pré-requisito para as negociações, e a linguagem usada parecia implicar
que a retomada das atividades de enriquecimento se daria somente sob a aprovação do
Ocidente.
O Irã pediu para responder até 22 de agosto. Enquanto isso, prosseguia com a expansão de
seu programa de pesquisa e desenvolvimento nuclear. A essa altura, os iranianos haviam feito
alterações, passando de experimentos com cascatas de 10 e 20 centrífugas para uma cascata de
164 centrífugas, numa operação ainda piloto. A atividade não tinha grande relevância.
Operavam uma cascata durante dez dias, interrompiam alguns dias, e então recomeçavam.
Nossos especialistas técnicos avaliaram que os iranianos poderiam ter conseguido resultados
muito mais rapidamente se estivessem dispostos a fazer um esforço máximo. A certa altura, os
iranianos mencionaram que talvez instalassem uma segunda cascata de 164 centrífugas dentro
de três meses. Desaconselhei-os. A construção de novas e maiores cascatas tornaria as
negociações ainda mais complicadas.
O fato de o Irã ter solicitado mais tempo foi visto com suspeita por alguns no Ocidente. Os
norte-americanos, entre outros, afirmaram que o Irã aproveitaria esse tempo para ampliar sua
capacidade de enriquecimento do combustível. A afirmação era absurda. O Irã mal teria tempo
de melhorar qualquer coisa em seu programa de pesquisa e desenvolvimento até agosto. Creio
que o pedido de mais tempo estava relacionado à marcha lenta da tomada de decisões da parte
do Irã. Os processos políticos domésticos desse país são caracterizados por um controle mútuo,
exercido pelos diversos setores governamentais. As múltiplas partes expressam suas opiniões
antes que uma estratégia final seja formulada. Os iranianos parecem nunca ter pressa, sendo
ainda mais resistentes a tomar decisões apressadas quando colocados sob pressão externa.
No entanto, os Estados Unidos não estavam dispostos a esperar, por isso insistiram em
realizar um encontro muito antes do prazo pedido pelo Irã. Larijani concordou em encontrar-se
comigo em Bruxelas em 11 de julho, pois queria esclarecer alguns detalhes sobre os termos e a
extensão da suspensão que estava sendo proposta. Nossas conversas deixaram claro que ele
estava comprometido com a busca de uma solução negociada.
Revelou-se que o encontro causou mais danos do que benefícios. No meio da conversa, o
britânico John Sawers, diretor-geral para Assuntos Políticos do Escritório de Relações
Exteriores e da Commonwealth, começou a ficar impaciente. De modo brusco, interrompeu
Solana e exigiu de Larijani: “Queremos saber, em termos concretos, se vocês estão dispostos a
fazer a suspensão”.
É claro que Larijani não tinha como dar uma resposta definitiva. Teerã ainda não entrara
num acordo quanto a isso. Larijani começou a gaguejar, e a conversa então terminou sem
solução. Solana relatou que o encontro fracassara e, já no dia seguinte, o assim chamado P5+1
anunciou novamente sua intenção de submeter o caso ao Conselho de Segurança . 124

Logo depois, no encontro do G-8 em São Petersburgo, conversei rapidamente com o


presidente Bush. “ElBaradei!”, ele bradou, caminhando na minha direção e sorrindo.
“Realmente gostamos do trabalho que vocês estão fazendo no Irã”, disse em tom discreto,
depois de me apertar a mão, “pois não sabemos o que está acontecendo lá.”
Eu lhe disse que o Irã estava elaborando uma resposta à proposta. Eu realmente acreditava
que eles estavam em busca de uma solução por meio do diálogo, precisando somente de um
pouco mais de tempo.
“Estamos prontos”, foi a resposta de Bush, indicando sua expectativa de ouvir o que Teerã
tinha a dizer.
Numa conversa à parte, Tony Blair me deu exatamente a mesma resposta: “Estamos
prontos”, como se os dois tivessem ensaiado.
No momento em que o Conselho de Segurança começava a elaborar uma resolução, Javad
Vaeedi, representante de Larijani, me procurou. Disse que, em essência, os iranianos estavam
dispostos a concordar com a suspensão, mas não como uma precondição para as negociações, e
sim como resultado delas. A suspensão também teria de estar associada a algum tipo de
garantia de segurança. “Queremos saber se nosso colega é um aliado ou um adversário”,
revelou Vaeedi. “A questão não é apenas o programa nuclear, mas todo o relacionamento
futuro entre os EUA e o Irã.”
Ele deu explicações quanto à situação que Ahmadinejad enfrentava no plano doméstico. “Se
ele anunciar apenas a suspensão do enriquecimento nuclear, sem que haja alguma espécie de
contrapartida relacionada à segurança, a administração Ahmadinejad entrará em colapso.” O
que Vaeedi relatou, na sequência, foi ao mesmo tempo iluminador e inquietante. A equipe de
negociação anterior – o grupo liderado por Rowhani, que trabalhava na administração Khatami
– passou a se opor a qualquer ação no sentido de suspender o enriquecimento e aceitar o pacote
de propostas. O problema não era a proposta em si – que obviamente era muito melhor do que
a do ano anterior. A preocupação deles era que a aceitação da proposta e das negociações com
os EUA com vistas à normalização das relações faria de Ahmadinejad um herói nacional. Isso
era a última coisa que eles desejavam; portanto, estavam determinados a solapar a mesma
solução pela qual tanto se empenharam.
Suspirei. Teerã passou tempo demais observando Washington e seu modo de fazer política,
pensei comigo.
Uma nova oportunidade estava prestes a ser desperdiçada. Telefonei a Greg Schulte,
embaixador dos EUA na AIEA, e lhe pedi que transmitisse a Washington a informação de que
ainda havia chances de acordo. A possibilidade de uma solução quanto à segurança regional
ainda estava em aberto. O ingrediente que faltava era apenas a disposição dos Estados Unidos
em fazer uma pequena – e insignificante – concessão, a fim de dar continuidade ao diálogo.
Mas isso não aconteceria. No final de julho de 2006, três semanas antes do prazo pedido
pelo Irã para dar a resposta, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 1696. Esta tornou
compulsória a suspensão do processo de enriquecimento, de acordo com o Capítulo VII do
Estatuto da ONU, que confere poderes ao Conselho de Segurança para agir diante de “ameaças
à paz, violações da paz e atos de agressão”. No final de agosto, me pediram que eu reportasse
ao Conselho a confirmação de que o Irã suspendera suas operações de enriquecimento de
urânio.
Eu não conseguia imaginar uma ação menos sensata e mais desagregadora do que a
Resolução 1696. Em primeiro lugar, a investigação do programa nuclear do Irã já estava em
curso havia quase quatro anos. Aguardar três semanas pela resposta do país e usar esse tempo
para buscar uma solução à questão da suspensão despenderia tempo e energia bastante
considerável. Comecei a perceber que os elaboradores de políticas em Washington talvez não
estivessem, de fato, interessados na resolução da questão nuclear iraniana ou em conversar com
Teerã. Será que a liderança dos EUA havia se transformado em refém daqueles a quem nada
mais interessava a não ser o confronto, o isolamento e a mudança de regime?
Em segundo lugar, era duvidosa a legitimidade da resolução. Ainda não havia provas de que
a atividade nuclear iraniana envolvia um programa de armas. Seria um grande exagero afirmar
que uma pequena cascata de centrífugas em escala de laboratório representava uma “ameaça à
paz e à segurança internacionais”, tendo em vista que o enriquecimento de urânio com fins
pacíficos é uma ação legalmente garantida a todos os Estados-membros do TNP.
Em terceiro lugar, a resolução carecia de lógica. Se a preocupação de que o Irã estava
desenvolvendo uma arma nuclear era genuína, a interrupção de uma operação de
enriquecimento nuclear em pequena escala em troca do diálogo e da normalização das relações
entre Estados não fazia o menor sentido. Que diferença fazia interromper essa operação
declarada de pesquisa e desenvolvimento se o Irã tinha, de fato, um programa de armas
nucleares em operação? O verdadeiro foco deveria ter sido a continuação das inspeções da
AIEA no país, a fim de investigar possíveis atividades não declaradas. A opção por centrar o
foco na pesquisa e no desenvolvimento nuclear em Natanz deixou claro que a preocupação – a
suposta “ameaça à paz e à segurança internacionais” – estava menos relacionada a um
programa secreto de armas do que a conclusões aparentemente tiradas a respeito das futuras
intenções do Irã.
O pior de tudo: o timing da Resolução 1696 foi terrível. Sua aprovação coincidiu exatamente
com uma guerra que devastava o Líbano, um conflito intenso entre o Hezbollah e as Forças de
Defesa de Israel, que feriu milhares de civis libaneses. Apesar dos repetidos apelos da
comunidade internacional, Condoleezza, Bush e os britânicos opuseram-se aos pedidos de
cessar-fogo. Em resposta à solicitação de Kofi Annan para que Bush e Blair apoiassem um
cessar-fogo, ambos afirmaram, novamente em uníssono: “Não estamos prontos”.
Posteriormente, reconheceu-se que os Estados Unidos juntaram-se aos esforços de
interromper o conflito apenas quando ficou claro que a ofensiva militar israelense não estava
sendo eficaz . Em vez disso, aceleraram a entrega das PGB, as bombas teleguiadas de
125

precisão, a Israel . Apenas em 11 de agosto o Conselho de Segurança aprovaria uma resolução


126

pedindo o cessar-fogo no Líbano. A essa altura, mais de 1.100 libaneses e 40 civis israelenses
tinham sido mortos e cerca de 750 mil civis libaneses estavam desabrigados, isso tudo
acontecendo enquanto as potências mundiais assistiam ao conflito de braços cruzados.
Na época, eu estava no Egito, em minha casa de praia ao norte de Alexandria. O clima nas
ruas era de instabilidade. Em todo o Oriente Médio, a ira causada pela postura de dois pesos e
duas medidas e pela deliberada inércia do Ocidente atingira seu clímax. Kofi Annan telefonou-
me. Seu tom de voz era de desânimo. “Esta guerra no Líbano não era considerada uma ameaça
à paz e à segurança internacionais”, disse ele, em tom de resignação porém angustiado, “mas a
atividade iraniana em escala de laboratório era.”
Tentando manter o foco, logo após a aprovação da Resolução 1696 do Conselho de
Segurança, enviei uma mensagem a Larijani sugerindo que os iranianos respondessem à
proposta do Ocidente, conforme planejado, em 22 de agosto. Propus que eles declarassem a
disposição de suspender suas atividades de enriquecimento nuclear em escala industrial durante
alguns anos e também se comprometessem, junto à AIEA, com a solução de questões
pendentes sobre a verificação. “Se eu puder relatar que houve progresso nessas duas frentes”,
disse eu, mudará a maneira “como os europeus e os demais encaram a situação.”
Em vez disso, Larijani preferiu responder por meio de uma coletiva de imprensa. “A
República Islâmica do Irã”, anunciou ele, “jamais concordará em suspender suas atividades de
enriquecimento de urânio.”
Alguns aspectos relacionados à aprovação da Resolução 1696 eram, para mim, um mistério,
mas parte do problema, aparentemente, envolvia determinadas ações nos bastidores, em
meados de 2006.
John Sawers, diplomata e ex-assistente de Blair, que falava em nome do Reino Unido,
adotou uma linha-dura semelhante à norte-americana. Naqueles dois últimos anos, eu havia
percebido diferenças de estilo e de substância entre Sawers e seu chefe, o secretário das
Relações Exteriores Jack Straw. Estabeleci uma relação estreita com Straw; em todas as nossas
negociações, ele me pareceu dotado da capacidade de compreender o cenário mais amplo, da
percepção de justiça, de um profundo respeito pelas nuances culturais e de uma disposição
pragmática para considerar soluções que revelassem bom senso.
Porém Straw não era mais o chefe de Sawers. Straw havia me dito, naquele mesmo ano, que
estava claro que os norte-americanos não confiavam mais nele. Quando surgiram informações
sobre os planos dos EUA de usar as bombas arrasa-bunkers no Irã, Straw teria dito que a ideia
era “completamente maluca”, tendo afirmado à BBC News que “não havia nenhuma prova
conclusiva” . Um mês depois, Blair exonerou Straw do cargo de secretário das Relações
127

Exteriores, substituindo-o por Margaret Beckett, uma novata em política externa . Soube que
128

Straw foi demitido em razão de diferenças entre ele e Blair na adoção de certas políticas. Fui
também levado a entender que isso se deu por causa da solicitação dos norte-americanos, mas
quando conversamos sobre seus detratores, Straw deixou claro que “não tinha sido Condi”
(referindo-se a Condoleezza Rice). Straw teria julgado a política de Blair durante a guerra no
Líbano como “desastrosa”. No entanto, suas opiniões sobre o Irã, o Líbano e a Resolução 1696
não mais interessavam a Blair, e Margaret Beckett era novata demais no cargo para que
pudesse mostrar divergências.
O ministro das Relações Exteriores francês, Philippe Douste-Blazy, um médico, também era
novato em política externa. Recebi informações de que ele não era levado a sério pelo Quai
d’Orsay, o ministério das Relações Exteriores da França, e que a recíproca era verdadeira.
Além disso, os franceses estavam na fase de preparação para as eleições presidenciais. As
pessoas começaram a falar em “duas Franças” – a primeira, liderada por Chirac e seu
conselheiro de Segurança Nacional, Maurice Gourdault-Montagne; a segunda, por políticos em
posição oposta em política externa. Portanto, os franceses, adotando uma postura pouco
comum, não se mostravam tão coerentes em relação à política externa quanto normalmente
eram.
Coube aos alemães o empenho de buscar uma solução e uma saída negociada com o Irã. Em
encontros particulares com a chanceler Angela Merkel e o ministro das Relações Exteriores
Frank-Walter Steinmeier, eles me pareceram incisivos, compassivos e justos na abordagem da
política externa. Porém faltava-lhes o poder de influência necessário para progredir sem
depender da cooperação de seus colegas europeus; pareciam satisfeitos simplesmente por terem
sido incluídos nas negociações.
Para mim, a verdadeira surpresa foi o fato de os russos e os chineses, no Conselho de
Segurança, terem concordado em aprovar uma resolução baseada no Capítulo VII, apesar de
sua oposição de longa data a tal medida. Eles sabiam que isso só geraria confrontos e
complicaria todo o esforço de buscar uma solução para o programa nuclear iraniano; no
entanto, aparentemente, seus próprios interesses revelaram-se mais importantes do que essas
considerações.
A meu ver, a Resolução 1696 do Conselho de Segurança não apenas foi contraproducente do
ponto de vista da adoção de políticas, como um uso equivocado da autoridade do Conselho,
segundo o Capítulo VII do Estatuto da ONU. Foi assombrosa a diferença de tratamento dado à
Coreia do Norte, em comparação ao dado ao Irã. A Coreia do Norte havia se retirado do TNP e
feito ameaças explícitas de desenvolver armas nucleares (e, de fato, testaria sua primeira arma
menos de três meses depois, em outubro de 2006); no entanto, os norte-americanos se
mostraram dispostos a iniciar um diálogo direto com eles, e Chris Hill parecia estar em
Pyongyang dia sim, dia não, de tanto que ia para lá. Em contraste, o Irã, apesar de membro do
TNP e de permanecer sob o acordo de salvaguardas, foi penalizado por possíveis futuras
intenções de desenvolver armas nucleares. E os norte-americanos ainda se recusaram a
conversar com eles sem estabelecer precondições.

Em 20 de agosto de 2006, eu ainda estava em minha casa de veraneio quando Frank-Walter


Steinmeier me telefonou, dizendo que gostaria que eu me encontrasse com Peter Castenfelt, o
misterioso banqueiro sueco que certa vez conversou comigo apresentando-se como consultor
dos norte-coreanos. Dessa vez, Castenfelt ocupava uma função nova: consultor de Teerã. Viria
acompanhado de um dos assistentes de Larijani, Ali Monfared, chefe de políticas externas do
Conselho de Segurança Nacional do Irã. Eles tinham muito interesse em me encontrar antes
que o Irã enviasse sua resposta formal à última proposta feita pelo EU-3.
Em nosso encontro no Cairo, enfatizei a importância de uma resposta afirmativa da parte do
Irã, apesar de tudo o que ocorrera. O país devia declarar sua disposição de não continuar com a
busca do processo de enriquecimento de urânio em escala industrial, ou pelo menos prometer
que não daria início à produção de substâncias nucleares. A meu ver, as questões sobre
segurança regional eram legítimas, considerando que se tratava de um assunto crucial para eles
e que uma atenção a isso poderia facilitar um acordo sobre a suspensão do enriquecimento
nuclear. Conversamos durante duas horas; Castenfelt me disse, posteriormente, que passou
outras cinco horas conversando com Monfared, na tentativa de colocar os termos de nossa
discussão em um texto adequadamente redigido.
Os iranianos enviaram sua resposta, conforme o combinado, em 22 de agosto. Aceitaram
alguns dos meus conselhos, mas não todos. O documento de 21 páginas era extenso e
complexo, mas incluía, em essência, uma série de elementos positivos. A despeito da hostil
declaração pública anteriormente feita por Larijani, continuavam abertos à proposta de
suspensão, contanto que ela não fosse uma precondição para as negociações. Estavam
dispostos a implementar o Protocolo Adicional de maneira voluntária durante as negociações.
E estavam prontos a comprometer-se com o status de membro permanente no TNP, a fim de
dissipar temores de um cenário de “evasão”, no estilo Coreia do Norte.
A reação ao documento foi cautelosa. Na visão do EU-3 era possível iniciar o diálogo; os
russos se declararam contra sanções adotadas no formato de um beco sem saída; a China
recomendou paciência. Todos eles telefonaram, ou apareceram pessoalmente, como fizeram
Javier Solana e Kofi Annan, para saber minha opinião sobre a resposta do Irã. No entanto,
nenhum deles parecia disposto a assumir uma postura de liderança.
Por fim, os Estados Unidos e os europeus incumbiram Solana de encontrar-se com Larijani
para tentar traçar o melhor caminho a seguir. Porém, Larijani não se entusiasmou com a ideia,
pois, a seu ver, Solana não tinha autoridade para tomar decisões. Ele se opunha particularmente
à ideia de uma reunião conjunta com Solana e os representantes do EU-3; ainda guardava
mágoa de seu último encontro, em meados de julho, em Bruxelas.
Sugeri a Solana que ele e Larijani se encontrassem a sós, para tentar um acordo conjunto de
quatro princípios que servissem de base para as negociações. O primeiro deles: o Irã
suspenderia o processo de enriquecimento de urânio enquanto durassem os diálogos. Em
contrapartida, como segundo princípio, os europeus e os norte-americanos suspenderiam as
sanções do Conselho de Segurança durante o mesmo período. O terceiro princípio ratificaria o
direito do Irã, sob o TNP, de usar a energia nuclear para fins pacíficos, deixando claro que a
suspensão não era permanente. O quarto princípio: uma declaração, reiterando o respeito à
independência política e à soberania do Irã.
Se Solana e Larijani entrassem num acordo quanto a esses princípios, os ministros das
Relações Exteriores poderiam, então, fazer deles a base para as negociações. “Ambos os lados
poderiam preservar sua imagem”, expliquei a Solana. O Irã poderia dizer à opinião pública que
aceitou a suspensão apenas para o período em que durassem as negociações. Os EUA poderiam
alegar que, ao comparecer à reunião, já sabiam do consentimento do Irã. A participação de
Condoleezza na reunião seria essencial como incentivo ao Irã.
Repeti essas ideias para Larijani. Ele e Solana marcaram uma data para o encontro, no início
de setembro. Por telefone, expus os princípios para Kofi Annan, que tinha planos de visitar o
Irã naquela mesma época .129

Teerã mostrava uma postura de comedimento. A AIEA não constatou uma evolução
significativa, quantitativa ou qualitativa do programa de enriquecimento nuclear iraniano, além
das 164 centrífugas já instaladas no país. Substâncias perigosas eram introduzidas apenas
ocasionalmente e por períodos curtos – o que não constituía um modo de expandir o
conhecimento sobre o enriquecimento, caso este fosse o objetivo dos iranianos. Não éramos
capazes de dizer se o progresso lento se devia a um problema técnico ou a uma escolha
política. De qualquer modo, o programa do Irã ainda estava numa etapa inicial.
Em 5 de setembro, Condoleezza Rice me telefonou para perguntar sobre o conjunto de
princípios que lhe haviam sido transmitidos pelo embaixador Schulte. “O Irã não aceitará a
suspensão como uma precondição”, expliquei a ela. “Para eles, isso seria um suicídio político.
Eles também necessitam de algum tipo de declaração sobre a segurança.”
“A situação me parece semelhante ao que fizemos na Coreia do Norte”, respondeu
Condoleezza, aparentemente bastante disposta a considerar os quatro princípios, uma postura
bastante distinta da intransigência mostrada por Washington em relação ao enriquecimento
nuclear iraniano. “Mas teremos problemas em dar a eles quaisquer garantias de segurança”,
reforçou ela.
“Então, faça dessa uma declaração de boas intenções”, insisti. “Você pode apresentá-la de
uma maneira descompromissada.” Condoleezza concordou pelo menos em ponderar sobre os
princípios e depois me dar uma resposta, mas acrescentou: “Você sabe que também não
podemos negociar com o Irã até que a suspensão entre em vigor. Mas talvez os europeus – ou
então os europeus, os russos e os chineses, de maneira conjunta – possam marcar uma reunião
com os iranianos antes”. Após a declaração dos princípios e a verificação da suspensão, os
EUA então se juntariam ao grupo.
Eu estava a caminho de Woodstock, em Oxfordshire, Inglaterra, onde minha filha Laila se
casaria, quando Peter Castenfelt telefonou pedindo para me encontrar com urgência. Na
véspera do casamento, ele seguiu na direção do hotel justamente no momento em que os
membros da minha família, vindos do Cairo, de Nova York e de outras partes do mundo,
estavam prestes a reunir-se para jantar. A futura noiva não estava nada contente: “É melhor que
ele tenha mesmo algo importante a lhe dizer”, reclamou.
Castenfelt mais ouviu do que falou. Ele chegara de Teerã na véspera e queria saber
exatamente qual atitude podia se esperar da parte dos iranianos. “Eles poderiam fazer uma
espécie de versão da suspensão, em vez da suspensão completa?”, perguntou.
Respondi que isso não daria certo. Era preciso que ele dissesse aos iranianos que o tempo
deles estava se esgotando. Se o acordo não vingasse, os EUA e o EU-3 pediriam ao Conselho
de Segurança que propusesse novas sanções ao Irã por não ter atendido às demandas da
Resolução 1696. “Mesmo que eles comecem com uma série branda de sanções”, eu disse, “o
Irã irá retaliá-las, e isso desencadeará uma cadeia descontrolada de reações e outras retaliações
que podem levar a um confronto mais sério e a nenhuma solução.” Com cerimônia, Castenfelt
assentiu com a cabeça, rabiscou algumas notas e foi embora.
No dia seguinte, 8 de setembro, minha filha Laila casou-se com Neil Pizey, um jovem
britânico, no Blenheim Palace. Durante algumas horas, o estresse de meu trabalho em Viena
me pareceu distante. Em meio à solenidade e à beleza da cerimônia, lembrei-me do trecho de
meu discurso na entrega do Nobel que levou Laila às lágrimas: “Tenho esperanças por causa
daquilo que vejo em meus filhos e em algumas pessoas da geração deles... Meu filho e minha
filha não se importam com aspectos como cor, raça e nacionalidade. Não veem nenhuma
diferença entre seus amigos Noriko, Mafupo, Justin, Saulo e Hussam. Para eles, essas pessoas
são seres humanos e bons amigos”.
Na época, Laila reunia forças para me apresentar ao homem que ela amava. Ela sabia que,
de alguma maneira, minha expectativa era que ela se casasse com um egípcio. Mas, na
condição de alguém que observava diariamente os efeitos desastrosos da desconfiança cultural,
abençoei-a pela escolha feita.
Naquele mesmo dia, Solana e Larijani tiveram um encontro de sete horas em Viena. Mais
tarde Larijani me relatou a conversa que tiveram, considerando o encontro construtivo. A
suspensão continuava sendo o principal obstáculo. Larijani ainda tentava lidar com os temores
manifestados por certos setores de Teerã de que, se o Irã suspendesse o enriquecimento de
urânio, iria se deparar com incontornáveis obstáculos para retomar suas atividades de ciclo de
combustível.
Sugeri como alternativa mesclar a discussão da suspensão a outros assuntos, como o
compromisso dos seis países de fornecer reatores de energia e de respeitar os direitos do Irã no
TNP, de modo que a suspensão não fosse o único item a ser discutido. “Talvez você não
precise fazer nenhuma declaração”, eu lhe disse. “Basta interromper, de fato, as atividades de
enriquecimento de urânio, assim eu poderei reportar a eles a suspensão.”
Larijani balbuciou algo sobre a suspensão como parte de um acordo de cavalheiros ou sobre
estendê-la ao longo de um determinado período. Ele se mostrava claramente frustrado,
tentando buscar algum modo criativo de chegar a uma solução. Disse que havia conversado
sobre grande parte do assunto com Solana.
A certa altura, Larijani mostrou grande firmeza: qualquer decisão futura de “certificar” o Irã
como apto a retomar as atividades de ciclo de combustível equivaleria apenas a um julgamento
técnico feito pela AIEA. Pela proposta dos europeus, as partes em negociação também teriam
influência política para determinar se o Irã atingira o nível de confiança necessário. Larijani
não deixou dúvidas: isso não era aceitável. No entanto, segundo o relato de Larijani, o país
estava disposto a discutir questões regionais, tais como o Iraque, o Afeganistão e o Líbano – o
que claramente ia ao encontro do desejo dos europeus.
Na sequência, Solana pediu minha avaliação sobre o que eu ouvira de Larijani. Washington,
disse ele, não estava satisfeita com os resultados dos diálogos. Embora fosse uma pessoa
tranquila e um diplomata experiente, Solana encontrava-se em extrema dificuldade por
desempenhar um papel de linha de frente em nome do Irã perante o P5+1: num contexto em
que cada um dos países tentava impor sua própria opinião e, particularmente, com os norte-
americanos em seus calcanhares, Solana buscou um mínimo denominador comum, o que
invariavelmente significava um mandato não muito claro e poucos elementos passíveis de
negociação.
Sugeri que os quatro princípios propostos fossem condensados em dois. Um princípio
poderia abranger o programa nuclear do Irã, incluindo seus direitos e obrigações, e a questão
da suspensão. O segundo seria um compromisso para negociar questões econômicas, políticas
e de segurança, que poderia incluir uma declaração de boas intenções a ser firmada pelos norte-
americanos perante o Irã, na qual dariam indicações de que não pressionariam pela mudança do
regime e tampouco usariam a força. A conversa terminou com minha proposta de colaborar da
maneira que fosse possível e com a promessa de Solana de que voltaria a me visitar dali a
alguns dias.
Em 19 de setembro, Condoleezza Rice e seus colegas do EU-3, China e Rússia,
encontraram-se para discutir os próximos passos. Concordaram em dar ao Irã o prazo de
“início de outubro” para chegar a um acordo sobre como o enriquecimento de urânio seria
suspenso como parte das negociações. Uma possibilidade apresentada foi um calendário
coordenado de encontros – de início, sem a participação dos EUA, com a suspensão do
enriquecimento no Irã ao mesmo tempo que se suspenderia a ação do Conselho de Segurança;
na sequência, os EUA seriam trazidos de volta à cena. Com certo cinismo, o Washington Post
noticiou que os europeus estavam dando aos iranianos um prazo final pela quarta vez em um
período de quatro meses . Isso era verdade, mas o constante desrespeito aos prazos derivou da
130

falta de disposição ou da incapacidade de cada um dos lados de comprometer-se de maneira


significativa.
Na Conferência Geral da AIEA, no final de setembro, tive um encontro tenso com Gholam
Aghazadeh, vice-presidente do Irã e chefe do Conselho de Energia Atômica, o único dos
protagonistas originais ainda em exercício. Ele parecia ofendido, quase ressentido, e alegava
que os relatórios da agência sobre o Irã não refletiam os quatro anos de esforços empreendidos
por seu país buscando a cooperação. Em minha resposta, um tanto quanto áspera, observei que
a cooperação do Irã havia sido inconsistente e pouco confiável. Também fiz menção a várias
questões técnicas pendentes havia tempos, às quais o país ainda não havia apresentado
resposta.
Na sequência, Aghazadeh enviou-me uma carta um tanto estranha, que dizia ter escrito na
condição de amigo. Em sua avaliação, a AIEA jamais teve a intenção de encerrar o caso
iraniano. Quanto mais o Irã cooperava, mais perguntas os inspetores da agência lhe faziam. E,
por último, acrescentou que eu não era bem-visto pelas lideranças iranianas. Disse que não
esperava que eu respondesse . A frieza daquela carta não era um bom sinal.
131

De fato, em um telefonema de Larijani, percebi seu tom de desânimo. “As demais partes”,
disse ele, “não compreendem a situação interna do Irã.” Obviamente, ele estava tendo
dificuldades para negociar em casa – em busca de uma forma de suspensão que o Irã pudesse
aceitar –, mas também para fazê-lo com Solana e seus colegas. Os iranianos estavam dispostos
a comprometer-se a não ir além de uma ou duas cascatas que já estavam em operação, mas era
totalmente improvável que concordassem com a suspensão completa.
Larijani me disse que o radicalismo começava a predominar. Pelo seu tom de voz,
compreendi que ele se referia a Washington e a Teerã.

O prazo de início de outubro dado ao Irã para a suspensão do enriquecimento nuclear chegou e
nada aconteceu. A incapacidade de ambos os lados de ceder em relação aos pontos
problemáticos do acordo implicava que o inevitável passo seguinte seria uma nova Resolução
do Conselho de Segurança. Temi o ciclo de retaliações que certamente seria desencadeado por
um novo conjunto de sanções. No fim de outubro, eu estava em Washington para um encontro
com Condoleezza Rice e Bob Joseph. O primeiro teste nuclear da Coreia do Norte acabara de
ocorrer, o que talvez tenha atenuado as inclinações do Departamento de Estado em relação ao
impasse iraniano. Expressei minha preocupação de que uma resolução do Conselho de
Segurança deveria evitar a provocação ou a humilhação do Irã, além de, em grande medida, ser
voltada à tentativa de persuadir Teerã a retomar negociações com o P5+1. Condoleezza
pareceu concordar.
Apresentei uma nova possibilidade: “E se os EUA começassem a dialogar diretamente com
o Irã sobre questões mais amenas como a segurança no Iraque?”. Ao iniciar o diálogo sobre um
assunto menos polêmico, talvez as dificuldades na relação entre os principais protagonistas
pudessem ser atenuadas, facilitando assim o progresso em relação à questão nuclear. Larijani e
seus colegas estariam dispostos a iniciar tais discussões, mas os Estados Unidos teriam de
enviar alguém com um nível mais alto do que Zalmay Khalilzad, o embaixador dos EUA no
Iraque. Na avaliação dos iranianos, faltava a Khalilzad o necessário poder de influência.
Condoleezza pareceu bastante receptiva ao início de tal diálogo. “Você sabe”, eu lhe disse,
“o Irã poderia atrapalhar ainda mais as coisas no Oriente Médio.”
Ela franziu a testa. “Eles já estão se metendo ali.”
“Podem se meter ainda mais”, respondi.
Numa conversa ao telefone com Solana, ele concordou que quaisquer sanções impostas ao
Irã deveriam ser “simbólicas”. No entanto, quando tive acesso ao projeto de resolução por
intermédio da missão francesa em Viena, percebi que os termos eram demasiadamente rígidos.
Medidas como a proibição de viagens às autoridades iranianas, o congelamento dos bens
iranianos no exterior e a suspensão ou a restrição da assistência técnica fornecida pela AIEA
não significariam nada além de provocação, tornando-se contraproducentes. Do mesmo modo,
tornar compulsórias as “visitas de transparência” da AIEA teria efeito contrário ao pretendido . 132

A última coisa de que precisávamos era provocar o Irã para que acelerasse seu programa de
enriquecimento nuclear ou que deixasse o TNP.
Serguei Kisliak, vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia e meu amigo há muitos
anos, estivera profundamente envolvido nas discussões do P5+1 e partilhava da mesma
opinião. O projeto de resolução, segundo ele, não era “aceitável de modo algum” para a Rússia.
“Se os europeus pressionarem para aprovar essa resolução, o jogo será completamente
alterado.” Fiquei com a impressão de que a Rússia começava a considerar a possibilidade de
exercer o seu veto.
O texto final da resolução – que foi aprovada por unanimidade em 23 de dezembro – era
consideravelmente mais ameno. As sanções, em sua maioria, apenas reforçavam velhas
medidas: a proibição de fornecimento ao Irã de tecnologia e substâncias relacionadas à área
nuclear, e o congelamento de bens de indivíduos e empresas específicos que deram apoio ao
programa de enriquecimento nuclear iraniano.
A resposta do Irã também foi relativamente branda. Javad Zarif, embaixador iraniano na
ONU, declarou que “uma nação está sendo punida por exercer seus direitos inalienáveis” . O 133

ministério das Relações Exteriores do Irã emitiu uma declaração qualificando a resolução de
“ato extrajudicial que extrapola os limites das responsabilidades [do Conselho de Segurança] e
contraria ao Estatuto da ONU”. Ainda mais preocupantes foram os sinais dados por Teerã de
que não havia mais motivo para postergar a expansão de seu programa de armas nucleares.
Se ainda não tínhamos chegado a um ponto sem volta, as apostas nesse sentido certamente
haviam aumentado.
A pergunta que sempre me faziam em conversas de bastidores – em encontros executivos,
passageiros sentados ao meu lado no avião ou repórteres, assim que desligavam os gravadores
– era: “Qual é, de fato, a sua opinião? O Irã está tentando desenvolver um programa de armas
nucleares?”.
A minha avaliação é instintiva, mas inspirada pelo contexto histórico. Em primeiro lugar,
elementos que atestam as aquisições nucleares e os programas de pesquisas do Irã surgiram em
meados da década de 1980, no contexto da guerra contra o Iraque. Na época, o Irã estava sendo
gravemente ameaçado pelo Iraque; mais de 100 mil iranianos, incluindo civis, teriam sido
vítimas das armas químicas iraquianas. Diante dessa extrema sensação de vulnerabilidade, é
possível que o Irã tenha planejado desenvolver as armas nucleares. Porém, em algum momento
– talvez depois do final da guerra, ou então no meio da década de 1990, quando há registros de
mudanças repentinas feitas em alguns dos programas nucleares do Irã, ou ainda depois de a
agência ter dado início às suas investigações –, é possível que o Irã tenha decidido limitar seu
programa ao desenvolvimento do ciclo de combustível nuclear, permanecendo legalmente um
Estado não detentor de armas nucleares e membro do TNP.
Seja como for, acredito que o Irã não tenha revelado toda a verdade sobre o início de seu
programa nuclear. Deve ter havido algum envolvimento militar na aquisição de substâncias e
nos experimentos. No entanto, essas informações ainda não reveladas são, muito
provavelmente, insignificantes; não fosse assim, o conjunto de provas seria mais volumoso e
difícil de ser escondido.
Minha impressão é que o Irã, durante suas negociações com os europeus, talvez tenha
desejado mostrar transparência em relação às ambições com as armas no passado, como parte
de um conjunto de propostas abrangente e um cenário preestabelecido, numa época em que o
foco do mundo estava centrado no futuro do país, e não mais em seu passado. Porém, quando
as negociações fracassaram e o ambiente ganhou ares de confronto, restou aos iranianos um
dilema: qualquer revelação sobre envolvimentos passados em um programa nuclear militar, por
menor ou mais longínquo que fosse, seria vista, em um momento de confronto, como um
indício de que o Irã não merecia confiança. Entretanto, se eles se abstivessem de apresentar
uma prestação de contas completa, estariam perpetuando o pecado original do ocultamento . 134

Uma segunda pergunta que frequentemente me fazem é por que o Irã manteve sua
determinação de continuar com o enriquecimento de urânio diante das sanções e pressões
vindas do Ocidente. A melhor resposta que posso oferecer é que o programa nuclear iraniano,
incluindo o enriquecimento, tem representado os meios para a obtenção de um fim. O Irã está
determinado a ser reconhecido como uma potência regional. Tal reconhecimento, em seu ponto
de vista, está intimamente associado ao sucesso de uma grande negociação entre o Irã e o
Ocidente.
Ainda que a intenção desse país não seja o desenvolvimento de armas nucleares, a obtenção
bem-sucedida do ciclo completo de combustível nuclear, incluindo o enriquecimento de urânio,
demonstra um sinal de poder para os vizinhos do Irã e para o mundo, proporcionando uma
espécie de segurança contra ataques. Cada uma das facções do Irã compreende que o programa
nuclear é, em si, um meio de intimidação. Há um claro consenso, no plano doméstico, de que o
Irã precisa manter tal poder de intimidação. Em termos gerais, contudo, o objetivo iraniano não
é transformar-se em outra Coreia do Norte – um detentor de armas nucleares, mas um pária na
comunidade internacional –, e sim em um Brasil ou um Japão; um polo tecnológico capaz de
desenvolver armas nucleares no caso de haver alguma mudança dos ventos políticos, ao
mesmo tempo mantendo a condição de Estado não detentor de armas nucleares no TNP.
O furor causado pelo programa nuclear do Irã não pode ser compreendido sem que se faça
referência à instável situação da segurança do Oriente Médio e às ideologias que travam uma
feroz competição na região. O arsenal nuclear de Israel é um problema que não pode ser
ignorado. É claro que, jamais tendo aderido ao TNP, Israel não tem como violar esse acordo,
mas tal separação em nada contribui para amenizar a ira de seus vizinhos com a visível
assimetria de tratamento e desequilíbrio em termos de segurança regional.
Enquanto isso, tendo em vista o fracasso no sentido de chegar a uma solução sobre o
programa nuclear de Teerã, o Irã continuou a consolidar sua condição de país islâmico mais
poderoso da região. As guerras no Iraque e no Afeganistão, o contínuo sofrimento dos
palestinos e a relutância do Ocidente à imposição de um cessar-fogo durante a guerra no
Líbano, em meados de 2006, entre outros eventos, reforçaram a percepção de que existe um
preconceito ocidental contra os muçulmanos. Um dos poucos países muçulmanos a enfrentar o
Ocidente nesse período, cada vez mais o Irã tem sido considerado por muçulmanos de várias
nacionalidades o único defensor dos direitos que lhe foram usurpados . 135

121 Após um encontro com Condoleezza, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, negou publicamente a
existência de uma proposta russa. Obviamente, sua intenção era manter a unidade das partes em negociação; ele também não
queria discordar dos Estados Unidos em público.

122 O (Parlamento) Majlis jamais ratificou o Protocolo Adicional do Irã, mas os iranianos vinham implementando o acordo em
caráter provisório.

123 Secretário-geral do Conselho da União Europeia e alto representante da UE para Políticas Comuns de Relações Exteriores e
de Segurança.

124 P5+1 (os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança, mais a Alemanha): à época, todos trabalhavam mais ou menos
como uma unidade nas negociações.

125 “Bolton Admits Lebanese Truce Block”, BBC News Online, 22/3/2007.

126 “U.S. Speeds Up Bomb Delivery for the Israelis”, David S. Cloud, New York Times, 22/7/2006.

127 “UK Dismisses Talk of Iran Attack”, BBC News Online, 9/4/2004.

128 Beckett vinha atuando em assuntos de mudança climática, no cargo de secretária de Estado para o Meio Ambiente,
Alimentação e Assuntos Rurais. Ela afirmou ao jornal Sunday Times, em 28 de junho, que quando Blair lhe disse que a nomeara
secretária de Relações Exteriores, sua resposta foi um palavrão.

129 Annan apoiava essa série de princípios, mas sua visita ao Irã não chegou a acontecer.

130 Glenn Kessler, “Early October New Deadline for Iran”, Washington Post, 21/9/2006.

131 Não foi fácil decifrar quais eram as intenções dele. Minha suspeita era de que Aghazadeh e seus colegas estavam se sentindo
pressionados, pois nossos inspetores insistiam para obter a “história completa”, que preencheria as lacunas existentes sobre o
programa nuclear do Irã. Talvez também temesse a suspensão do enriquecimento de urânio; na condição de um dos criadores do
programa de enriquecimento iraniano, Aghazadeh não estava disposto a vê-lo desaparecer.

132 “Visita de transparência” era a expressão usada nos casos em que o Irã permitia, de modo voluntário, que a AIEA visitasse
uma instalação em um local onde a jurisdição da agência não era clara.

133 Sarah Dilorenzo, “Iran Rejects U.N. Resolution and Accuses Security Council of Hypocrisy”, Associated Press, San Diego
Tribune, 23/12/2006.
134 Segundo boatos, algumas autoridades iranianas admitiram que o país nomeou, em 1987, um grupo especial para analisar o
planejamento de uma fábrica de armas nucleares. Esse grupo teria supostamente sido desmantelado no início da década de 1990.
O Irã estaria dividido internamente quanto a revelar tais informações à AIEA. A agência ouviu insinuações semelhantes dos
serviços de inteligência. Mas nunca pudemos confirmar a veracidade de tais boatos.

135 A Turquia também adotou uma série de posturas anti-Ocidente, sob a liderança do primeiro-ministro Recep Tayyip
Erdog˘an, o que lhe garantiu uma enorme popularidade no mundo muçulmano. Como membro da OTAN, é considerada uma
aliada ocidental, mas há uma considerável polêmica sobre sua candidatura a membro da União Europeia – o que tem sido
apontado por muçulmanos como uma prova do preconceito ocidental em relação a eles.

11 • Irã, 2007–2008
OPORTUNIDADES DESPERDIÇADAS

A percepção americana do regime iraniano como uma gangue de radicais irascíveis tinha raízes
emocionais profundas, que remontavam à crise dos reféns de 1979-1981. Para os iranianos, o
sentimento de que os Estados Unidos personificavam o Grande Satã era ainda mais antigo, de
1953, quando a CIA ajudou a derrubar o governo de Mossadegh. Em ambas as capitais, as
discussões sobre as relações entre os dois países geralmente eram envoltas por elementos de
fervor ideológico e até político.
Para os linha-dura da administração Bush, a simples ideia de envolvimento com o Irã
representava um comprometimento moral. Seu objetivo final era a mudança do regime. Mas,
em 2007, a catástrofe da Guerra do Iraque fez um ataque militar contra o Irã não parecer uma
opção viável, pelo menos naquele momento. Por isso a administração criou um plano B: uma
política de sanções e isolamento destinada a fazer o Irã se dobrar sob pressão, especialmente na
questão nuclear.
As sanções serviram para expressar o descontentamento da comunidade internacional, mas,
em minha opinião, não poderiam resolver a questão. E a ideia de que o Irã se dobraria era pura
ficção: podia funcionar em Washington, mas não tinha nada a ver com a realidade. Entretanto,
os linha-dura norte-americanos trabalhavam para sabotar todos os esforços europeus no sentido
de retomar o diálogo com o Irã, especialmente no que dizia respeito ao enriquecimento de
urânio. Quando as condições de entendimento pareciam possíveis, os norte-americanos
descobriam uma forma de bloqueá-las. E quando entravam na discussão, nas tentativas de
reiniciar as negociações na periferia do P5+1, era apenas para estabelecer aquela condição que
certamente seria rejeitada: a exigência inútil de que o Irã desistisse do enriquecimento de
urânio.
O resultado foi um fracasso autoimposto por meio da ideologia. Provocada pelas sanções e
pela retórica dura, Teerã continuou se orientando para o acúmulo constante da técnica de
enriquecimento de urânio. No início de 2007, com algumas centenas de centrífugas operando e
outras sendo instaladas diariamente, os iranianos estavam caminhando para conquistar o know-
how tecnológico que os norte-americanos consideravam inaceitável. Já a política norte-
americana estava conseguindo uma coisa apenas: elevar cada vez mais o preço de um eventual
acordo.
Para fazer as partes retomarem as negociações, comecei a trabalhar em um novo conjunto de
ideias. Mas os Estados Unidos não eram o único país que precisava ser convencido. A França
também havia adotado recentemente uma posição mais inflexível, e eu queria entender por quê.
Durante uma viagem a Paris em meados de janeiro, ouvi de funcionários do Ministério das
Relações Exteriores que suas recentes declarações sobre o Irã visavam manter os norte-
americanos envolvidos no processo. Bush havia conversado com Chirac dois anos antes a
respeito da ameaça bastante real de uma ação militar israelense contra o Irã, e os franceses
ficaram ansiosos. Lembrei-me da estratégia não muito bem-sucedida do Reino Unido antes da
invasão do Iraque em 2003: a afirmação de que estavam próximos dos Estados Unidos para
influenciar a política norte-americana.
Além disso, os países do Golfo e o Egito vinham cobrando que o Ocidente fizesse o máximo
de pressão sobre o Irã. Alguns líderes árabes, por exemplo, tinham insistido com Chirac para
que não enviasse seu ministro das Relações Exteriores, Philippe Douste-Blazy, ao Irã.
Eu entendia que a França, décimo maior consumidor de petróleo do mundo, quisesse
proteger tanto seus amigos quanto seus interesses no Golfo . Mas era desanimador ouvir que
155

os países árabes estavam se opondo à diplomacia em vez de assumir um papel de mediação na


disputa. O espanhol Javier Solana também deu a entender que estava sendo pressionado pelos
líderes árabes a não fazer concessões ou dar incentivos ao Irã.
Os Estados Unidos vinham fazendo tudo o que podiam para espalhar o medo do Irã no
Golfo. Mas, para mim, as ações dos regimes árabes eram principalmente um sinal de sua
impotência. Apesar de todos os erros cometidos por Teerã, os iranianos estavam trabalhando
em todas as frentes, muito além da simples tecnologia nuclear, para se tornarem
cientificamente mais avançados, para melhorar seus padrões educacionais e para afirmar sua
liderança na região. Os regimes árabes, aparentemente, estavam com medo e inveja. Em vez de
trabalhar para acompanhar esse ritmo, melhorar seu próprio conhecimento e base tecnológica,
estabelecendo um equilíbrio em toda a região – ou até firmar uma política comum sobre como
lidar com o Irã –, estavam unindo-se aos esforços de seus aliados ocidentais para derrubar a
República Islâmica .
156

Em um encontro que tive com o ministro das Relações Exteriores francês Douste-Blazy, ele
sugeriu que eu fosse a público e propusesse a ideia de uma “suspensão dupla” para fazer todas
as partes participarem das negociações: o Irã suspenderia suas atividades de enriquecimento de
urânio, e o Conselho de Segurança interromperia as sanções. A ideia não era novidade. Na
verdade, havia sido incorporada até certo ponto na última resolução do Conselho. Mas não
decolara.
Eu disse a Douste-Blazy que ficaria feliz em pedir uma “pausa”, mas queria evitar a palavra
suspensão. O Fórum Econômico Mundial de Davos, marcado para a semana seguinte, seria um
bom lugar para revelar a iniciativa. “Você é a única pessoa que pode fazer isso”, disse Douste-
Blazy, “porque não participa das negociações, e também por causa da sua condição de
ganhador de um Prêmio Nobel da Paz.”
Essa conversa foi seguida de um telefonema de Serguei Kisliak, ministro adjunto das
Relações Exteriores da Rússia. Os russos estavam preocupados porque parecia que os iranianos
não estavam mais falando com ninguém. Mencionei as ideias que haviam surgido em minha
conversa com Douste-Blazy, e Kisliak ofereceu apoio a essa proposta. Tais ideias foram ainda
mais aperfeiçoadas com sugestões de Ursula Plassnik, ministra das Relações Exteriores da
Áustria e amiga próxima, que sugeriu o uso do termo time-out (“intervalo”) em vez de pause
(“pausa”). Um intervalo poderia parecer mais brando, ela argumentou, e, assim, mais
interessante para os iranianos.
Esse foi, de fato, o termo que usei em Davos, em entrevistas para a CNN e para a BBC.
Propus que o Irã fizesse um intervalo em suas atividades de enriquecimento de urânio e a
comunidade internacional, na aplicação das sanções. Seguiram-se manifestações de apoio do
presidente Putin , dos alemães e dos franceses. Os chineses também deram seu apoio, mas
157

preferiram esperar a reunião da diretoria da AIEA em março para se manifestarem


publicamente. Os norte-americanos não rejeitaram a proposta, apenas disseram que a última
resolução do Conselho de Segurança era clara em relação ao que o Irã precisava fazer. Ali
158

Larijani, presidente do Parlamento iraniano, telefonou para dizer que o Irã precisava de alguns
esclarecimentos antes de acatar a ideia formalmente, mas certamente estava interessado.
Enquanto estava em Davos, também encontrei o ex-presidente Khatami e lhe disse que
algumas das declarações de Ahmadinejad – particularmente as que diziam respeito a Israel e ao
Holocausto – eram extremamente prejudiciais para a imagem internacional do Irã. Essas
declarações, combinadas com a incerteza em relação às intenções nucleares devido a questões
de inspeção que continuavam sem solução, estavam fomentando a desconfiança em toda a
região. Khatami lamentou por algumas coisas ditas em Teerã e comunicou que repassaria a
mensagem.
O fórum também foi uma oportunidade para encontrar a presidente da Suíça Micheline
Calmy-Rey e seu secretário de Estado Michael Ambühl, que também estavam tentando
encontrar uma forma de trazer o Irã de volta para as negociações. Durante dois anos, eu
trabalhara com Calmy-Rey e sua equipe, compartilhando ideias sobre os caminhos possíveis
para um comprometimento do Irã em seu programa de enriquecimento de urânio. Os suíços
estavam ansiosos para ver uma resolução pacífica na questão nuclear iraniana e, como
representavam o interesse diplomático norte-americano em Teerã (a “seção de interesses” dos
EUA no Irã faz parte da embaixada suíça), tinham um papel legítimo a desempenhar como
intermediários.
Uma proposta que apresentei em Davos foi que o Irã poderia simplesmente parar de
alimentar as centrífugas com material nuclear. Isso se chama warm standby: as máquinas
continuam a girar, mas sem matéria-prima. Eu não tinha certeza se os norte-americanos e os
outros aceitariam tal proposta, que me permitiria informar que o Irã havia suspendido o
enriquecimento de urânio como solicitado pelo Conselho de Segurança. Os suíços
concordaram em sondar o Irã sobre a ideia.
Seguiram-se semanas caóticas, repletas de telefonemas e sessões de brainstorming com
várias partes. Eu ia e vinha de reuniões com Condoleezza Rice e outros representantes dos
Estados Unidos, tentando encontrar uma forma de fazê-los participar do diálogo. Larijani e
outros iranianos, por sua vez, tentavam encontrar uma forma de suspensão que fosse aceita no
front doméstico iraniano.
Os suíços mantiveram seus esforços na área diplomática. Ambühl encontrou-se com Larijani
em Teerã. Calmy-Rey convidou Larijani para ir a Berna. Kisliak telefonou para dizer que os
diretores políticos do P5+1 pareciam apoiar a “proposta de ElBaradei”, como eles a chamavam.
Mohammad Saeedi, adjunto de Gholamreza Aghazadeh, apareceu para dar esclarecimentos
sobre os possíveis benefícios em concordar com um “intervalo” para ajudar a convencer as
lideranças iranianas. O ministro das Relações Exteriores da Suécia, Carl Bildt, veio me ver,
assim como Kim Howells, secretário de Estado das Relações Exteriores britânico.
Todos queriam participar. Todos tinham um objetivo comum. Mas ninguém parecia
conseguir encontrar uma forma de convencer os conservadores linha-dura nos extremos
opostos da equação.
Reformulei os quatro “princípios para negociação” mais uma vez, tentando adequar de
maneira precisa as preocupações centrais de ambos os lados: confiança, transparência e futuras
intenções. Notei que havia apenas três princípios. Primeiro, o reconhecimento explícito de
todas as partes do direito do Irã de ter o ciclo de combustível nuclear completo, incluindo o
enriquecimento de urânio, com a constatação de que o foco do “intervalo” tinha a ver apenas
com o prazo e as modalidades para o exercício desse direito, a fim de criar oportunidades para
reconstruir a confiança da comunidade internacional em relação às intenções do país. Segundo,
um compromisso do Irã de cooperar com a AIEA, com total transparência, para resolver
questões de verificação pendentes. E, terceiro, um compromisso de ambas as partes para
trabalhar no sentido da completa normalização das relações entre o Irã e o Ocidente, inclusive
nos campos econômico, político e de segurança.
Comecei a vender esses três princípios para os vários diplomatas que trabalhavam na
questão, inclusive Larijani. Em um encontro realizado em Viena, em fevereiro, ele disse que os
princípios pareciam justos e deveriam ser colocados no papel. No entanto, a suspensão, fosse
na forma de intervalo ou não, era, do seu ponto de vista, algo secundário. A questão principal
era a desconfiança entre o Irã e as outras partes, principalmente Europa e Estados Unidos. Ele
citou uma declaração de Tony Blair, feita durante uma visita recente ao Golfo, de que o
Ocidente estava formando uma coalizão de países árabes moderados contra o Irã . Esse 159

pronunciamento despertou antigas suspeitas: Larijani se lembrou de Blair dizendo em 2003 que
o único motivo para o Irã cooperar era a Guerra do Iraque – porque os iranianos viam que o
Ocidente era “sério” e que tal conflito tinha sido um “teste”.
Esses sentimentos, disse Larijani, sabotavam todas as tentativas de avanço. Enquanto o
Ocidente visse o Irã com tanta desconfiança, as discussões sobre a suspensão não teriam o
menor sentido.
“Existem motivos para a desconfiança”, disse eu, mencionando a declaração de
Ahmadinejad a respeito de Israel e do Holocausto.
Isso agora estava “sob controle”, segundo Larijani. Ele disse que, durante as celebrações do
Dia da Revolução, em 11 de fevereiro, Ahmadinejad havia evitado fazer qualquer declaração
sobre o programa nuclear do Irã.
Larijani queria que os norte-americanos também entendessem que o Irã esperava que o
governo de Al-Maliki em Bagdá desse certo: os iranianos não estavam apoiando a milícia xiita
Al-Mahdi, liderada pelo clérigo Moktada al-Sar. A democracia e a estabilidade no Iraque
interessavam ao Irã. Larijani me pediu para levar essas ideias a Condoleezza Rice. “Acredito
que ela seja alguém que vá entender”, disse.
O P5+1 e Solana deram sua resposta para a ideia de “intervalo” no final de fevereiro. John
Sawers telefonou para dizer que eles iriam adotar uma declaração baseada nos três princípios e
na ideia do intervalo duplo, mas queriam tentar uma estratégia de duas vias e forçar outra
resolução do Conselho de Segurança, com mais sanções “limitadas”. A notícia de outra
resolução deixou Larijani consternado. “Se isso prosperar”, ele disse, “será o fim do processo
de negociação.”
Uma conversa com Condoleezza a respeito da situação no Irã me deu a chance de insistir
para que ela reconsiderasse o sequenciamento da estratégia do P5+1. Primeiro, ouvi sua
opinião sobre os três princípios: ela não estava muito entusiasmada com a palavra
“normalização”, nem com que se falasse explicitamente no direito do Irã ao enriquecimento de
urânio. Fora isso, não tinha problemas com a proposta de um “intervalo simultâneo”. Isso era
encorajador. Mas eu reforcei que ir diretamente ao Conselho de Segurança para forçar sanções
dificultaria ainda mais qualquer possibilidade de acordo com o país. “Seria melhor que vocês
discutissem essas ideias primeiro com o Irã antes de recorrer a mais sanções”, aconselhei. Caso
contrário, “vocês vão fortalecer ainda mais os partidários da linha-dura e sabotar os
moderados”.
Condoleezza parecia estar ouvindo atentamente. Às vezes, por sua maneira de fazer as
perguntas, quando eu suspeitava que ela já soubesse qual era a minha resposta, eu tinha a
impressão de que tudo estava sendo gravado e transcrito. A administração Bush estava, pelo
que eu sabia, fraturada internamente em questões de política externa. Condoleezza precisava
organizar todos os argumentos se quisesse convencer os céticos de Washington a se
aproximarem dos iranianos. Talvez ela quisesse que eles ouvissem diretamente o que Larijani
havia dito a respeito do interesse do Irã em um diálogo com os Estados Unidos. Para mim, era
difícil não fazer especulações.
Sentindo-me como um disco riscado, eu repetia que ela deveria tentar envolver o Irã
diretamente. “Isso ajudará vocês no Iraque e também na questão nuclear”, eu insisti. Os
iranianos estavam conversando com os sauditas sobre o Líbano e a Palestina. “Pessoas como
Larijani”, eu disse a ela, “estão sinceramente interessadas no diálogo.” Condoleezza não
discordou, mas também não se comprometeu.
Dois dias após a nossa conversa, Washington anunciou que os Estados Unidos participariam
de uma conferência sobre o Iraque com “países vizinhos”, incluindo Irã e Síria. Os norte-
americanos insistiam em que iriam falar apenas do Iraque, e não a respeito da questão nuclear
iraniana. A sutileza me parecia um pouco infantil; mas eu não me intrometeria. Era um passo à
frente.

Todo o otimismo que eu sentia foi passageiro. A abertura de uma porta era imediatamente
seguida pelo estrondo de outras portas se fechando. A marcha do P5+1 em direção a outra
resolução do Conselho de Segurança, apesar de inútil, parecia inevitável, principalmente
porque, aparentemente, nem os russos nem os chineses exerceriam seu poder de veto. No
entanto, houve uma intensa atividade diplomática que visava a deter o avanço.
Os suíços elaboraram um documento que definia as linhas em discussão. Apesar dos sinais
indicando que as autoridades americanas não queriam interferência externa, Ambühl
apresentou o documento a Larijani em Teerã . Eu avisei que essa era provavelmente a última
160

chance de o Irã evitar outra resolução polêmica do Conselho de Segurança. Os suíços, então,
tentaram todos os argumentos que podiam para convencer o Irã dos benefícios de aceitar a
suspensão total. Mas os iranianos só concordariam com um processo em duas fases, no qual
congelariam suas atividades de enriquecimento de urânio – isto é, não iriam expandi-las ainda
mais – por trinta dias de “prenegociação” durante os quais as partes determinariam
conjuntamente o “alcance” do “intervalo duplo” a ser seguido. Esse intervalo então passaria a
valer por seis meses, enquanto as negociações realmente ocorriam. Isso representaria uma
concessão da parte do Irã, mas não era o suficiente.
Larijani me avisou que, se o Conselho de Segurança aprovasse outra resolução, o Irã
colocaria um fim nas inspeções da AIEA em Natanz. Isso seria outro caso de descumprimento,
eu disse a ele, e só poderia piorar o impasse. “Eu sei das implicações”, Larijani respondeu, mas
a decisão viria do governo iraniano. Ele havia tentado retardar essa ação por seis meses, mas
não conseguiria fazer isso por mais tempo.
Em meio a toda a comoção diplomática, o Irã continuou a aumentar sua capacidade de
enriquecimento de urânio. Quando nossos inspetores visitaram Natanz, no dia 20 de março,
eles viram que o país havia instalado um total de mil centrífugas. Era irônico e angustiante
lembrar que, apenas um ano antes, o programa nuclear iraniano poderia ser interrompido com
30 a 40 centrífugas. O argumento dos EUA de que o Irã deveria ser impedido de ter
conhecimento para realizar o enriquecimento de urânio eram águas passadas: os especialistas
iranianos vinham executando pequenas cascatas de centrífugas havia mais de um ano.
Levando isso em conta, preparei meu relatório sobre o Irã para o encontro com a diretoria da
AIEA em março. O adjunto de Larijani, Javad Vaeedi, tinha dado uma entrevista recentemente,
em que alegava falsamente que um comentário em meu relatório anterior – de que a AIEA não
estava em posição de verificar a natureza pacífica do programa do Irã – havia sido “plantado”
na agência pelo embaixador norte-americano. Isso me deixou irritado: a agência havia alterado
sua maneira de trabalhar para tratar do caso iraniano objetiva e profissionalmente. Era
inaceitável que o Irã questionasse nossa integridade.
Decidi ser bastante contundente no relatório que estava preparando: a AIEA não poderia
realmente chegar a nenhum veredicto sobre o programa iraniano. A posição do Irã, eu escrevi,
era sui generis: durante vinte anos o Irã havia trapaceado em sua obrigação de prestar
informações. Consequentemente, não tínhamos alternativa a não ser reconstruir toda a história
de seu programa. Até que respondessem às nossas perguntas e preocupações com explicações
conclusivas e satisfatórias, permaneceriam no banco dos réus.
A reunião da diretoria da AIEA ocorreu em meio a muita tensão. Um projeto de resolução
do Conselho de Segurança com sanções estava sendo elaborado. Abdul Minty, representante da
África do Sul, me falou dos esforços diplomáticos que eles também estavam fazendo no
Conselho de Segurança. Os Estados Unidos e o G3 teriam preferido que a África do Sul e o
presidente Thabo Mbeki, com sua influência entre os países em desenvolvimento, se
abstivessem de tentar encontrar uma solução. Mas a África do Sul fazia questão de colaborar.
Ao lado da Suíça, estava preparada para envolver-se em um esforço que levasse à resolução da
questão nuclear iraniana por meio da negociação e do diálogo, de acordo com os princípios do
TNP. Além disso, tinha participação no Conselho de Segurança e não tinha medo de usá-la.
Embora o P5+1 tendesse a dominar o processo, o embaixador sul-africano em Nova York,
Dumisani Kumalo, declarou ao Conselho que seu país não estava ali apenas como enfeite.
Eu revelei a Minty que, em minha opinião, a menos que se descobrisse algo rapidamente,
estávamos caminhando para um desastre. Ele disse que falaria com seus colegas de governo e,
já no dia seguinte, a África do Sul submeteu uma série de emendas ao projeto de resolução do
Conselho de Segurança. Entre elas estava a sugestão de um intervalo de noventa dias. Eles
ajustaram as sanções propostas e se concentraram no programa nuclear. Esclareceram que
qualquer decisão para abolir uma suspensão seria baseada no julgamento técnico da AIEA, e
não no julgamento político do Conselho.
As emendas sul-africanas poderiam ter criado problemas para as potências ocidentais, que
estavam determinadas a adotar a resolução por unanimidade. O P5+1 ignorou as propostas da
África do Sul em público, mas começou a agir imediatamente nos bastidores para exercer
pressão sobre outros governos – assim como sobre Johanesburgo – para que votassem a favor
da resolução sem alterações. Sua tática funcionou; Minty me telefonou um dia antes da adoção
da resolução para dizer que nenhum dos oito membros do Conselho havia se declarado a favor
das emendas propostas. No final, os esforços da África do Sul tinham apenas retardado o
inevitável.
O Conselho de Segurança adotou a Resolução 1747 por votação unânime no dia 24 de
março de 2007, exigindo mais uma vez que o Irã acatasse a suspensão do seu programa de
enriquecimento de urânio. As sanções incluíam a proibição de importar e exportar armas do
Irã, o congelamento de bens e restrições às viagens de indivíduos envolvidos nas atividades
nucleares do país. O embaixador britânico, Sir Emyr Jones-Parry, leu uma declaração em nome
do P5+1 expressando a disposição de continuar as discussões com o Irã. A declaração
propunha o reinício das negociações com base na linguagem que eu havia proposto. É claro
que minha sugestão era apresentar essas ideias confidencialmente ao Irã antes de adotar uma
resolução, e não publicamente, junto com as punições.
O interessante era que a declaração de Jones-Parry dizia que o objetivo da resolução era
“eliminar a possibilidade de o país adquirir a capacidade de produzir armas nucleares”. Isso
estava muito longe da linguagem usada anteriormente pelos Estados Unidos e outros países que
haviam expressado sua certeza de que o Irã já tinha um programa de armas nucleares – certeza
absoluta, como disse uma vez Jack Straw, sem que houvesse “um único indício” de prova . A 161

partir desse ponto, os norte-americanos mudaram o discurso para falar apenas das “ambições”
ou “intenções” iranianas quanto às armas nucleares. Era uma pequena mudança.

Em meados de 2007, nossos inspetores haviam concluído que os iranianos tinham instalado um
total de dez cascatas de 164 centrífugas no subsolo das instalações industriais de
enriquecimento de urânio, em Natanz. Outras três cascatas estavam sendo construídas e mais
duas funcionavam acima do solo, na planta-piloto.
Segundo Olli Heinonen, o Irã havia alcançado seu objetivo explícito de enriquecimento de
urânio a 5%. Nossos especialistas avaliaram que eles tinham adquirido praticamente todo o
know-how necessário para o procedimento. E o ritmo de expansão estava aumentando. “Eles
agora estão instalando uma cascata por semana”, disse Olli. “De acordo com nossas
estimativas, se continuarem nesse ritmo, terão 3 mil centrífugas até o final de junho, e 8 mil até
o Natal.” Isso colocaria os iranianos no caminho da capacidade industrial de enriquecimento de
urânio. É claro que eles não viam mais sentido em impedir o avanço.
Nesse momento, imaginei quatro possíveis cenários futuros para o programa nuclear do Irã,
que tive a oportunidade de expor explicitamente em uma reunião na Espanha com o primeiro-
ministro José Zapatero e seu ministro das Relações Exteriores, Miguel Moratinos.
A primeira possibilidade era a de que o Irã escolhesse voluntariamente voltar ao
enriquecimento zero (suspensão total), o que parecia bastante improvável.
A segunda era a de que os iranianos pudessem ter um pequeno programa de P&D em
enriquecimento, como tentativa de salvar as aparências. Em troca, eles poderiam ser solicitados
a congelar, por alguns anos, seus esforços de entrar na escala industrial. O país também teria de
permitir que a AIEA fizesse inspeções consideráveis para poder verificar a ausência de
atividades nucleares não declaradas – o aspecto mais importante de não proliferação. O Irã
teria de ajudar a resolver quaisquer questões de inspeção pendentes. E, para isso, precisaria se
comprometer a subscrever indefinidamente o TNP.
A terceira possibilidade era o statu quo: continuar com o impasse inútil em torno das
negociações com o Ocidente, aprovando mais resoluções e sanções, enquanto o Irã caminhava
firmemente em direção ao limiar do enriquecimento em escala industrial, sem a inspeção
adequada ou o Protocolo Adicional, e sem esclarecer questões a respeito de seus programas do
passado e do presente.
Havia uma quarta possibilidade. Os radicais ocidentais poderiam bombardear o Irã. Isso
produziria um Armaguedom no Oriente Médio, região já volátil e caótica.
Em minha opinião, a única opção era a segunda.
Zapatero e Moratinos estavam entre os líderes que levavam muito a sério a crescente ameaça
de uma grande conflagração e convenceram outros – incluindo o ministro italiano das Relações
Exteriores, Massimo D’Alema, e o primeiro-ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Juncker – a
se prepararem para apoiar toda iniciativa diplomática que pudesse evitar um choque.
Enfrentar a verdade sobre onde estávamos parecia importante, mas meus esforços para trazer
clareza sobre a questão acirraram os ânimos. Em 15 de maio de 2007, dei uma entrevista para
David Sanger, do New York Times, na qual afirmei que o Irã já havia adquirido o know-how
para enriquecer urânio, mesmo que ainda precisasse aperfeiçoá-lo. “As pessoas não vão gostar
de ouvir isso, mas é um fato”, eu disse, acrescentando que o objetivo da exigência de
suspensão – que significava negar ao Irã esse conhecimento – havia sido “atropelado pelos
acontecimentos”.
Repeti a mesma fala em uma longa entrevista ao Grupo Vocento , agência de comunicação
162

espanhola, acrescentando que para mim era incompreensível que os norte-americanos


estivessem dispostos a conversar com os iranianos a respeito da segurança no Iraque, mas não
sobre a questão nuclear. Também critiquei a falta de avanço no desarmamento.
Os norte-americanos e os franceses ficaram furiosos. Greg Schulte, embaixador norte-
americano, deixou um recado de Condoleezza Rice dizendo que, para sua grande decepção,
minhas declarações para a mídia estavam minando a unidade da comunidade internacional e
seus esforços diplomáticos. Segundo ela, eu estava motivando aqueles que queriam usar a força
militar.
“Diga a Rice”, eu falei para Schulte, “que estou igualmente decepcionado pelo fato de ela
não ter entendido o objetivo das minhas declarações, que visam a mostrar que a estratégia atual
não está funcionando e que ainda há possibilidade de acertá-la.” Expliquei para ele os quatro
cenários que havia imaginado como alternativas para o futuro do Irã. O pior resultado possível
– o uso da força – continuava a ser um perigo. Eu falei a ele de uma entrevista que John Bolton
havia dado no mesmo dia na Fox News, na qual ele dava a entender que os Estados Unidos
ainda poderiam seguir esse caminho .163

Para Schulte, os norte-americanos não confiavam nos iranianos. “Isso era óbvio”, eu
respondi. Os Estados Unidos, ele acrescentou, precisavam manter sua “clareza moral” até que
o Irã cedesse à resolução do Conselho de Segurança. A escolha das palavras não era boa;
pensei em perguntar quando os Estados Unidos alcançariam “clareza moral” suficiente para
livrar-se de seu arsenal nuclear, mas fiquei em silêncio.
Quando eu já estava de saída, Schulte deu a entender que, se a agência fosse “politizada” –
isto é, se eu fosse continuar a falar nos mesmos termos, imaginei –, Rice havia dito a ele que os
norte-americanos poderiam dar ao orçamento da AIEA o mesmo tratamento recebido pela
União Postal Universal. Era uma referência a uma discussão que eu levara muitas vezes à
AIEA, de que os Estados-membros deveriam distinguir as agências da ONU em relação a
atribuições e prioridades orçamentárias.
Aquilo era um ataque gratuito, e eu disse isso a Schulte. “Vocês são sempre os primeiros a
se beneficiar com a agência”, eu declarei. “E, se os Estados-membros decidirem não pagar suas
taxas, ficarei feliz em fechar as portas da agência.”
Dois dias depois, em 25 de maio, Schulte retornou com os embaixadores da França e da
Inglaterra para fazer uma diligência formal. Conseguiram arrastar com eles o relutante
embaixador-adjunto japonês, Shigeki Sumi . Ele ficou sentado em silêncio durante toda a
164

reunião e depois disse a alguns colegas que estava constrangido, mas tinha ordens para
participar dela. Suspeito que os japoneses tenham sido recrutados no lugar dos alemães, que
declinaram da participação.
Os embaixadores repetiram a mesma retórica a respeito das minhas declarações públicas: eu
estava dividindo a comunidade internacional e sabotando o Conselho de Segurança e a
diretoria da AIEA. Os franceses e os norte-americanos disseram que também estavam
insatisfeitos com minhas declarações sobre o desarmamento, que, segundo Schulte, não faziam
parte das minhas atribuições. Era meu dever, eu respondi, aconselhá-los sobre a não
proliferação nuclear, já prevendo a aproximação de uma crise. Além disso, segundo o Estatuto
da AIEA, a agência deveria promover “o estabelecimento do desarmamento nuclear com
salvaguardas”. Quando falava em fóruns externos, eu não era um diretor-geral da agência,
representando a visão da diretoria, mas um servidor público internacional. “Há dez anos”, eu
falei, “venho chamando a atenção para a ligação entre a proliferação nuclear e o ritmo lento em
direção ao desarmamento, e vou continuar a fazer isso.”
Lembrei Schulte de que, quando convinha aos norte-americanos, como no caso do acordo
nuclear EUA-Índia, eles se referiam a mim como “o guardião do TNP”, mas, quando eu falava
contra suas políticas de controle de armas, meu papel era o de vilão. Quando o embaixador
francês François-Xavier Deniau insistiu com o fato de o Irã ter um programa de armas
nucleares, eu o lembrei de que, na época das inspeções no Iraque, ele havia me informado
pessoalmente que o Iraque havia retido “pequenas quantidades” de armas químicas e
biológicas, alegação que acabou por se mostrar falsa. Ele não respondeu.
Não obstante o alarmismo ocidental, a rápida expansão do Irã em suas operações nucleares,
após um longo período de relativa contenção, realmente era motivo para se preocupar.
Assinalava uma mudança: resignação ao fato de que o Ocidente não mostraria flexibilidade
nem faria acordo e determinação em buscar a tecnologia que muitos iranianos viam como uma
conquista nacional. Da perspectiva iraniana, a aceleração provavelmente também visava a
pressionar o Ocidente a aprovar um acordo que não levasse o país a suspender totalmente seu
programa de enriquecimento.
Minha percepção foi confirmada pelo secretário de Estado suíço, Michael Ambühl, ao voltar
de mais uma visita a Teerã. Os iranianos estavam dificultando suas posições. Dois meses antes,
eles estavam dispostos a considerar o congelamento das atividades de enriquecimento no nível
de P&D enquanto durassem as negociações. Dessa vez, Larijani não tinha assumido nenhum
compromisso quanto a “congelamento” ou intervalo durante as negociações. Ele parecia
disposto apenas a se comprometer a não enriquecer urânio além de 5%. Pela primeira vez, ele
mencionou a possibilidade de que o Irã poderia enriquecer urânio a 20% para atender às
necessidades de combustível de seus reatores nucleares.
Diante dessas notícias, pressionei o Irã publicamente a considerar uma moratória
autoimposta sobre a expansão do enriquecimento de urânio. Concedi uma entrevista para um
documentário da Radio 4 da BBC, ressaltando os altos riscos em jogo . “Não vejo outra
165

solução a não ser tentar evitar o início de outra guerra ou que comecemos a nos matar uns aos
outros”, afirmei. “Vocês não vão querer dar mais argumentos para os novos malucos que
dizem ‘vamos bombardear o Irã’.” Um ataque militar contra suas instalações nucleares, eu
declarei, seria “um ato de loucura”. Todo mundo queria saber o que eu queria dizer com
“novos malucos”. Deixei que tirassem suas próprias conclusões.
A diplomacia estava perdendo terreno. Precisávamos de um novo rumo. Dessa vez ele
surgiu com Larijani. Mais conservador do que moderado, Larijani era, no entanto, um
pragmático persistente, com uma mente astuta, clara e lógica – além de ser doutor em filosofia
ocidental. Da mesma forma que Rowhani, seu antecessor, algumas de suas lutas mais difíceis
foram travadas em casa, trabalhando dentro do sistema político labiríntico de Teerã. A
autoridade no Irã era uma coisa difusa, dividida entre o exército, a Guarda Revolucionária, o
presidente, o clero, o Parlamento (Majlis), o líder supremo e outros grupos menos visíveis. Isso
explicava a lentidão do processo deliberativo no Irã e suas oscilações. Ao contrário da maioria
dos países do mundo árabe, em que um único líder forte controlava tudo por imposição, no Irã
as decisões eram tomadas por consenso. Eu às vezes me referia ao regime como “uma
democracia dentro da teocracia”. Quaisquer que fossem seus méritos ou defeitos, o sistema
estava se mostrando terrivelmente frustrante para Larijani: ele simplesmente não tinha o apoio
necessário para avançar na área diplomática.
Ainda assim, houve quem desse ouvidos aos seus apelos para a contenção. Fiquei animado
com o fato de, após a resolução do Conselho de Segurança, o Irã não ter cumprido sua ameaça
de bloquear completamente as inspeções da AIEA em Natanz. Eles aplicaram algumas
restrições simbólicas e deixaram por isso mesmo. Era óbvio que algumas pessoas dentro do Irã
ainda achavam que valia a pena jogar de acordo com as regras.
Então, sem avanços nas negociações do P5+1, Larijani decidiu concentrar seus esforços em
outra parte. Em nossas conversas, eu o pressionava sobre a necessidade de esclarecer questões
de inspeção pendentes e mostrava os vários benefícios disso. Essas questões incluíam, por
exemplo: preocupações não resolvidas em relação à aquisição de centrífugas; dúvidas sobre a
fonte de partículas de urânio enriquecido encontradas em alguns locais; aparentes discrepâncias
no controle das atividades da Organização de Energia Atômica do Irã na mina de urânio de
Gchine; atividades de aquisição questionáveis por um ex-chefe do Centro de Pesquisas Físicas
do Irã; e acusações de que o Irã teria realizado estudos para desenvolver armamentos. No dia
26 de junho, Larinaji veio ao meu encontro em Bad Tatzmannsdorf, sul de Viena, onde se
realizava uma reunião dos gestores da agência. Ele estava acompanhado de um dos seus
adjuntos, Ali Monfared. Com sua falta de habilidade de vencer obstáculos, Larijani parecia
mais desanimado do que nunca. Agora havia rumores de um desentendimento com
Ahmadinejad. Esse encontro me parecia um último esforço de Larijani em encontrar uma
forma de avançar.
O Irã, ele anunciou, estava pronto para resolver os detalhes de um plano de trabalho com a
agência a fim de tratar de algumas das preocupações pendentes da AIEA. Poderíamos começar
com questões que seriam relativamente fáceis de resolver, como as discrepâncias de datas e as
quantidades e tipos de material envolvido nas experiências do Irã com plutônio. Larijani
propôs que a agência solicitasse medidas de inspeção específicas, sem mencionar o Protocolo
Adicional, que o Parlamento (Majlis) já tinha decidido não colocar em prática.
Fiquei satisfeito ao ver o Irã dar esse passo para cooperar com a agência. Prometi enviar um
grupo a Teerã para começar a trabalhar nos detalhes. Também insisti em que Larijani fizesse o
possível para brecar a expansão da capacidade de enriquecimento de urânio do país. Eles não
precisavam de mais desenvolvimento para propósitos de P&D, e isso servia apenas para
provocar o Ocidente.
Em um plano de trabalho em conjunto, o congelamento na expansão seria um sinal positivo.
Na verdade, os iranianos deram algumas demonstrações de boa vontade, como permitir que os
inspetores da agência visitassem o pesado reator de água que estava sendo construído em Arak.
Os inspetores também notaram uma desaceleração notável na instalação de novas cascatas de
centrífugas em Natanz. Seguiu-se uma série de encontros em Teerã e Viena para tratar do
plano de trabalho. Mas, em certos pontos críticos, tivemos dificuldade em conseguir um
compromisso firme dos iranianos. Decidi enviar uma equipe de “pesos-pesados” a Teerã para
dar um impulso final no fechamento dos detalhes: Olli Heinonen, que agora era diretor-geral
adjunto de salvaguardas; Vilmos Cserveny, chefe de Relações Exteriores da agência; e Johan
Rautenbach, consultor jurídico. Para pressionar o Irã, acertei com Olli que ele me telefonaria
do hotel em Teerã para me informar sobre os avanços; sabendo que nossa conversa seria
gravada, fui duro com os iranianos pelo telefone.
No dia 27 de agosto de 2007, Olli telefonou para dizer que eles haviam concordado com um
calendário de três meses para resolver todas as questões de inspeção pendentes. Para contornar
a resistência dos linha-dura de Teerã, o plano usava linguagem indireta ou vaga – em excesso,
para o meu gosto de advogado – em certos tópicos. Mas tínhamos vantagem, pois seríamos os
juízes da implantação do plano de trabalho pelo Irã. Também tínhamos acertado com Larijani
que ele faria o que pudesse para garantir um resultado bem-sucedido.
Larijani telefonou logo após os termos do plano terem sido concluídos e aceitos por Teerã.
Seu tom era de otimismo – muito mais do que eu ouvia havia algum tempo. Ele me agradeceu
por todo o trabalho de Olli e sua equipe. O fato de a liderança de Teerã ter assinado o plano de
trabalho era sem dúvida uma vitória da defesa de Larijani pela cooperação com a agência e a
aproximação com o Ocidente. Ele também me pediu para continuar a ressaltar a importância da
retomada das negociações do Irã com o P5+1.
Eu disse a Larijani que o importante naquele momento era implementar o plano de trabalho
de boa-fé, de acordo com a programação. Caso contrário, seria um tiro no pé, reforçando os
argumentos daqueles que inevitavelmente insistiriam em que o Irã estava apenas tentando
ganhar tempo.
Foi o que os norte-americanos fizeram rapidamente: minimizaram a importância do plano de
trabalho e procuraram defeitos nas disposições mais mal formuladas. Lançaram dúvidas quanto
à sinceridade do compromisso assumido pelo Irã. O plano deixou-os nervosos: o aumento na
cooperação do Irã com a AIEA enfraqueceria suas chances de convencer a China e a Rússia a
concordar com a imposição de mais sanções. Além disso, se Teerã conseguisse resolver as
questões pendentes em relação ao seu programa nuclear, a exigência do Conselho de
Segurança para que o país suspendesse o enriquecimento de urânio perderia qualquer base
lógica.
Seguiu-se uma blitzkrieg total na mídia. O Washington Post publicou um editorial intitulado
“Regulador trapaceiro”:

ElBaradei deixou claro que se considera acima da sua posição como servidor público da ONU. Em vez de colocar em
prática a política do Conselho de Segurança ou da diretoria da AIEA, para a qual trabalha, o Sr. ElBaradei comporta-se
como se fosse independente deles, livre para ignorar suas decisões e usar sua agência para contrariar seus principais
membros – acima de tudo os Estados Unidos.166

O artigo prosseguia acusando-me de trabalhar como freelancer e condenando a AIEA por


“fazer o próprio acordo com o regime iraniano”.
A Economist também fez suas críticas:

ElBaradei está usando o acordo com o Irã para interferir diretamente no debate político, em vez de se limitar a um olhar
imparcial para as salvaguardas. O Sr. ElBaradei pode acreditar que está abrindo espaço para a diplomacia, mas aliviar a
pressão sobre o Irã pode tornar ainda mais difícil encontrar uma solução diplomática. 167

Como era de prever, o Jerusalem Post foi mais além nos ataques, com afirmações do tipo
“ElBaradei é um homem de integridade dúbia” e “ElBaradei tem sido o maior defensor
internacional do Irã” e até “ElBaradei usou seu poder para facilitar a proliferação de energia
nuclear para fins militares” . Uma colunista do Al-Hayat, um dos principais jornais do mundo
168

árabe, me acusou de estar desobedecendo às resoluções do Conselho de Segurança, tentando


dar ao Irã uma forma de evitar sanções adicionais e aperfeiçoar sua tecnologia.
Até o New York Times não economizou palavras em um longo perfil que me descrevia como
alguém no meio-termo entre “as melhores esperanças de todo mundo” e “embriagado com o
poder do Nobel” . Uma jornalista achou que a matéria do Times me definia como um “maluco
169

ditatorial” . Em Viena, os norte-americanos teriam demonstrado sua irritação mais


170

concretamente. Abdul Minty, embaixador da África do Sul, relatou que ouviu um jornalista
dizer que os norte-americanos estavam planejando orquestrar uma campanha com a AIEA para
produzir um voto de desconfiança em mim por eu estar ultrapassando minhas atribuições. O
jornalista tinha anotado os nomes de vinte países com os quais os norte-americanos pretendiam
fazer lobby para obter apoio. Fiquei sabendo que a mídia havia recebido essa informação de
Chris Ford, secretário de Estado adjunto para Controle de Armas dos Estados Unidos. De
qualquer forma, depois que o boato chegou até a Associated Press , a missão norte-americana
171

negou publicamente a existência de qualquer campanha desse tipo.


Havia uma grande ironia nesses ataques. Não era novidade para mim ser punido por falar ou
agir além dos limites. Na maioria das ocasiões anteriores, as acusações tinham surgido em
resposta às minhas cobranças por avanços mais rápidos no desarmamento ou comentários
acerca do valor limitado das sanções do Conselho de Segurança como estratégia diplomática
isolada. Dessa vez eu estava sendo acusado de trabalhar de maneira independente para tentar
implementar uma missão de verificação fundamental da AIEA. No início de agosto, pudemos
relatar progressos para a diretoria quanto ao plano de trabalho: várias questões de verificação
nuclear tinham sido resolvidas porque o Irã havia fornecido informações que buscávamos
havia muito tempo. Mas esse sucesso foi condenado. A verdade era que os norte-americanos só
queriam mostrar o Irã como um Estado pária não cooperativo, que violava as obrigações
internacionais e por isso merecia continuar a ser punido. Meus relatórios estavam atrapalhando
a rota de ação preferida dos norte-americanos.
Para qualquer um que se importasse, as cartas agora estavam na mesa. Os linha-dura do
Ocidente não estavam preocupados em esclarecer as questões pendentes. Do contrário,
concentravam-se em negar ao Irã a tecnologia por meio do isolamento, do confronto retórico e
dos jogos ideológicos. Talvez esse fosse o negócio deles, mas não era o meu. E eu não ficaria
quieto assistindo àquilo enquanto extremistas plantavam a semente de outra guerra devastadora
no Oriente Médio.
A disposição da imprensa em ser manipulada era particularmente preocupante. Algumas das
frases-chave usadas para criticar a AIEA foram repetidas pelos principais órgãos da imprensa
norte-americana, o que me fez pensar se o governo dos EUA estava por trás de uma campanha
orquestrada. Isso me fez lembrar do período anterior à Guerra do Iraque. Era interessante que,
em todas as análises, não houvesse uma única contestação consistente em relação às políticas
ou passos que eu havia dado. Os argumentos se concentravam em lançar dúvida sobre o meu
caráter e minhas motivações.
Eu dei o troco. Concedi várias entrevistas deixando claro que a AIEA não havia visto
nenhuma instalação não declarada no Irã nem qualquer atividade ligada a armamentos. Por
isso, eu disse que, em nossa avaliação, o Irã não constituía perigo que exigisse qualquer tipo de
ação além da diplomacia. O que era necessário em todo o Oriente Médio era uma “força
branda”: educação, diálogo intercultural, boa governança e desenvolvimento. Qualquer uso de
força, eu declarei, transformaria o Oriente Médio em uma bola de fogo.
Enquanto isso, as negociações com o P5+1 não avançavam. Apesar dos esforços de Larijani
para retomar as “prenegociações”, Solana foi impedido pelos norte-americanos de continuar.
Ele disse a Larijani que eles poderiam se encontrar depois que o plano de trabalho tivesse sido
concluído. Por outro lado, os russos e os chineses afirmaram aos outros membros do P5+1 que
não apoiariam outro conjunto de sanções. Dessa forma, o único jogo possível, naquele
momento, era o trabalho da AIEA com os iranianos nas questões pendentes.
Na reunião da diretoria, em setembro, eu tinha visto a declaração que estava sendo elaborada
pelo EU-3. Era bastante negativa. Omitia, claramente, a costumeira expressão de apoio à
agência e a seu diretor-geral como imparciais e profissionais. Eu sabia que os franceses vinham
tentando apagar essa frase nas últimas reuniões da diretoria. Dessa vez eles tinham conseguido.
Decidi que a melhor resposta era sair durante o discurso, e foi o que eu fiz. Esse gesto,
aparentemente singelo, foi amplamente divulgado na mídia. O efeito foi enviar uma mensagem
ao restante dos países europeus para que não se deixassem atrair pelo comportamento
imprudente de um ou dois países da União Europeia, nesse caso, a França . 172

Bernard Kouchner, o novo ministro das Relações Exteriores da França, declarou em uma
entrevista a respeito do Irã na Rádio RTL que “temos de nos preparar para o pior, e o pior é a
guerra”. Sua entrevista ocorreu exatamente quando a AIEA estava começando sua Conferência
Geral anual. Em resposta pública, lembrei que, sob a lei internacional, havia regras para o uso
da força militar, incluindo a aprovação do Conselho de Segurança. Muitos políticos, inclusive
os alemães e os russos, reagiram com firmeza à declaração de Kouchner, e ele agiu
prontamente para retirar o que dissera .
173

Depois de toda a comoção a respeito do plano de trabalho, no final de setembro o P5+1


endossou-o, insistindo para que o Irã “produzisse resultados palpáveis rápida e concretamente,
esclarecendo todas as preocupações e questões pendentes”. Os chineses e os russos já haviam
deixado claro que apoiavam o plano. Eu soube que o EU-3 havia alertado os EUA sobre os
ataques à agência, classificando-os como contraproducentes, que o tiro poderia sair pela
culatra.
Qualquer que fosse a razão, os norte-americanos também mudaram rapidamente de posição.
Uma semana antes, Condoleezza Rice tinha acertado um golpe contra a agência e, por
extensão, contra mim . “A AIEA não está no negócio da diplomacia”, ela declarou. “A AIEA é
174

uma agência técnica com um conselho de governos, do qual os Estados Unidos são membro.”
Depois, em uma reviravolta bastante diplomática, Nicholas Burns, subsecretário de Estado para
Negócios Políticos, quando questionado a respeito das críticas dos Estados Unidos ao plano,
dava a entender que os norte-americanos sempre o apoiaram.
As complicadas manobras políticas tanto em Washington quanto em Teerã dificultavam o
avanço. Quando continuei a insistir para que os iranianos não expandissem sua capacidade de
enriquecimento de urânio além de 3 mil centrífugas e para que implementassem o Protocolo
Adicional, Larijani disse: “Estou fazendo o melhor que posso, mas você precisa entender que
estou trabalhando em um ambiente difícil”. Mesmo tendo uma visão em primeira mão, era
difícil entender a dinâmica da situação política iraniana. A estrutura de tomada de decisões,
lenta e difusa, acrescida ao que parecia ser uma cultura de negociação de bazar, tornara difícil
lidar com os iranianos.
O lado norte-americano não era menos sombrio. A estratégia da repetição obstinada, na falta
de qualquer prova, de que o Irã pretendia produzir armas nucleares parecia convencer o público
norte-americano e até o Congresso – e às vezes os norte-americanos pareciam perplexos ou
irritados por não conseguirem convencer boa parte da comunidade internacional. No final de
2007, participei de uma reunião de inteligência com a missão norte-americana. Entre outros
tópicos, eles repetiram suas suspeitas de que o Irã, pelo menos no passado, havia conduzido
experiências e adquirido certos equipamentos e substâncias que só podiam ser interpretados
como uma indicação de que pretendiam desenvolver armas nucleares . No entanto, 175

reconheciam – como na maioria dos encontros da Inteligência norte-americana anteriores – que


não havia indicações de que o Irã tivesse material nuclear não declarado. Depois do fracasso no
Iraque, a comunidade de inteligência norte-americana tinha ficado mais circunspecta em suas
avaliações. O encontro serviu sobretudo para confirmar o que eu já vinha dizendo, e ainda
assim essa cautela, de alguma forma, não definia a postura pública norte-americana.
No final desse encontro, Schulte me entregou uma foto minha com Rice, tirada em nosso
último encontro. Ela havia autografado: “Com admiração e os melhores cumprimentos”. Achei
engraçado, pois foi logo após um desentendimento público entre nós. Mas o gesto ilustrava a
natureza contraditória e dividida da política americana-iraniana.
Simultaneamente ao meu encontro com a Inteligência dos Estados Unidos no outono, Bush
fez uma série de comentários estranhos sobre a situação do Irã. Um discurso para a Legião
Americana, em Reno, foi pontuado por imagens incendiárias: “A busca ativa do Irã por
tecnologia que possa levar a armas nucleares ameaça colocar uma região, já conhecida por sua
instabilidade e violência, sob a sombra de um holocausto nuclear” . Em uma coletiva de
176

imprensa realizada no dia 17 de outubro, ele observou: “Tenho dito às pessoas que, se elas
estiverem interessadas em evitar a III Guerra Mundial, então devem evitar que [os iranianos]
tenham o conhecimento necessário para fazer uma arma nuclear” . Falando para um canal de
177

notícias alemão em 14 de novembro, ele arremessou mais uma granada verbal: “Se você quiser
ter uma III Guerra Mundial, só precisa soltar uma bomba atômica em Israel” . Eu não sabia se
178

o objetivo dessas declarações era elevar a pressão contra o Irã ou preparar as bases para um
ataque militar; de qualquer forma, eram irresponsáveis e evocavam o início de 2003 . 179

Ainda assim, na mesma época, Rice fez observações que pareciam destinadas a baixar o
tom. “O caminho a seguir”, ela disse à TV RTR de Moscou, “é dar todas as possibilidades e
apoio aos esforços de Mohamed ElBaradei para resolver as questões pendentes dos programas
do Irã.”
Espere. Eu tinha ouvido direito? Rice prosseguiu: “Não se trata de saber se atualmente o Irã
tem uma arma nuclear. Trata-se da capacidade de enriquecimento e reprocessamento de urânio,
o chamado ciclo do combustível”.
Tentei encontrar um fio condutor. Por um lado, o risco nuclear iraniano foi caracterizado
como menor do que se imaginava anteriormente – não mais uma questão de posse iminente de
uma arma nuclear pelo país, mas de sua futura intenção em tê-la. Por outro lado, o Conselho de
Segurança tinha invocado o capítulo mais sombrio da Carta da ONU, e Bush estava pronto
para pegar suas metralhadoras e começar a disparar. Enquanto isso, a um continente de
distância, a Coreia do Norte, com uma geração de crianças debilitadas pela desnutrição, ainda
assim desviava todos os seus esforços para a realização de um teste nuclear bem-sucedido,
sendo, porém, tratada com luvas de pelica pelos mesmos Estados Unidos que condenavam o
Irã.
Apenas alguns poucos senadores e congressistas norte-americanos preferiam dialogar com o
Irã. O senador Arlen Specter, ainda no Partido Republicano naquela época, entrou em contato
comigo várias vezes para que eu intermediasse uma visita a Teerã .180

A última solicitação nesse sentido foi feita depois que Ahmadinejad teve uma recepção
humilhante na Columbia University, em setembro de 2007 . Specter ficou bastante contrariado
181

com o ocorrido. “Você não convida alguém para insultá-lo”, declarou. Ele queria organizar
uma visita para sete senadores e congressistas, incluindo Chris Dodd, Joe Biden e Tom Lantos.
Como de praxe, pedi a Larijani para que Teerã respondesse positivamente, mantendo as portas
abertas ao diálogo. Mas a viagem não foi adiante; as lideranças iranianas não estavam dispostas
a aceitar uma visita de figuras públicas norte-americanas.
Esse período foi marcado por facadas contraditórias e aleatórias no compromisso em algo
que se tornara comum na questão iraniana: portas se abrindo e fechando. Em meados de
outubro, o diretor político francês Gérard Araud me procurou a pedido de Bernard Kouchner.
Eu não sabia o que esperar, considerando as declarações recentes de Kouchner e do presidente
Sarkozy, que haviam dito que, se a diplomacia falhasse, teríamos de “enfrentar uma alternativa
que considero catastrófica: uma bomba iraniana ou o bombardeio do Irã” .182

O tom e a visão de Araud, no entanto, eram surpreendentemente positivos. Ele disse que os
franceses estavam ansiosos para trabalhar comigo em qualquer iniciativa que pudesse retornar
o foco para as negociações entre o Irã e o P5+1. Kouchner fazia questão de me convidar para ir
a Paris. Na opinião deles, o Irã estava se sentindo autoconfiante e parecia planejar aguardar a
administração Bush. Mas os franceses ainda estavam preocupados com uma possível ação
militar dos EUA contra o Irã na primavera ou no verão de 2008, antes da saída de Bush da
presidência.
Naquele mesmo dia, Putin visitou o Irã para pressionar pela retomada das negociações. De
acordo com as informações que recebi dos russos, Khamenei disse a Putin que o Irã poderia
“considerar uma moratória nas atividades de enriquecimento de urânio”. Putin parecia ter
proposto uma variação do “intervalo duplo”. Sua visita foi considerada sinal de que a Rússia
não apoiaria uma ação militar dos Estados Unidos. Em um discurso na Cúpula do Mar Cáspio,
Putin enfatizou o direito de todos os países ao acesso à tecnologia nuclear e a importância de
“respeitar a soberania e os interesses uns dos outros se abstendo não apenas do uso de força de
qualquer tipo, mas até mesmo de mencionar o uso de força” . 183

Apesar desses lampejos positivos, Ali Larijani renunciou ao cargo alguns dias após o
discurso de Putin na Cúpula. Em Teerã, um porta-voz do governo anunciou que Larijani já
havia “renunciado várias vezes” e que o presidente tinha “finalmente acatado”. Saeed Jalili,
primeiro-secretário de Assuntos Exteriores e conhecido confidente de Ahmadinejad, substituiu
Larijani.
A renúncia de Larijani não foi uma grande surpresa, apesar do sucesso do plano de trabalho.
Todos os seus esforços para encontrar uma fórmula para as negociações com o P5+1 haviam
sido em vão. Mas isso não era bom sinal. Significava que Javier Solana – que sob
circunstâncias ainda mais suspeitas não tinha conseguido ser indicado para o P5+1 – estaria
tentando arrancar concessões dos conservadores linha-dura iranianos. Quando Solana telefonou
para me passar informações sobre os resultados de seu primeiro encontro com Jalili, disse que
não havia conseguido muita coisa. Eu já não esperava por muito.
Fazia meses que eu não falava com Condoleezza Rice quando ela me telefonou, no final de
outubro. “Você parece estar sempre nos criticando muito mais do que critica os iranianos”, ela
disse. “Bom, vocês ficam atirando a esmo contra mim sem motivo”, rebati. Eu disse a ela que é
claro que eu apoiava o pedido do Conselho de Segurança para que o Irã suspendesse suas
atividades de enriquecimento, assim como continuava a pressionar Teerã para que fizesse isso,
ou que pelo menos não ampliasse sua capacidade. Nessa frente, parecíamos estar obtendo
sucesso moderado; os últimos relatórios indicavam que o Irã não havia construído novas
cascatas e não estava abastecendo as cerca de 3 mil centrífugas em operação.
Quanto às sanções, foi uma decisão política para o Conselho de Segurança, mas eu
continuava a achar evidências de que elas não podiam ser vistas como uma solução global. A
pressão só enrijecera a posição iraniana, e era por isso que Larijani estava tão frustrado. “A
única maneira de o Irã talvez suspender o enriquecimento de urânio”, eu disse a Rice, “era
através da negociação com o envolvimento ativo dos EUA, mais uma fórmula para salvar as
aparências e um gesto de boa vontade.”
Mencionei a possibilidade de eu ir em breve a Teerã para encontrar o aiatolá Khamenei.
Nesse contexto, perguntei quais eram as condições mínimas para os americanos negociarem.
Se o Irã concordasse com o congelamento, Rice respondeu, eles poderiam se encontrar com os
outros membros do P5+1, mas os Estados Unidos só participariam se o Irã aceitasse a
suspensão total.
“Mesmo que a suspensão fosse de apenas dois meses”, ela disse, “eu participaria
pessoalmente das conversas com eles, e me envolveria em todas as questões.” Mas a suspensão
continuava a ser a linha vermelha que ela não podia cruzar.

Havia esperança de que a interação direta com o Líder Supremo do Irã ajudasse a explicar a
percepção internacional das ações iranianas e reforçar os benefícios do aumento nos níveis de
cooperação. Há algum tempo vinha sendo traçada uma oportunidade para que eu me
encontrasse com o aiatolá Khamenei. Dois dias antes da minha partida, entretanto, Olli recebeu
uma mensagem informando que, embora meus encontros com o presidente Ahmadinejad, Jalili
e Aghazadeh estivessem confirmados, nesse estágio não seria possível o encontro com
Khamenei. Nesse caso, eu queria cancelar a viagem. A resposta veio na manhã seguinte. “O
Líder Supremo lhe deseja o melhor”, me disseram, “mas acredita que seria melhor se a visita
ocorresse após a próxima reunião da AIEA.”
Dois membros mais velhos da equipe de negociações do Irã, com quem eu vinha
trabalhando havia anos, me procuraram para explicar que o encontro com o Líder Supremo era
muito importante como forma de alterar a dinâmica interna iraniana – eu deduzi que eles
queriam dizer que, se eu pudesse explicar algumas perspectivas diretamente para Khamenei,
seria uma maneira de moderar os linha-dura. Mas Khamenei tinha a preocupação de que minha
visita não fosse interpretada como uma tentativa do Irã de pressionar a agência, o que poderia
acontecer se eu fosse para lá antes de apresentar meu relatório de novembro à diretoria. Eu
disse aos iranianos que não teria outra oportunidade de viajar a Teerã antes da segunda metade
de dezembro. A situação estava ficando precária, eu os avisei. “Vocês não devem considerar a
possibilidade do uso de força militar levianamente”, alertei. Diante da não realização da minha
viagem, aproveitei a oportunidade para comunicar que Condoleezza Rice estaria disposta a se
juntar às negociações se eles assumissem uma suspensão de dois meses. Aquele era o momento
certo: a administração norte-americana estava ansiosa por um sucesso na política exterior.
Era precisamente por isso que eles estavam tão ansiosos para que eu me encontrasse com
Khamenei, a fim de explicar o que precisava ser feito e os potenciais benefícios disso. Na
manhã seguinte, telefonaram para saber se eu poderia visitá-los no fim de semana anterior à
reunião de novembro da diretoria, mas o momento era inadequado. Sem a garantia de um
avanço considerável, a viagem seria vista como um golpe publicitário e poderia ser
contraproducente para todos.

Com o plano de trabalho bem encaminhado, mas com muitas controvérsias cercando o
programa nuclear do Irã e como lidar com ele, a confirmação da correção na abordagem da
agência veio de uma fonte improvável: um informe da Inteligência norte-americana, o U.S.
National Intelligence Estimate (NIE). No dia 3 de dezembro, quando eu estava em
Montevidéu, recebi a notícia: meu escritório me mandou por e-mail uma cópia da parte
publicada, o sumário executivo. Em essência, o NIE dizia que o Irã havia trabalhado em um
programa de armas nucleares no passado, mas o encerrara em 2003.
Do Uruguai, ditei um press release para um de meus assistentes, Syed Akbaruddin,
diplomata indiano. “O informe NIE”, eu escrevi,

coincide com as declarações que a agência vem fazendo consistentemente nos últimos anos de que, embora o Irã ainda
precise esclarecer alguns aspectos importantes das suas atividades nucleares do passado e do presente, a AIEA não tem
evidências concretas da existência de um programa de armas nucleares ou de instalações nucleares não declaradas no Irã.

Instei todas as partes a reiniciarem as negociações sem demora.


O NIE também surpreendeu, é claro, a administração Bush. O presidente norte-americano
tentou explicar que as descobertas não mudavam nada. Para ele, o Irã ainda era perigoso. E o
relatório e seus autores foram prontamente repudiados pelos radicais americanos e seus
partidários em Israel. Mas o documento inegavelmente soprou o vento para afastar aqueles que
queriam apresentar o Irã como ameaça iminente e pressionar por uma abordagem de confronto.
Ao voltar para Viena, recebi mais informações da Inteligência americana. Eles não
compartilharam as supostas evidências que os teriam levado a confirmar o programa nuclear
iraniano do passado, além das mesmas acusações não confirmadas sobre estudos de
armamentos que já haviam sido discutidas com a agência. Eles observaram que Khamenei
continuava tão poderoso quanto sempre fora, enfatizando a importância da minha visita ao Irã.
Para a AIEA, o NIE foi uma lufada de ar fresco; validou a avaliação da agência sobre a
ameaça nuclear iraniana e representou uma vingança por todos os meus anos de defesa
vigorosa de uma solução diplomática. Como no caso do Iraque, a análise e a intuição da
agência haviam acertado o alvo. Também como no Iraque, nenhuma das principais figuras dos
governos ocidentais se deu ao trabalho de reconhecer a validade do nosso julgamento, e muito
menos se desculpar pelo sofrimento que nos causaram.
Meu encontro com o Líder Supremo, o aiatolá Ali Hoseyni Khamenei, parecia oportuno
enquanto sopravam os ventos favoráveis trazidos pelo NIE. Eu tinha de atravessar um mar de
funcionários para chegar até ele, mas estava disposto a ser paciente.
No voo da Lufthansa para Teerã, alguns iranianos que viviam no exterior vieram me
agradecer pela minha recusa em ceder às pressões. Eles reafirmaram minha impressão de que
até mesmo os iranianos que não gostavam muito do regime de seu país apoiavam a busca para
adquirir tecnologia.
Uma mulher se aproximou de mim para perguntar da minha esposa. “Ela é iraniana, não é?”
“Não”, eu respondi, “ela é egípcia.” Fiquei pensando na rapidez com que os boatos podem
se transformar em fatos.
Em nossa primeira noite em Teerã, Aghazadeh ofereceu o costumeiro jantar de boas-vindas,
em um palácio que havia pertencido ao xá, construído para ele e sua família. Ficava ao norte de
Teerã, não muito longe de onde eu estava hospedado, o Esteqlal Hotel, o melhor que a cidade
tinha a oferecer.
As reuniões seguiram seu curso. Chamei a atenção para alguns pontos centrais: eu estava
falando não apenas como diretor-geral da AIEA, mas também como alguém preocupado com
os interesses do povo iraniano. Eu não queria ver o Irã sujeito a uma onda crescente de sanções
do Conselho de Segurança da ONU. Era importante, eu disse, que o país criasse as condições
ideais para a negociação com o Ocidente – os Estados Unidos em particular – e cultivasse
relações melhores com seus vizinhos no Golfo, que estavam ficando intimidados com a
perspectiva de dominação regional do Irã. Enfatizei a urgência de abordar a preocupação
crescente com o objetivo final do programa de enriquecimento de urânio.
Mas, a cada oportunidade, eu voltava para uma questão-chave: aproveitar o momento. A
situação era favorável ao Irã, por três razões: o recente informe da inteligência norte-
americana; a cooperação do Irã com o plano de trabalho da AIEA, que havia resultado em um
relatório positivo para a diretoria; e um anúncio recente do presidente Ahmadinejad de que o
Irã havia dominado a tecnologia de combustível nuclear baseado na montagem e na operação
bem-sucedidas de 3 mil centrífugas.
“Tudo isso”, eu disse, “os deixa em uma posição forte. Os norte-americanos estariam
dispostos a iniciar negociações se vocês suspendessem o enriquecimento de urânio, mesmo que
por dois meses. Por que não tomar a iniciativa? Em vez de esperar por mais pressão do
Ocidente, declarem vitória com base no domínio da tecnologia e anunciem uma suspensão de
dois meses para mostrar suas boas intenções.”
Eu disse a eles que Steinmeier, ministro alemão das Relações Exteriores, se reuniria com
seus pares no dia 22 de janeiro. A Rússia e a China tinham solicitado uma discussão sobre
estratégia antes de concordarem com outras ações do Conselho de Segurança. “O tempo é
essencial”, eu avisei. “Quanto mais cedo vocês agirem, maiores as chances de influenciarem
uma terceira resolução.”
Ainda assim, as autoridades iranianas pareciam bastante tranquilas em relação à situação
nuclear. Não havia um senso de urgência. Manouchehr Mottaki, ministro das Relações
Exteriores, disse que no passado o Irã havia tentado um compromisso – a suspensão do
enriquecimento de urânio durante algum tempo, ou a implementação voluntária do Protocolo
Adicional – e não recebera nada por suas ações. “Agora cabe ao outro lado assumir
compromissos”, afirmou.
Obviamente, pelo fato de estarem em posição vantajosa, os iranianos estavam mais
corajosos. Mottaki me disse que o país tinha melhorado a segurança do Iraque. “Quem você
acha que cuidou de Moktada al-Sadr e sua milícia?”, ele perguntou. O nível do comércio do Irã
com países como Emirados Árabes Unidos e China estava muito elevado, ele disse, na casa das
dezenas de bilhões de dólares. Por isso, em termos econômicos, o Irã não seria intimidado nem
estava preocupado com a ameaça de sanções adicionais. Essa perspectiva era como um dedo
apontado para o nariz, um símbolo de desrespeito e insulto.
O que mais chamava a atenção nessas conversas era a exibição desconcertante das facções
políticas e dos centros de poder iranianos. Cada uma das autoridades trazia seu próprio ponto
de vista sobre como lidar com a situação nuclear e com o Ocidente em geral. As figuras mais
velhas pareciam analisar a questão nuclear em termos do seu impacto não apenas sobre o país,
mas também em suas carreiras pessoais e seu prestígio.
Do ponto de vista dos radicais, uma terceira resolução do Conselho de Segurança iria
despertar o ressentimento dos norte-americanos, o que impulsionaria a popularidade dos
radicais exatamente quando se aproximava a primeira rodada das eleições para o Parlamento,
em meados de março. O medo de um ataque militar dos Estados Unidos havia diminuído, e os
iranianos estavam começando a se concentrar no péssimo desempenho econômico do governo.
Para os partidários de Khamenei, se as eleições favorecessem os moderados, o líder ficaria em
uma posição muito mais forte para lidar com a questão nuclear de maneira mais amena.
Meu encontro com Saeed Jalili, novo encarregado das negociações nucleares do Irã, foi
bastante instrutivo. Ele via o Ocidente com indisfarçável desconfiança e era especialmente
crítico em relação a Javier Solana, seu correspondente no EU-3. Segundo Jalili, na última vez
em que se viram, Solana havia traçado quatro pontos para o diálogo entre o Irã e o P5+1:
democracia na região; controle de armas e do terrorismo; necessidade de energia; e cooperação
econômica. Depois eu soube que Jalili também tinha ido ao encontro pronto para assinar uma
proposta da Suíça para limitar a construção de centrífugas, mas Solana não se mostrou aberto
para tal .
184

“Antes de iniciarmos uma negociação com o Ocidente”, Jalili concluiu, “precisamos


estabelecer um paradigma do que estamos fazendo. Será uma negociação entre dois inimigos
ou dois parceiros?” Era uma pergunta que eu ouvia com muita frequência das autoridades
iranianas mais velhas, refletindo a atenção em um objetivo mais amplo, baseado na confiança,
no acordo mútuo e no respeito.
Meu encontro com Ahmadinejad ocorreu no palácio presidencial, outra das antigas
residências do xá, mas a decoração em nada combinava com a grandiosidade do edifício.
Olli Heinonen e Vilmos Cserveny me acompanharam. Ahmadinejad nos recebeu com
suavidade e amabilidade. Seu estilo pessoal contrastava profundamente com a demonização
feita no Ocidente. Ele foi educado e bastante razoável durante toda a conversa, apesar das
opiniões rígidas sobre certo e errado. Disse o que pensava com firmeza, mas não tentei
confrontá-lo ou desafiá-lo, pois meu objetivo era que as coisas avançassem.
Ignorei todas as declarações inflamatórias de Ahmadinejad a respeito de Israel e do
Holocausto. Eu havia sido alertado por falantes do dialeto parse de que seu notório comentário
sobre Israel “riscado do mapa” havia sido um mal-entendido da mídia ocidental. Ahmadinejad,
eles disseram, estava falando não do Estado de Israel, mas do “regime sionista”. Isso me fez
lembrar de um encontro em Jerusalém, em 1977, quando Menachen Begin, na época primeiro-
ministro de Israel, fez um discurso para a delegação egípcia no qual invocou que não existia
“isso que chamam de povo palestino”, apenas árabes palestinos e judeus palestinos. Tal
declaração também foi carregada de emoção; a questão, tanto naquela época como nesta
ocasião, era como superá-la e embarcar em um diálogo significativo. De qualquer forma,
Ahmadinejad havia repetido uma citação feita pelo primeiro líder islamita do Irã, o aiatolá
Khomeini. Apesar de mal-aconselhado, ele estaria disposto a se retratar pelo que havia dito e
não tinha nada a ganhar abordando esse assunto na reunião.
Ahmadinejad respondeu positivamente quando enfatizei que o Irã precisava melhorar as
relações com seus vizinhos. Ele mencionou que havia participado da Cúpula do Conselho de
Cooperação do Golfo. Os sauditas, ele disse, o haviam convidado para o Hadj . Era óbvio que
185

a expressão pública de relações cordiais com o Irã por muitos líderes do Golfo contrastava
explicitamente com as declarações em particular de medo e desconfiança.
Com Ahmadinejad e Jalili, eu toquei de novo na ideia de convidar os senadores e
congressistas norte-americanos. “Certamente seria do seu interesse”, eu disse, “realizar
discussões racionais com norte-americanos influentes que podem vir a Teerã e ouvir o que
vocês têm a dizer, sem intermediários.” Ahmadinejad disse que iria pensar na proposta. Fui
informado de que eles provavelmente voltariam com uma resposta definitiva em algumas
semanas. Na verdade, isso nunca foi adiante.
A reunião mais importante que tive foi com o Líder Supremo da República Islâmica do Irã.
Ele raramente se encontrava com líderes estrangeiros não muçulmanos. Para um título tão
pomposo, o aiatolá Khamenei trabalha em um lugar bastante modesto, muito mais simples do
que o escritório de Ahmadinejad. O local me fez lembrar uma casa de campo bem modesta.
Encontramo-nos no que parecia ser uma sala de estar, simples a ponto de beirar a austeridade.
Ficamos sentados em cadeiras modestas; os outros participantes se sentaram em um banco.
Como sempre, foram servidos chá, frutas secas e nozes.
Eu tinha ido sozinho. Khamenei estava acompanhado de seu conselheiro de política exterior,
Ali Akbar Velayati, um ex-ministro das Relações Exteriores. Aghazadeh e Saeedi também
estavam presentes. Achei curioso que nem Ahmadinejad nem Jalili tivessem sido convidados.
De acordo com a tradição iraniana e muçulmana, nós nos cumprimentamos com um abraço.
Khamenei, alto e magro, tinha a aparência e os modos de uma figura paterna; era reservado
mas afável e sensível. Às vezes, quase me parecia um pouco frágil. Mas estava no comando
pleno de todos os detalhes e era quem inegavelmente mandava.
Nosso encontro começou com um breve segmento público, televisionado. Falando para as
câmeras, Khamenei declarou que a República Islâmica do Irã jamais ficaria de joelhos – isso
queria dizer, pelo que pude entender, que, por maior que fosse o número de sanções, o Irã
jamais suspenderia o enriquecimento de urânio ou colocaria um fim naquilo que reconhecia
como seu direito legítimo.
Quando as equipes de TV se retiraram, o tom foi outro. Disse a Khamenei que estava
falando basicamente como amigo do povo iraniano. Repeti o conjunto de mensagens que havia
transmitido às outras autoridades iranianas: o progresso do caso Irã na AIEA; a disposição do
P5+1 em retomar as negociações; e os benefícios de se mexer rapidamente para aproveitar a
dinâmica atual. Os dois lados haviam cometido erros, mas agora tínhamos a possibilidade de
aprender com o passado e avançar, expliquei.
Khamenei ouviu atentamente. Ele me agradeceu pela independência que eu havia mantido
diante da pressão externa. Isso, em sua opinião, contribuíra para a credibilidade da agência. O
Irã estava comprometido em trabalhar com a AIEA para resolver todas as questões nucleares
remanescentes, acrescentou. Na verdade, a AIEA deveria ser a única interlocutora do país;
tinha sido um erro discutir o programa nuclear do Irã com terceiros. Assim que o Conselho de
Segurança devolvesse o caso iraniano para a agência, ele enfatizou, o país estaria pronto para
implementar o Protocolo Adicional.
Mas, fazendo um gesto com a mão, Khamenei descartou a suspensão ou o congelamento das
operações de enriquecimento do Irã. Para ele, isso era apenas uma invenção dos norte-
americanos. O verdadeiro problema era a ira dos EUA pelo papel emergente do país na região.
Khamenei estava pronto para tratar todas as questões de segurança e comércio regionais com o
Ocidente, mas não via razão para o Irã mostrar flexibilidade sobre o enriquecimento de urânio.
O Irã, ele insistiu, jamais tivera um programa de armas nucleares; isso seria contra o islã. Eu
sabia que ele tinha repetido essa declaração publicamente várias vezes.
Eu disse que acreditava ser muito importante restaurar as relações com o Egito e outros
vizinhos. Khamenei concordou com um aceno de cabeça, respondendo que o Irã se dispusera a
isso durante algum tempo; no entanto, ele não acreditava que Mubarak estivesse em
“condições de tomar uma decisão dessas”. Eu não sabia se estava se referindo à falta de
liderança de Mubarak ou à pressão que ele estava sofrendo dos norte-americanos e dos chefes
da Inteligência egípcia. Eu não entrei no mérito da questão.
Como parte da nossa visita, os iranianos se ofereceram para nos levar ao seu laboratório de
P&D, onde estavam trabalhando com centrífugas da “próxima geração”: uma versão
modificada da máquina P-2, que seria muito mais eficiente que o modelo P-1 usado em Natanz.
Vários protótipos estavam sendo desenvolvidos, e eles pretendiam testá-los nas instalações de
enriquecimento de urânio, em Natanz. O laboratório em si era impressionante: limpo,
organizado e cheio de jovens cientistas e engenheiros trabalhando em vários instrumentos e
computadores. A grande diferença estava nas jovens vestidas com o tradicional chador, peritas
em softwares avançados e técnicas ultramodernas, trabalhando duro para melhorar a
capacidade de enriquecimento de urânio do Irã.
Aghazadeh, que acompanhou nosso grupo, disse orgulhoso que a maior parte do material e
do equipamento em uso estava sendo produzida no próprio Irã. Tanto para Olli quanto para
mim, as implicações desse fato eram evidentes: acompanhar as atividades de enriquecimento
de urânio iranianas seria muito mais difícil, uma vez que haveria menos atividades de
importação/exportação assim como informações sobre aquisições. Na opinião de Olli, a
mudança para a produção local também implicava que o Irã não planejava partir para uma
operação em escala industrial em Natanz por alguns anos. Não fazia muito sentido esgotar seu
suprimento limitado de certos materiais – aços maraging, por exemplo – justamente quando
estavam começando a desenvolver um modelo mais eficiente.
Eu não dei entrevistas para a mídia durante minha estada em Teerã. Sabia que a imprensa
iraniana iria distorcer o que eu dissesse. Distribuí uma breve declaração para a imprensa
quando voltei para Viena, dizendo que havíamos concordado em acelerar o processo de
cooperação.
Em Viena, choveram telefonemas. David Miliband ligou no primeiro dia. Steinmeier e
Kisliak foram me ver. Apresentei a cada um deles – e a cada um dos outros membros do P5+1
– um informe detalhado enfatizando o provável impacto negativo de forçar uma terceira
resolução do Conselho de Segurança com mais sanções. A provocação de outra resolução
poderia levar o Irã a cortar sua cooperação com a AIEA, justamente quando estávamos
preparados, no âmbito do plano de trabalho, para discutir os detalhes dos supostos estudos de
armas nucleares no passado e o potencial envolvimento dos militares iranianos no programa
nuclear. Também mencionei o que tinha ouvido sobre o provável impacto de tal resolução nas
eleições parlamentares em meados de março.
Steinmeier não acreditava que os seis países fossem concordar com outra forma de ação.
“Os EUA passaram os últimos trinta anos sem conseguir entender essa região”, ele disse. “Se o
Conselho se decidir por uma terceira resolução”, eu falei, “que pelo menos a tente fazer ser
algo encorajador para o Irã.” Em vez de mais sanções, por que não dar ao país algum crédito
por sua recente cooperação com a AIEA? “E, por favor”, eu insisti, “tente ganhar tempo para
concluirmos o plano de trabalho.” Estávamos atrasados em relação ao cronograma original,
porém fazendo progressos, e o momento não era propício para tomar atitudes que pudessem
levar o Irã a voltar atrás em sua decisão.
O encontro do P5+1 foi realizado no dia 22 de janeiro em Berlim. Para minha grande
decepção, Steinmeier fez uma declaração pública afirmando que os seis países haviam
concordado no conteúdo de uma nova resolução do Conselho de Segurança, a ser avaliada em
Nova York “nas próximas semanas”. Para mim, ele havia prometido que nenhuma resolução
seria adotada antes do final de fevereiro.
Em meio a discussões sobre uma nova resolução, o apoio para a continuidade do diálogo
veio de uma fonte surpreendente: em uma entrevista na CNN, Colin Powell disse que “estamos
conversando com eles em Bagdá há alguns meses sobre questões de segurança. E, se podemos
fazer isso em Bagdá com nosso embaixador e os representantes deles, não vejo por que não
falarmos com eles em outros fóruns”. Foi a primeira vez que ouvi Powell – já fora do governo
– desferindo um golpe na política da administração Bush para o Irã:

Os Estados Unidos são uma nação forte, poderosa. Somos politicamente poderosos, economicamente poderosos,
militarmente poderosos. E, em minha opinião, com todo esse poder e toda essa influência mundial, deveríamos mostrar
mais disposição para conversar com nações basicamente mais fracas do que nós. E não devemos ter medo dos outros nos
verem conversando com elas.186

Mas Powell poderia muito bem ter segurado a respiração. Nicholas Burns telefonou no dia
13 de fevereiro para perguntar se eu faria uma declaração pública de apoio a uma terceira
resolução do Conselho de Segurança. “Isso faria uma tremenda diferença”, disse. Apesar de eu
ter respondido que iria pensar, é claro que eu não poderia expressar tal apoio. Era
simplesmente bizarro que essa solicitação viesse da mesma administração norte-americana que
continuava a reclamar do meu envolvimento “na política”. E, quando vi a minuta da resolução,
reparei em um parágrafo surpreendente, “... elogiando a AIEA por seus esforços em resolver
questões pendentes relativas ao programa nuclear do Irã no plano de trabalho” – isso vindo de
pessoas que vociferaram contra o plano. Se passou a ser considerado uma abordagem sensata,
por que fazer sanções que tinham todas as possibilidades de arruiná-la?

Eu ainda veria outra mudança errática na história iraniana, dessa vez em uma viagem à França,
onde me encontraria com o presidente Sarkozy, o ministro das Relações Exteriores Kouchner e
outras autoridades francesas. Um ministro das Relações Exteriores ocidental disse que, em sua
opinião, a política exterior da França havia ficado “maluca”. Ouvi a mesma coisa de outros
canais diplomáticos nos bastidores: os franceses estavam irritando os europeus.
Sarkozy compareceu à reunião sem paletó e pediu imediatamente um café. Depois de algum
tempo, olhou para mim e perguntou se eu também queria café. Nada foi oferecido aos demais –
em contraste bastante peculiar com o encontro que eu tivera alguns anos antes com Chirac,
com a formalidade geralmente associada ao Eliseu.
Sarkozy começou a falar sem rodeios, bastante agressivo: “Sr. ElBaradei, sou amigo dos
Estados Unidos e de Israel”.
Senti a tentação de dizer “E daí?”, mas segurei a língua.
“Quero lhe dizer o que penso”, ele continuou, ressaltando o “perigo mortal” do programa do
Irã. Os iranianos, segundo ele, estavam usando a agência e a mim. Seu medo era que os norte-
americanos ou os israelenses bombardeassem o Irã. Enquanto ele falava, seu celular começou a
vibrar. Ele saiu para atender. Reparei nos olhares sutis de desaprovação ao redor da mesa.
Sarkozy então voltou e continuou a partir de onde havia parado.
Finalmente, ele fez uma pausa. Não vi motivo para ficar quieto. “Sr. Sarkozi”, eu disse,
“precisa entender que o Ocidente administrou muito mal o caso iraniano. Quando o Irã já
estava suspendendo seu programa de enriquecimento de urânio, tudo o que recebeu em troca
foi uma enganação. A França foi a grande responsável por isso. Seus compatriotas tiveram
medo demais da oposição dos norte-americanos para prometer ao Irã a tecnologia de energia
nuclear ocidental. Esse foi o ponto crucial que fez os iranianos se sentirem passados para trás.
E foi assim que essa série de fracassos diplomáticos começou.”
Depois dessa experiência decepcionante, os iranianos decidiram fazer a conversão de urânio
e, em seguida, seu enriquecimento, fait accompli. Expliquei que o enriquecimento, para o Irã,
era um porto seguro. Não significava necessariamente que estivessem atrás de uma arma. Mas,
acrescentando mais sanções, o Ocidente estava pedindo uma retaliação do Irã, o que levaria a
uma escalada contínua.
Eu também temia o pior. “Qual seria o efeito em todo o mundo muçulmano”, eu perguntei,
“se força militar fosse usada para conter o programa nuclear do Irã? Entre outras coisas, isso
poderia levar a um regime extremista no Paquistão, onde já existem mais de cinquenta armas
nucleares.”
A única solução, eu disse a Sarkozy, era conseguir um compromisso com os iranianos.
Sugeri propor um “congelamento” – isto é, nenhuma expansão – das atividades de
enriquecimento de urânio em troca do fim das sanções, o compromisso do Ocidente de
fornecer aos iranianos reatores franceses e o compromisso do Irã de permitir que a agência
realizasse um programa de inspeção. A suspensão total do enriquecimento, expliquei, já não
era uma solicitação de peso. Não reduziria o “risco” de maneira alguma; o Irã já detinha o
conhecimento. Eles poderiam continuar a trabalhar em segredo. A insistência na suspensão
serviria apenas para humilhar o país. Da perspectiva da proliferação nuclear, uma inspeção era
muito mais importante.
Para minha surpresa total, Sarkozy mudou completamente o discurso. Sem consultar
qualquer um dos figurões sentados ao redor da mesa ou mesmo olhar para eles, ele disse que
concordaria em apoiar minha proposta, incluindo o fornecimento de reatores franceses ao Irã.
Eu podia ver a ansiedade no rosto de seus parceiros. Era óbvio que ele tinha tomado a decisão
naquela hora.
Eu respondi que iria entrar em contato com os iranianos para ver se conseguia uma resposta
positiva, e a reunião acabou logo em seguida. Enquanto Sarkozy me acompanhava até a saída,
eu o cumprimentei pelo seu casamento. Ele sorriu.
Encontrei-me separadamente com Kouchner, pessoa muito agradável. O francês me disse
que havia tentado várias vezes um acerto com Teerã, inclusive convidando autoridades a ir a
Paris no mês de novembro, porém não obtivera resposta. Kouchner achava que os iranianos
poderiam ter concluído que era melhor esperar por uma nova administração nos EUA. Ele me
deu o número do seu celular, dizendo que eu deveria lhe telefonar diretamente se tivesse
alguma notícia dos iranianos.
No fim de semana, em Viena, telefonei para Aghazadeh e pedi que fosse me ver no início da
semana seguinte. Mas, no dia em que deveríamos nos encontrar, recebi um telefonema de
François-Xavier Deniau, o embaixador francês, dizendo para eu não transmitir nenhuma
mensagem aos iranianos antes de os franceses me enviarem alguns “esclarecimentos”. Aquela
notícia era embaraçosa, pois Aghazadeh estava a caminho. Se eles tinham “esclarecimentos” a
fazer, por que não o fizeram na minha visita a Paris?
A resposta de Deniau, três dias depois, foi que, na verdade, os franceses iriam contatar o Irã
diretamente, e não por meu intermédio. Surpreso e decepcionado, eu respondi que isso não era
nem diplomático nem apropriado. “Normalmente”, continuei, “levo as palavras de um
presidente a sério.” Era óbvio que as pessoas ao redor de Sarkozy o haviam convencido de que
os norte-americanos reagiriam negativamente se ele concordasse com minha proposta. A
decisão seria vista como uma iniciativa isolada da França, fora da estrutura do P5+1.
Deniau tentou convencer Philippe Jamet, um dos meus colegas franceses na AIEA, de que
eu tinha “entendido mal” o que Sarkozy dissera. Jamet, que também estivera presente ao
encontro, respondeu sarcasticamente: “Essa é uma maneira inteligente de reescrever a
história”.

O criticado e depois elogiado plano de trabalho forneceu a essência para o meu relatório
positivo de fevereiro de 2008 sobre o Irã. Tínhamos feito avanços significativos: a última das
nossas questões sobre as partículas de urânio altamente enriquecido e fracamente enriquecido
que havíamos detectado em vários locais no Irã finalmente havia sido respondida. Os iranianos
explicaram suas experiências com polônio, suas atividades na mina Gchine e as aquisições do
ex-chefe do Centro de Pesquisas Físicas. A última das discrepâncias em relação à aquisição das
centrífugas P-1 e P-2 havia sido abordada em meu relatório de novembro de 2007. Apesar de
alguns pequenos atrasos, os iranianos mantiveram seu compromisso com o plano de trabalho.
Foi a cooperação mais consistente e comprometida que havíamos tido em muitos anos.
Apenas uma questão permanecia em aberto: os supostos estudos para a fabricação de armas
recém-chegados a nós pela inteligência norte-americana. Isso incluía o chamado Green Salt
Project , testes com explosivos de grande potência e projetos de mísseis com corpos de
187

reingresso na atmosfera que acomodariam uma ogiva nuclear. Em conjunto, esses elementos
apontavam para um possível programa atômico, principalmente devido à indicação de ligação
administrativa entre os vários aspectos desses estudos.
O problema era que ninguém sabia se aquilo tudo era verdade. As suposições teriam surgido
de um computador portátil contendo vasta documentação. A inteligência norte-americana disse
que o material havia sido entregue a eles em meados de 2004, vindo do Irã, mas se recusaram a
revelar a fonte. Informaram apenas que o receberam de terceiros e que existiam motivos para
acreditar que a tal pessoa agora estava morta.
“Eu posso fabricar esses dados. Parece perfeito, mas deixa margens a dúvidas.” Essa
declaração, de um anônimo “diplomata europeu experiente”, citada no New York Times, era
uma reação típica reproduzida por vários especialistas nucleares . A documentação parecia
188

condenatória, mas apenas se a sua autenticidade pudesse ser comprovada. A impossibilidade de


rastrear a origem tornava a informação extremamente difícil de ser verificada. Pior ainda, os
Estados Unidos se recusavam a liberar cópias da documentação para podermos começar o
processo investigativo com o Irã. O pouco que conseguíamos passar para o Irã era rejeitado
como informação fabricada e sem fundamento.
Depois de muitos meses de impasse em relação a esses supostos estudos, a AIEA recebeu
mais alguns documentos – apesar de muito poucos – para poder dar início à investigação.
Trabalhando para cobrir todos os ângulos, os inspetores da agência também identificaram
atividades de aquisição por parte de várias entidades iranianas que acreditávamos estar
relacionadas com os supostos estudos. O Irã concordou em tratar da questão do armamento nos
termos do plano de trabalho e, assim, nossas discussões tiveram início. Mas, como mostrou o
relatório de fevereiro, ainda havia um longo caminho a percorrer. Então, dois dias antes da data
agendada para análise do relatório pela diretoria da AIEA, o Conselho de Segurança adotou a
terceira resolução, com mais sanções ao Irã. Em outras palavras, o Conselho proclamou o
veredicto antes da deliberação. Tive acesso a uma minuta de resolução que nem sequer fazia
referência ao meu relatório . Tratava-se não apenas de uma falha processual, como também
189

dava a impressão – talvez exata – de que o Conselho estava agindo com base em objetivos
políticos predeterminados, e não em fatos.
As reações ao relatório surgiram por todo o mundo. Os Estados Unidos elogiaram, dizendo
que o documento condenava o Irã, provavelmente porque algumas das suposições sobre
estudos nucleares foram colocadas em aberto pela primeira vez. Os iranianos declararam que
era “uma vitória completa, reabilitando nosso programa”, provavelmente por causa de todas as
questões resolvidas. É claro que todos leram o relatório de maneira seletiva.
As reações na mídia ficaram igualmente divididas. Danielle Pletka e Michael Rubin, do
Wall Street Journal, me acusaram de ser antiocidental e de ter uma pauta escondida:

O relatório do Sr. ElBaradei é o ponto alto de uma carreira autônoma e ineficiente que manchou a reputação da agência que
ele dirige. Ele usou seu Prêmio Nobel para cultivar uma imagem de advogado tecnocrata interessado na paz e na justiça
acima da política. Na verdade, ele é uma figura profundamente política, movida pela antipatia pelo Ocidente e por Israel,
que se transformou em uma cruzada individual para salvar os regimes preferidos das acusações de proliferação nuclear. 190

Indo além, outra autoridade israelense, o ministro da Habitação Zeev Boim, exigiu minha
demissão, dizendo que meu comportamento era o de um “agente infiltrado” . 191

Felizmente, essas críticas foram contrabalançadas por outras análises, entre elas um artigo
no Financial Times de Joe Cirincione e Ray Takeyh, do Conselho de Relações Exteriores.
Apesar dos ataques contra mim, eles disseram que eu estava tendo êxito no desarmamento do
Irã:

A questão que os críticos do Sr. ElBaradei ignoram é que ele está conseguindo criteriosamente alcançar os objetivos
aparentemente desejados – o desarmamento da República Islâmica... Em vez de sanções, o Ocidente deveria considerar que
uma diplomacia sutil de reconciliação poderia tanto regulamentar o programa nuclear do Irã quanto ajudar a estabilizar o
Oriente Médio. O tão criticado Sr. ElBaradei é quem está abrindo o caminho para o sucesso. 192

No dia 8 de abril, surgiram os primeiros sinais da reação do Irã à resolução do Conselho de


Segurança, quando Ahmadinejad anunciou planos para expandir as operações de
enriquecimento de urânio para 6 mil centrífugas em Natanz. Isso era claramente uma
demonstração de poder para o seu público interno. Também poderia visar a exercer pressão
sobre os Estados Unidos e a Europa para que tomassem outra direção.
De qualquer forma, seu pronunciamento não foi colocado em prática. Os iranianos
continuaram a instalar centrífugas, mas em ritmo mais lento do que o previsto. O principal
objetivo era adquirir experiência na operação das já 3 mil máquinas P-1 existentes e no teste de
máquinas da geração seguinte, com maior capacidade, que eles chamavam de modelos IR-2 e
IR-3.
O resultado mais lamentável da resolução foi que a cooperação do Irã com a AIEA
praticamente estagnou na discussão dos fatos ligados aos supostos estudos nucleares. Nas
semanas seguintes, fizemos poucos progressos.
Pouco antes de eu fazer meu relatório de maio de 2008 sobre o país, os iranianos nos
ofereceram acesso a informações cruciais – precisamente o que vínhamos exigindo. Isso
provaria, segundo eles, que suas atividades não estavam relacionadas a questões nucleares.
Mas havia uma condição: a AIEA tinha de garantir de antemão que concluiria a questão antes
da reunião da diretoria, prevista para junho.
Isso era ridículo. Não podíamos dar uma garantia antecipada do fato, e eles sabiam disso.
Em meu relatório, critiquei o Irã por essa falta de transparência. Para manter as coisas em
perspectiva, enfatizei que não tínhamos visto sinais de uso de material radioativo nas supostas
atividades, mas, pelo que eu podia concluir, o Irã estava “brincando de esperar para ver uma
mudança” na administração norte-americana. Se o trabalho de desenvolvimento nuclear de fato
havia ocorrido, os iranianos provavelmente tentariam fazer essa revelação apenas durante as
negociações com os Estados Unidos, como parte de um acordo mais amplo sobre as questões
nucleares do país. E se a documentação do computador tivesse sido forjada, como afirmava o
Irã, os iranianos provavelmente tentariam obter um preço alto pelos efeitos danosos das falsas
acusações.
Dois dias após a divulgação do relatório de junho, Olli Heinonen apresentou um relato
técnico que irritou muitos representantes da AIEA. Ele disse que a agência dispunha de
informações da Inteligência de cerca de dez países com tendência a apoiar as alegações de que
o Irã havia realizado estudos nucleares no passado. Quando mencionou um documento sobre
urânio que o Irã recebera em 1987 por intermédio da rede de A. Q. Khan, Olli usou o termo
“alarmante”. Alguns representantes dos países em desenvolvimento ficaram com a impressão
de que ele havia assimilado as acusações dos EUA.
Para colocar mais lenha na fogueira, o ex-inspetor-chefe da Comissão Especial das Nações
Unidas (UNSCOM), Scott Ritter, escreveu um artigo acusando Olli de trabalhar para a CIA e
definindo-o como “o yin pró-guerra em contraposição ao yang anticonfronto representado por
seu chefe, o diretor-geral da AIEA, Mohamed ElBaradei” . Ritter ficara conhecido pela
193

franqueza em criticar as políticas da administração Bush no Iraque e no Irã. Nesse caso,


entretanto, ele estava totalmente equivocado. Olli era um dos membros mais experientes da
minha equipe. Nós nem sempre concordávamos um com o outro, mas eu reconhecia sua
perspicácia e passávamos muitas horas dissecando as minúcias do programa nuclear iraniano.
Infelizmente, essa seria a primeira de muitas histórias indicando que Olli e eu discordávamos
nos bastidores sobre como lidar com o programa nuclear iraniano . 194

Enquanto isso, começaram a surgir pedidos de toda parte para a realização de negociações
diretas entre os EUA e o Irã. O Grupo de Estudos sobre o Iraque, chefiado pelo ex-secretário
de Estado James Baker e o congressista Lee Hamilton, havia recomendado o diálogo com o Irã
desde dezembro de 2006. Em uma entrevista de março de 2008 para a Bloomberg News, o ex-
secretário de Estado Henry Kissinger entrou no debate dizendo: “Eu acho que devíamos nos
preparar para negociar com o Irã” . Em maio, o ex-presidente Jimmy Carter criticou
195

duramente a administração Bush por se recusar a dialogar com os países com os quais os
Estados Unidos tinham sérias diferenças, dizendo que era um “terrível afastamento” da prática
presidencial antiga dos EUA .
196
O debate esquentou ainda mais quando o candidato presidencial democrata, o senador
Barack Obama, foi primeiro criticado e depois elogiado por declarar que, se fosse eleito
presidente, negociaria diretamente com o Irã “sem quaisquer condições”. Em um fórum
notável, realizado na Universidade George Washington no dia 15 de setembro, cinco ex-
secretários de Estado norte-americanos – Colin Powell, Madeleine Albright, Warren
Christopher, James Baker e Henry Kissinger – declararam-se favoráveis ao diálogo direto dos
EUA com o Irã sobre seu programa nuclear . 197

Esses sentimentos, no entanto, não se traduziram em progresso. Pelo contrário, a ideia de


negociação entrou mais ou menos em compasso de espera. Ninguém esperava que a
administração Bush, em seus últimos meses, fosse causar uma reviravolta no diálogo com o
Irã. Do EU-3 ao Irã, todos pareciam resignados a esperar o resultado das eleições norte-
americanas. O ministro alemão de relações exteriores, Frank-Walter Steinmeier, me disse que,
baseado em suas conversas com Condoleezza Rice, ela estava apenas esperando para entregar
o caso iraniano à próxima equipe.
O P5+1 havia trabalhado arduamente para preparar um pacote que atraísse o Irã para a
negociação, e Javier Solana tinha viajado para Teerã em meados de junho para apresentá-lo
como uma oferta “nova e melhorada”. Mas o pacote ficou à mercê da exigência de suspensão
do enriquecimento de urânio. Quando Saeed Jalili encontrou-se com Solana e o P5+1 em
Genebra, em julho, o diretor político britânico Mark Grant exigiu uma resposta sobre o pacote
em duas semanas. O Irã, como sempre, encarou isso como um desrespeito e uma ameaça.
É claro que essa discussão não iria dar em nada. Teerã, agora em posição de força, não tinha
pressa. E Solana e seus colegas estavam apenas passando as propostas. Com as inúmeras
resoluções do Conselho de Segurança, eles haviam lacrado firmemente o caixão.
155 A companhia francesa Total S.A. é a quarta maior empresa petroquímica do mundo, com atividades na África, na Europa e
no Oriente Médio.

156 A divulgação de mensagens diplomáticas pelo site Wikileaks no final de 2010 indicou a ação dos líderes árabes nos
bastidores. Eles supostamente teriam insistido com os Estados Unidos para que fizessem ataques militares contra o Irã. Ver, por
exemplo, “Arab Leaders Urged U.S. to Attack Iran, Wikileaks Says” [“Líderes árabes insistiram para que EUA atacassem o Irã,
diz o Wikileaks”], Mark Hennessy, Irish Times, 29/11/2010.

157 Putin expressou seu apoio à proposta na Conferência de Munique sobre Política de Segurança, em 10 de fevereiro.

158 SCR 1737, aprovada em 23 de dezembro de 2006.

159 Daniel Dombey, “Blair Seeks Closer Ties with Moderate Arabs”, Financial Times, 26/12/2006.

160 As revelações do Wikileaks no final de 2010 mostraram que Washington ficou extremamente insatisfeito com as tentativas
dos suíços de trabalhar com o Irã e encontrar uma solução. “U.S. Irked by Over-Eager Swiss Diplomats”, Mathieu van Rohr,
Spiegel Online International, 14/12/2010.

161 Como descrito no capítulo 5, eu tinha me envolvido em uma discussão pública com os norte-americanos na reunião da AIEA
em novembro de 2003 por causa da irritação deles quando disse que não tínhamos uma única prova da ligação das atividades ou
do material nuclear do Irã a um programa de armas nucleares.

162 Entrevista para o Grupo Vocento, com Dario Valcarcel e Borja Bergareche. “Detecto una escalada gradual que aleja uma
solución pacifica com Irán”, ABC, 17/5/2007.

163 Declaração de Bolton: “Se vocês acreditam, como eu, que o Irã jamais será convencido a esquecer suas armas nucleares,
porque vê o programa de armas nucleares como seu trunfo, então o único recurso é elevar drasticamente a pressão econômica e
política sobre o país e manter em aberto a opção de mudança do regime ou mesmo da força militar”. Entrevista em Hannity and
Colmes, Fox News, 21/05/2007. Retirado de:
<www.realclearpolitics.com/articles/2007/05/interview_with_john_bolton_on_1.html>.

164 O embaixador Yukiya Amano teve a felicidade de estar viajando e indisponível para a ocasião.

165 “Inside the IAEA: A Year with the Nuclear Detectives”, documentário da Rádio 4 da BBC em duas partes, apresentado em
31 de maio e em 7 de junho de 2007.

166 “Rogue Regulator: Mohamed ElBaradei Pursues a Separate Peace with Iran”, Washington Post, 5/9/2007.

167 “In the Crossfire”, Economist, 13/09/2007.

168 Caroline Glick, “ElBaradei’s Nuclear Policy”, Jerusalem Post, 27/8/2007.

169 Elaine Sciolino e William J. Broad, “An Indispensable Irritant to Iran and Its Foes”, New York Times, 17/9/2007.

170 Katrina van den Heuvel, “Proponent of Diplomatic Solution for Iran Smeared by White House”, Nation. Reimpresso em
“Bush, the Bomb, and Iran”, CBS News Opinion, 25/9/2007.

171 “IAEA Chief ElBaradei Being Pressured on Iran-Diplomats”, Associated Press, 9/9/2007.

172 Na verdade, não era algo incomum para mim ouvir outros membros da União Europeia expressarem em particular o seu
ressentimento aos “três grandes” – França, Reino Unido e Alemanha –, principalmente em relação aos dois primeiros. Os outros
países europeus raramente se sentiam consultados nas questões que envolviam posições políticas conjuntas sobre o Irã. Em
particular, alguns viam o Reino Unido como uma espécie de cavalo de Troia norte-americano dentro da União Europeia.

173 Katrin Bennhold e Elaine Sciolino, “After Talk of War, Cooler Words in France on Iran“, New York Times, 17/9/2007.

174 Sue Pleming, “Rice Swipes at IAEA, Urges Bold Action on Iran”, Reuters, 17/9/2007.

175 No final de 2005, os Estados Unidos passaram à AIEA uma série de informações que haviam recebido, indicando estudos de
armamento nuclear pelo Irã relacionados à conversão de urânio, a testes com explosivos e à modificação dos mísseis Shihab-3
para carregar uma arma nuclear. Segundo o Irã, essas informações não tinham o menor fundamento e, como os Estados Unidos
haviam restringido o envio de documentos para a AIEA sobre esse assunto para que fosse discutido com Teerã, a agência ficara
limitada em sua capacidade de verificar a veracidade de tais informações.

176 Damien McElroy, Bush Warns of Iran ‘Nuclear Holocaust’ ”, Telegraph, 28/8/2007.

177 “Bush Warns of ‘World War III’ If Iran Gains Nuclear Weapons”. Retirado de:
<www.foxnews.com/story/0,2933,303097,00.html>.

178 Entrevista para a TV alemã: “U.S. President Repeats ‘Third World War’ Warning”. Retirado de: <www.world-peace-
society.net/eecore/index.php?/site/C78/>.

179 Seymour Hersh diria depois que, no final de 2007, Bush estava fazendo lobby no Congresso para conseguir 400 milhões de
dólares para apoiar operações secretas no Irã, em atividades “destinadas a desestabilizar” a liderança religiosa do país. “Preparing
the Battlefield” , New Yorker, 7/7/2008.

180 Gareth Evans, ex-presidente do International Crisis Group e ex-ministro das Relações Exteriores australiano, solicitou minha
ajuda para empreendimento semelhante.

181 Ahmadinejad foi convidado a falar na Columbia University, no Fórum de Líderes Mundiais. Ao chegar, foi recebido por
milhares de manifestantes; o presidente da universidade, Lee Bollinger, apresentou-o fazendo uma série de críticas duras aos seus
pontos de vista políticos, beirando o insulto pessoal.

182 Elaine Sciolino, “Iran Risks Attack over Atomic Push, French President Says”, New York Times, 27/8/2007.
183 Muriel Mirak-Weissbach, “Putin Puts Forward a War-Avoidance Plan”, Executive Intelligence Review, 26/10/2007.
Retirado de: <www.intellibriefs.blogspot.com/2007/10/caspian-summit-putin-puts-forward-war.html>.

184 Solana não me contou nada disso. Em seu relatório, disse apenas que o encontro tinha sido ruim, sem chegar a conclusão
nenhuma depois de cinco horas. Percebi que, apesar de estar sempre afirmando em particular que concordava com meu ponto de
vista, Solana não tinha flexibilidade ou atribuições que lhe permitissem tomar iniciativas, especialmente diante da insistência
norte-americana de que nada além da suspensão seria aceitável como ponto de partida.

185 Hajj ou Hadj é a peregrinação dos muçulmanos à cidade santa de Meca. (N. dos TT.)

186 Retirado de: <www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0802/10/1e.01>.

187 Green salt é outro nome em inglês para o composto tetrafluoreto de urânio (UF4).

188 William J. Broad e David E. Sanger, “Relying on Computer, U.S. Seeks to Prove Iran’s Nuclear Aims”, New York Times,
13/11/2005.

189 Eu havia alertado a África do Sul quanto a essa omissão, portanto foi feita uma menção na resolução, mas sem nenhum efeito
considerável.

190 “ElBaradei’s Real Agenda”, Wall Street Journal, 25/2/2008.

191 “Israeli Minister Says Sack ElBaradei over Iran”, Reuters, 9/3/2008.

192 “ElBaradei Is Quietly Managing to Disarm Iran”, Financial Times, 27/2/2008.

193 Scott Ritter, “Acts of War”, Truthdig, 29 de julho de 2008. Como sempre, Ritter foi bastante enfático: “Olli Heinonen
poderia muito bem tornar-se membro assalariado da administração Bush, pois está trabalhando em sintonia com o objetivo do
governo norte-americano de apresentar o Irã como uma ameaça digna de ação militar”.

194 Como em qualquer instituição, havia diferenças de opinião entre as pessoas que tratavam de questões complexas, incluindo
advogados e técnicos. Meus relatórios para a diretoria a respeito do Irã geralmente eram reescritos de dez a quinze vezes, com um
trabalho cuidadoso para apresentar os fatos corretamente e garantir a objetividade da avaliação. Mas, em cada caso, eu e Olli
concordávamos com o relatório final antes da sua apresentação.

195 Camilla Hall e Mike Schneider, “Kissinger Backs Direct U.S. Talks with Iran”, Bloomberg News, 15/3/2008.

196 Joy Lo Dico, “Jimmy Carter Calls for US to Make Friends with Iran after 27 Years”, Independent, 26/5/2008.

197 “Five Former U.S. State Secretaries Urge Iran Talk”, Reuters, 16/9/2008.

12 • Irã, 2009

A administração Bush encurralara a si mesma. Ao insistir em que o diálogo só poderia ser uma
recompensa por bom comportamento em vez de um meio para alcançá-lo, Washington criara
uma abordagem que cerceava a diplomacia: só princípios, nenhum pragmatismo. No Irã, a saga
nuclear tinha tropeçado num banco de areia movediça, com as negociações entrando em curto-
circuito devido à ausência dos Estados Unidos. Com a eleição de Barack Obama a presidente,
em 4 de novembro de 2008, eu esperava ver o retorno do pragmatismo. Dois dias depois,
Ahmadinejad enviou uma mensagem de cumprimentos a Obama, expressando a esperança por
“mudanças importantes, justas e reais nas políticas e nas ações” . A mensagem foi amplamente
198

divulgada como a primeira desse tipo enviada por Teerã a um presidente norte-americano
recém-eleito desde a Revolução Iraniana de 1979.
No discurso de posse, o presidente Obama foi particularmente generoso ao assinalar uma
mudança na política externa: “Para o mundo muçulmano, buscamos um novo caminho a
seguir, baseado no interesse e no respeito mútuos. Para aqueles líderes de todo o mundo que
buscam semear o conflito, ou jogar a culpa dos problemas de suas sociedades no Ocidente,
saibam que seu povo irá julgá-los pelo que conseguirem construir, não pelo que destroem”.
Era uma mensagem perfeitamente sintonizada ao momento. O palco estava montado para
algo novo.
Um ano antes, Richard Holbrooke havia sugerido que eu me preparasse para ir a
199

Washington durante a fase de transição, no final de 2008, e assessorar a conversa com o Irã,
talvez até mediá-la. Na época, Holbrooke estava trabalhando como assessor da senadora
Hillary Clinton, então candidata na corrida presidencial, em questões de política externa. Ele
havia perguntado se eu achava que o Irã estava preparado para o diálogo com os Estados
Unidos e se Teerã exigiria como precondição que Israel desistisse de seu programa de armas
nucleares. Respondi que o Irã se dispusera a dialogar durante os últimos quatro anos e que
jamais ouvira falar de tal precondição.
Eu estava ansioso para me envolver novamente com Washington no que dizia respeito ao
Irã, mas logo fiquei surpreso com o pouco contato que tive com a nova administração norte-
americana. Hillary Clinton, agora secretária de Estado, enviou uma carta conjunta com o
secretário de Energia Steven Chu aplaudindo os esforços da AIEA para desenvolver um
mecanismo de “garantia de abastecimento” de combustível nuclear. Hillary também falou
publicamente a respeito do programa nuclear iraniano de maneira menos enfática que seus
antecessores, destacando a importância de trabalhar em parceria com a agência.200

Mas isso foi tudo. Nenhum telefonema de Washington para obter mais informações,
nenhuma tentativa de prosseguir a partir do que a AIEA tinha descoberto. Gregory Schulte,
firme defensor das políticas da administração Bush, continuou no cargo como embaixador dos
EUA na AIEA até junho. Eu sabia que Obama e sua equipe haviam herdado uma imensa lista
de desafios domésticos, exacerbados pela crise financeira mundial do final de 2008. Eu
também sabia que o programa nuclear iraniano não era a única questão da política externa
norte-americana que precisava de atenção. Mas eu estava ciente das minhas próprias
limitações: meu terceiro mandato como diretor-geral terminaria no final de novembro de 2009.
Eu dispunha de um curto período de colaboração.
Os acontecimentos ligados à eleição presidencial iraniana em junho de 2009 causaram
preocupação em muitos países ocidentais. Houve acusações de votação fraudulenta e
indignação com relatos de violência contra manifestantes anti-Ahmadinejad. Eu também fiquei
angustiado com a violência, apesar de não conseguir deixar de notar o tratamento de “dois
pesos e duas medidas” na forma de o Ocidente lidar com o Irã. Como líder da oposição, Mir-
Hossein Mousavi havia recebido 33% dos votos. Seus partidários conseguiram mobilizar
centenas de milhares de pessoas em manifestações de rua nas cidades iranianas. Em
compensação, a maioria dos países do mundo árabe tem eleições fraudulentas ou mesmo
nenhuma, e ainda assim são praticamente protegidos de críticas dos líderes ocidentais porque
sempre apoiam as políticas ocidentais. É claro que essa postura não passou despercebida pela
opinião pública árabe.
Em 5 de julho de 2009, o vice-presidente Biden disse na ABC News que os Estados Unidos
estavam observando os resultados das eleições com interesse, esperando “para ver como as
coisas se resolveriam”. Depois, pareceu meter os pés pelas mãos. Por um lado, ele disse que os
Estados Unidos mantinham sua oferta de um encontro com o Irã para falar sobre o programa
nuclear. Por outro, deu a entender que Israel, “como nação soberana”, tinha o direito de atacar
as instalações nucleares do Irã . Obama tentou conter o estrago com uma declaração na CNN,
201

afirmando que os Estados Unidos estavam comprometidos com uma solução diplomática para
a questão iraniana . 202

Enquanto eu aguardava um aval de Washington, começaram a circular duas acusações: que


eu estava escondendo informações que incriminavam o Irã em sua busca por armas nucleares;
e que eu tinha destruído uma análise secreta da situação nuclear do país feita pelos inspetores
da agência. Essas acusações estavam ligadas a uma forte pressão orquestrada nos bastidores
pelos Estados Unidos e pelo EU-3, iniciada já em 2007, para que eu publicasse um resumo dos
supostos estudos nucleares iranianos a fim de coagir Teerã.
A AIEA havia divulgado tudo o que era possível em relação a esses supostos estudos. Em
meu relatório de maio de 2008, por exemplo, relacionei em detalhes os documentos que
pudemos mostrar ao Irã, incluindo aqueles ligados às acusações de produção de green salt,
testes de explosivos e o veículo de reentrada de mísseis. Mas não consegui chegar a um
veredicto em relação a essas acusações – que, se provadas, tinham potencial para fazer a
diferença entre guerra e paz – sem poder primeiro verificar a autenticidade dos documentos
fornecidos pela inteligência norte-americana. Nem teria feito isso com qualquer outro país.
Em resposta à minha reticência, eu havia me tornado alvo de ataques que diziam que eu
estava mais preocupado com meu legado do que com a verdade. Um artigo da Associated Press
disse:

Mohamed ElBaradei enfrenta a difícil decisão de divulgar todas as descobertas de sua agência sobre os supostos programas
de armas do Irã, ou deixar a decisão para seu sucessor, ao final deste ano. A existência de um resumo secreto da AIEA
sobre as supostas experiências com armas no país baseado nas investigações da agência, da inteligência norte-americana e
de outras fontes foi confirmada para a Associated Press nos últimos dias por três diplomatas de nações ocidentais
credenciadas pela AIEA, bem como por uma autoridade internacional que acompanha a questão nuclear iraniana. 203

Um artigo no Haaretz, jornal israelense, disse praticamente a mesma coisa . Um editorial do 204

mesmo dia dizia que eu tinha, durante anos, minimizado intencionalmente evidências do
programa nuclear iraniano “usando linguagem vaga e jargão pouco compreensível, que visava
mais a esconder do que a esclarecer”. Também dava a entender que eu e Olli discordávamos
profundamente em relação à publicação ou não de tais informações.

Não é nenhum segredo que Olli Heinonen nem sempre concorda com seu chefe. Houve muitos casos em que ele preferiria
que os relatórios usassem uma linguagem clara, inequívoca, e ele sempre disse isso. Mas, como qualquer bom diplomata,
aceita as decisões de ElBaradei, mesmo que rangendo os dentes. 205

No centro dessas acusações estava a disposição, por parte de Israel e do Ocidente, de tratar
as suposições como fatos. Os supostos estudos foram, na verdade, um desafio sem precedentes
para a agência. Estávamos equipados para verificar operações envolvendo o uso de material
nuclear, nas quais podíamos estabelecer os fatos por meio de medidas e amostras ambientais.
Mas não tínhamos os instrumentos ou a competência técnica para verificar a autenticidade de
documentos.
A segunda parte das acusações da mídia, que a Associated Press chamou de “resumo secreto
da AIEA”, referia-se a uma análise interna, um texto reunido pelo Departamento de
Salvaguardas da Agência que incluía vários fragmentos de informações de diferentes
organizações de inteligência, sendo que os inspetores da AIEA não tinham conseguido
verificar ou autenticar a maioria delas. Assim, por definição, tratava-se de uma série de
hipóteses, isto é: “Se todas essas suposições fossem verdadeiras, qual seria seu significado?”.
Não era algo que Olli Heinonen, chefe do Departamento de Salvaguardas, tivesse avaliado,
assinado ou mesmo sugerido que fosse incluído em meus relatórios para a diretoria. Além
disso, não foram aprovados pelos respectivos departamentos da AIEA, responsáveis por outras
esferas de verificação de salvaguardas, aspectos legais e políticos, por exemplo.
O fornecimento desse tipo de análise preliminar à diretoria seria contrário a todos os
princípios processuais e teria conferido uma aura de credibilidade a acusações não
comprovadas. O principal ingrediente ausente – pelo qual vínhamos fazendo pressão há meses
– era a possibilidade de comprovar tais suposições. A informação crítica em que se baseava
toda a análise era pura papelada. Não tínhamos green salt para examinar, nenhum componente
para inventariar ou rastrear, nenhum túnel para explosões ou veículos de reentrada de mísseis
para medir ou inspecionar.
Era absurda nossa limitação quanto à documentação que podíamos mostrar ao Irã. Pressionei
constantemente a fonte das informações para que nos permitisse compartilhar cópias com o Irã.
Como posso acusar uma pessoa, eu me perguntava, sem revelar quais são as acusações
existentes contra ela? O pessoal da inteligência negava, dizendo que precisavam proteger suas
fontes e métodos.
O Irã, por sua vez, continuava a desmentir a maioria das acusações, dizendo que haviam
sido inventadas. Se por um lado a cooperação dos iranianos no plano de trabalho havia sido
recompensada com mais sanções do Conselho de Segurança, por outro, a colaboração sobre os
supostos estudos envolvendo armamentos tinha sido mínima. Segundo eles, a dificuldade era
provar que os estudos não tinham nada a ver com atividades nucleares, pois eles estariam
expondo muita coisa relativa ao seu armamento convencional, especialmente seu programa de
desenvolvimento de mísseis. Eles suspeitavam que muitos inspetores estavam exatamente atrás
disso. Os inspetores, é claro, refutavam inteiramente essa linha de raciocínio.
Seria realmente essa a razão da reticência dos iranianos? Ou eles estavam querendo esconder
alguma coisa porque não era o momento certo para uma confissão? Ou seria uma combinação
das duas coisas? Eu não sabia. Sem dúvida era frustrante ficar preso nesse impasse, sem
conseguir ir ao fundo da questão. Continuei a pressionar ambos os lados, mas ninguém se
mexia.
No final do verão de 2009, os israelenses forneceram à AIEA seus próprios documentos para
provar que o Irã tinha prosseguido em seus estudos sobre armas nucleares até pelo menos
2007. Ao contrário da inteligência norte-americana, disseram que poderíamos mostrar esses
documentos ao Irã, sem qualquer restrição para proteger suas fontes. Os especialistas técnicos
da agência, no entanto, levantaram inúmeras questões a respeito da autenticidade dos
documentos, por isso enviamos a Israel uma lista de perguntas .
206

Para mim, Israel levou essas acusações para a AIEA com três objetivos. Primeiro, eles
queriam contestar as conclusões do Informe da Inteligência Nacional norte-americana de
dezembro de 2007, que dizia que o Irã tinha interrompido seu programa de armas nucleares em
2003. Mas, ao mesmo tempo, não podiam desacreditar publicamente os Estados Unidos,
portanto a AIEA era o veículo secundário com maior credibilidade. Em segundo lugar, eles
queriam pressionar a China e a Rússia a reforçar as sanções contra o Irã. Em terceiro lugar, e o
mais preocupante, eles queriam dar a impressão de que o Irã representava uma ameaça
iminente, talvez preparando as bases para o uso da força .
207

Era esse o cenário da reunião da diretoria em setembro. Alguns dias antes, Bernard
Kouchner declarou aos jornalistas que eu estava de posse de documentos “anexos” ao relatório
sobre o Irã que comprovavam que Teerã estava trabalhando para desenvolver armas
nucleares . Ele estava se referindo, é claro, à análise interna da AIEA.
208

Meu discurso de abertura na reunião abordava o problema de frente. Essas acusações


deprimentes feitas por Estados-membros e transmitidas para a mídia eram infundadas e tinham
motivações políticas. Eu tinha certeza de que “Todas as informações que chegavam à agência
sobre o programa nuclear iraniano eram criticamente avaliadas segundo os padrões habituais,
sendo levadas à atenção da diretoria”. Na verdade, eu disse, as acusações eram tentativas de
influenciar a Secretaria-Geral e sabotar sua objetividade e independência.
Os franceses tentaram dar a última palavra, afirmando que algumas das informações tinham
sido apresentadas pela agência em um informe técnico que não constava do relatório.
Assim, eu lancei um desafio direto: “Aqui estão presentes as pessoas que forneceram as
informações de que dispomos”, declarei. “Se alguém de vocês tem qualquer informação que
não divulgamos à diretoria, por favor, apresente-se agora ou cale-se para sempre”. Ninguém
respondeu.
O que eu não conseguia entender de maneira alguma era como toda informação que pudesse
ter sido apresentada em um informe técnico para 150 Estados-membros poderia ter sido
considerada “retida”. Então me concentrei em nossas limitações para validar os supostos
estudos para o desenvolvimento de armas. Se todos os documentos fornecidos a nós fossem
autênticos, eu disse, escolhendo as palavras cuidadosamente, então havia uma grande
probabilidade de o Irã ter realizado estudos para o desenvolvimento de armas. “Mas tenho que
sublinhar esse ‘se’ três vezes”, enfatizei, “e é por isso que estamos empacados.”
Senti um certo alívio quando, um dia após esse embate desagradável, a diretoria me conferiu
o título de diretor-geral emérito. O tom mudou completamente, o que foi para mim uma
experiência bastante emocionante. Foram apresentadas homenagens de 41 oradores. Juntos,
representavam todo o corpo de membros da agência. Em particular, vou me lembrar sempre de
duas homenagens: “Estamos aqui para honrar a honra”, disse o embaixador cubano, citando o
poeta Alphonse de Lamartine; já o embaixador brasileiro disse que eu havia “usado o poder da
argumentação, e não a argumentação do poder”.
As histórias sobre as informações contidas nos “anexos secretos” não desapareceram
completamente. Um artigo da Associated Press de setembro referiu-se a cópias dessa suposta
análise secreta . E, em outubro, o Institute for Science and International Security (ISIS), órgão
209

norte-americano especializado em segurança nuclear, publicou um artigo em seu site que


incluía pequenos trechos do documento . Era óbvio que ou o documento havia vazado – e
210

havia apenas seis pessoas do Departamento de Salvaguardas com acesso a ele – ou tinha sido
roubado por alguém que invadira os computadores da agência.
O mais importante, entretanto, é que nos bastidores estava se abrindo uma oportunidade para
um avanço significativo com o Irã.
Tudo começou alguns meses antes, com um pedido de Teerã para que a AIEA ajudasse a
obter um novo combustível para seu reator de pesquisa, usado para produzir radioisótopos com
finalidade medicinal. O nível de enriquecimento necessário para o reator era de 20%, bastante
superior aos 4-5% necessários aos reatores de energia e bem mais elevado do que o nível
estabelecido pelo Irã em Natanz. O combustível antigo tinha sido importado, mas agora, com
as sanções impostas ao Irã, esse pedido era uma batata quente: embora fosse perfeitamente
legal para a agência ajudar um Estado-membro a obter combustível com salvaguardas, o Irã
estava violando as resoluções do Comitê de Segurança.
Para sondar o terreno, decidi instruir Vilmos Cserveny a falar da solicitação do Irã
inicialmente apenas com dois países: Rússia e Estados Unidos, por meio de seus representantes
em Viena. Pedi a Vilmos que explicasse que se tratava de uma situação delicada. Se o Irã não
recebesse o combustível de fora, teria todas as justificativas para continuar com seu
enriquecimento de urânio em níveis mais elevados para atender às suas necessidades. Se
descobríssemos uma maneira de ajudar o Irã a obter combustível para esse uso legítimo, seria
uma forma de enviar um sinal positivo.
Uma proposta conjunta dos Estados Unidos e da Rússia foi levada à AIEA no início de
setembro. A proposta apoiava a solicitação do Irã, mas com uma mudança: Teerã receberia um
núcleo de reator de pesquisa que funcionaria com combustível convertido do urânio de baixo
enriquecimento acumulado pelo país. Esse urânio seria enviado ao exterior, transformado em
combustível na Rússia e na França, e então voltaria para o Irã na forma de um núcleo de reator
de pesquisa. Os Estados Unidos forneceriam o apoio político e financeiro.
Era engenhoso. Depois de tudo o que acontecera, havia sido encontrada uma abertura para
que os Estados Unidos retomassem o contato respeitoso com o Irã. Retirando a maior parte do
LEU (Low Enriched Uranium; “urânio de baixo enriquecimento”) do Irã, a tensão em relação a
essa atividade seria neutralizada, ou pelo menos adiada. O Irã comprovaria que seu programa
de enriquecimento estava sendo usado para fins pacíficos. A comunidade internacional
receberia a garantia de que o estoque iraniano de LEU não estava sendo reservado ou
canalizado para armas nucleares. A diplomacia finalmente batia à porta.
Então, em 12 de setembro de 2009, recebi um telefonema do presidente Obama. Ele
começou a conversa gentilmente, dizendo que admirava meu trabalho e acreditava que
tínhamos a mesma visão em várias questões. Queria me convidar pessoalmente para falar na
Cúpula do Conselho de Segurança da ONU sobre o Desarmamento e a Não Proliferação
Nuclear, da qual ele estaria à frente como presidente do Conselho.
Fiquei exultante com o convite e é claro que aceitei. A conversa então centrou-se no Irã.
Obama disse que estava empenhado em tratar das preocupações envolvendo o programa
nuclear do Irã e, ao mesmo tempo, respeitar totalmente seus direitos segundo o TNP. Segundo
ele, a proposta do combustível, que também tinha o apoio de Israel, seria uma forma de atenuar
a crise atual e ganhar tempo para a diplomacia e a negociação.
Quando soube que o presidente Obama iria telefonar, entrei em contato com Ali Salehi, que
substituíra Aghazadeh como vice-presidente do Irã e chefe da Organização de Energia Atômica
do Irã . Perguntei a Salehi se a liderança iraniana queria transmitir alguma mensagem a
211

Obama. Ahmadinejad nos informou que ele estava “pronto para iniciar negociações bilaterais,
sem condições e baseadas no respeito mútuo”. Havia mais detalhes, ligados à disposição do Irã
em ajudar no Afeganistão e em outros lugares.
Transmiti a mensagem e falei a Obama que, em minha opinião, os Estados Unidos deveriam
se concentrar o mais rápido possível em diálogos bilaterais em vez de recorrer apenas aos
mecanismos do P5+1. Obama ouviu e agradeceu minha sugestão.
No dia seguinte, convidei Salehi e o embaixador iraniano Ali Asghar Soltanieh para uma
rápida reunião em minha casa. Vilmos Cserveny também estava presente. Entreguei aos
iranianos uma cópia da proposta EUA-Rússia para o combustível e expliquei seus inúmeros
benefícios. O Irã poderia usar seu próprio LEU em seu próprio combustível no reator –
reconhecimento explícito do direito do país ao enriquecimento da substância. Com isso, os
Estados Unidos enviariam um claro sinal da sua disposição em ajudar o Irã no uso pacífico da
energia nuclear. E o Irã, por sua vez, não seria solicitado a parar ou suspender seu
enriquecimento; pelo contrário, a proposta ajudaria a resolver o impasse do enriquecimento de
urânio e daria tempo para a negociação.
Por outro lado, se o Irã recusasse a proposta, as preocupações aumentariam. Eles agora
tinham uma quantidade significativa de LEU. Por que se recusariam a usá-lo em seu próprio
reator de pesquisa?
Salehi sorriu ao ler o documento. “Esta é uma proposta bastante inteligente”, ele disse. “Eu
me pergunto: eles nos dariam yellowcake em troca?” Era uma pergunta retórica, não
exatamente direcionada a mim . Ele também ponderou que os iranianos poderiam enriquecer
212

seu próprio urânio a 20% e depois produzir seu próprio combustível. “Mas não faremos isso”,
acrescentou rapidamente. Sabia que isso incendiaria a questão. Ele estava claramente intrigado
e, até onde eu podia ver, tentando analisar todas as possibilidades ao mesmo tempo.
“Você não deveria encarar isso apenas como uma proposta técnica”, rebati. “É isso, mas é
também um gesto político que poderia abrir a porta para as negociações.”
Salehi concordou, dizendo que esperaria voltar a Teerã para depois responder. Preocupado
com a possibilidade de uma resposta negativa ao telefone, ele queria explicar a proposta
pessoalmente para Ahmadinejad. A atmosfera em Teerã, segundo Salehi, continuava tensa.
Lembrei que havia pouco tempo uma autoridade iraniana me afirmara uma mudança no
poder em Teerã. Ahmadinejad havia desafiado o aiatolá Khamenei em várias frentes. Apesar
de Khamenei continuar como Líder Supremo em público, Ahmadinejad havia assumido o
controle do poder executivo.
A boa notícia, do meu ponto de vista, era que Salehi tinha acesso direto ao presidente
iraniano. Eu conhecia bem Salehi: como ex-embaixador da AIEA e graduado pelo MIT, era um
homem sofisticado tanto em sua formação técnica como em suas habilidades diplomáticas
multiculturais. Ele conhecia as questões nucleares iranianas profundamente. Apesar de
totalmente leal ao Irã, estava determinado a encontrar uma solução para o problema. Pelo que
me disseram, sua indicação para a vice-presidência tinha sido uma surpresa, uma vez que havia
trabalhado muito próximo a Rafsanjani e a Khatami antes da ascensão de Ahmadinejad ao
poder, e era tido como integrante da facção liberal.
Se alguma vez existiu a chance de um avanço, pensei, agora era a hora. Com Obama e sua
equipe na Casa Branca e Salehi como principal negociador na questão nuclear, ambos os lados
estavam verdadeiramente interessados na aproximação. Ahmadinejad era a incógnita. O fluxo
constante na política interna iraniana dava a entender que ele continuaria sensível à mínima
demonstração de desrespeito. E o fim da administração Bush não significava que a ideologia
neoconservadora tinha se retirado para sempre. Seus defensores continuariam a fazer o possível
para causar danos a qualquer acordo.
Mas, pelo menos, pensei, finalmente tínhamos uma chance de lutar.
As notícias da primeira sabotagem contra o nosso trabalho vieram da embaixadora francesa
Florence Mangin. Na Conferência Geral da AIEA, ela me disse que a França concordava em
fabricar o combustível para o Irã depois que a Rússia o enriquecesse a 19,5%. Mas disse que,
devido à relevância das sanções, a proposta do combustível deveria ser encaminhada ao
Conselho de Segurança e passar pelas deliberações políticas do P5+1. Eu resmunguei por
dentro, mas não disse nada. Era uma abordagem excessivamente legalista, e certamente
encalharia o processo.
Na primeira oportunidade que tive, apelei para o novo embaixador norte-americano, Glyn
Davies, que havia substituído Greg Schulte. Davies era um experiente diplomata de carreira
com visão de mundo bastante ampla, incrível capacidade de análise e bom senso. “Por favor”,
eu lhe pedi, “tome conta disso. Precisamos que corra tudo direitinho com essa operação.” O
fornecimento de combustível para um reator de pesquisa era considerado assunto de
cooperação técnica pela AIEA. Assim, não havia necessidade de passar pelas discussões do
Conselho de Segurança ou do P5+1.
Davies concordou. Ele disse que tentaria convencer Washington a falar com Paris.
Minha parada seguinte era Nova York: a Cúpula do Conselho de Segurança da ONU sobre
Desarmamento e Não Proliferação Nuclear, presidida por Obama. Quando cheguei, em 21 de
setembro, havia uma solicitação do subsecretário de Estado Bill Burns para que eu o
encontrasse. Ele estaria acompanhado de seus colegas Bob Einhorn e Gary Samore .
213 214

Encontrei Burns pela primeira vez quando ele era embaixador na Rússia e percebi
rapidamente por que era reconhecido como um dos melhores funcionários de carreira das
relações exteriores dos Estados Unidos: sagaz, humilde, franco e de fala mansa. Eu também
havia trabalhado com Einhorn e Samore por mais de vinte anos, quando os dois faziam parte da
administração Clinton e quando compunham grupos de especialistas na era Bush . Eram dois
215

dos maiores especialistas norte-americanos em não proliferação, além de muito amigos. Fui me
encontrar com eles no Waldorf Astoria, onde Obama estava hospedado. O burburinho habitual
da Big Apple havia sido reprimido. Tudo havia sido bloqueado por causa da preocupação com
a segurança da Cúpula.
Burns começou a falar francamente: os Estados Unidos estavam “empacados” na questão do
Irã. Eles viam a proposta do acordo para o combustível como rota de fuga; se não desse certo,
seriam obrigados a partir para mais sanções. Burns estava ansioso para marcar o encontro com
o Irã para falar sobre a proposta. Eu disse a ele que estava trabalhando para organizar a
logística.
Então mencionei que, no aeroporto internacional de Viena, pouco antes do voo, recebi uma
carta criptografada do Irã. Em suma, a mensagem dizia que o país estava construindo outra
planta-piloto de enriquecimento de urânio. A informação foi prefaciada por uma estranha
declaração sobre a necessidade de o país exercer defesa passiva e proteger seus recursos
humanos. Mostrei a carta a Burns, Einhorn e Samore; Einhorn fez algumas anotações.
Um pedido urgente chegou na manhã seguinte: Gustavo Zlauvinen, chefe do escritório da
AIEA em Nova York, recebera um telefonema de Einhorn solicitando um encontro comigo e
Samore naquela noite em meu hotel. Eu ainda estava sentindo os efeitos do fuso horário e me
preparando para a Cúpula, por isso liguei para Einhorn para saber o motivo da visita.
Sem preâmbulos, ele disse que sabiam da construção das instalações iranianas havia dois
anos. Uma equipe representando as agências de inteligência dos EUA, França, Reino Unido e
Israel estava se preparando para ir a Viena passar as informações aos especialistas técnicos da
agência. Einhorn achou que ele e Samore deviam me contar o que sabiam antes da reunião do
Conselho.
Perguntei por que a AIEA não havia sido comunicada antes. Esse era mais um exemplo de
sonegação de informação à agência. Eles não tinham certeza quanto à natureza das instalações,
o que me pareceu uma desculpa esfarrapada. Suspeitei que estivessem esperando pegar o Irã de
surpresa operando as instalações, dando aos Estados Unidos uma desculpa para sustentar suas
acusações de que o país tinha um programa de armas nucleares. Não gostei nem um pouco.
Einhorn e eu concordamos em nos encontrar no dia seguinte, após a reunião do Conselho.
As novas instalações iranianas estavam localizadas em Fordow, a cerca de 30 quilômetros
ao norte da cidade de Qom. Os norte-americanos alegavam que elas eram pequenas,
construídas para abrigar apenas trezentas centrífugas, o que não visava ao uso industrial, por
isso deviam ter sido criadas para fins militares. Para eles, o Irã sabia desde a primavera que os
países ocidentais tinham conhecimento dessas instalações. Foi por isso, eles acreditavam, que
os iranianos tinham finalmente decidido declará-las à AIEA.
A notícia era extremamente desanimadora. O fato de os iranianos não terem declarado as
instalações de Fordow à AIEA na época do início da construção, como deveriam ter feito,
apenas aprofundaria a desconfiança internacional em relação às intenções de Teerã. Ainda
assim, decidi insistir na proposta do combustível. Conversei várias vezes por telefone com
Salehi, em Nova York e depois na Índia, minha parada seguinte. Eu estava tentando fechar
duas datas com os iranianos: uma para a inspeção das novas instalações e outra para uma
reunião sobre a proposta do combustível. Também queria garantias, antes da próxima reunião
do P5+1, marcada para 1o de outubro em Genebra, de que Teerã em princípio concordava com
a proposta. Salehi estava ansioso para tocar as coisas, mas esperava o sinal verde de
Ahmadinejad. As novas instalações, ele disse, não eram industriais. Tinham sido criadas como
reserva durante a administração Bush, pois a ameaça de um ataque militar a Natanz parecia
bastante evidente. A fábrica estava encravada na montanha para ter o máximo de proteção
contra um ataque aéreo. Não precisava ser grande, disse Salehi. Era uma forma de o Irã
preservar sua tecnologia de enriquecimento nuclear e sua base de conhecimento,
independentemente da ameaça externa.
Quando finalmente foi marcada uma data para discutir a proposta do combustível, Salehi
confirmou que os iranianos, em termos gerais, concordavam com o plano, mas não poderia
divulgar isso oficialmente antes da reunião. Para mim, já era o suficiente para falar com
Washington.

Alguns dias depois, fui informado de que o presidente Obama queria falar comigo por telefone.
Ele começou agradecendo por ter ido me encontrar com Burns e os demais no dia da minha
chegada para a Cúpula de Nova York. Fiquei impressionado, como da outra vez, com a
sensibilidade de sua abordagem. Segundo ele, era extremamente importante que a agência
tivesse acesso às novas instalações rapidamente. “Não quero interferir no trabalho da sua
agência”, ele disse, “mas espero que você informe prontamente à diretoria assim que visitar as
instalações e tiver feito sua avaliação.” Ele estava satisfeito por termos marcado a data para a
reunião sobre a proposta do combustível e pelo fato de os iranianos terem reagido
positivamente.
Enquanto estava na Índia, disse para a CNN-IBN que a revelação das novas instalações de
enriquecimento nuclear do Irã era um infeliz “revés no princípio da transparência e no esforço
da comunidade internacional de adquirir confiança em relação ao programa nuclear iraniano”.
Expliquei o argumento do Irã sobre a necessidade de ter as instalações como reserva para o
caso de um ataque. Por isso “eles não poderiam ter nos contado antes. No entanto, eles ficaram
do lado errado da lei, pois deveriam informar a agência a respeito da construção – e, como
vocês viram, isso despertou preocupações na comunidade internacional”.
Apesar das instalações de Fordow, todos os lados sinalizavam o desejo de concluir o acordo
do combustível. Na reunião do P5+1 realizada em Genebra no dia 1o de outubro, minha maior
preocupação foi evitar que as discussões desandassem, especialmente por causa de uma
declaração solta dos franceses, que continuavam a falar de maneira provocadora sobre o
programa nuclear iraniano. Nós nos esforçamos para garantir que, antes da reunião, todas as
partes tivessem um entendimento bastante claro de sua própria posição, bem como da posição
que os outros poderiam assumir. Não queríamos surpresas.
A reunião transcorreu sem incidentes, sendo descrita por Obama como um “início
construtivo”. Em relação à proposta do combustível e à inspeção das novas instalações perto de
Qom, os participantes reafirmaram praticamente todos os termos que eu já havia mediado entre
os Estados Unidos e o Irã. A reunião serviu como articulação pública de um acordo privado.
Nem todos perceberam que as coisas tinham sido pré-cozidas.
Pouco antes do final, Solana telefonou, alcançando-me em Katmandu. O P5+1, disse ele,
havia confirmado que a inspeção das novas instalações deveria ocorrer nas próximas semanas.
Ele queria saber se era possível. Respondi que o momento era bom, mas não cabia a eles
marcar as datas das inspeções. Solana desculpou-se, dizendo que não tivera a intenção de
interferir.
Eu não disse mais nada. Mas essa atitude me pareceu típica: os países ocidentais envolvidos
no processo sempre quiseram ser vistos como se estivessem no comando – forçar, cutucar,
pressionar, estabelecer prazos, dominar o debate, impor punições –, como se fossem crianças
provocadoras no pátio da escola, acabando por sabotar a objetividade que queriam alcançar.
Solana acrescentou que em princípio eles tinham conseguido fazer os iranianos concordarem
com a oferta de combustível. Eu não mencionei que isso já tinha sido conversado muitas vezes
com Salehi. Falei apenas que ouvira algo sobre o assunto em minha conversa com o presidente
Obama.
Na coletiva de imprensa realizada após a reunião do P5+1, Obama falou do progresso feito.
“Tenho estado em contato direto com o chefe da AIEA, Mohamed ElBaradei, que viajará a
Teerã nos próximos dias. Ele tem meu total apoio.” Fiquei encantado com a mudança ocorrida
no mundo em apenas alguns meses. Depois de anos sendo ignorada ou atacada como arqui-
inimiga dos EUA, a AIEA mais uma vez era tida como parceira, tratada com confiança. Era um
final inesperado mas bem-vindo para o meu mandato na agência. Eu esperava todo o tempo do
mundo para ver um distanciamento das políticas da administração Bush, mas sinceramente não
tinha esperança de encontrar um novo presidente no comando das questões, acessível por
telefone, que falasse com satisfação do nosso trabalho.
De Katmandu, consegui viajar para Teerã em 3 de outubro. Salehi foi ao meu encontro no
Hotel Esteqlal e informou que no Irã estava tudo preparado para a visita dos inspetores da
AIEA às novas instalações de Fordow. No entanto, haveria um pequeno atraso. Devido às
declarações públicas de Obama e do Ocidente de que as inspeções precisavam ocorrer em duas
semanas, a AIEA teria de esperar passar esse prazo. Teerã não queria dar a impressão de que
estava aceitando ordens dos Estados Unidos ou de quem quer que fosse.
A proposta do combustível estava enfrentando uma grande oposição interna em Teerã, mas
Salehi havia conseguido convencer Ahmadinejad a seguir em frente. O presidente iraniano
queria dialogar com os Estados Unidos, e, se houvesse alguém que podia tornar isso realidade,
seria Ahmadinejad.
Tentei sondar Salehi a respeito das questões a levantar na reunião que faríamos sobre a
proposta do combustível. Ele mencionou uma série de possibilidades: um pedido de ajuda para
a renovação do reator de pesquisa de Teerã, que tinha quarenta anos e havia sido fornecido
pelos Estados Unidos; uma solicitação de ajuda para a compra de um novo reator de pesquisa
do Ocidente; ou que o P5+1 permitisse que os engenheiros iranianos tivessem formação no
exterior.
Salehi também mencionou uma questão antiga, contenciosa: o urânio que o Irã havia
comprado e pago, mas que, após a Revolução de 1979, nunca havia sido entregue. Ele disse
que o Irã poderia pedir à França e à Alemanha para finalmente entregarem esse urânio. Não era
uma boa ideia, eu disse a ele. Trazer mais urânio para o Irã a essa altura não parecia uma boa
maneira de neutralizar a crise.
Na proposta do combustível, o acordo previa o envio de 1.200 kg de LEU para a Rússia,
onde seriam enriquecidos, e depois para a França, onde o combustível para o núcleo do reator
de pesquisa iraniano seria fabricado.
“Essa quantidade prevê a necessidade em um núcleo por dez anos”, Salehi respondeu. “Nós
devemos pedir um núcleo com uma vida de apenas cinco anos, o que requer menos LEU.”
Meu conselho era tirar o máximo possível de LEU do Irã para acalmar a situação e, assim,
criar uma oportunidade de negociação. Apesar de ser uma questão técnica, tinha enormes
implicações políticas.
Também perguntei se havia alguma possibilidade de o Irã reconsiderar um intervalo ou o
congelamento proposto anteriormente, a fim de iniciar o diálogo. A ideia não seria aceita em
Teerã, respondeu Salehi, com sinceridade. Com toda a condenação do Ocidente, o
enriquecimento do combustível se transformara em uma questão de orgulho nacional. O espaço
para um compromisso desse tipo era limitado. Mas, pelas minhas conversas com autoridades
iranianas, percebi que o país talvez pudesse implementar um congelamento de fato não
declarado, deixando que a notícia viesse a público por meio da AIEA.
Discutimos como o Irã poderia travar um diálogo bilateral com os Estados Unidos. Em certa
medida, o sucesso em uma frente bilateral alteraria as negociações com o P5+1, facilitando os
esforços multilaterais. Mas o diálogo bilateral precisava de um pretexto para começar. Quem
sabe “conversas técnicas” com os Estados Unidos – como instruções para renovar a sala de
controle do reator de pesquisa, por exemplo – pudessem fornecer esse pretexto?
Salehi não se comprometeu. Já tinha sido bastante difícil fazer as coisas chegarem aonde
chegaram.
Meu próximo encontro foi com Ahmadinejad. Eu tinha solicitado uma reunião cara a cara,
apenas com a presença de Salehi para atuar como intérprete. Expliquei a Ahmadinejad o valor
político do acordo proposto e disse que seria bom para a AIEA inspecionar as novas
instalações de Fordow o mais rápido possível, sugerindo – como combinado com Salehi – que
isso ocorresse logo, antes de 25 de outubro. Eu estava consciente do final do meu mandato,
mas o mais importante era que eu queria extinguir as especulações crescentes por parte do
Ocidente. “Você deve saber”, eu acrescentei, “que as agências de inteligência ocidentais
sabiam das instalações havia muitos anos.”
Ahmadinejad sorriu. “Se realmente soubessem”, respondeu ele, “Obama não teria dito” –
como fizera em uma coletiva de imprensa – “que se trata possivelmente de instalações
militares.” Ahmadinejad não fez nenhuma referência à minha declaração para a CNN de que o
Irã estava do lado errado da lei por não ter informado à AIEA a respeito de Fordow.
Ele acrescentou que Obama deveria parar de dar ordens ao Irã, de dizer “vocês devem fazer
isso, vocês devem fazer aquilo” e de condenar Teerã em público. Respondi que Ahmadinejad
devia entender que Obama tinha limitações domésticas, ao que ele retrucou: “Eu também”.
Estava claro, para Ahmadinejad e para o Irã como um todo, que o tratamento respeitoso por
parte do Ocidente era essencial. Ahmadinejad desdenhou principalmente Sarkozy, que segundo
ele havia sido “grosseiro” durante certo tempo. Ele também se sentiu insultado pelo fato de
Obama não ter respondido a sua mensagem de felicitações após as eleições norte-americanas.
O segredo do progresso nas relações bilaterais com os Estados Unidos seria uma questão de
tom: fazer o Irã se sentir um parceiro, e não um pária.
Quando mencionei que a aplicação do Protocolo Adicional ajudaria no caso do Irã,
Ahmadinejad disse que isso não seria problema, mas ele achava que Teerã precisava de um
gesto mais positivo por parte do Ocidente. Sugeri que talvez, quando o acordo do combustível
estivesse concluído, os norte-americanos pudessem fornecer peças sobressalentes para a frota
ultrapassada de aeronaves civis iraniana. “Peças sobressalentes não são tão importantes. Do
que precisamos realmente é superar cinquenta anos de hostilidades.”
Indiretamente, isso me levou a um assunto delicado: as declarações de Ahmadinejad a
respeito de Israel e do Holocausto . “Você não deveria dar a seus detratores a chance de usar
216

indevidamente suas declarações”, aconselhei. Ele entendeu imediatamente o que eu estava


querendo dizer, e respondeu que ninguém no mundo árabe e muçulmano estava disposto a
aceitar o “regime sionista”.
Após a reunião, Salehi me contou que Ahmadinejad apreciava meus esforços para ajudar a
resolver a questão iraniana e que lhe pedira para levar um belo presente para minha esposa em
sua próxima viagem a Viena. Assim, pouco depois Aida recebeu um vaso iraniano tradicional
com belos versos do Corão emoldurados. Ao deixar Teerã, também ganhei de presente pistache
de primeira classe. Essas são as vantagens da diplomacia internacional.
Embora o palco estivesse montado para o avanço, a situação continuava delicada. Um passo
errado em qualquer direção poderia fazer desmoronar a frágil estrutura que havíamos
construído.
Duas semanas antes da data programada para a realização do encontro sobre a proposta do
combustível, em 21 de outubro, Hillary Clinton fez uma declaração provocadora. Em uma
coletiva de imprensa com David Miliband, expressou impaciência com os iranianos: “A
comunidade internacional não irá esperar para sempre pelas evidências de que o Irã esteja
preparado para cumprir suas obrigações internacionais”. O que veio depois foi pior: “No caso
do Irã, é trágico que um país com tanta história, com tanto a dar para o resto do mundo, tenha
tanto medo de seu próprio povo. A maneira como estão conduzindo detenções e prisões
secretas, julgamentos em forma de espetáculo, é um reflexo do descontentamento que eles
sabem que as pessoas sentem em relação à sua liderança atual” .
217

Ahmadinejad e seus colegas ficaram irados. O embaixador iraniano veio nos informar que
Salehi não iria para a reunião sobre a proposta do combustível. Telefonei para Glyn Davies.
Relatei a ele que a declaração de Hillary Clinton tinha sido completamente desnecessária e que
estava anulando nossos esforços de criar um ambiente favorável à negociação. Se essas
provocações continuassem, eu desistiria. Pedi a ele que telefonasse para Washington para ver
se Hillary, que estava em Moscou para um encontro com o ministro das Relações Exteriores
russo, Serguei Lavrov, poderia fazer um pedido de desculpas ou pelo menos uma declaração
mais positiva.
A resposta foi imediata. Em uma coletiva de imprensa com Lavrov, em 13 de outubro,
Hillary baixou o tom, dizendo que os Estados Unidos tinham uma “abordagem dupla” em
relação ao Irã: “Acreditamos que é importante trabalhar uma via diplomática e fazer tudo o que
pudermos para que seja bem-sucedida. Acreditamos que o Irã tem direito à energia nuclear
pacífica, mas que não deve ter armas nucleares” .
218

Felizmente, Lavrov acrescentou que a Rússia estava convencida de que “ameaças, sanções e
mecanismos de pressão, na situação atual, são contraproducentes” .
219

Telefonei para Salehi e para o embaixador Soltanieh. Disse a eles que havia informado os
norte-americanos da reação negativa de Teerã e citei o tom mais positivo de Hillary Clinton.
Pedi que enviassem uma mensagem a Ahmadinejad, insistindo para que ele elevasse o moral
em vez de refutar os Estados Unidos na mídia. E o mais importante: o Irã não deveria
desperdiçar a oportunidade da reunião sobre a proposta do combustível. Os norte-americanos
tinham concordado em discutir as questões que Salehi havia levantado em Teerã: a renovação
do reator, a formação dos cientistas iranianos e a possível venda de um novo reator de
pesquisa. Essa seria a porta de entrada para um diálogo mais amplo.
Salehi disse que não poderia abordar Ahmadinejad novamente a respeito da participação na
reunião porque o presidente iraniano ainda estava muito contrariado com as declarações de
Hillary Clinton. Ainda assim, Soltanieh prometeu que transmitiria minha mensagem.
“Esta pode ser minha última chance de ajudá-los a se acertar com os Estados Unidos”, eu
disse. Ameacei não realizar a reunião se Salehi ou alguém de seu nível não participasse.

No final, não precisei levar adiante minha ameaça. A tão aguardada reunião sobre a proposta
do combustível ocorreu em Viena no dia 19 de outubro, como planejado, com a presença de
Soltanieh. Dan Poneman – secretário adjunto de Energia dos Estados Unidos e amigo de longa
data que havia trabalhado durante muitos anos com Brent Scowcroft e no Conselho de
Segurança Nacional durante a administração Clinton – chefiou a delegação dos EUA. Poneman
era um sopro de ar fresco: brilhante, modesto, pensava grande e estava sempre ávido por
encontrar soluções. O chefe da delegação russa, Nikolai Spasski , também era um diplomata
220

de primeira classe.
Os franceses, em contrapartida, surgiram como linha-dura e legalistas. Chefiada por Frédéric
Mondoloni, representante na AIEA, a delegação francesa chegou com uma série de propostas
de emendas ao nosso projeto de acordo.
Durante a reunião, o Irã anunciou que não queria que a França participasse do acordo. Como
razão para isso, citou a não entrega de 50 toneladas de urânio compradas da França antes da
Revolução de 1979 – exatamente a questão que eu pedira a Salehi que não viesse à tona.
Suspeitei, porém, de que o urânio não entregue não fosse o verdadeiro motivo da antipatia do
Irã pela França, lembrando as queixas de Ahmadinejad quanto à “grosseria” de Sarkozy. O
presidente francês sempre encontrava uma forma de insultar o Irã. No final de agosto, por
exemplo, ele teria dito que “são os mesmos líderes do Irã que dizem que o programa nuclear é
pacífico e que as eleições foram honestas. Quem pode acreditar neles?” .
221

Os iranianos estavam aproveitando a oportunidade para dar o troco nos franceses, embora
Sarkozy tivesse oferecido a Obama seu apoio no acordo. Na verdade, a França era um dos
poucos países com tecnologia para produzir o combustível do reator de pesquisa do Irã. Era
preciso telefonar para Salehi. “Acho que você já jogou o que tinha para jogar na cara dos
franceses”, eu disse. “Você vai precisar deles no futuro por causa do suporte tecnológico –
tanto para o reator de energia quanto para as pesquisas.” Sugeri que eu poderia manter os
franceses no acordo como proposta minha.
Os iranianos poderiam relevar isso, respondeu Salehi, e me pediu que entrasse em contato
com os franceses, a fim de que eles enviassem seu embaixador a Teerã para falar com ele no
dia seguinte. Em um encontro paralelo com a delegação francesa, expliquei como tínhamos
trabalhado para mantê-los no acordo. “Vocês precisam pedir ao seu pessoal em Paris para
controlar a retórica”, eu disse. “Vocês não podem acusar publicamente as pessoas de
mentirosas e depois esperar que confiem em vocês como parceiros.” Nosso próximo obstáculo
surgiu quando os iranianos passaram a discutir como o urânio seria enviado ao exterior. O
combinado no encontro do P5+1 em Genebra tinha sido que os 1.200 kg de LEU seriam
removidos de uma vez. O Irã passou a insistir em primeiro receber o combustível, fabricado
com alguma outra fonte de LEU, para só então liberar seus estoques de urânio enriquecido, em
dois lotes. Segundo eles, isso se devia à declarada falta de confiança e à sua experiência
passada.
Como alternativa, sugeri que a agência pudesse assumir a custódia do material desde o
momento da saída do Irã até sua devolução na forma de combustível, dando a eles a garantia de
que necessitavam. De qualquer forma, o risco que o Irã corria era bem baixo: sua capacidade
de enriquecimento permaneceria intacta. Como eu disse a Soltanieh e seus colegas, o momento
e a quantidade de LEU a ser entregue eram, a meu ver, o ponto de acordo para os norte-
americanos e outros países ocidentais.
Tínhamos chegado a um impasse. Telefonei para Salehi, que, para minha surpresa, disse que
eles entregariam todos os 1.200 kg se os Estados Unidos fossem seu interlocutor no acordo, em
vez da Rússia ou da França. Foi um golpe brilhante. Ignorando a terceirização, os iranianos
abririam as portas para um diálogo bilateral direto com os norte-americanos. Isso era o que
Ahmadinejad tinha dito que queria desde o início. Também enviaria uma mensagem de
confiança em ambas as direções: de Teerã a Washington e vice-versa.
Ao receber a mensagem de Salehi, os norte-americanos ficaram boquiabertos. Poneman e
sua equipe telefonaram correndo para Washington para pedir orientação por volta das 4 horas
da manhã, no horário de Washington. Eles finalmente responderam com uma contraproposta.
Os Estados Unidos não seriam parceiros no acordo, mas fariam uma declaração política de
apoio e se comprometeriam a ajudar o Irã a melhorar a segurança em seu velho reator de
pesquisa. Era um passo gigantesco. Sugeri que o compromisso de Washington fosse anexado
ao acordo de combustível e assinado pelos norte-americanos. Eles concordaram na hora.
Poneman obteve autorização para ter uma conversa bilateral com Soltanieh. Este disse que
poderia encontrar-se com Poneman apenas se eu estivesse presente. Levei os dois para o meu
escritório. Poneman expressou, em nome do governo dos EUA, sua boa vontade em negociar
com o povo iraniano. A conclusão desse acordo de combustível, ele disse, poderia abrir
caminho para uma gama mais ampla de cooperação entre os dois países, inclusive com o
fornecimento de novos reatores de pesquisa ao Irã, pelos quais o país ansiava. O encontro foi
cordial e amigável. Soltanieh fez várias anotações para levar a Teerã.
Estávamos equilibrados em uma corda bamba, em algum ponto entre um grande avanço e o
fracasso total. Tarde da noite, telefonei para Salehi, prometendo enviar-lhe uma cópia da
declaração norte-americana por e-mail. Pedi a ele que enfatizasse para Ahmadinejad que esse
acordo permitiria que ambos os lados mudassem completamente os termos de suas
negociações. Expliquei que, de acordo com Poneman, era muito difícil para os norte-
americanos aceitarem a ida de material iraniano para os Estados Unidos para fins de
enriquecimento e fabrico. Haveria muitos obstáculos a enfrentar por causa das sanções e
restrições domésticas ao Irã.
Conversamos novamente no início da manhã seguinte. Era 21 de outubro, último dia do
encontro para a proposta de combustível. Salehi estava com Ahmadinejad, que teve outra ideia.
Ele sugeriu que os norte-americanos fossem os interlocutores no acordo, mas com o trabalho
subcontratado pelos russos e pelos franceses. O LEU não precisaria ir para os Estados Unidos
de maneira alguma. Salehi acrescentou que precisava que a equipe iraniana retornasse a Teerã
para que não parecesse que ele era o único a assessorar o presidente iraniano. Ele disse também
que eles precisariam de alguns dias para dar uma resposta.
Reconvoquei a reunião. Apresentei a proposta na forma discutida com Poneman e Soltanieh
no dia anterior: o Irã embarcaria os 1.200 kg de LEU e a agência assumiria a custódia, com os
Estados Unidos fazendo uma declaração de apoio político. Disse aos participantes que eles
tinham até sexta-feira, 23 de outubro, para dar sua aprovação final. Insisti para que
aprovassem, chamando a atenção para as portas que seriam abertas com o acordo. É claro que
eu estava me dirigindo principalmente ao Irã; os outros três participantes, Estados Unidos,
Rússia e França, já haviam embarcado.
Com a conclusão da reunião, fiz uma declaração breve e otimista para a imprensa. A
delegação norte-americana me procurou para expressar o apreço de Washington. Obama
telefonou mais tarde, no mesmo dia, para me agradecer pessoalmente. “Se esse acordo for
aprovado”, disse ele, “mudará a dinâmica das coisas para mim por aqui.” Ele teria o espaço
necessário para a negociação com o Irã em muitas frentes. Mais de uma vez, por vários
motivos, senti necessidade de me beliscar.

As comemorações foram prematuras. Em Teerã, a postura do establishment político tinha


endurecido desde o encontro do P5+1 em Genebra, no início do mês. Críticos de todos os
lados, incluindo a facção liberal que havia perdido recentemente as eleições, acusavam
Ahmadinejad de estar se vendendo. Ali Larijani, que tinha visto seus esforços para alcançar
uma suspensão de fato anulados por Ahmadinejad, era agora o presidente do Parlamento. Era
hora da revanche política. Ele havia se juntado àqueles que criticavam a proposta de
combustível como um “insulto à nação”. Por que, eles se perguntavam, o Irã não pode comprar
seu combustível no mercado como qualquer outro país?
Ray Takeyh, especialista em Irã do Conselho de Relações Exteriores dos EUA, resumiu a
situação de maneira eloquente: “Houve um avaria na máquina da política externa do país.
Atualmente, o Irã não tem uma política externa. Tem políticas domésticas, e suas políticas
externas são apenas expressões esporádicas destas últimas. Não se trata de algo sinistro; não é
hipocrisia; é apenas incompetência” .
222

Faltava pouco mais de um mês para que eu deixasse a AIEA. Estava em contato diário com
Poneman, em Washington, e Salehi, em Teerã, tentando chegar a um acordo. Salehi continuava
hesitante, retirando vários adendos propostos para tentar adoçar o acordo; não fazia outra coisa
senão procurar uma forma de vender o acordo para Teerã. Por fim, deu uma resposta:
Ahmadinejad só concordaria se o LEU ficasse em casa até os iranianos receberem o
combustível para o reator de pesquisa. Eles propunham armazenar o LEU na ilha de Kish, no
golfo Pérsico, sob controle e custódia da AIEA. O Irã então entregaria o material assim que
recebesse o combustível.
Comecei a rascunhar um acordo nesses termos, mas Poneman telefonou para dizer que
Obama estava “bastante contrário” a qualquer acordo que mantivesse o material nuclear no Irã.
Eles estavam prontos a aceitar qualquer outra solução, inclusive manter os Estados Unidos
como único parceiro do acordo, como Salehi havia proposto anteriormente. Eles também
sugeriram armazenar o urânio em um terceiro país, como a Turquia ou o Cazaquistão, nos
quais o Irã teria total confiança.
Verifiquei com Salehi. Infelizmente, a política doméstica sofrera novas mudanças. Ter os
Estados Unidos como único parceiro do acordo já não era mais suficiente. A questão
fundamental era que o LEU teria de permanecer no Irã até o momento da troca.
Estávamos vendo a melhor das oportunidades afundar na lama da política interna tanto em
Washington quanto em Teerã.
Salehi telefonou no dia 5 de novembro para dizer que o presidente Ahmadinejad lhe pedira
para conversar com Khamenei sobre o acordo de combustível. Salehi ficou surpreso; ele
esperava que o presidente iraniano tomasse a decisão sozinho. O Líder Supremo disse a Salehi
que o tratamento dado pela comunidade internacional para a solicitação iraniana de
combustível para seu reator de pesquisa estava se tornando uma afronta. O Irã, disse ele,
entregaria o LEU, mas apenas em lotes de 400 kg, e só depois do recebimento do combustível.
Alguns dias antes, Hillary Clinton declarara à mídia que o acordo não seria alterado , o que
223

desagradou os iranianos, mesmo com as declarações mais conciliatórias e amigáveis de


Obama. Salehi estava desanimado. Até mesmo a ideia de armazenamento na ilha de Kish
passou a estar fora de cogitação. A resposta de Khamenei era a “última palavra”. Essa nova
condição não decolaria, eu disse a Salehi. Ele sabia e me pediu que solicitasse aos norte-
americanos que fossem pacientes.
Em uma entrevista para Christiane Amanpour, tentei fazer uma pressão sutil sobre os
iranianos, insistindo para que vissem o quadro geral e sugerindo a ideia da Turquia como um
terceiro país onde o LEU poderia ficar. Telefonei para Poneman depois da entrevista, para lhe
dar as últimas informações. Ele telefonou de volta logo depois para dizer que Obama aceitava a
Turquia e que o primeiro-ministro turco Erdog˘an assumisse esse papel. Enquanto isso, Salehi
discutira essa opção com Ahmadinejad, que por sua vez falara com Khamenei. Por meio do
embaixador turco, enviei uma mensagem a Erdog˘an para que falasse com Ahmadinejad sobre
a ideia durante a viagem do presidente iraniano à Turquia.

Minha última visita aos Estados Unidos como diretor-geral da AIEA foi absolutamente
diferente de tudo o que eu havia vivido nos últimos oito anos. Em Washington, tive uma série
exaustiva de reuniões: com James Jones, assessor de segurança nacional e sua equipe; com
Hillary Clinton e sua equipe; com o Comitê de Relações Exteriores do Senado, chefiado pelo
senador Kerry; e com muitas outras autoridades do Departamento de Energia e do
Departamento de Estado. Para onde quer que me virasse, encontrava expressões de
agradecimento. Eu sabia que estava em casa nos Estados Unidos. Foi uma boa conclusão.
Em Nova York, fiz meu último discurso para a Assembleia Geral. Foi difícil não me lembrar
das críticas ferozes dirigidas a mim não fazia tanto tempo, acusando-me de parcialidade e de
falar do que eu não entendia. Mas, apesar de toda a gratidão e satisfação que eu sentia ao final
do meu mandato, as possibilidades de reaproximação com o Irã não me saíam da cabeça.
Tínhamos chegado muito perto.

A proposta do combustível iraniano não foi abandonada com minha saída, mas prosseguiu
sofrendo reviravoltas. No dia 9 de fevereiro de 2010, os iranianos declararam que iriam
enriquecer o LEU até 20% para fazer o combustível para seu reator de pesquisa. Dois dias
depois, inexplicavelmente, Ahmadinejad declarou que o Irã havia se tornado “um Estado
nuclear”. Em meados do mês, inspetores da AIEA verificaram que o Irã estava enriquecendo
urânio a 19,8% em Natanz.
Desdobramentos mais positivos, entretanto, estavam ocorrendo nos bastidores. Depois de
vários meses de atraso, Teerã estava reavaliando a sugestão de uma troca de combustível que
incluía o armazenamento temporário do LEU iraniano na Turquia. Em abril, Obama escreveu
diretamente ao presidente brasileiro Lula da Silva – uma carta que depois vazaria para a
imprensa – solicitando que qualquer troca de combustível incluísse uma medida prevendo o
armazenamento de combustível “como caução” na Turquia. Continuei fazendo contatos
ocasionais com os ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Turquia, dando total apoio
a esse novo arranjo.
No dia 17 de maio de 2010, em declaração conjunta, Irã, Brasil e Turquia anunciaram que
tinham chegado a um acordo sobre a troca do combustível. O Irã enviaria 1.200 kg de LEU
para a Turquia, em um único carregamento, a ser mantido como caução, enquanto o
combustível do reator de pesquisa do Irã era fabricado. Tratava-se de um passo à frente –
especialmente porque assinalava a disposição dos novos participantes, Turquia e Brasil, de
assumir papel ativo na resolução do impasse diplomático.
No dia seguinte, porém, em um golpe de mestre de futilidade diplomática, o P5+1 anunciou
que tinha chegado a um acordo sobre uma quarta resolução do Conselho de Segurança para
ampliar as sanções ao Irã por não ter interrompido seu programa de enriquecimento. Hillary
Clinton chamou o acordo para a troca de combustível com a Turquia e o Brasil de “estratagema
transparente” do Irã para evitar novas sanções.
Fiquei chocado e, para dizer o mínimo, dolorosamente decepcionado. Mais uma vez, como
observei em uma entrevista para o Jornal do Brasil, o Ocidente havia se recusado a receber um
sim como resposta . O Brasil e a Turquia ficaram indignados. Ahmadinejad insistiu para que
224

os Estados Unidos aceitassem a troca de combustível como um passo para a abertura e o


diálogo. No Conselho de Segurança, o Brasil votou contra as sanções – sem sucesso. As
potências ocidentais mais uma vez haviam tocado na solução com a ponta dos dedos, para
depois descartá-la.
Quando propus pela primeira vez a troca do combustível, o Irã tinha produzido cerca de
1.500 kg de urânio enriquecido, por isso o acordo teria retirado a maior parte do estoque
iraniano do país. Na época do acordo com a Turquia e o Brasil, o estoque havia crescido para
cerca de 2.500 kg, o que certamente tornava o acordo menos atraente para os norte-americanos
como instrumento diplomático, uma vez que o Irã continuaria a ter uma “quantidade
significativa”. No contrato, o Irã também não se comprometera a interromper o enriquecimento
a 20%, embora Ahmadinejad tivesse dado a entender que o faria.
As potências ocidentais não estavam satisfeitas com esses aspectos do acordo, mas para mim
era óbvio que poderiam ter facilmente resolvido essas questões nos estágios iniciais da
negociação. Era incompreensível e algo ingênuo pedir ao Irã – ou a qualquer país – que
desistisse de tudo antes do início das negociações e esperasse uma resposta positiva. Mas uma
coisa era a de sempre: nada seria satisfatório, a não ser que o Irã se dispusesse a negociar
completamente despido.
198 Thomas Erdbrink, “Ahmadinejad Congratulates Obama, Urges ‘Real’ Change”, Washington Post, 7/11/2008.

199 Ex-subsecretário de Estado e ex-embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas.

200 No dia 9 de abril de 2009, Hillary Clinton fez o seguinte comentário durante uma coletiva de imprensa conjunta com o
ministro das Relações Exteriores australiano Stephen Smith e o secretário da Defesa dos EUA Robert Gates: “Não sabemos em
que acreditar quanto ao programa nuclear iraniano... Uma das razões de participarmos do P5+1 é fazer cumprir as obrigações
internacionais do Irã, garantindo que a AIEA seja fonte de informação confiável”.

201 Ryan J. Donmoyer, “Biden Says Israel Has ‘Sovereign Right’ to Hit Iran”, Bloomberg News, 6/7/2009.

202 “Obama: No Green Light for Israel to Attack Iran”, CNN, 7/7/2009.

203 “Outgoing IAEA Chief Has Tough Choice on Iran”, Associated Press, 20/8/2009.

204 Barak Ravid, “Sources: UN Watchdog Hiding Evidence on Iran Nuclear Program”, Haaretz, 19/8/2009.

205 Yossi Melman, “Israel, U.S. Lost Face in IAEA Long Ago”, Haaretz, 19/8/2009. Em outubro de 2010, dois meses depois de
Olli Heinonen deixar a AIEA, ele deu uma entrevista para o Haaretz e comentou os boatos de que nossa relação era tensa: “É
verdade que tivemos algumas discussões. E é verdade que algumas pessoas da agência tentaram nos afastar espalhando boatos.
Sou um técnico, e [Mohamed] atua no nível político-diplomático. Às vezes discordávamos quanto ao tempo e ao caminho a
seguir, mas nenhuma dessas discussões e diferenças de opinião causou dano algum à missão da agência de relatar o que víamos”.
Yossi Melman, “Behind the Scenes of UN Nuclear Inspection of Iran”, Haaretz, 22/10/2010.

206 A exatidão dessas acusações jamais foi confirmada; no entanto, é significativo que as conclusões do Informe da Inteligência
Nacional norte-americana (NEI) não tenham sido alteradas, indicando que eles, pelo menos, não acreditaram nas “evidências”
apresentadas por Israel.

207 Em janeiro de 2011, o chefe do Mossad, Meir Dagan, declarou que não acreditava que o Irã teria uma arma nuclear em
menos de quatro anos. Yossi Melman, “Outgoing Mossad Chief: Iran Won’t Have Nuclear Capability Before 2015”, Haaretz,
7/1/2011.

208 “France Accuses UN Watchdog of Hiding Iran Nuclear Evidence”, Agência France Presse, 3/9/2009.

209 George Jahn, “Nuke Agency Says Iran Can Make a Bomb”, Associated Press, 17/9/2009.

210 “Excerpts from Internal IAEA Document on Alleged Iranian Nuclear Weaponization”, ISIS, 2/10/2009. Retirado de:
<www.isis-online.org/uploads/isis-reports/documents/IAEAinfo3October2009.pdf>.

211 Fiquei sabendo que Aghazadeh havia renunciado porque aparentemente era muito próximo de Mousavi, principal adversário
de Ahmadinejad nas eleições presidenciais de 2009. Salehi depois seria nomeado ministro das Relações Exteriores, em dezembro
de 2010.

212 Os iranianos estavam sempre tentando encontrar alguma forma de aumentar seu estoque de urânio natural, pois tinham muito
pouco e era improvável que alguém lhes vendesse mais nas atuais circunstâncias.

213 Conselheiro especial para controle de armas e não proliferação do Departamento de Estado dos EUA.

214 Assessor especial do presidente e coordenador da Casa Branca para controle de armas e armas de destruição em massa,
proliferação e terrorismo.

215 Einhorn tinha ido me ver acompanhado de Tom Pickering – outro ótimo diplomata de carreira – durante a administração
Bush, quando estavam trabalhando no relatório do Grupo de Estudo do Iraque, chefiado por James Baker e Lee Hamilton.
216 Eu já havia conversado com Salehi a respeito disso. Ele me disse que, se eu quisesse falar desse assunto, deveria fazê-lo de
forma complicada. Aparentemente, no dialeto parse, é costume fazer qualquer observação crítica de maneira indireta.

217 Jeff Mason, “Clinton Warns Iran of Need for Nuclear Progress”, Reuters, 11/10/2009.

218 “Remarks with Russian Foreign Minister Sergey Lavrov”, 13/10/2009. Citação retirada de:
<www.state.gov/secretary/rm/2009a/10/130505.htm>.

219 “Don’t Pressure Iran, Says Russia”, BBC News Online, 13/10/2009.

220 Chefe adjunto da Agência Russa de Energia Atômica.

221 James Mackenzie, “France’s Sarkozy Raises Iran Sanction Threat”, Reuters, 27/8/2009.

222 Doyle McManus, “Talking with Iran – and Sending a Message”, Los Angeles Times, 1o/11/2009.

223 “US Will Not Alter Iran Nuclear Deal”, AlJazeera, 3/11/2009.

224 “ElBaradei condena rejeição do acordo Irã-Turquia-Brasil”, Jornal do Brasil, 30/5/2010.

10 • Dois pesos e duas medidas

Diante de casos de verificação complexos, procurei sempre distinguir entre três aspectos dos
programas nucleares. O primeiro é a aquisição do conhecimento, que nunca esteve tão
acessível. Com a globalização financeira, industrial, educacional e, acima de tudo, no campo
da informação, tornou-se muito mais difícil negar aos países o conhecimento básico dos
processos e técnicas nucleares. O segundo aspecto é a capacidade industrial, isto é, a
capacidade de enriquecer urânio ou de separar o plutônio em níveis industriais. Isso dá aos
países a possibilidade de produzir o material nuclear necessário para uso nas armas atômicas. O
terceiro aspecto está ligado às intenções futuras de um país, o que às vezes é praticamente
impossível de julgar.
A Secretaria-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica tem condições de
determinar os níveis de aquisição do conhecimento nuclear e a capacidade industrial de um
país, mas não podemos julgar as futuras intenções, que geralmente se baseiam na avaliação de
risco do país e estão sujeitas a uma rápida mudança. A decisão da Líbia de revelar a verdade,
por exemplo, foi resultado de uma reavaliação das suas condições de segurança, que levaram,
em um curto período de tempo, a uma mudança em suas intenções. No Japão, tido como
possuidor de credenciais de não proliferação impecáveis, autoridades solicitaram uma
discussão sobre o assunto depois dos testes realizados pela Coreia do Norte em 2006.
Em geral, é muito difícil para o público – ou, nesse caso, para os funcionários do governo –
entender ou aceitar o papel peculiar da Agência Internacional de Energia Atômica, tanto com
seus limites quanto com suas obrigações, porque não é comum uma instituição internacional
julgar governos soberanos. Nossa posição é algo esquizofrênica: por um lado, os Estados-
membros pagam os salários da agência e estabelecem seus objetivos e mandatos; por outro,
somos responsáveis pelo cumprimento dos compromissos internacionais acordados. Embora os
Estados-membros possam entender o papel da AIEA em termos abstratos e quando aplicado a
terceiros, é inevitável encontrarmos alguma resistência quando o alerta é feito diretamente a
algum governo devido a uma falha no cumprimento de suas obrigações.
Apesar das minhas tentativas de definir o âmbito da jurisdição da AIEA de maneira
consistente e de fazer uma distinção clara entre o que a agência pode e o que não pode julgar, a
pressão para agirmos com parcialidade geralmente era fortíssima. Quando chegávamos
rapidamente à nossa avaliação objetiva dos fatos ou quando nos recusávamos a emprestar
nossa voz à interpretação que alguém fazia das intenções de um país, éramos acusados de
tomar partido, de ignorar evidências, ou, ao contrário, de falar sob “uma perspectiva diferente”,
para além dos limites da nossa jurisdição.
Invariavelmente, essas acusações tinham conotações políticas, motivadas, como sempre,
pelas relações favoráveis ou contrárias entre os países envolvidos. Esse esforço para mobilizar
a agência a tomar partido é amplamente ilustrado pela evolução de cinco encontros bastante
incomuns – com Coreia do Sul, Egito, Israel, Índia e Síria – e por algumas tentativas de lidar
com o caso mais extremo de dois pesos e duas medidas: a falta de avanço no desarmamento
nuclear.

No início de 2004, a Coreia do Sul começou a colocar em prática seu Protocolo Adicional.
Durante uma inspeção realizada pouco tempo depois, a AIEA descobriu que foram feitas
experiências para separar quantidades muito pequenas de plutônio. Investigações de
acompanhamento realizadas durante o verão relataram mais experiências, agora envolvendo o
enriquecimento de urânio. Essas atividades não foram devidamente comunicadas à AIEA.
O governo da Coreia do Sul disse que não estava a par de tais experiências – elas teriam sido
realizadas por cientistas do Instituto Coreano de Pesquisas em Energia Atômica – e
imediatamente tomou medidas corretivas, demitindo pessoas e estabelecendo uma nova
fiscalização. No entanto, foi um grande constrangimento para o governo, especialmente em
virtude da tensão permanente em relação ao programa nuclear da Coreia do Norte.
A AIEA trabalhou estreitamente com os sul-coreanos para transmitir as notícias de maneira
apropriada e evitar exageros por parte da mídia. O governo coreano, incluindo Ban Ki-Moon,
ministro das Relações Exteriores na época, gostou do modo como lidamos com a questão. Mas
ela ainda não estava encerrada: eu precisava informar a diretoria da AIEA sobre a falha da
Coreia do Sul em não comunicar essas atividades nuclea-res à agência. O problema era: se a
diretoria considerasse a Coreia do Sul em situação de “descumprimento”, ela seria obrigada a
reportar esse descumprimento ao Conselho de Segurança da ONU?
A obrigatoriedade da diretoria da AIEA de comunicar todos os casos de descumprimento foi
tema de um debate acirrado entre a Secretaria-Geral da Agência e o G-3, de um lado, e os
norte-americanos, de outro. Segundo a Secretaria-Geral, nem toda transgressão ou violação do
acordo de salvaguardas de um país podia ser considerada um “descumprimento” dos termos do
Estatuto da Agência. A diretoria da AIEA gozava de plena autoridade para exercer seu
julgamento, diferenciar os casos que envolviam desvio de material nuclear ou revelavam
claramente um programa armamentista – como o Iraque antes da Primeira Guerra do Golfo – e
casos que não mostravam nenhuma indicação de atividade permanente não declarada, como o
da Coreia do Sul, onde alguns cientistas tinham realizado experiências de laboratório por
curiosidade científica sem reportá-las. Mas os norte-americanos, especialmente no caso do Irã,
insistiam em que a diretoria era obrigada a informar ao Conselho de Segurança todas as
transgressões ou violações. Os Estados Unidos tinham forçado o encaminhamento ao Conselho
desde o meu primeiro relatório sobre as atividades não declaradas do Irã. A concordância
explícita dos europeus com a interpretação da Secretaria-Geral tinha motivações políticas: eles
queriam usar o encaminhamento para o Conselho de Segurança como um instrumento de
ameaça contra o Irã.
Ora, no banco dos réus estava a Coreia do Sul, um dos “mocinhos”, aliada próxima dos
Estados Unidos. Os norte-americanos ficaram em uma situação complicada. A fidelidade à sua
política de armamentos e o encaminhamento da Coreia do Sul ao Conselho de Segurança pelas
violações relatadas iam contra seus interesses. No mínimo porque esse tipo de ação poderia
complicar as negociações com os norte-coreanos, que poderiam tentar usar o descumprimento
da Coreia do Sul como justificativa para suas próprias atividades nucleares. Pelo que fiquei
sabendo, a Coreia do Sul estava trabalhando intensamente em Washington contra esse
encaminhamento.
Assim, em reunião da diretoria da AIEA realizada pouco depois, os norte-americanos
declararam que não havia necessidade de encaminhar as violações cometidas pela Coreia do
Sul ao Conselho de Segurança. A ação foi branda, a diretoria apenas “registrou” meu relatório.
Todo o incidente justificou e carimbou a correção da interpretação da Secretaria-Geral sobre
como e quando os vários níveis de descumprimento deveriam ser informados ao Conselho –
julgamento que ia contra a posição inicial dos Estados Unidos, favorável ao encaminhamento
automático e que teria implicações em outros casos, principalmente o do Irã.

No Egito, a AIEA encontrou um caso semelhante de experiências nucleares não declaradas.


Como parte da avaliação permanente dos dossiês nucleares de cada país, a agência monitora
publicações relevantes e outras fontes abertas à imprensa que possam ter influência sobre as
atividades desse país. Em 2004, a agência encontrou referências em várias publicações desse
tipo indicando que os cientistas egípcios tinham realizado diversas experiências com material
radioativo sem declarar.
A AIEA entrou em contato com a autoridade de energia atômica egípcia e em seguida houve
várias inspeções. As suspeitas foram comprovadas – esforços esparsos ligados à extração e à
conversão do urânio de fato ocorreram, além de irradiação e reprocessamento de alvos de
136

urânio e tório nos dois reatores de pesquisa egípcios. Em alguns casos, o trabalho foi realizado
na década de 1980. O Egito não havia informado as atividades nem a pequena quantidade de
material nuclear envolvido. à AIEA.
O problema parecia ser falta de supervisão e controle, além de desleixo e negligência. As
instalações do Centro de Pesquisa Nuclear de Inshas, onde ocorreram algumas dessas
experiências, estavam degradadas; tinham salas fechadas havia quase uma década e
equipamentos avaliados em milhões de dólares jamais usados. Fui informado de que os
egípcios tentaram retardar as inspeções da AIEA para ter tempo de limpar o lugar. O chefe da
Agência de Energia Atômica egípcia, Aly Islam Metwally Aly, não sabia da existência de
alguns dos materiais e equipamentos nucleares em questão, e ficou claramente constrangido.
Não havia indicações de que o país tivesse um programa de fabricação de armas nucleares. No
entanto, as autoridades egípcias não se saíram muito bem.
A atualização que fiz em fevereiro de 2005 para a diretoria da AIEA apontou uma série de
falhas por parte do Egito. Apesar da pequena quantidade de substâncias nucleares usadas nas
experiências e da publicação dos resultados em revistas científicas, essas falhas no relato foram
motivo de preocupação e levaram à investigação.
Mais de um ano depois, outro episódio ocorreu em uma reunião do partido governista,
quando o filho de Mubarak, Gamal, sugeriu que o Egito desenvolvesse um programa de
energia nuclear. O resultado foi um frenesi de discussões e especulações. A mídia egípcia
explorou a questão: ao avançar em ciência e tecnologia nucleares, declararam vários
especialistas, o Egito estabeleceria a paridade com o programa de armas nucleares de Israel. A
cobertura realizada pela mídia controlada pelo governo foi uma mistura deprimente de
ignorância, frustração e manipulação.
Minha primeira discussão “oficial” sobre o assunto ocorreu em janeiro de 2007, na Argélia,
onde encontrei o ministro de Eletricidade e Energia do Egito, Hassan Younes. Até aquele
momento, o governo egípcio não havia procurado a AIEA em busca de acompanhamento e
conhecimentos técnicos, medida rotineira para qualquer país que tenha a intenção de
desenvolver um programa atômico. Younes me disse que nenhuma decisão havia sido tomada;
o Egito ainda estava realizando “estudos”, com a consultoria conjunta da companhia americana
Bechtel Corporation.
“Esse não é o caminho certo”, eu disse a ele. “O mínimo que vocês deviam fazer era entrar
em contato com a AIEA para podermos ajudá-los a elaborar uma avaliação objetiva da energia
nacional e seus aspectos econômicos, ambientais e relativos à segurança. Qualquer outro país
estaria fazendo isso.” Fui bastante franco, principalmente por causa das questões de segurança.
Eu o lembrei do histórico egípcio de grandes acidentes de trem e de barco. Seus antecedentes
em matéria de segurança nuclear também não eram nada tranquilizadores. A AIEA havia
informado ao país mais de vinte anos antes que sua legislação de proteção radioativa não
estava de acordo com os padrões. Em vários incidentes, os egípcios se feriram por exposição
indevida a fontes de radiação, e o governo ainda não havia atualizado a legislação de acordo
com as recomendações da agência . A energia atômica, eu disse a Younes, não podia ser
137

tratada levianamente. Antes de operar um reator nuclear, o Egito precisaria construir a


necessária infraestrutura jurídica de segurança e de recursos humanos.
Younes disse que escreveria para pedir toda a assistência da AIEA, e ele realmente o fez.
Fiquei feliz que a agência estivesse ajudando o país a abordar a questão de maneira metódica e
científica. Estudos prévios indicavam que seus reatores de pesquisa eram extremamente
subutilizados. Se o objetivo era avançar nas questões de ciência e tecnologia nucleares e
introduzir a energia atômica como parte do rol de energia do país, o ponto de partida deveria
ser um aproveitamento maior das instalações já existentes. Insisti com Younes para que
considerasse o desenvolvimento da energia nuclear apenas em termos das necessidades
energéticas do país.
Tive a oportunidade de reforçar essa visão em um encontro em Davos com Mohamed
Rachid, ministro de Comércio e Indústria, um dos funcionários mais competentes do governo
no Cairo. A questão mais importante em relação à opção pela energia nuclear era não apressar
as coisas, eu disse a ele, mas a realização de estudos de viabilidade adequados, incluindo uma
análise dos recursos petrolíferos e de gás vigentes, localização e financiamento. “Mesmo que
vocês decidam que precisam de energia nuclear”, eu disse, “talvez seja preciso mais uma
década somente para construir a infraestrutura necessária.” Rachid respondeu que transmitiria
minhas ideias ao presidente e, de fato, não muito tempo depois da nossa conversa, o tom do
discurso sobre o assunto ficou mais equilibrado na mídia egípcia, inclusive nos veículos
controlados pelo Estado.
O desentendimento do Egito com a AIEA em relação ao seu programa nuclear ressurgiu em
2009, quando a agência tentou esclarecer a origem das partículas de urânio altamente
enriquecido encontradas em uma amostra ambiental recolhida no Centro de Pesquisa Nuclear
de Inshas. Os egípcios deram a entender que acreditavam que fosse fruto da contaminação de
um contêiner importado.
Uma declaração de Vilmos Cserveny, chefe de Relações Exteriores da agência, sobre as
partículas de urânio altamente enriquecido, em uma conferência do TNP, enfureceu o Cairo.
Vilmos havia julgado, sem me consultar, que a transparência exigia a comunicação da questão
na conferência. A informação seria publicada, de qualquer maneira, no relatório de segurança
da agência algumas semanas depois. Vilmos queria evitar alimentar acusações de que, pelo fato
de eu ser egípcio, não estava agindo de modo totalmente transparente, tema que já estava
circulando em alguns relatos da mídia.
Por meio do embaixador do Egito na AIEA, Ihab Fawzy, o Cairo enviou uma carta acusando
a agência de revelar informações secretas e fazer uma declaração tanto técnica quanto
factualmente incorreta em um fórum político. Essa ação só poderia ser interpretada, eles
escreveram, “ou como falta de competência profissional ou como má-fé”. Outras reações do
Cairo mostraram-se desarticuladas: o porta-voz do ministro das Relações Exteriores disse à
imprensa que a questão das partículas de urânio altamente enriquecido era “velha e
equivocada” . Mas, no dia seguinte, a AEA egípcia disse que a agência e o Egito estavam
138

trabalhando para esclarecer a origem das partículas.


Lidar com as questões nucleares egípcias era, obviamente, algo delicado para mim: os
egípcios suspeitavam que eu estivesse sendo muito mais duro com eles, talvez para reforçar a
credibilidade da agência. Por outro lado, a mídia ocidental especulava se eu não estaria sendo
muito brando com o Egito. Mas é claro que eu agia como com qualquer outro país, lutando
para tomar decisões com a maior independência e objetividade possíveis. Eu dizia aos meus
colegas da agência para aplicarem ao processo nuclear do Egito os mesmos padrões aplicados a
qualquer outro país.
Contudo, a carta do Cairo me irritou. A declaração da agência era correta. Eu lembrei Fawzy
da confusão que tínhamos administrado alguns anos antes. “O Egito não tinha sequer uma
autoridade competente com conhecimento amplo dos materiais e atividades nucleares do país”,
eu disse a ele. “A agência teve de se desviar do seu caminho para ajudar vocês a colocarem a
casa em ordem.” Pedi a ele que retirasse a carta oficialmente. Caso contrário, eu forneceria à
diretoria da AIEA uma resposta incluindo um relato detalhado da incompetência que tivemos
de enfrentar.
Fawzy ficou surpreso. Em um dia, recebemos uma carta diferente, sem menções ofensivas.
Respondemos profissional e educadamente, explicando as bases factuais e técnicas para a
declaração da agência.
O foco do Egito na tecnologia nuclear era exemplo para boa parte do Oriente Médio.
Embora fosse verdade que o país precisava de mais energia – especificamente, mais
eletricidade –, e apesar de o interesse egípcio na energia nuclear datar dos anos 1980, o passo
mais recente do país para incorporá-la ao seu rol energético devia-se, até certo ponto, em
minha opinião, às tensões nucleares que se desenrolavam na vizinhança. A apreensão sobre o
programa do Irã tinha começado a moldar o pensamento da região; um número crescente de
países do Oriente Médio estava consultando a agência quanto à introdução de energia nuclear.
Paradoxalmente, o burburinho sobre o programa nuclear do Irã havia inflamado o entusiasmo
pela tecnologia atômica. Ninguém queria ficar para trás. E, sem dúvida, a maior fonte de
frustração e ansiedade era a assimetria do poder militar regional, simbolizada pelo arsenal
nuclear de Israel.

O caso de Israel e seu programa atômico era peculiar. Como a Índia e o Paquistão, Israel era
membro da AIEA, mas não partidário do TNP, por isso a inspeção da agência não tinha
autoridade no país. Ainda assim, dadas as tensões permanentes na região, os outros Estados-
membros da AIEA tinham solicitado oficialmente que eu consultasse Israel sobre a aplicação
de salvaguardas em suas instalações nucleares e discutisse o potencial para o estabelecimento
de uma zona livre de armamentos no Oriente Médio.
Eu deveria encontrar o primeiro-ministro Ariel Sharon em julho de 2004. Pouco antes da
minha viagem, recebi uma ameaça através de um e-mail endereçado a Aida. Se eu fosse a
Israel, dizia a mensagem, Aida ficaria viúva . Investigamos a origem: a mensagem tinha vindo
139

de algum lugar em Israel ou nos territórios palestinos. Deixamos a investigação a cargo dos
israelenses e seguimos com nossos planos.
O escritório de Sharon era impressionantemente modesto comparado ao de outros chefes de
Estado, especialmente no Oriente Médio. Guardas de segurança com submetralhadoras
circulavam pelo local enquanto aguardávamos na sala de espera, que dava para os banheiros. O
escritório de Sharon era pequeno, e duas secretárias dividiam uma sala adjacente ainda menor.
Sentamo-nos diante de sua mesa, que também servia para reuniões . Ele se aproximou
140

vestindo um terno amarrotado; segurando minha mão com força, falou com voz suave e forte
sotaque israelense. Suas maneiras não deixavam entrever a carreira militar implacável – na
verdade, ele falava com orgulho de sua vida como fazendeiro.
Expus meus pontos de vista com franqueza. “A dissuasão nuclear não irá funcionar para
vocês a longo prazo”, eu disse, constatando a inexorável propagação da tecnologia atômica e
os esforços de grupos terroristas sofisticados para adquirir armas nucleares. Nenhum arsenal
nuclear seria capaz de convencer tais grupos.
Além disso, a recusa de Israel em ter uma conversa séria com os países árabes a respeito da
possibilidade de trabalhar por um Oriente Médio sem armas nucleares e em falar de seu
conhecido mas não reconhecido arsenal nuclear alimentava o cinismo, a raiva e o sentimento
de humilhação na região. Na verdade, a situação ameaçava a legitimidade de toda a política de
não proliferação nuclear aos olhos do povo árabe. O argumento de Israel – de que, devido à sua
percepção de ameaças à sua existência não poderia abrir mão das armas nucleares antes de
alcançar a paz definitiva com os mundos árabe e muçulmano – não era capaz de convencê-los.
Para árabes e muçulmanos, o arsenal de Israel fortalecia ainda mais sua posição, atrapalhando
os direitos dos palestinos. Se o Irã deixasse o TNP, provavelmente receberia um apoio
esmagador do mundo muçulmano, que veria um programa de armas nucleares iranianas como
forma de estabelecer paridade com Israel.
Nossa conversa foi reveladora, e Sharon ouviu atentamente. Citava aqui e ali os relatórios
preparados por seus assessores, e suas respostas eram ponderadas e bem formuladas. Apesar de
a conversa ter sido séria, foi intercalada com humor autodepreciativo e pontuada por
interrupções irreverentes dos conselheiros de Sharon.
Ao final, Sharon tinha assumido o compromisso, no contexto do processo de paz árabe-
israelense, de falar a respeito do estabelecimento de uma zona livre de armas nucleares no
Oriente Médio. Essa foi a primeira vez que uma autoridade israelense fez uma declaração desse
tipo. Em ocasiões anteriores, os israelenses repetiram sua opinião de que qualquer conversa
sobre uma zona livre ocorreria apenas depois de um amplo acordo de paz. Israel havia
endurecido sua posição nas discussões sobre armas nucleares durante as discussões
multilaterais iniciadas em Madri em 1991. Por causa disso, o Egito e os outros países árabes
decidiram suspender todas as discussões multilaterais, incluindo o controle de armas, o que
acabou levando ao colapso do processo de Madri. A mudança na posição de Sharon, acredito,
assinalava a conscientização da radicalização e da ira crescentes no mundo árabe e da
probabilidade de que um grupo extremista adquirisse uma arma nuclear, representando talvez
um esforço para mostrar alguma flexibilidade da parte de Israel. E, o mais importante, foi
motivada pelo medo crescente de um programa nuclear iraniano.
No final do encontro, Sharon disse: “Soube que você gosta de jazz”. Sorrindo, deu-me um
pequeno presente, um CD de um grupo israelense.
Alguns dos presentes à reunião tentaram minimizar depois o que Sharon havia me dito.
Garanti a eles que eu tinha ouvido claramente e que informaria os fatos à diretoria da AIEA.
Minha viagem suscitou críticas pesadas na mídia egípcia e árabe porque minha agenda não
incluíra a inspeção do reator nuclear de Dimona, em Israel. Fui acusado de ter sucumbido à
influência norte-americana. Como a mídia árabe bem sabia, a AIEA não tinha autoridade para
realizar essa inspeção. Ela devia saber que eu tinha ido a Israel por solicitação específica dos
Estados-membros da agência, incluindo os Estados árabes. Esses fatos foram ignorados pela
mídia árabe, que enganou a opinião pública. De qualquer maneira, para as pessoas comuns, as
nuances jurídicas foram ofuscadas pela realidade gritante do arsenal nuclear israelense.
Embora esse arsenal provocasse grande apreensão nos vizinhos de Israel, a comunidade
internacional preferiu fechar os olhos; mas tinha optado pela guerra contra o Iraque devido a
alegações sobre a existência de armas de destruição em massa e estava impondo sanções ao Irã
por tentar adquirir tecnologia nuclear avançada. Para o mundo árabe muçulmano, o tratamento
dado ao programa nuclear israelense constituía um exemplo flagrante do uso de dois pesos e
duas medidas, explicável apenas pela distinção arbitrária entre “mocinhos” e “vilões”.

Durante alguns anos, argumentei que a comunidade internacional deveria adotar uma nova
abordagem para lidar com Israel, Índia e Paquistão – os três países que nunca adotaram o TNP
– e tratá-los como parceiros nucleares em vez de párias. Eles não tinham violado nenhum
acordo ao produzir energia nuclear. Para mim, o mais importante era que nenhuma negociação
sobre controle de armas poderia avançar sem a participação de todos os Estados que as
possuíssem. Uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio, por exemplo, não poderia
ser conquistada sem o envolvimento de Israel.
Em 2006, em consonância com essa abordagem pragmática, endossei o acordo entre Índia e
Estados Unidos para que os dois países buscassem a cooperação nuclear civil, ou seja,
tecnologia de reator de energia nuclear, práticas de segurança nucleares e outras aplicações
pacíficas. Por causa disso, atraí a ira de autoridades de governos anteriores e de especialistas
norte-americanos que haviam trabalhado no campo do controle de armas nucleares durante
muitos anos, os quais geralmente manifestavam seu apoio quando eu falava de questões de
desarmamento. Agora eles estavam enraivecidos, acusando-me de “solapar o TNP” e de “ficar
ao lado da administração Bush”. Suas críticas foram endossadas por funcionários de outros
governos.
A história do programa de armas nucleares da Índia era particular. J. N. Dixit, o falecido
assessor de segurança nacional da Índia, disse-me que no início da década de 1960, antes de ser
finalizado o TNP, o secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, encorajou o primeiro-
ministro Nehru a conduzir o desenvolvimento de armas nucleares na Índia. Isso refletia o
desejo dos Estados Unidos de que a Índia equilibrasse a emergência da China como Estado
com armas nucleares.
Nehru se recusou a isso; a Índia continuaria defendendo o desarmamento nuclear. Mas,
consciente dos riscos à segurança regional, também não aceitaria o TNP, mantendo a opção
pelas armas nucleares como possibilidade futura.
Dez anos após a morte de Nehru, a Índia demonstrou, com sua “explosão nuclear pacífica”,
em 1974 – cujo codinome era Smiling Buddha (“Buda Sorridente”) –, que havia dominado a
tecnologia. Mas ainda assim continuou a exercer a moderação. Em 1988, o primeiro-ministro
Rajiv Gandhi submeteu à Assembleia Geral da ONU um “Plano de ação anunciando uma
ordem mundial não violenta e livre de armas nucleares”. Só depois de décadas assistindo ao
crescimento da China em força e prestígio como Estado detentor de armas nucleares, com toda
a tecnologia disponível, é que a Índia decidiu adotar a energia nuclear, pois era tratada com
negligência, sujeita a restrições nas exportações de tecnologias sensíveis. Em 1998 foram
realizados vários testes com armas nucleares, e a Índia se declarou Estado detentor.
O acordo iniciado pelo primeiro-ministro indiano Manmohan Singh e o presidente norte-
americano George Bush em 2005 reconheceu uma realidade prática: a Índia possuía armas
nucleares havia muito tempo, e a recusa dos Estados Unidos em cooperar com tecnologia
nuclear não teria nenhum efeito sobre a capacidade de Nova Delhi de manter seu arsenal.
Apenas dificultaria os esforços indianos para expandir seu programa atômico, estratégia para
gerar energia e tirar 650 milhões de pessoas da pobreza. Além disso, a estreita cooperação dos
Estados Unidos com a Índia em todas as outras áreas de tecnologia, exceto a nuclear – política
seguida por muitos outros países –, não era coerente nem consistente.
Para mim, o acordo revelou uma situação de empate, sendo boa tanto para o
desenvolvimento quanto para o controle de armas. Daria à Índia acesso à tecnologia de energia
nuclear ocidental e a questões de segurança – algo bastante relevante considerando-se o
ambicioso programa de energia nuclear da própria Índia. Além disso, embora o acordo não
levasse a Índia para o TNP, aproximaria o país do acordo de não proliferação nuclear por meio
da aceitação das salvaguardas da AIEA em suas instalações civis e do compromisso de aderir
às diretrizes de exportação do Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG) . Esse seria um passo
141

importante para preencher as lacunas no regime de controle de exportação, como demonstrou a


experiência da comunidade internacional com A. Q. Kahn e seus colaboradores.
Em meu encontro com o presidente Bush, em março de 2004, eu havia mencionado as
deficiências dos controles de exportação como uma grande preocupação para a proliferação
nuclear. Insisti para que ele conversasse com a Índia e com o Paquistão sobre esse assunto, a
fim de descobrir uma forma de trazê-los para o regime de controle das exportações, no mínimo,
mas principalmente para torná-los parceiros nos esforços contra a proliferação.
Em junho de 2006, escrevi um artigo de opinião publicado no Washington Post, intitulado
“Repensando as salvaguardas nucleares”, no qual expus minhas razões para apoiar o acordo
EUA-Índia. “Ou começamos a encontrar soluções novas, criativas, ou o regime de
salvaguardas internacionais ficará obsoleto”, escrevi. O artigo não agradou a todos. Uma
“Carta aberta para Mohamed ElBaradei”, publicada na Arms Control Today em 24 de julho, foi
assinada por muitos dos meus amigos e apoiadores, que discordavam profundamente da minha
posição. Eles sabiam que meu endosso ao acordo com a Índia incentivaria o apoio no
Congresso norte-americano, onde muitos representantes estavam indecisos.
A administração Bush de fato fez pleno uso da minha aprovação. Em várias ocasiões,
Condoleezza Rice teve o cuidado de salientar que “o acordo tem o apoio de Mohamed
ElBaradei, o ‘guardião’ do regime de não proliferação nuclear”. Isso era extremamente irônico:
sempre que eu falava publicamente da importância do desarmamento ou enfatizava a
necessidade do envolvimento direto dos Estados Unidos com o Irã, os norte-americanos me
castigavam, na imprensa e nos círculos diplomáticos, por extrapolar minhas atribuições. No
entanto, nesse caso, estavam satisfeitos por eu ter tomado uma posição política clara.
O governo indiano também ficou profundamente agradecido. Quando fui a Nova Delhi a
convite do primeiro-ministro Singh, em outubro de 2007, o acordo estava enfrentando forte
oposição interna dos comunistas, que faziam parte da coalizão governista. Também havia
oposição ideológica no interior da própria elite indiana devido à sua antipatia natural pelos
Estados Unidos e seu medo de que o acordo pudesse comprometer a política de independência
da Índia.
O primeiro-ministro Singh quebrou o protocolo e ofereceu-me um almoço em sua
residência, uma bela casa em estilo colonial decorada com simplicidade. Homem
extremamente educado, gentil e de fala mansa, Singh tinha vivido os dez primeiros anos de sua
vida em um vilarejo privado de eletricidade, água encanada ou sistema de esgoto. Ainda assim,
estudou em Oxford e em Cambridge, obtendo um doutorado em economia. No cargo de
ministro das Finanças da Índia na década de 1990, foi o maior responsável pelas políticas que
transformaram seu país em uma economia de mercado livre e aberta, com uma classe média de
300 milhões de pessoas, uma próspera base de exportação de tecnologia e taxa de crescimento
estável em torno de 9%. E ainda continuava humilde e tímido. Tínhamos pontos de vista
praticamente idênticos. De todos os líderes mundiais que conheci, Manmohan Singh está entre
aqueles que mais admiro.
Os últimos passos para implantar o acordo EUA-Índia começaram na AIEA. Após inúmeras
discussões, a diretoria adotou o acordo de salvaguardas da Índia em 1o de agosto de 2008, o
mais amplo acordo desse tipo já feito com um país não signatário do TNP. O Grupo de
Fornecedores Nucleares adotou o necessário levantamento das restrições um mês depois,
abrindo as portas para que o país importasse tecnologia nuclear. Logo depois, o acordo final foi
assinado por Condoleezza Rice e pelo ministro das Relações Exteriores da Índia, Pranab
Mukherjee.
Os paquistaneses ficaram bastante contrariados com o acordo EUA-Índia porque não lhes
foi oferecida a mesma oportunidade. Apesar de eu ter insistido para que aguardassem um
pouco e depois solicitassem um acordo semelhante, o problema era que o histórico do
Paquistão não era lá muito bom; as atividades de A. Q. Khan e sua rede ainda estavam vivas na
lembrança de todos. Ainda assim, também não ajudou o fato de Bush, em uma viagem a
Islamabad, ter feito uma declaração um tanto contundente: ele afirmou que “o Paquistão e a
Índia são países diferentes com necessidades e histórias diferentes” .
142

Era importante que o Paquistão não recebesse um tratamento diferente por ser um país
muçulmano. “Seria bom”, eu disse a Condoleezza Rice, “se você pudesse dizer que, uma vez
criadas as condições, os Estados Unidos também poderiam considerar um acordo semelhante
com o Paquistão.” Salientei que seria um gesto positivo, mesmo sem um acordo em vigor,
oferecer assistência à segurança nuclear para melhorar as condições do velho reator
paquistanês em Karachi.
Anos antes, os Estados Unidos haviam desperdiçado uma oportunidade de melhorar a
segurança do reator de Karachi. A Bélgica estava prestes a fornecer o equipamento necessário
para o Paquistão em 1999, depois que a IAGA determinou que esse material era essencial à
segurança do reator e que escrevi ao primeiro-ministro belga apoiando esse esforço. A oferta
da Bélgica foi frustrada por Washington, e eu recebi um telefonema irritado do meu amigo
Norm Wulf, representante especial dos Estados Unidos para assuntos de não proliferação
nuclear. A segurança nuclear não devia ser politizada, enfatizei a ele; um reator sem condições
de segurança poderia ter consequências desastrosas para todo o mundo. Wulf respondeu que o
Paquistão poderia fechar o reator caso não fosse seguro.
Essa não era uma resposta a ser levada a sério porque o Paquistão precisava muito da
energia. Em vez de fechá-lo, eles fizeram o que podiam para consertá-lo eles mesmos. O
resultado foi uma situação de segurança nem perto do ideal, longe do interesse comum. Os
Estados Unidos, na verdade, preferiram dar um tiro no próprio pé só para contrariá-los. Agora
surgia a oportunidade de começar uma interação com o Paquistão, oferecendo a eles não o
equivalente ao acordo com a Índia, coisa que ninguém estava preparado para fazer, mas algo
mais limitado, com benefícios em termos de segurança ao mesmo tempo que começaria a
aproximar os paquistaneses do regime de não proliferação nuclear.

Um dos exemplos mais estranhos e surpreendentes da hipocrisia nuclear, multilateral e


multifacetada, certamente foi o bombardeio de Israel contra Dair Alzour na Síria, em setembro
de 2007, e as consequências desse ataque. Quase que imediatamente surgiram especulações de
que o local abrigava instalações nucleares. A Síria negou as acusações. Israel e os Estados
Unidos ficaram oficialmente em silêncio, apesar de haver funcionários norte-americanos
falando anonimamente a respeito do assunto na mídia. Enfatizei que qualquer país com
informações indicando que as instalações bombardeadas eram nucleares tinha a obrigação legal
de informar a AIEA. Mas ninguém se manifestou. Nas seis semanas que se seguiram ao
bombardeio – período mais crucial em termos de verificação do interior das instalações –, não
conseguimos obter nenhuma imagem de alta resolução dos satélites comerciais.
Em 28 de outubro, em Nova York, dei uma entrevista a Wolf Blitzer, no programa Late
Edition, da CNN. Em resposta à pergunta sobre se as instalações da Síria eram de um reator
nuclear, eu disse que não tínhamos visto nenhuma evidência que nos permitisse tirar tal
conclusão. Mas fui claro em um ponto: que “bombardear primeiro e perguntar depois”, como
Israel havia feito, era sabotar descaradamente o sistema . Somente a AIEA, salientei, tinha
143

condições de verificar acusações de atividade nuclear clandestina. Em outra entrevista, dois


dias depois, para Charlie Rose, afirmei que o ataque de Israel ao reator iraquiano de Osirak em
1981 tinha servido apenas como motivação para acelerar o programa nuclear clandestino de
Saddam Hussein .144

É óbvio que Israel não gostou das críticas. O que veio a seguir foi uma série de ataques das
autoridades israelenses a mim. O primeiro-ministro adjunto, Shaul Mofaz, disse que eu deveria
ser demitido: “As políticas seguidas por ElBaradei colocam em risco a paz mundial. Sua
atitude irresponsável ao enfiar a cabeça na areia diante do programa nuclear do Irã deveria
levar ao seu impeachment” . O franco e radical Avigdor Lieberman, na época ministro de
145

Negócios Estratégicos , disse que eu era parte do problema: “Em vez de criticar o Irã, ele acha
146

certo criticar Israel” . O ministro adjunto das Relações Exteriores, Majalli Whbee, também
147

exigiu minha saída, acusando-me de “negligência criminosa” . O alvo dessas críticas


148
exacerbadas era minha forma de lidar com o histórico nuclear do Irã, que não atendia aos
objetivos de sua política de exagerar a ameaça iraniana, mas estava claro que minha
condenação do bombardeio de Dair Alzour havia tocado na ferida.
John Bolton apoiou abertamente a ação de Israel. Em uma entrevista ao Late Edition da
CNN, Wolf Blitzer perguntou a Bolton o que ele achava da minha declaração pública de que
Israel deveria ter mostrado suas “evidências” para a AIEA. “Se você acredita nisso”, Bolton
retrucou, “também deve acreditar em Papai Noel. A ideia de que Israel ou os Estados Unidos
colocariam sua segurança nacional nas mãos da AIEA é simplesmente ilusória.” Foi terrível
149

ouvir o embaixador dos Estados Unidos na ONU expressar esse sentimento.


Não obstante os ataques, a agência continuou concentrada nos seus esforços para chegar ao
cerne da questão. Encontrei-me com Ibrahim Othman, chefe da Comissão de Energia Nuclear
da Síria. Eu disse a ele que, se as suas negativas fossem concretas, os sírios deveriam fazer
uma declaração pública categórica nesse sentido, além de convidar a equipe da agência para
visitar o local apenas para colocar um fim nas especulações nucleares. Othman disse que
levaria minha proposta às autoridades sírias. Eu também afirmei que achava estranho que
nenhum país árabe tivesse feito uma declaração denunciando os ataques de Israel contra a
Síria.
Cerca de seis meses após o bombardeio, durante uma visita a Sarajevo, recebi um
telefonema de John Rood, subsecretário de Controle de Armamento e Segurança Internacional
dos Estados Unidos. Ele me disse que havia sido marcada para o dia seguinte uma sessão
informativa para o Congresso norte-americano. O alvo que Israel destruíra em Dair Alzour era,
de acordo com Rood, um velho reator nuclear norte-coreano. Israel havia alertado os Estados
Unidos quanto à presença do reator em 2006; os norte-americanos tinham chegado à mesma
conclusão quanto às instalações no início de 2007. Rood acrescentou que os Estados Unidos
planejavam entregar um relatório de inteligência aos funcionários de salvaguardas da AIEA e
me ofereceu o mesmo, em Sarajevo ou na minha volta a Viena.
A informação de Rood chegara tarde demais. Eu disse a ele que “os Estados Unidos tinham
a obrigação de compartilhar essa informação com a agência, e não esperar até que Israel
bombardeasse as instalações”. Enfatizei que, no mínimo, os norte-americanos poderiam nos ter
informado imediatamente após o bombardeio. Deixando-nos no escuro durante um ano antes
do bombardeio e seis meses após, eles estavam sabotando o regime de não proliferação.
“Vocês estão nos fazendo passar por idiotas”, concluí. Rood tinha pouco a dizer em sua defesa.
Ele sustentou que os Estados Unidos teriam preferido uma abordagem diplomática, não dando
a Israel sinal verde para bombardear as instalações.
De volta a Viena, fiz uma declaração à imprensa deplorando o fato de a informação não ter
sido comunicada à AIEA em tempo hábil e condenando o uso da força unilateral por Israel.
Nem Israel nem os Estados Unidos responderam à minha declaração. Parecia que não queriam
se envolver comigo em um debate público; de qualquer forma, eles teriam perdido. A ação de
Israel representou uma violação de todas as normas da legislação internacional sobre o uso da
força. Também mostrou total desconsideração pelo regime de não proliferação. No entanto,
pouquíssimos países – e nem uma única nação ocidental – denunciaram o ocorrido.
Sem dúvida, Israel não queria o desenvolvimento de um reator em nenhum dos países árabes
que considerava hostis. Presumindo que em Dair Alzour havia um reator, deve ter concluído
que a verificação da agência colocaria a Síria sob as salvaguardas da AIEA, o que dificultaria
um bombardeio a posteriori. A questão central, é claro, era a desconfiança por parte de Israel e
do Ocidente quanto às intenções futuras desses países.
Como próximo passo, pedi a Othman que viesse a Viena para discutir modalidades de
verificação das reivindicações norte-americanas. No início do encontro, quando estávamos
sozinhos, enfatizei o quanto era importante a Síria mostrar o máximo de transparência e
permitir que fôssemos a Dair Alzour e a outros locais identificados por satélites que se
acreditava estarem relacionados ao local bombardeado. Ele insistiu em que não havia programa
nuclear algum – aquelas instalações tinham sido usadas para fabricar mísseis –, mas estavam
prontos a receber uma visita dos inspetores da agência.
Depois se juntaram a nós Olli Heinonen e um colega de Othman do Ministério das Relações
Exteriores. Os sírios exigiam esclarecimentos sobre nossos motivos para desejarmos ver os
outros locais além das instalações destruídas em Dair Alzour. Respondemos francamente:
tínhamos visto fotos de satélite mostrando o equipamento do local destruído sendo transferido,
por isso era importante verificar a natureza de três outros locais.
No início de junho ocorreu uma nova reunião da diretoria da AIEA. Em minha declaração
de abertura, disse que era “profundamente lamentável” que se tivesse recorrido ao uso da força
unilateral antes de a agência haver tido a oportunidade de constatar os fatos. Enfatizei que era
dever da Síria informar o planejamento e a construção de qualquer instalação nuclear à
agência. Fiquei consternado ao constatar que poucos países tinham algo a acrescentar em
relação ao ataque de Israel contra a Síria. Durante a maior parte do tempo, Austrália, Canadá,
União Europeia, Japão e, é claro, Estados Unidos se concentraram na necessidade de
cooperação por parte da Síria. O único país europeu que se referiu ao bombardeio israelense foi
a Suíça. Alguns países não alinhados também se pronunciaram. Mas até mesmo alguns dos
países árabes com participação na diretoria da AIEA, como o Egito, permaneceram em
silêncio.
Em um encontro com os 27 embaixadores da União Europeia, eu lhes revelei que eles
haviam acabado com sua credibilidade. “Quando você não é capaz de falar sobre a violação de
um dos princípios mais básicos da Carta das Nações Unidas”, eu disse, “sua autoridade moral
para falar sobre democracia, direitos humanos e outros temas também fica comprometida.”
Muitos dos embaixadores concordaram, a portas fechadas. Mas o modus operandi da União
Europeia em questões relativas à proliferação nuclear era que a França e a Inglaterra
monopolizavam a emissão de “opiniões conjuntas”, para irritação da maioria.
A própria Síria apresentou uma declaração fraca e defensiva, o que também era estranho.
Mais estranho ainda era que, segundo o embaixador iraniano, a Síria havia pedido a ele que
não falasse sobre o assunto. Eu já suspeitava que estivesse acontecendo alguma coisa nos
bastidores para a aproximação da Síria com os Estados Unidos. A postura da Síria reforçou
minha ideia. Eles não queriam entornar o caldo.
Uma agência de inteligência trouxe imagens de satélite para a AIEA, supostamente de Dair
Alzour, que, segundo ela, haviam sido tiradas ao longo de dois anos. As imagens ajudaram a
esclarecer o projeto do edifício que supostamente havia abrigado o reator. Outra agência de
inteligência forneceu mais fotos, supostamente tiradas nas vizinhanças do edifício, incluindo
seu interior. Um indivíduo que aparecia nas fotos era um norte-coreano que reconhecemos das
nossas negociações com Pyongyang. Isso deu à equipe de inspeção da AIEA mais subsídios
para pressionar a Síria. Mas o país se recusou a cooperar e a discutir quaisquer imagens de
satélite ou fotos, simplesmente sustentando que o edifício fazia parte de instalações militares
para a fabricação de mísseis e que as imagens eram todas forjadas.
Em 2008, Olli e sua equipe de inspetores foi a Dair Alzour. As instalações estavam
completamente arrasadas, e novas instalações haviam sido construídas. Os sírios mantinham a
versão de que não havia nada de nuclear nas instalações. Os inspetores colheram amostras
ambientais, e a agência fechou um acordo com as autoridades sírias sobre um processo de
investigação a respeito das acusações contra Dair Alzour.
Com a evidente intenção de retardar o processo, a Síria solicitou que as perguntas adicionais
ou solicitações para inspeção fossem feitas por escrito. Quando o embaixador dos Estados
Unidos na AIEA, Greg Schulte, veio me ver em julho, referiu-se às instalações destruídas
como “um fato isolado”. Para mim, era óbvio que os norte-americanos também não tinham
pressa em ver um relatório sobre o programa nuclear sírio, aparentemente por causa de
conversas indiretas que vinham ocorrendo entre os dois países. “Vocês podem ter sua própria
agenda política”, eu disse a Schulte, “mas a agenda da agência é bastante diferente, e levamos a
sério nossas responsabilidades.”
David Miliband, ministro britânico das Relações Exteriores, também parecia não ter
interesse em ver avanços na questão síria. Quando o coloquei a par das ações da agência, ele
respondeu: “Ah, então você realizou uma investigação completa?”. Não foi esse o caso; encarei
isso como forma de mostrar que ele preferiria ver o fim dos questionamentos. Eu não tinha
certeza do motivo, mas minha intuição me dizia que, mesmo que Dair Alzour tivesse sido um
reator em construção, a ameaça fora eliminada e o Ocidente estava ansioso para trazer a Síria,
aliada do Irã, para o seu lado. Essa impressão sobre considerações políticas de bastidores foi
reforçada um ano depois: quando a Síria não conseguiu acomodar vários pedidos feitos pelo
Ocidente, a Secretaria-Geral da AIEA foi instada a pressionar a Síria solicitando uma inspeção
especial, embora não houvesse base legal para tal.
O resultado dos exames feitos com as amostras ambientais recolhidas pela agência em Dair
Alzour indicou a presença de urânio, que, embora não enriquecido, havia passado por algum
processamento químico. Nos meses seguintes, os sírios deram várias explicações para isso,
começando com a alegação de que o material devia ter resíduos de urânio da munição usada
por Israel no bombardeio. Nenhuma das explicações fazia sentido ou podia ser confirmada.
Israel, por sua vez, se recusou a fornecer à agência qualquer informação quanto aos motivos
que levaram ao bombardeio.
A Síria também se recusou a permitir que a AIEA visitasse os outros três locais
supostamente ligados às instalações destruídas. Eram instalações militares, não nucleares, por
isso a agência não teria motivos para visitá-los. Eles também se recusaram a nos mostrar o
local para onde haviam sido levados os escombros das instalações destruídas.
Durante a reunião da diretoria da AIEA, realizada em junho de 2009, esse beco sem saída –
o resultado da sonegação de informações à agência, e depois a tarefa impossível de verificar o
que não existia mais – levou a um confronto particularmente direto. Mais uma vez, insisti com
Israel para que nos mostrasse as informações que haviam levado ao uso da força contra as
instalações sírias de Dair Alzour. O embaixador israelense na AIEA, Israel Michaeli, reclamou
que eu estava fazendo exigências “redundantes”. Segundo ele, Israel já tinha dado as respostas
importantes, negando que os resíduos de urânio pudessem ter se originado da munição
israelense . Ao pressionar Israel para que fornecesse mais evidências do programa nuclear da
150

Síria, Michaeli declarou que eu estava mostrando uma “posição política tendenciosa”. Ele
também deu a entender que, por não termos exigido uma inspeção especial na Síria, a agência
não estava usando todos os instrumentos de que dispunha.
Michaeli estava errado, e sabia disso; e eu estava certo de que ele agia de acordo com as
instruções que recebera de sua capital. Respondi a ele com uma franqueza que chocou alguns
dos delegados. Disse que sua postura era “completamente distorcida”. Ao recusar-se a fornecer
as evidências necessárias, Israel estava obstruindo o processo investigativo da AIEA. Fiz as
seguintes observações olhando-o diretamente nos olhos:

O representante de Israel... está dizendo que a atitude da Síria deveria ser deplorada e condenada. Mas Israel, com essa
postura, será reprovado por não permitir que façamos o que deveríamos fazer de acordo com a legislação internacional...
Vocês dizem que não estamos usando os instrumentos que temos. Israel nem sequer participa do regime [de não
proliferação nuclear] para nos dizer de que instrumentos dispomos. [Seu país] não pode ficar em cima do muro, fazendo
uso do sistema sem ter responsabilidade... Apreciaríamos se parasse de nos dizer como podemos fazer nosso trabalho.

Em relação à acusação de que eu estava sendo tendencioso, eu respondi que não era digna de
resposta.
Estávamos empacados. Apesar das minhas solicitações constantes – incluindo aquelas
tornadas públicas pelos relatórios da diretoria da AIEA –, Israel e os Estados Unidos se
recusaram a nos fornecer evidências concretas que embasassem sua conclusão de que as
instalações de Dair Alzour eram nucleares. Os sírios continuaram a alegar que elas não eram
nucleares, mas se recusavam a fornecer informações adicionais ou acesso para provar sua tese.
Algum tempo depois, enviei um apelo por meio de um executivo sírio com acesso direto ao
presidente da Síria, Bashar al-Assad. Insisti na cooperação com a AIEA, deixando claro que a
questão continuaria a assombrar a Síria até que fosse esclarecida. Recebi uma resposta dizendo
que Al-Assad apreciava meus esforços; curiosamente, não havia negativas quanto ao fato de
Dair Alzour ter abrigado um reator nuclear.
A hipocrisia não poderia ser mais evidente: para alguns Estados-membros, as preocupações
com a proliferação nuclear eram instrumentos a ser usados, exagerados ou ignorados de
acordos com fins geopolíticos, dependendo do relacionamento com o país que estava no banco
dos réus.

O problema do regime de não proliferação nuclear é o fato de ser um sistema de dois pesos e
duas medidas: a assimetria inerente, ou desigualdade, entre os que têm e os que não têm
energia nuclear, exacerbada pela contínua confiança dos países com armas nucleares nessas
armas e o consequente não avanço no desarmamento nuclear. Pior, em vez de avançar no seu
compromisso com o desarmamento, a maioria modernizou seus arsenais e continua a
desenvolver novos tipos de arma. Para os países que não têm essas armas e não estão sob a
proteção de um guarda-chuva nuclear como a OTAN, isso reforça a percepção de que a
aquisição de armas nucleares é um caminho seguro para obter poder e prestígio, uma apólice
contra o ataque.
O Conselho de Segurança da ONU também é parte do problema, devido ao poder de veto
exercido pelo G5, os cinco países com armas nucleares. O Conselho de Segurança é
responsável pela manutenção da paz e da segurança mundiais, devendo também reagir às
ameaças contra essa paz e segurança. Certamente, algumas violações do acordo de
salvaguardas da AIEA podem não chegar ao nível de exigir encaminhamento ao Conselho. No
entanto, nessas raras ocasiões em que os encaminhamentos são feitos, o Conselho deveria
reagir adequadamente, sendo ágil, firme, enérgico quando necessário e, acima de tudo,
consistente em suas ações.
Por esses padrões, o registro de reações coerentes do Conselho de Segurança a ameaças
nucleares tem sido péssimo. Em 1981, depois que Israel destruiu o reator iraquiano de Osirak,
o Conselho de Segurança condenou o bombardeio e exigiu que Israel colocasse suas
instalações nucleares sob as salvaguardas da AIEA. Israel ignorou a resolução e o Conselho de
Segurança não tomou nenhuma atitude. Em 1998, após os testes da Índia e do Paquistão com
armas nucleares, o Conselho de Segurança os condenou e solicitou que os dois países
interrompessem o desenvolvimento de armas nucleares e seus sistemas de entrega. Quando
essas resoluções foram ignoradas, o Conselho mais uma vez recuou. No caso da Coreia do
Norte, quando a AIEA informou o descumprimento, em 1993, e depois, em 2003, quando o
país também se retirou do TNP, o Conselho não tomou nenhuma medida significativa; em vez
disso, permitiu que os Estados Unidos tomassem a iniciativa e firmassem um acordo bilateral
com a Coreia, assinado em 1994, o Agreed Framework; no segundo caso, transferiu para a
China a liderança na condução das Six-Party Talks [“Negociações a seis”].
Por outro lado, em 1990, o Conselho de Segurança impôs ao Iraque sanções que levaram a
violações flagrantes dos direitos humanos para milhões de civis iraquianos, culminando em
uma guerra em 2003 sem o consentimento do Conselho. Para piorar, o Conselho continuou a
manter certas sanções contra o Iraque durante anos após a invasão de 2003, muito depois de ter
ficado claro para todo mundo que o país não tinha armas de destruição em massa (ADM). O
Conselho foi incapaz de chegar a um acordo sobre como encerrar a UNMOVIC (Comissão das
Nações Unidas de Vigilância, Verificação e Inspeção) e a atividade da AIEA no Iraque,
fechando a questão das ADM. E, sobrecarregado pela devastação de uma guerra que nunca
deveria ter ocorrido, o Iraque foi obrigado a financiar a UNMOVIC por mais de quatro anos,
enquanto ela ficou parada em Nova York.
Enquanto o G5 exacerbava a insegurança nuclear com suas ações no Conselho de
Segurança, seu próprio fracasso para se desarmar contribuía diretamente para a proliferação em
si. No entanto, o G5 e os Estados Unidos, em particular, se recusavam a reconhecer a ligação
entre seu não avanço no desarmamento e a crescente preocupação com a proliferação.
Em abril de 2004, foi submetida ao Congresso dos EUA uma proposta conjunta dos
secretários de Estado, Energia e Defesa para o desenvolvimento de “pequenas” armas
nucleares. O argumento era essencialmente que essas armas seriam encaradas como de
utilização mais rápida. Se os países inimigos acreditassem que os Estados Unidos poderiam
realmente usar essas miniarmas nucleares, o efeito dissuasivo seria mais forte. Não pareceu
ocorrer a eles que a ideia de uma arma nuclear “mais usável” era diretamente contrária aos
princípios do regime do TNP e apenas deixaria outros países tentados a adquirir essas armas
para sua própria defesa.
Os Estados Unidos também continuaram a desenvolver seu escudo de defesa antimísseis,
que tanto a Rússia quanto a China consideravam uma ameaça. Os EUA alegavam que o escudo
serviria para protegê-los de mísseis de “nações trapaceiras”, numa referência à Coreia do Norte
e ao Irã. Muitos especialistas mostraram que esse argumento não fazia sentido. O ataque de um
país pequeno – ou de um grupo de terroristas – provavelmente viria na forma de uma bomba
contrabandeada por um porto ou fronteira, e não na de um míssil com o nome do país. O
escudo antimísseis seria inútil num caso desses.
Eu falava frequentemente dessas questões em discursos e entrevistas para a imprensa e, com
a mesma frequência, os norte-americanos reclamavam que eu estava extrapolando os limites da
minha posição, dizendo “coisas sem sentido”. Eu respondia que fazia todo o sentido, que era
minha responsabilidade falar de questões que tivessem impacto direto no regime de não
proliferação de armas nucleares, responsabilidade que, por ter sido agraciado pelo Nobel,
sentia de maneira ainda mais viva. Quando se tratava de informar casos de verificação, meu
papel era apresentar os fatos. Mas eu havia testemunhado o descrédito e a manipulação do
trabalho da AIEA durante os preparativos para a Guerra do Iraque e não permitiria que isso
acontecesse de novo. Eu sentia que era importante deixar o mínimo de espaço possível para
manipulação ou exagero da mídia. E era minha obrigação ajudar os Estados-membros a
encontrar soluções pacíficas para as tensões nucleares, contribuindo com minha perspectiva e
apoiando vigorosamente a diplomacia nuclear. É claro que eu sabia que os próprios países
tomavam as decisões no final.
No início de 2007, o governo britânico anunciou a decisão de atualizar sua força de
dissuasão construindo novos submarinos nucleares com mísseis balísticos Trident, passo
tomado para estender a capacidade dissuasória da Inglaterra até meados do século. Fiquei
impressionado com a hipocrisia dessa atitude. Em uma entrevista para o Financial Times sobre
o desenvolvimento nuclear do Irã , eu disse que, enquanto o Reino Unido e outros países
151

continuassem a modernizar suas armas, seria muito difícil convencer os outros países de que a
dissuasão nuclear não era boa para eles.
O Telegraph publicou meus comentários sob o título “UN Nuclear Watchdog Calls Trident
Hypocritical” [“Guardião nuclear da ONU chama o Trident de hipócrita”]. John Sawers, então
diretor-geral para assuntos políticos do Foreign Office , telefonou para dizer que minhas
152

declarações haviam sido muito mal recebidas em Londres. Mostrou como os ingleses tinham
reduzido sua força nuclear; era o menor arsenal do G5, e ele achou que eu os estava
incomodando.
“Vocês não entendem”, eu perguntei a ele, “que é difícil argumentar que alguns países
devem continuar a ter armas nucleares e modernizá-las enquanto outros são obrigados a ouvir
que não podem?”
“Sim”, Sawers respondeu, “mas não podemos ser comparados ao Irã.”
A questão não era o Irã, mas o princípio geral. O Reino Unido parecia querer invocar uma
moral estranha: “Nós somos os mocinhos; eles são os bandidos. Pode acreditar”.
Na Câmara dos Comuns, Blair foi questionado a respeito da minha entrevista ao Financial
Times. “O Reino Unido”, ele respondeu, “segundo o TNP, tem o direito de ter armas nucleares
e, como Mohamed ElBaradei é o guardião da implementação desse tratado, seria bom que
agisse apropriadamente.” Sua interpretação do tratado era uma distorção reveladora mas
153

sintomática do comportamento das nações possuidoras de armas nucleares, que cumpriam suas
obrigações quanto ao desarmamento só da boca pra fora.
Foi especialmente aflitivo observar que apenas a África do Sul protestou publicamente
contra a decisão do Reino Unido em relação ao Trident. Os países não nucleares responderam
com um silêncio ensurdecedor, algo desanimador que para mim indicava resignação diante de
uma ordem mundial que havia adquirido o aspecto de permanência inevitável.
Fui lembrado desse fato menos de um ano depois, em um encontro com o ministro britânico
das Relações Exteriores, David Miliband. Estávamos conversando sobre o Irã; Miliband
reconheceu a complexidade da questão, mas era óbvio que não concordávamos. A certa altura,
ele perguntou: “Por que você acha que o Irã quer ter armas nucleares?”.
“Por que o Reino Unido tem armas nucleares?”, fiquei tentado a responder. Para mim, era
inacreditável aquele sistema de dois pesos e duas medidas, mas continuei em silêncio.
A AIEA enfrentou muitos desafios para cumprir seu mandato. Estávamos sem recursos.
Carecíamos de autoridade. Éramos espionados pelas mesmas agências de inteligência com as
quais contávamos para nos informar das anomalias nucleares; recebíamos informações de
inteligência seletivas, frequentemente difíceis de comprovar. Dependíamos dos Estados-
membros, alguns dos quais tinham suas próprias agendas, para nos fornecer tecnologia
avançada que não tínhamos condições de adquirir. Éramos pressionados por aqueles que
acreditavam que o financiamento da agência lhes dava o direito de influenciar seu trabalho
para fins políticos . E continuávamos a enfrentar casos complexos de verificação nuclear que
154

desafiavam nossa engenhosidade e nossa paciência.


Mas a grande e indizível farsa era que as armas nucleares continuavam a existir, e os países
mais poderosos do planeta insistiam nos seus arsenais como um cobertor de segurança.
Ouvíamos constantemente previsões sombrias quanto ao fato de o Irã desenvolver uma única
arma nuclear enquanto o mundo já vivia o flagelo da existência de mais de 23 mil armas desse
tipo, muitas delas em estado de alerta – isso significava que os líderes dos Estados Unidos e da
Rússia, diante do possível lançamento de um míssil nuclear causado por um erro de
computador ou por uso não autorizado, teriam apenas meia hora para decidir se iriam retaliar,
sob o risco de devastar nações inteiras em questão de minutos. No entanto, líderes políticos
continuavam a declarar que tudo isso era irrelevante para a questão da proliferação atômica.
Eu não tinha a menor intenção de permanecer calado.
136 Nesse tipo de experiência, um pequeno “alvo” de uma substância é irradiado para produzir outra. O tório, como o urânio e o
plutônio, é uma substância nuclear que pode ser usada como combustível em um reator. Mas o tório propriamente dito não pode
ser usado diretamente em uma arma nuclear porque não é “físsil”, ou seja, seu núcleo não pode ser fendido ou dividido, não é
capaz de sustentar uma reação em cadeia para produzir energia nuclear. Em vez disso, o tório é “fértil”, o que significa que pode
absorver nêutrons para produzir o urânio-233, que é uma substância físsil.

137 Na verdade, a legislação só foi adotada em 2010.

138 “Egypt Rejects Reports of Nuclear Probe”, Agência France Presse, 7/5/2009.

139 Essa não foi a primeira ameaça que recebi. Alguns anos antes, as autoridades egípcias foram informadas de que um grupo
militante estava planejando mirar figuras públicas egípcias no exterior. Eu estava na lista. O embaixador egípcio em Viena,
Mostafa el-Feki, me avisou e também às autoridades austríacas. Durante algum tempo, minha segurança foi redobrada, mas por
sorte nada aconteceu.

140 Gideon Frank, diretor-geral da Comissão de Energia Atômica de Israel, participou da reunião, assim como o chefe de
gabinete de Sharon, Dov Weissglass, e seu assessor militar.

141 Criado em 1974, o NSG (sigla em inglês para Nuclear Suppliers Group) é uma organização internacional formada por 46
nações com capacidade de exportar tecnologia nuclear. O NSG procura reduzir os riscos da proliferação nuclear controlando a
exportação de materiais que podem ser usados no desenvolvimento de armas nucleares.

142 Peter Wallsten, Bush: No Nuclear Pact for Pakistan, Los Angeles Times, 5/3/2006.

143 Transcrição dos arquivos da CNN em: <www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0710/28/le.01.html>.

144 Charlie Rose, 30/10/2007. Transcrição retirada de: <www.iaea.org/NewsCenter/Transcripts/2007/cr301007.html>.

145 Israel Says UN Nuclear Chief Should Go, Agência France Press, 8/11/2007.

146 Lieberman se tornou depois ministro do Exterior.

147 Israel Minister: ‘Apocaliptic Scenario’ If Egypt, Saudi Arabia Go Nuclear, Jerusalem Post, 8/11/2007.

148 Haaretz, 17/11/2007.

149 Entrevista ao Late Edition da CNN em 11 de novembro de 2007; transcrição dos arquivos da CNN em:
<www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0711/11/le.01.html>. Alguns especialistas, comentando essa entrevista, se lembraram
de uma declaração de Bolton para a Insight Magazine em agosto de 1999: “É um grande erro da nossa parte conferir qualquer
validade às leis internacionais mesmo que isso pareça do nosso interesse a curto prazo; porque, a longo prazo, o objetivo daqueles
que acham que as leis internacionais realmente valem alguma coisa são os mesmos que querem restringir o poder dos Estados
Unidos”.

150 Israel havia fornecido uma resposta de apenas uma linha às perguntas da AIEA, dizendo que a fonte do urânio encontrado
não era israelense, não reconhecendo sequer que o país havia sido responsável pelo bombardeio.

151 Iran Nears Industrial Fuel Production, 19/2/2007.

152 Sawers depois seria nomeado chefe do MI6, serviço secreto britânico.

153 Rebecca Johnson, que servira como consultora da UNMOVIC, apresentou uma refutação detalhada às palavras de Blair no
Bulletin of the Atomic Scientists, que terminava dizendo que ele me devia um pedido de desculpas. Rebecca Johnson, “Tony
Blair’s Forgetfulness“, Bulletin of the Atomic Scientists, 26/2/2007.

154 Por exemplo, durante um encontro em minha casa com Nicholas Burns, subsecretário de Estado norte-americano para
Assuntos Políticos, e alguns de seus colegas, ele me entregou um documento detalhando o que os EUA esperavam da agência no
caso do Irã. É claro que fiquei chateado, mas apenas coloquei o papel de lado e disse calmamente: “Sabemos o que fazer em
relação ao Irã”. A resposta de Burns foi contundente: “Vocês sabem que pagamos 25% do seu orçamento”.

3 • Iraque, segundo round


A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO

Em 2002, no que diz respeito à segurança, o cenário havia sido consideravelmente alterado. Os
ataques aos EUA, em 11 de setembro de 2001, provocaram várias mudanças de percepção
sobre a capacidade dos terroristas de realizar complexas operações suicidas. Grupos
extremistas haviam demonstrado particular interesse na compra e na utilização de armas de
destruição em massa. Por sua vez, a AIEA fizera uma completa revisão e expansão de seus
programas de assistência aos países, contribuindo para a proteção de suas substâncias nucleares
e para impedir seu uso ilícito. As características da agência também mudaram. O período de
uma década lidando com desafios tais como o Iraque e a Coreia do Norte nos proporcionara
uma maior gama de recursos e aumentara nossa autoconfiança. Agora, era consideravelmente
maior o número de instrumentos jurídicos e tecnológicos à nossa disposição.
O cenário fora também alterado devido à abordagem da administração Bush em relação ao
controle de armas nucleares. Em dezembro de 2001, Bush tomou a decisão unilateral de retirar
os Estados Unidos do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) – um marco no relaxamento
das tensões nucleares entre os EUA e a URSS desde 1972. Em maio de 2002, Bush e Putin
assinaram o Tratado de Redução de Ogivas Estratégicas (SORT, na sigla em inglês), um
acordo conhecido nos círculos diplomáticos como “sort of” , tendo em vista que: (1) não
31

incluía nenhuma verificação da redução do arsenal nuclear prometida pelos países; (2) não se
exigia que a redução solicitada fosse algo permanente; (3) para abandonar o acordo, eram
necessários apenas três meses de aviso prévio.
Na visão de peritos em política nuclear, os sinais emitidos por tais ações eram claros. Os
Estados Unidos não levavam a sério os planos de dar continuidade às obrigações relacionadas
ao desarmamento previstas no TNP. Pelo contrário, estavam dispostos a manter e até mesmo
reforçar seu status privilegiado de potência nuclear, com uma mínima responsabilização. Ao
mesmo tempo, mostravam-se determinados a criticar com maior veemência a potencial
proliferação de armas de destruição em massa por parte de outros países.
Era esse o contexto no final de 2002, quando a mira dos bombardeios se voltou para o
Iraque. Uma série de afirmações começou a surgir em discursos, programas de debate político
e artigos de jornal. O tom variava, de insinuações a declarações absolutamente diretas de que
Saddam Hussein tinha relações com a Al-Qaeda, ou que ele tivera um papel ativo nos ataques
de setembro de 2001. Particularmente interessantes foram as alegações dos EUA e do Reino
Unido sobre a existência de provas conclusivas de que o líder iraquiano não havia
desmantelado seus programas de armas de destruição em massa. A agência estivera ausente do
Iraque desde nossa saída apressada, pouco antes dos bombardeios da Operação Raposa do
Deserto, em 1998, o que limitou gravemente nossa capacidade de estar atualizados com relação
aos eventos ocorridos no país nos quatro anos seguintes.
O presidente Bush foi uma das pessoas que fizeram afirmações mais incisivas. Seu discurso
de 2 de outubro de 2002, em Cincinnati, Ohio, é um exemplo típico disso:

Há onze anos, como condição para o fim da guerra no golfo Pérsico, foram exigidos do regime iraquiano a eliminação de
suas armas de destruição em massa, a interrupção do desenvolvimento de tais armas e que o país deixasse de apoiar os
grupos terroristas. O regime iraquiano violou todos esses compromissos. O país possui e produz armas químicas e
biológicas. Eles continuam a buscar armas nucleares. O Iraque tem fornecido abrigo e apoio ao terrorismo, praticando o
terror contra seu próprio povo. O mundo inteiro tem sido testemunha dos onze anos de provocação, dissimulação e má-fé
mostrados por esse país.

Mais adiante, em seu discurso, Bush afirmou:

Há provas de que o Iraque está reconstituindo seu programa de armas nucleares. Saddam Hussein teve inúmeros encontros
com cientistas nucleares iraquianos, grupo que ele denomina de seu “mudjahidin nuclear” – seus guerreiros nucleares
sagrados. Imagens de satélite revelam que o Iraque está reconstruindo instalações em locais que já fizeram parte de seu
programa nuclear no passado. O país tentou adquirir tubos de alumínio de alta potência e também outros equipamentos
necessários às centrífugas de gás, que são usadas no enriquecimento de urânio para a fabricação de armas nucleares.

Com afirmações desse gênero – repletas de informações inexatas, sem comprovação, e que
levam a conclusões equivocadas –, os EUA começaram a pressionar abertamente para provocar
a mudança de regime.
Essa retórica agressiva não era em vão: sanções com efeitos amplamente nocivos já
vigoravam havia uma década; os Estados Unidos e seus aliados tinham recentemente deixado
clara, no Afeganistão, a sua disposição para uma ação militar decisiva. E, de fato, a pressão
sobre o Iraque aparentemente produzia resultados. Embora negasse que o Iraque retomara seus
programas de armas de destruição em massa, Saddam Hussein redigiu uma carta em que
finalmente convidava os inspetores de armas da ONU a retornar ao seu país. Depois de muito
debate, em 8 de novembro o Conselho de Segurança aprovou por unanimidade a Resolução
1441, que autorizava uma nova série de inspeções no Iraque.

As ações de bastidores mostravam uma coerência inversamente proporcional ao seu caráter


revelador. Um bom exemplo disso foi o processo de elaboração da Resolução 1441. Seu
primeiro esboço não veio a público. Formulada pelos EUA, ela faria os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança serem firmemente colocados no comando do processo
de inspeção. Ela propunha que os inspetores fossem acompanhados por escoltas militares em
suas funções – uma inovação em relação a procedimentos anteriores. Propunha também que
representantes do P5 integrassem as equipes e, pior ainda, que os inspetores da ONU
32

reportassem suas conclusões diretamente ao país que solicitou a inspeção de um local


particular, ou a entrevista com um iraquiano em particular. Em resumo, sugeria uma retomada
da mesma orientação e dos mesmos mecanismos que levaram ao descrédito da UNSCOM.
No início de outubro de 2002, antes da votação da resolução – com seu texto final
reelaborado –, Hans Blix e eu fomos convidados a participar de uma reunião no Departamento
de Estado dos EUA. Colin Powell era nosso anfitrião. Condoleezza Rice, Paul Wolfowitz e
Lewis Libby completavam o grupo. Eu estava prestes a terminar meu primeiro mandato como
33

diretor-geral da AIEA. Blix, na época já aposentado, tornou-se o diretor-executivo da


organização que sucedeu a UNSCOM: a UNMOVIC, que desde sua criação estivera em
relativa letargia devido ao acesso negado ao Iraque. A UNMOVIC centraria seu foco nas armas
químicas e biológicas e na tecnologia de mísseis.
O clima era tenso. Certamente a divergência interna entre os norte-americanos em relação à
melhor maneira de proceder era profunda. Enquanto Powell defendia que os EUA utilizassem
o processo de uma inspeção típica da ONU, Wolfowitz e outros adeptos da linha-dura
preferiam esquivar-se completamente da ONU, ou então, como Condoleezza Rice, criar uma
espécie de disfarce da ONU para o que, em essência, seria um processo de inspeção dirigido
pelos EUA. Condoleezza chegou mesmo a sugerir que o responsável, na UNMOVIC, pelo
fornecimento das informações do Serviço de Inteligência fosse um norte-americano.
“Confiamos em nosso povo”, disse ela. Blix, relutante à ideia, rebateu que um canadense fora
nomeado para a função e a exerceria.
A sensação era a de que 1992 estava recomeçando.
O objetivo deles, com este encontro, era tentar nos persuadir a aceitar algumas das cláusulas
do projeto de resolução em relação às quais tínhamos forte objeção. Blix respondeu sem
qualquer rodeio, dizendo a Condoleezza que não agiria como “fachada” para uma operação dos
EUA. “Se você quiser realizar uma operação conduzida pelos EUA e simplesmente abençoada
pela ONU, poderá criar uma nos moldes da operação sul-coreana nos anos 1950 . Porém, se
34

quiser uma operação da ONU, não poderá contar com membros da equipe que não estejam sob
a autoridade dos diretores das organizações de inspeção.”
Os pontos de vista de Condoleezza sobre o sistema da ONU eram inequívocos. A certa
altura da reunião, Blix enfatizou a necessidade de que o projeto de resolução se conformasse
aos padrões da ONU e que as inspeções fossem consideradas uma operação “legítima” da
organização. A réplica de Condoleezza foi brusca. “Sr. Blix”, anunciou ela, “o Estatuto da
ONU está baseado no papel essencial e na responsabilidade dos cinco membros permanentes
do Conselho de Segurança. Como é de seu conhecimento, a segurança dos Estados Unidos está
sob ameaça, e por esse motivo o país é livre para adotar as medidas necessárias para sua
proteção.” Fui tomado por um sentimento de gratidão por ela não ter chegado ao extremo de
dizer que a Organização das Nações Unidas é o Conselho de Segurança, e que o Conselho de
Segurança são os Estados Unidos .35

Wolfowitz parecia indignado com o mero fato de ter de participar da reunião. Mostrava-se
tenso e desinteressado; sua linguagem corporal dava sinais de que o encontro – e talvez a ideia,
como um todo, de envolvimento da ONU – não passava de tempo desperdiçado. Quando
finalmente pediu a palavra, seu tom era condescendente. “Sr. Blix”, anunciou, inclinando-se na
direção da mesa, “está realmente ciente de que os iraquianos possuem armas de destruição em
massa?”
A discussão prosseguiu com balbucios de ambos os lados, mas sem chegar a nenhuma
conclusão. Frustrados, Powell e Condoleezza conduziram Blix e a mim para uma antessala.
“Vocês não devem assumir o fardo das implicações dos seus relatórios de inspeção”, Powell
nos disse, “pois qualquer decisão de usar a força será tomada por chefes de Estado, não por
vocês.” A intenção dele talvez tenha sido nos reconfortar, mas, naquele contexto, assumiu um
tom paternalista.
No fim, conseguimos dissuadi-los de adotar algumas das propostas mais beligerantes. Porém
eles insistiam em uma das medidas: a necessidade de entrevistar cientistas iraquianos fora do
Iraque, transportando suas famílias com eles, a fim de evitar retaliações da parte do regime de
Saddam Hussein. Tentamos detalhar os problemas envolvidos na imposição dessa condição.
Procurei explicar as nuances culturais de uma “família estendida” no Oriente Médio.
Perguntei-lhes: o que lhes dava absoluta certeza de que um cientista iraquiano estaria disposto
a deixar seu país, numa viagem sem volta, a fim de beneficiar os EUA ou o Ocidente? De que
modo a ONU poderia garantir que os cientistas que concordassem em deixar o país não seriam
ameaçados ou até mesmo assassinados antes de sua partida? O que podíamos fazer a fim de
impedir que as “famílias estendidas” dos cientistas fossem prejudicadas, como consequência
dessa ação?
Nada do que dissemos fez diferença. Os norte-americanos, de fato, não queriam dar ouvidos
a essas considerações sobre direitos humanos. Estavam convencidos de que entrevistar
cientistas fora do Iraque era uma ótima ideia; disseram que, de qualquer modo, não eram
capazes de fazer críticas à medida, já que ela fora aprovada “nos mais altos escalões” do
governo dos EUA. A cláusula foi mantida na resolução (embora, nos meses seguintes, tal
disposição não fosse colocada em prática nem uma vez sequer).
Poucas semanas depois, quando ainda estavam em curso negociações sobre a resolução, Blix
e eu fomos chamados para uma rápida reunião com o presidente Bush na Casa Branca. Quando
estávamos a caminho, encontramos, pela primeira vez, o vice-presidente Dick Cheney. Nosso
contato foi breve; Cheney estava sentado à sua mesa. Não desperdiçou tempo em conversas
triviais; tinha uma mensagem direta e simples para nos comunicar. “Os EUA estão preparados
para trabalhar com os inspetores da ONU”, disse, “mas estamos também preparados para
desacreditar os inspetores a fim de desarmar o Iraque.”
Tendo recebido esse alerta, fomos encontrar Bush. Além de Condoleezza Rice e do chefe de
Estado-maior de Bush, Blix e eu éramos os únicos presentes. Numa espécie de monólogo,
Bush foi direto ao ponto. Afirmou que era favorável ao uso das inspeções para tratar das
questões relacionadas às armas de destruição em massa do Iraque e que preferia uma resolução
pacífica para as preocupações internacionais sobre o regime de Saddam Hussein. “Não sou um
caubói do Texas, com um revólver de seis tiros à mão, preparado para abrir fogo”, gracejou
ele, deslizando para a frente com sua cadeira de braços, mãos nos quadris, mostrando-nos
como um caubói sacaria sua pistola. Por outro lado, rebateu, se a abordagem pacífica não desse
resultado, não hesitaria em liderar uma “coalizão dos que se mostrarem dispostos” a usar a
força militar. Foi um diálogo estranho: Bush continuava a repetir que se sentia “honrado” em
nos encontrar, mas não estava minimamente interessado em nada do que tivéssemos a dizer.
Assim como na conversa com Cheney, esse encontro nos mostrou claramente que a
administração dos EUA nos considerava meros figurantes de uma operação que eles tinham a
intenção de controlar.
Mesmo assim, quando a Resolução 1441 foi adotada, uma semana depois, os Estados
Unidos fizeram uma última concessão. A intenção inicial era que a resolução permitisse
automaticamente o uso da força caso se considerasse que o Iraque estava incorrendo numa
violação material de suas obrigações. Para muitos membros do Conselho de Segurança, isso
era inaceitável. O P5 – sobretudo os franceses, os russos e os norte-americanos – chegou a um
meio-termo. A versão final do texto simplesmente dizia que, se o Iraque incorresse em
violação material, o Conselho “analisaria” os passos que deveriam ser dados na sequência.
Assim, após quatro anos ausente do Iraque, a agência presenciou a reabertura das portas para
suas inspeções no país.

Para a AIEA, o passo inicial para a reentrada no Iraque eram nossos parâmetros de dezembro
de 1998: o conhecimento que acumulamos sobre o potencial e as instalações nucleares do país.
Todo o ciclo de combustíveis e as instalações relacionadas às armas, do início da década de
1990, haviam sido completamente desmantelados; todos os materiais utilizados na fabricação
de armas foram removidos em fevereiro de 1994; o que restava eram substâncias nucleares de
qualidade inferior e certas instalações e substâncias de dupla finalidade (usadas tanto para fins
civis quanto militares) – e, certamente, o conhecimento sobre determinados processos
nucleares: não há programa de inspeção que possa eliminar o conhecimento já assimilado. Na
época da primeira Guerra do Golfo, o conhecimento dos cientistas nucleares de Saddam
Hussein não era suficiente para a construção de uma arma nuclear, mas eles já haviam
adquirido pleno domínio, em escala de laboratório, de alguns processos de enriquecimento de
urânio e de técnicas de produção de armas.
A tarefa que tínhamos à frente era determinar o que havia mudado e quais atividades
nucleares haviam sido retomadas – se é que isso realmente ocorrera – durante os quatro anos
que se seguiram. Para obter uma resposta, contaríamos com inspeções de instalações já
conhecidas, visitas a novos locais, a reativação dos sistemas de vigilância, um extenso
monitoramento ambiental, bem como um exaustivo programa de entrevistas com cientistas
nucleares iraquianos e outros indivíduos relevantes.
A essa altura, a AIEA já era uma organização experiente e madura, composta de inspetores
com um extenso currículo, cuja lealdade já ficara evidente. Formávamos um grupo funcional,
plenamente versado para lidar com os desafios relacionados à salvaguarda nuclear; para
muitos, o Iraque era terreno conhecido não apenas em termos culturais, mas também em
relação às instalações nucleares. A equipe de inspetores do Iraque abrigava indivíduos de
dezenas de nacionalidades e pontos de vista que cobriam todo o espectro político. Era
inevitável que, em relação ao país que era alvo da investigação, alguns inspetores
demonstrassem empatia; outros, hostilidade. Eu estimulava o foco na objetividade técnica e na
precisão jurídica, mas também aceitava o fato de que os julgamentos técnicos pudessem, às
vezes, ser obscurecidos por alguma ideia preconcebida. Assim, tentávamos garantir a plena
expressão de todas as opiniões, incluindo os pontos de vista divergentes.
Eu confiava particularmente em Jacques Baute, um brilhante físico francês que dirigia o
Escritório de Verificação Nuclear do Iraque, da AIEA, cuja experiência prévia com o programa
francês de armas nucleares o dotou de uma sólida capacidade de julgamento do ponto de vista
técnico. Excelente administrador e estimado por todos, Jacques foi o principal responsável pelo
nosso plano de trabalho no Iraque, dirigindo as operações de maneira equilibrada e com uma
forte compreensão da necessidade de mostrarmos sensibilidade e respeito à cultura local, o que
possibilitou a eficácia de nossas interações. Estava conosco também a norte-americana Laura
Rockwood, funcionária da área jurídica, uma mulher extrovertida, experiente e determinada
que vinha trabalhando a meu lado desde meados da década de 1980. Ela ainda se mostrava
plenamente versada nos pormenores jurídicos da missão iraquiana desde as inspeções do início
da década de 1990. No ambiente político altamente carregado em que trabalhávamos, a
possibilidade de contar com colegas de tamanha confiança era um enorme trunfo.
As inspeções começaram formalmente em 13 de novembro de 2002. A principal
característica da nova missão iraquiana era a urgência, baseada na ameaça iminente de ação
militar, no caso de o Iraque não demonstrar plena disposição de cooperar, permitindo-nos
provar que o país renunciara às suas supostas armas de destruição em massa. Essa ameaça,
particularmente da maneira como foi noticiada em relatos da mídia convencional, em
movimentações de bastidores e na retórica das autoridades de governo ocidentais – sobretudo
dos EUA e do Reino Unido –, esteve em evidência durante os meses de inspeção. Havia um
obstáculo implacável: todas as movimentações iraquianas eram consideradas insuficientes. A
acusação relacionada às armas de destruição em massa – as tentativas iraquianas de obter tubos
de alumínio, seus supostos laboratórios itinerantes e a suposta compra de urânio junto ao Níger
– recebeu da mídia uma cobertura sensacionalista, e foi tida como prova das intenções
malignas de Saddam Hussein. Porém, quando as descobertas dos inspetores apontavam na
direção oposta, tais notícias eram contestadas ou consideradas pouco relevantes.
Essa retórica inevitavelmente maculou o clima das interações de alto nível que vínhamos
tendo com as autoridades de governo iraquianas, quer as reuniões ocorressem em Bagdá, em
Nova York ou em Viena. Em um de nossos primeiros encontros em Nova York, o Dr. Jaffar
Dhia Jaffar, que foi encarregado do programa nuclear iraquiano anterior, estava visivelmente
irritado. Jaffar sempre mostrou certa arrogância e reticência em relação a todo o processo de
verificação. Mas, nesse caso, ele foi além. Acusou a AIEA de ser tendenciosa – basicamente,
de ser um instrumento do Ocidente – em nossa relutância em simplesmente arquivar a
documentação referente à questão nuclear. Os comentários que dirigiu a Jacques Baute
passaram a ser de natureza pessoal e agressivos; chegou até mesmo a criticar as habilidades
linguísticas de Jacques. “Seu inglês”, disse ele, “só melhorou quando você se casou com uma
britânica.”
Eu o interrompi bruscamente. “Não se esqueça”, disse, “de que você e seus colegas
trapacearam a AIEA durante muitos anos. Portanto, você não tem nenhuma credibilidade.”
O mais importante consultor científico de Saddam Hussein, general Amir al-Sa’adi, que fora
nomeado nosso colega principal, tentou acalmar os ânimos. “Bem”, disse ele, esboçando um
sorriso, “não foi exatamente trapaça, mas um subterfúgio.”
Revelou-se, depois, que Jaffar estava de péssimo humor por ter chegado a Nova York sem
as malas, o que significava que sua aparência não podia ser das melhores. Ele tinha certeza de
que esse era um truque intimidatório dos agentes de inteligência dos EUA, que vinham
perseguindo todos os principais cientistas do Iraque. Tanto Al-Sa’adi quanto Jaffar me
disseram que sempre que viajavam para fora do Iraque eram abordados por representantes dos
serviços de inteligência ocidentais, que tentavam recrutá-los.
À medida que as inspeções continuavam, a desconfiança persistia, e nossas interações com
as autoridades de governo iraquianas continuaram tensas, em parte porque a avaliação da
extensão da cooperação do Iraque nunca foi uma tarefa simples. Primeiro, ela era precedida de
um histórico de fraudes, o que nos fazia ver suas declarações e atitudes com certo ceticismo.
Em várias ocasiões, Blix e eu afirmamos que ainda precisávamos ser convencidos de que o
Iraque apresentara todas as informações disponíveis a respeito de seus programas de destruição
em massa. Certa vez, depois de eu ter afirmado isso, Al-Sa’adi disse que minhas palavras
estavam lhe provocando dor de cabeça, pois ele não podia apresentar informações que não
tinha. Insistiu, dizendo que a AIEA tinha de acreditar nas declarações dos iraquianos. Mas é
claro que nossa experiência anterior à Guerra do Golfo de 1991 não nos inspirava confiança.
Não podíamos, simplesmente, acreditar em suas palavras.
Em segundo lugar, nossos colegas iraquianos enfrentavam extremas limitações de um
sistema terrivelmente autoritário e claramente centralizado. Isso tornava naturalmente mais
lenta a sua capacidade de tomar decisões e de reagir rapidamente, fazendo-os parecer muito
pouco transparentes. Nem Al-Sa’adi nem o general Husam Amin, chefe do grupo iraquiano de
interface com a ONU, eram capazes de tomar qualquer iniciativa de modo independente, sem
consulta prévia. Tampouco podiam falar informalmente a respeito de Saddam Hussein ou do
regime. Eles podiam ter suas opiniões em ambientes reservados, mas sabiam as consequências
de dizer algo negativo, estando cientes de que todas as conversas eram grampeadas.
Naji Sabri, ministro das Relações Exteriores do Iraque, parecia preferir permanecer nos
bastidores, no que dizia respeito às inspeções. Era uma pessoa sempre agradável mas distante.
Invariavelmente, nos convidava para jantar ao final de nossas visitas a Bagdá. Porém, toda vez
que tentávamos envolvê-lo em assuntos mais sérios, respondia sempre de modo cauteloso,
evitando qualquer comprometimento . 36

Era enorme o contraste entre a reserva de Sabri e a postura do vice-presidente iraquiano,


Taha Yassin Ramadan, que acompanhou de perto o processo de inspeção. Em nosso primeiro
encontro, no gabinete da vice-presidência, em 20 de janeiro de 2003, ele se mostrou
melancólico e formal, vestido em seu uniforme militar e carregando uma pistola. Estávamos
apenas nós três e mais um intérprete. Ele nos disse que nossos inspetores estavam criando
problemas desnecessários, colocando lenha na fogueira da suspeita internacional, em vez de
solucionar questões. Acusou-nos de falta de objetividade em nossa abordagem. Sua fala era
uma espécie de discurso bombástico, em que atacava a totalidade de nosso processo de
inspeção.
Respondi a ele de maneira franca, passando a falar em árabe, de modo a não deixar dúvidas
quanto ao meu tom, ou quanto ao significado de minhas palavras. “Estamos aqui para ajudá-
los”, eu disse, “mas, falando sinceramente, só se vocês estiverem dispostos a ajudar a vocês
mesmos. É preciso que vocês cooperem e que mostrem transparência, pois essas questões não
serão resolvidas se não forem proativos.” Mencionei o modo como alguns membros da
administração iraquiana repetidamente acusavam os inspetores da ONU de ser agentes
secretos. “Simplesmente rotular os inspetores da ONU como espiões”, eu lhe disse, “não
ajudará vocês na sua situação, de forma alguma.”
Para minha surpresa, Ramadan começou a acalmar-se. Acredito que ele tenha compreendido
a essência do que eu estava dizendo: primeiro, que nosso papel e o de nossos inspetores não era
fruto de vingança pessoal, mas sim a responsabilidade de cumprir um mandato internacional;
em segundo lugar, a cooperação da parte deles era a única saída para a confusão em que
estávamos metidos .
37

Essa continuou sendo minha postura ao longo de todo o processo, embora minha
nacionalidade e herança cultural pudessem criar expectativas diferentes. Desde o início,
frequentemente tive a sensação de que o mundo árabe – bem como muitos ocidentais –
esperava que eu, na condição de árabe do Egito e muçulmano, fosse tendencioso a favor do
Iraque.
É claro que também ouvi que eu agia com rigor no caso do Iraque apenas para provar que
não era tendencioso. Meu único viés era o de um funcionário público internacional: a
insistência em adotar uma postura independente, com profissionalismo, tratando as partes
envolvidas com igual respeito. Os iraquianos logo perceberam que eu não estava disposto a
lhes fazer nenhum favor em particular e que tampouco mostrava nenhuma inclinação
desfavorável a eles. Embora no final eu tenha sido reconhecido pela maioria das pessoas e
grupos – ainda que com ressentimentos – por minha objetividade, meu nome e minha origem
étnica eram, mesmo assim, repetidamente usados como um modo de insinuar que meus
julgamentos eram baseados em preconceitos.
Pior ainda: minha firme imparcialidade talvez tenha sido a motivação para várias situações
curiosas. Em nossa primeira visita a Bagdá, após o reinício das inspeções, em novembro de
2002, um homem telefonou para o meu quarto no hotel. Apresentou-se como advogado e disse
que desejava deixar o país. Queria me perguntar se Blix ou eu podíamos ajudá-lo. Eu lhe disse
que aquele assunto não era responsabilidade nossa, e que estávamos na cidade com a atenção
voltada às inspeções. Ele me agradeceu e desligou.
Em minha visita seguinte, o telefone tocou novamente. Dessa vez, era uma mulher. Disse
que era de nacionalidade curda, trabalhava para a ONU no Curdistão e estava enfrentando um
problema com seu contrato. “Estou sentada perto da piscina, neste momento”, disse ela.
“Talvez você possa me ajudar se eu puder lhe dar mais detalhes sobre isso. Poderíamos nos
encontrar?” Respondi que eu não podia encontrá-la, mas que ela poderia me escrever. Não me
surpreende que eu não tenha mais ouvido falar dela.
Ainda numa outra ocasião, fui abordado pelo próprio ministro das Relações Exteriores,
Sabri. Ele me chamou de lado e perguntou se eu tinha familiares ou amigos que pudessem estar
interessados em transações comerciais no setor petrolífero do Iraque. Em caso positivo, disse
ele, que eu o avisasse. A mesma oferta me foi feita, posteriormente, pelo embaixador iraquiano
em Nova York, que representava o ministro das Relações Exteriores. Deixei claro que eu não
tinha o menor interesse em tal “oportunidade”.
Acredito que essas situações eram ciladas do governo iraquiano para me chantagear, ou me
“persuadir gentilmente”. Ninguém mais teria a ousadia de me telefonar no hotel; qualquer
habitante local teria suspeitado, e com razão, que os quartos e os telefones estavam todos
grampeados.

Nos primeiros dois meses de inspeção, a AIEA conseguiu um progresso substancial,


restabelecendo sua compreensão sobre o potencial nuclear do Iraque. A maior parte de nossas
inspeções era feita em instalações industriais controladas pelo Estado ou privadas, em centros
de pesquisa e em universidades – com foco em locais onde sabíamos que o Iraque mantivera
recursos técnicos significativos, em novos lugares sugeridos a partir da análise de informações
públicas, ou então em instalações identificadas por meio de imagens de satélite, construídas ou
modificadas desde 1998. As inspeções eram realizadas sem prévia notificação ao Iraque.
Os inspetores da agência também realizaram buscas minuciosas e sistemáticas de modo mais
genérico, usando uma série de instrumentos. Seguindo pistas deixadas pela “assinatura”
ambiental de materiais radioativos, reiniciamos o monitoramento dos rios, canais e lagos
iraquianos, para detectar a presença de radioisótopos relevantes. Coletamos amostras de locais
em todo o país, que na sequência eram levadas a laboratórios da AIEA para análise.
Realizamos extensas pesquisas de radiação, utilizando instrumentos sensíveis que haviam sido
transportados em veículos ou manuseados, mapeando instalações industriais e outras áreas, em
busca de substâncias nucleares e radioativas. Entrevistamos vários cientistas, gerentes e
técnicos iraquianos – sobretudo em seus locais de trabalho, durante as inspeções sem aviso
prévio –, a fim de recolher quaisquer informações sobre programas realizados no passado e
naquele momento.
Paralelamente a essas inspeções locais, analistas da sede da AIEA em Viena examinavam
atentamente as mais recentes informações enviadas pelo Iraque, comparando-as com os
registros que havíamos acumulado entre 1991 e 1998, bem como outros dados que compilamos
por meio de monitoramento remoto durante os quatro anos que estivemos longe do país. As
declarações iraquianas correspondiam ao que sabíamos sobre o programa nuclear pré-1991 do
Iraque, mas seguimos buscando esclarecimentos nos pontos em que havia lacunas.
Tendo realizado 139 inspeções em 106 locais naqueles primeiros 60 dias, não conseguimos
descobrir nenhuma prova de esforços empreendidos pelo Iraque ou por seus cientistas com a
finalidade de reativar o programa de armas nucleares do país. As inspeções prosseguiam em
ritmo constante. Porém, duas questões técnicas em particular predominavam no debate nuclear,
a fim de acelerar a marcha em direção à guerra: as tentativas do Iraque de obter tubos de
alumínio de alta resistência e a suposta compra de urânio do Níger.
Os tubos de alumínio foram mencionados por autoridades de governos ocidentais em
inúmeras ocasiões, como atestado das renovadas ambições nucleares do Iraque. Como provas,
as autoridades faziam referência à apreensão na Jordânia, em junho de 2001, de um
carregamento de tubos que tinha o Iraque como destino final. Condoleezza Rice, por exemplo,
deu uma declaração à CNN dizendo que esses tubos eram “apropriados apenas para o uso em
programas de armas nucleares” . Tal afirmação induzia a erro: havia muito tempo, os
38

especialistas do Departamento de Energia dos EUA davam declarações públicas dizendo


acreditar que esses tubos eram mais apropriados para uso em mísseis de artilharia.
Nossos inspetores estabeleceram como principal prioridade a visita à indústria de fabricação
de metais em Nasser, onde sabíamos que o Iraque fabricara mísseis de artilharia de dimensões
parecidas. Os engenheiros iraquianos do local mostraram aos inspetores milhares de mísseis já
completos, fabricados com a mesma liga de alumínio e com as mesmas tolerâncias dos tubos
interceptados na Jordânia. Os engenheiros alegaram uma razão simples para a tentativa de
obtenção desse material: seus estoques estavam em baixa. Sobre o porquê de eles terem
adquirido aquelas especificações em particular, a justificativa era igualmente direta: estavam
em busca de mísseis precisos, queriam minimizar as mudanças em design e desejavam que os
tubos fossem anodizados, para evitar enferrujamento.
Em nenhuma parte encontramos provas de que um programa de enriquecimento em
centrífugas tivesse sido reativado. Em 27 de janeiro de 2003, quando entreguei ao Conselho de
Segurança um relatório provisório, relatei minha conclusão quanto a esses tubos:
“Considerando a análise que fizemos até hoje, parece consistente a equivalência entre os tubos
de alumínio e seus objetivos, tais como declarados pelo Iraque; a menos que eles sejam
modificados, não são adequados para a fabricação de centrífugas”.
A resposta – ou ausência dela – dos EUA foi notável. No dia seguinte, o presidente Bush
proferiu sua mensagem ao Congresso, no discurso do Estado da União. Em um dos discursos
de maior audiência daquele ano, alegou novamente que o Iraque estava tentando comprar tubos
de alumínio “apropriados para a produção de armas nucleares”. Não havia nenhuma menção à
conclusão da AIEA, que contradizia tal declaração, conclusão baseada na direta verificação dos
fatos no Iraque. Bush tampouco fez menção à análise, também divergente, elaborada pelo
Departamento de Energia dos EUA.
O dramático discurso de Colin Powell dirigido ao Conselho de Segurança da ONU ocorreu
uma semana mais tarde, em 5 de fevereiro. Seus ouvintes aguardavam uma apresentação
definitiva das informações secretas sobre o programa iraquiano de armas de destruição em
massa. Com carisma e presença imponente, Powell tranquilizou seus ouvintes: “Meus colegas,
cada uma das afirmações que faço aqui hoje está sustentada por fontes, e fontes sólidas. Não se
trata de declarações, apenas”. Quando o assunto passou a ser os tubos de alumínio, reconheceu
que havia “diferenças de opinião”, mas declarou: “A maioria dos especialistas dos EUA
considera que a intenção deles é servir de rotores em centrífugas utilizadas no enriquecimento
de urânio”.
Posteriormente, Powell me disse que passara uma semana na sede da CIA, questionando
seus funcionários sobre cada “prova” em particular, lhes fazendo perguntas para garantir a
veracidade das informações. Acrescentou, em tom de brincadeira, que, se tivesse incluído todas
as provas em sua apresentação ao Conselho, ela teria durado horas.
No almoço oferecido pelo secretário-geral, na sequência do pronunciamento de Powell na
ONU, Dominique de Villepin, o ministro das Relações Exteriores da França – um diplomata e
historiador bem-sucedido, cuja presença equivalia à de Powell – dirigiu-se a ele em termos
que, analisados em retrospectiva, parecem proféticos: “Vocês, norte-americanos”, disse ele,
“não compreendem o Iraque. Esta é a terra de Haroun al-Rashid . Vocês podem destruí-lo em
39

um mês, mas precisarão de uma geração inteira para construir a paz”.


Powell ficou visivelmente irritado. “Quem está falando em guerra?”, rebateu – um
comentário meio bizarro, considerando que o discurso que acabara de pronunciar apontava
nessa direção.
No final das contas, uma análise meticulosa da questão dos tubos de alumínio feita pelo
New York Times, e publicada quando a guerra já estava em seu segundo ano, observou que,
dois dias antes de sua fala no Conselho de Segurança, os especialistas do Serviço de
Inteligência norte-americano enviaram a Powell um memorando, confirmando que os EUA
usaram um míssil tático de 70 mm que continha o mesmo alumínio de alta qualidade e com
especificações semelhantes . No entanto, Powell declarou que os tubos que o Iraque tentou
40

obter exigiam uma tolerância que “excede, em muito, os requisitos de mísseis semelhantes”.
Outro aspecto essencial do caso, desfavorável ao regime iraquiano, foi a alegação de que
Saddam Hussein tentara comprar urânio do Níger. O presidente George Bush deu ênfase a esse
ponto em sua mensagem ao Congresso de janeiro de 2003: “O governo britânico obteve
informações de que Saddam Hussein recentemente obteve uma significativa quantidade de
urânio da África”. Supostamente, entre 1999 e 2001, representantes de Saddam tentaram
adquirir 500 toneladas de óxido de urânio – ou yellowcake – do Níger. No final de setembro de
2002, a administração Blair, do Reino Unido, revelou um dossiê com informações secretas,
incluindo tal afirmação. Desde então, a AIEA vinha exercendo pressão para ter acesso aos
importantes documentos relacionados ao caso, a fim de investigá-los; após meses de insistência
com os serviços de inteligência para que nos enviassem as provas dessa transação ilícita,
finalmente nos remeteram cópias dos documentos, em 5 de fevereiro, mesmo dia da mensagem
de Colin Powell ao Conselho de Segurança.
Embora o Reino Unido e os EUA tenham levado mais de três meses para apresentar as
“provas” – um pequeno maço de cartas e comunicados entre autoridades de governo do Níger e
do Iraque –, Jacques Baute e sua equipe precisaram de poucas horas para perceber que os
documentos eram falsos. Uma das cartas, supostamente redigida pelo presidente do Níger
Mamadou Tandja, estava repleta de imprecisões e sua assinatura era obviamente falsificada.
Outra carta, do ministro da Cooperação e das Relações Exteriores, tinha sido “assinada” por
Allele Habibou; porém, o ministro Habibou deixara o cargo em 1989.
A mencionada venda também não tinha a menor lógica. O Níger é um dos maiores
produtores de urânio do mundo. A produção das duas minas de urânio em questão representa
uma commodity valiosa, uma importante linha de fornecimento para as empresas nucleares do
Japão, da Espanha e da França. Tanto as vendas quanto a produção são constantemente
supervisionadas não apenas pelo Níger, mas por organizações de outros países. A ideia de que
500 toneladas de yellowcake – suficientes para produzir cerca de cem bombas nucleares –
pudessem ter sido despachadas para o Iraque despercebidas soava absurda.
Ainda mais intrigante é que uma fraude não detectada ao longo de meses de exame
realizados pelos melhores serviços de inteligência do mundo foi imediatamente descoberta por
um físico da AIEA, que se valeu de buscas no Google e do bom senso. Munido de suas
conclusões sobre os documentos do Níger, Jacques consultou várias autoridades de governos
ocidentais. Elas nada tinham a dizer. Nos dias que se seguiram, nenhuma autoridade do
governo norte-americano ou britânico contestou sequer uma única vez a lógica contida na
análise da AIEA.
Com extremo cuidado, ponderei sobre como anunciar a notícia ao Conselho de Segurança
sem causar um grande constrangimento a Washington ou a Londres. No voo rumo a Nova
York, após ter consultado Jacques Baute e Laura Rockwood, finalmente decidi usar uma
terminologia menos espetacular, descrevendo os documentos como “não autênticos”. Mas a
mensagem era clara: a alegação de venda de urânio pelo Níger – um aspecto central da
argumentação dos EUA e do Reino Unido, que insistiam em que o Iraque reconstituíra seu
programa de armas nucleares – estava baseada numa fraude.
Era clara a insatisfação dos Estados Unidos quando reportei essa conclusão ao Conselho de
Segurança. Ela agravava ainda mais a desmistificação que fizéramos da questão dos tubos de
alumínio. Colin Powell, que sempre manteve a calma e me tratava com extrema gentileza,
reagiu de modo irritado na reunião do Conselho, observando que a agência “deixara o Iraque
escapar” em 1991.
Na mídia, a reação foi desanimadora. Os mais importantes veículos de comunicação na
época aceitaram por completo as acusações de armas de destruição em massa feitas pelo
governo dos EUA. Nossas descobertas, por sua vez, foram desconsideradas, sob o pretexto de
serem pouco importantes. O Washington Post, na edição de 1o de março, fazia referência aos
documentos do Níger como “pequenas provas, secundárias”. Para não ficar atrás, o Wall Street
Journal publicou, em 13 de março, um editorial incisivo intitulado “Bush em Lilliput”. “O Sr.
ElBaradei”, dizia o texto, “fez alarde público na semana passada sobre uma acusação dos EUA
e do Reino Unido que se revelou falsa, mas que, de qualquer modo, era periférica em relação
às armas de destruição em massa do Iraque.” Nenhum dos jornais se deu o trabalho de
mencionar que, menos de dois meses antes, a venda de urânio do Níger havia sido significativa
o bastante para que o presidente dos EUA a incluísse em sua mensagem do Estado da União ao
Congresso. A cobertura feita pelo New York Times também desconsiderava esses fatos. Em 8
de março, a questão do Níger foi mencionada de passagem numa reportagem de capa cujo foco
era a “divisão da ONU”. No dia seguinte, a notícia recebeu uma cobertura mais ampla (“Peritos
forenses descobriram fraude no Iraque, diz um inspetor”), mas foi relegada à página 13.
Na fronte diplomática, os esforços também pareciam fadados ao fracasso. Quando os estados
árabes se encontraram em Sharm el-Sheikh, numa cúpula emergencial antes da guerra, em 2 de
março, a reunião se transformou em um festival de desacordos e troca de insultos. Havia
propostas sérias a serem discutidas sobre o envio de uma delegação ao Iraque, a fim de lhe
oferecer soluções possíveis contra a guerra. Alguns pretendiam incentivar Saddam Hussein a
renunciar. O mandatário dos Emirados Árabes Unidos na época, o xeique Zayed, prontificou-se
a oferecer asilo a Saddam Hussein, para que ele fosse preservado.
Outros líderes árabes, entretanto, pareciam apoiar a guerra. Eles mostravam uma clara
aversão a Saddam Hussein e tinham esperanças de que uma invasão poderia fazê-los ficarem
livres dele em definitivo. No início do processo de inspeções, encontrei-me com o então
presidente do Egito, Hosni Mubarak, que alimentava um claro ressentimento pessoal em
relação a Saddam Hussein; dizia repetidas vezes que Saddam o havia traído na primeira Guerra
do Golfo, quando invadiu o Kuwait depois de lhe dar garantias de que não o faria. Passei a
Mubarak um resumo de nossas atividades no Iraque, mas também tentei direcionar a conversa
para um tema mais amplo e importante, incentivando-o a liderar um movimento de
modernização e moderação no mundo árabe. “Se isso acontecesse”, eu disse, “o Egito obteria
apoio de todos os lados, tanto política quanto economicamente.”
Mubarak e eu conversamos novamente sobre o Iraque quando lhe pedi para intervir junto a
Saddam Hussein, a fim de melhorar sua cooperação com a ONU. Mubarak mencionou uma
carta que recebera de Saddam Hussein, que dizia: “Não se preocupe, está tudo certo”. Também
me transmitiu uma informação: “Sei que Saddam Hussein possui armas biológicas”, me disse,
“e ele as esconde nos cemitérios”. Foi a primeira e última vez em que ouvi este boato .
41

Com tais sentimentos em processo de fermentação, a reunião dos países árabes


inevitavelmente degenerou em uma série de argumentos virulentos. A proposta de asilo feita
pelo xeique Zayed não foi incluída na agenda. Com isso, o xeique e sua delegação ficaram
furiosos com o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa. A proposta de enviar uma
delegação ao Iraque foi completamente descartada. Sem uma posição unificada, os líderes do
mundo árabe praticamente não tinham voz ou qualquer influência em relação a uma guerra
deflagrada em sua região – além de, em alguns casos, oferecer bases a instalações para as
tropas dos EUA.
Nem sequer os políticos mais experientes e pragmáticos pareciam capazes de exercer
qualquer influência diplomática. O presidente francês Jacques Chirac expressou uma veemente
discordância da doutrina Bush – do tipo “ou vocês estão conosco, ou contra nós”. Sua
franqueza ficou em evidência quando Blix e eu nos encontramos com ele em meados de
janeiro, no Palácio Elysée, ocasião em que reclamamos do fato de não conseguirmos muitas
informações junto aos serviços de inteligência ocidentais quanto aos supostos programas
iraquianos de armas de destruição em massa. A resposta de Chirac mostrou uma sinceridade
impressionante. “Vocês sabem por que não conseguem obter as informações”, declarou. “É
porque eles não têm informação nenhuma.”
Na verdade, os especialistas do Serviço de Inteligência francês nos haviam dito que estavam
certos de que o Iraque ainda possuía “pequenas quantidades” de armas biológicas e químicas.
O diretor do Serviço de Inteligência francês por acaso estava presente na reunião, e o
comentário de Chirac o fez desviar o olhar. Chirac não prestou atenção nisso, e seguiu falando,
sem rodeio: os serviços de inteligência, segundo ele, tinham o hábito de primeiro tirar
conclusões, para depois elaborar os argumentos que as embasassem. A essa altura, o diretor do
Serviço de Inteligência prosseguia olhando fixamente para o carpete.
Para mim, foi estimulante ouvir um líder da estatura de Chirac expressar de maneira tão
franca aquilo que nós, da agência, tínhamos em mente. Ele disse que a ameaça feita por Bush
ao Conselho de Segurança – de que a ONU passaria a ser inútil se não adotasse uma resolução
para o uso da força – era um total absurdo. Se os Estados Unidos resolvessem agir por conta
própria, disse Chirac, “Os EUA é que serão considerados fora da lei, e não a ONU”.
Infelizmente, nos Estados Unidos de então, o posicionamento de Chirac em relação ao Iraque
foi marginalizado, chegando mesmo a ser ridicularizado .42

Logo em seguida, no início de fevereiro, Blix e eu nos encontramos com o primeiro-ministro


britânico Tony Blair, em seu modesto gabinete em Downing Street. Ele recebeu cada um de
nós separadamente: Blix primeiro e a mim na sequência. Era uma prática incomum; a maior
parte de nossas interações naquele nível se dava de modo conjunto. Blair mostrava-se relaxado
e vestia-se de maneira informal, sem usar o paletó. Ao sair, depois de ter conversado com Blix,
anunciou, em tom de brincadeira: “O próximo!”, como se estivéssemos no dentista.
O clima da reunião era positivo. Expressei a Blair minha preocupação de que iniciar uma
guerra contra o Iraque por causa das armas de destruição em massa poderia desencadear
tensões regionais. “No Oriente Médio, a percepção”, expliquei, “é de que o Iraque não é foco
das atenções por causa das armas propriamente ditas, e sim porque é um país muçulmano e
árabe, e por isso não tem a permissão – ao contrário de Israel – de possuir tais armas.” Dei
ressonância a uma fala de Chirac: que a impaciência em partir para a ação no Iraque não seria
bem-vista em comparação com a inércia diante do conflito entre israelenses e palestinos.
Também mencionei as críticas que vinha recebendo em relação à disparidade de tratamento
entre o Iraque e a Coreia do Norte.
Blair pareceu compreender meu ponto de vista e compartilhou de minhas preocupações
sobre a inércia na questão palestina. Afirmou que Bush prometeu cuidar dessa situação, uma
vez que “a questão iraquiana” estivesse resolvida.
Foi Jack Straw, ministro britânico das Relações Exteriores, quem explicou a lógica da
atitude de seu país: eles tentavam dar total apoio aos norte-americanos em público para
poderem influenciar as decisões dos EUA de modo privado. Esse ponto de vista parecia
consistente: seria muito mais perigoso deixar que os EUA agissem por conta própria; ao
“abraçar” os norte-americanos, o Reino Unido aumentava sua capacidade de controlar as ações
deles. Honestamente, não percebi o menor indício de influência britânica sobre a política norte-
americana durante a administração Blair. Essa via sempre me pareceu ser de mão única, com
os britânicos agindo como porta-vozes ou apologistas do comportamento dos EUA.

Dispondo de tão poucos elementos para justificar seus argumentos na questão nuclear – além
da alegação relacionada aos tubos de alumínio e o fiasco do yellowcake do Níger –, muitas
autoridades do governo dos EUA ainda assim alimentavam a certeza de que o Iraque havia
acumulado pelo menos alguma quantidade de armas químicas e biológicas. Com relação às
armas nucleares, as hipóteses soavam, às vezes, bizarras: lembro-me de uma reunião no
Departamento de Estado dos EUA com o secretário-assistente John Wolf, na qual ele
insistentemente repetia que nossos inspetores deveriam apreender o disco rígido de todos os
computadores dos cientistas iraquianos, para ter acesso ao que estava acontecendo. Em outra
ocasião, estive reunido com o Comitê de Relações Exteriores, presidido por Henry Hyde.
Dávamos explicações sobre o progresso das inspeções quando Tom Lantos, um eminente
congressista democrata, interrompeu: “Tenho uma solução para vocês”, disse ele. “Leve todos
os cientistas iraquianos a um cruzeiro de duas semanas, e com isso conseguirão obter todas as
informações de que precisam sobre o programa do Iraque.” Considerei a sugestão como uma
piada. Não respondi.
Decerto, o que Chirac disse era verdadeiro: nem os Estados Unidos nem outros países
detinham uma significativa quantidade de informações secretas que pudesse justificar suas
convicções sobre o desenvolvimento de armas nucleares pelo Iraque. Durante o período de
inspeções da AIEA, um número muito pequeno de pistas nos foi passado pelos norte-
americanos, em forte contraste com a extensa quantidade de informações filtradas pelos EUA
para a AIEA e a UNSCOM no início da década de 1990.
Não podendo contar com tais informações secretas, os norte-americanos depositavam sua
esperança na defecção dos cientistas iraquianos, que, segundo eles, certamente revelariam
informações secretas sobre a localização e os programas de armas sobre cuja existência os
EUA tinham certeza. Era essa a motivação por trás da estratégia de levar os cientistas e suas
famílias para fora do país, a fim de serem entrevistados. Entretanto, grande parte dos
especialistas nucleares do Iraque não tinha sequer a disposição de ser entrevistada na ausência
de um representante das autoridades iraquianas, ou sem a utilização de um gravador. Estavam
determinados a evitar mal-entendidos – com as autoridades iraquianas ou com os inspetores.
Não podíamos forçá-los a deixar o país, tampouco eles estavam dispostos a fazê-lo, tendo em
vista a potencial repercussão que isso teria para suas famílias e amigos.
Além disso, percebemos que contávamos com meios suficientes para facilitar nossas
inspeções sem ter de recorrer a essa medida adicional: estávamos confiantes de que, podendo
trabalhar com um prazo razoável, descobriríamos quaisquer atividades existentes relacionadas
a armas de destruição em massa. Os inspetores da AIEA estavam bastante familiarizados com
o potencial científico e tecnológico do Iraque e com a topografia do país. Mesmo depois de um
hiato de quatro anos, os inspetores da AIEA não precisaram de muito tempo para recuperar
uma compreensão básica do potencial nuclear do Iraque.
No entanto, essa credibilidade estava sendo descartada; a autonomeada “coalizão dos que se
mostraram dispostos” decidira ignorar os nossos conhecimentos. Apesar da experiência prática
adquirida pelos inspetores da ONU, estávamos perdendo a batalha da informação na imprensa
ocidental e, em alguma medida, aos olhos da opinião pública. As afirmações feitas pela AIEA
e pela UNMOVIC eram desconsideradas, ou citadas de modo seletivo, embora fôssemos, aos
olhos e ouvidos da comunidade internacional, os que tinham acesso aos fatos verdadeiros.
A guerra estava começando a parecer inevitável – independentemente dos fatos. Tropas se
concentravam no golfo Pérsico. Nosso tempo estava terminando.

Em 12 de março, Tony Blair e Jack Straw submeteram à ONU um projeto de resolução, num
aparente esforço para impedir a guerra. Ele continha seis “testes” sobre o desarmamento. Se o
Iraque fosse aprovado em tais testes até 17 de março, Saddam Hussein teria a permissão de
permanecer no poder, e a ação militar não ocorreria.
Os seis testes eram, basicamente, compromissos que o Iraque assumiria:

[2] Veicular uma declaração pública feita por Saddam Hussein, em transmissão ao vivo no
Iraque, na qual ele admitiria a posse de armas de destruição em massa, prometendo
renunciar a elas.
[3] Permitir que cientistas iraquianos fossem entrevistados por inspetores da ONU fora do
Iraque.
[4] Entregar os 10 mil litros de antraz que, segundo os britânicos, ainda estavam em posse do
Iraque.
[5] Destruir todos os mísseis proibidos.
[6] Apresentar um relatório de suas aeronaves não tripuladas e dos mísseis de controle remoto.
[7] Entregar todos os laboratórios itinerantes de bioprodução, para que fossem destruídos.

O projeto de resolução não foi aprovado. Ainda que isso tivesse acontecido, teria sido
inviável atender pelo menos três dos requisitos, já que não existia essa quantidade de antraz,
muito menos os laboratórios itinerantes, e Saddam Hussein não podia admitir a posse de armas
que não tinha. Ainda mais curioso é o fato de que os britânicos permitiriam a permanência de
Saddam no poder. Isso contrariava declarações posteriores de que a mudança de regime no
Iraque era, em si, suficiente para justificar a invasão.
À medida que se aproximava o fim de semana entre 14 e 16 de março, os britânicos
pareciam desesperados para encontrar uma solução diplomática. Como última tentativa,
propuseram que se fizesse uma “avaliação de desempenho”, ou seja, uma lista de certas tarefas
que caberia ao Iraque cumprir a fim de provar sua disposição de cooperar. Sugeri a
possibilidade de Blix e eu irmos a Bagdá, de posse dessa avaliação, para negociar junto às
autoridades iraquianas. Os britânicos pareceram satisfeitos com a sugestão.
Paralelamente, eu vinha pressionando Al-Sa’adi para que convidasse Blix e a mim a um
encontro direto com Saddam Hussein. Essa carta-convite chegou no sábado, 15 de março.
Conversei com os alemães e com os franceses para saber se eles apoiariam tal visita como uma
ocasião diplomática. Na opinião dos britânicos, os franceses deveriam tomar a iniciativa.
Porém, nem os franceses nem os alemães demonstraram grande entusiasmo. A percepção
deles era que a decisão de ir à guerra já havia sido tomada em Washington. Se eles apoiassem
uma missão diplomática envolvendo um encontro com Saddam Hussein e esta fosse
malsucedida, o fracasso em si poderia representar um pretexto a mais, ou a justificativa para a
agressão militar – um pretexto que eles não estavam dispostos a dar aos americanos. Assim,
eles se negaram a apoiar a missão. Revelou-se, então, que o próprio Blix não estava disposto a
visitar Bagdá novamente; para ele, já era “tarde demais”.

Blix e eu formávamos uma boa parceria, mas nossos pontos de vista nem sempre convergiam.
Embora nossas diferenças raramente aparecessem em público, às vezes discordávamos de
modo incisivo. Eu tinha interesse particular em que ele se juntasse a mim para solicitarmos
mais tempo à continuidade dos procedimentos de inspeção, considerando que não havíamos
encontrado provas da existência de armas de destruição em massa ou de qualquer ameaça
iminente, mas ele não se mostrou interessado. A raiz de tal relutância talvez fosse, em parte, o
contraste entre as equipes de inspetores sob nossa direção. A UNMOVIC era uma organização
nova; seus inspetores, ainda que tecnicamente habilidosos, eram em sua maioria novos – novos
no Iraque, novos na UNMOVIC, novos no processo de inspeção e novos para Blix. Blix
tampouco podia contar com consultores técnicos experientes em questões químicas e
biológicas ou em tecnologia de mísseis. Demetrius Perricos, o principal conselheiro técnico de
Blix, era um ex-membro da AIEA, de alto nível e de grande experiência, além de confidente de
longa data; sua especialidade, porém, era a área nuclear. Como muitos inspetores da AIEA
estavam retomando o contato com um terreno bastante familiar e com rostos conhecidos, a
agência, da mesma forma, depositava uma confiança maior em suas avaliações.
Blix também tinha a sensação de ter sido traído pelo Iraque no início da década de 1990 – só
ouviu mentiras deslavadas do diretor da Organização de Energia Atômica do Iraque e de todos
os seus subordinados. Teve também de enfrentar uma hostil campanha da mídia, que
injustamente o acusava de ser moralmente fraco pelo fato de a AIEA não ter descoberto o
programa nuclear do Iraque antes da primeira Guerra do Golfo – na época, a imprensa não foi
capaz de compreender as limitações da autoridade da agência. Agora, na condição de diretor da
UNMOVIC, Blix podia se permitir rigidez em suas negociações com os iraquianos.
Antes mesmo do retorno dos inspetores, os iraquianos haviam solicitado “discussões
técnicas” com a UNMOVIC e com a AIEA, a fim de identificar claramente quais eram as
questões ainda pendentes relacionadas ao desarmamento e o que podia ser feito pelo Iraque
para dar um desfecho satisfatório a essas questões. Blix negou o pedido. Revelou-me sua
suspeita de que o Iraque queria manipular tais discussões para “descartar” pontos relevantes.
Essas discussões não ocorreriam, disse ele, antes do retorno dos inspetores da UNMOVIC ao
Iraque.
A AIEA já estava envolvida em discussões semelhantes com nossos colegas iraquianos, com
resultados positivos. Essa interação ajudava nossa preparação e poderia aumentar a eficácia de
nossos inspetores no momento em que as portas finalmente lhes fossem reabertas no Iraque. E
é claro que a AIEA não permitiria que nenhuma questão fosse descartada. “Você é o diretor da
UNMOVIC”, eu disse a Blix. “Ninguém pode dar as questões da UNMOVIC por encerradas
sem o seu consentimento.”
A certa altura dessas discussões preliminares, numa reunião no Hotel Sacher, em Viena,
com a presença do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Blix me acusou de estar tomando
partido do Iraque. “Isso é injusto”, Annan disse a Blix. “Qual é o sentido de estarmos fazendo
essas reuniões com os iraquianos se você não está disposto a discutir com eles quais são as
questões de desarmamento ainda pendentes?” Mas Blix recusava-se a ceder.
Para ser justo com ele e com a UNMOVIC, não era fácil para eles, ao longo das inspeções,
chegar a conclusões sobre as verificações, pois, mesmo que os serviços de inteligência tenham
afirmado o oposto, os iraquianos não conservaram registros precisos das armas químicas e
biológicas que destruíram na década de 1990. Além disso, nem sempre Blix podia contar com
dados exatos fornecidos pelos iraquianos. Em uma reunião em Bagdá, por exemplo, ele disse
aos iraquianos que a lista de cientistas que constava da declaração deles não estava completa,
portanto apresentou os nomes de mais quatro ou cinco indivíduos. O general Al-Sa’adi
consultou sua equipe, e então explicou que os cientistas mencionados haviam morrido ou
deixado o país; ou então seus nomes constariam do relatório, mas com pequenas variações de
grafia, devido à transcrição do árabe para o inglês.
Em um relatório ao Conselho de Segurança, Blix também incluiu uma afirmação que foi
indevidamente usada, posteriormente, pelos EUA e pelo Reino Unido, a fim de pressionar na
direção do conflito. Tínhamos o hábito de trocar esboços de nossos relatórios na noite que
antecedia nossos encontros; nesta ocasião em particular, não fizemos isso. Blix escreveu em
seu relatório: “O Iraque não adotou a decisão estratégica do desarmamento, e não está fazendo
isso agora”. Achei que havia compreendido a gênese de seu comentário. Numa das cartas
enviadas pelos iraquianos, eles se referiam às inspeções como “assim chamadas” questões de
desarmamento. Blix interpretou essa frase como um sinal de arrogância, um indício de que os
iraquianos não estavam levando a sério sua obrigação de prosseguir com o desarmamento. Na
mesma declaração para o Conselho de Segurança, ele afirmou: “Não tenho prova nenhuma de
que eles ainda possuam armas”. Porém, esse trecho do relatório não teve a mesma divulgação.
A ironia, claro, é que, como foi revelado mais tarde, não havia problemas relacionados ao
desarmamento no Iraque.
Quando, nas semanas que antecederam a guerra, pedi a Blix que me acompanhasse na
tentativa de pedir mais tempo ao Conselho de Segurança, ele negou. Disse que isso poderia dar
a entender que ele seria capaz de atingir determinados resultados com prazo marcado, e ele não
tinha certeza de que a UNMOVIC poderia cumprir tal tarefa. “Mas”, disse ele, “se eles me
perguntarem se precisamos de mais tempo, direi que sim.”

Em 16 de março, quatro dias antes do início da guerra, o presidente Bush e o primeiro-ministro


Blair encontraram-se com o premiê espanhol, José María Aznar, no arquipélago dos Açores.
Foram recebidos pelo primeiro-ministro de Portugal, José Manuel Barroso. Das informações
que consegui obter sobre esse encontro, a proposta britânica de “avaliação de desempenho”
recebeu não mais que uma atenção secundária. As conversas centraram-se em um assunto
diferente: se a assim chamada “hora da verdade” havia ou não chegado. Blair e Aznar
deixaram claro que ainda estavam dispostos a dar uma chance à diplomacia. Bush não tinha
disposição para esperar: os procedimentos que determinariam o destino do Iraque, insistiu ele,
seriam decididos naquele mesmo dia.
De fato, naquela manhã, Dick Cheney deu, nos Estados Unidos, uma entrevista ao programa
Meet the Press. O apresentador, Tim Russert, perguntou sua opinião sobre a conclusão da
AIEA, segundo a qual o Iraque não havia reconstituído seu programa de armas nucleares.
“Acreditamos que, de fato, Saddam Hussein retomou seu programa de armas nucleares”, disse
Cheney. “Honestamente, penso que o Sr. ElBaradei está equivocado.”
Na época do alerta feito por Cheney, dado antes do início das inspeções, julguei que ele
estava disposto a desacreditar os resultados. Agora, na iminência da guerra, era justamente isso
que ele estava tentando fazer. “Se você olhar para o histórico do desempenho da Agência
Internacional de Energia Atômica e para esse tipo de questão, particularmente no que diz
respeito ao Iraque”, Cheney disse a Russert, “verá que eles sistematicamente subestimaram ou
deixaram de perceber a movimentação de Saddam Hussein. Não tenho razão alguma para crer
que suas conclusões têm maior validade hoje do que já tiveram no passado.”
É claro que não posso imaginar – tampouco conseguia fazê-lo na época – o que Cheney
sabia ou acreditava em relação aos programas iraquianos de armas de destruição em massa. No
entanto, ele sabia exatamente o porquê de uma validade muito maior ser atribuída às
conclusões da AIEA em 2003 a respeito do Iraque do que aquilo que foi concluído em 1991.
Ele sabia, tão bem quanto qualquer pessoa, que na década de 1990 éramos autorizados a
verificar apenas aquilo que o governo de Hussein nos reportava. Não nos era permitido viajar a
outros lugares do país, procurar instalações nucleares clandestinas, tampouco investigar a
fundo as transações de substâncias nucleares ilícitas.
Ele também tinha uma forte percepção de que os tempos haviam mudado. A AIEA passara
anos no Iraque, inspecionando “a qualquer momento, em qualquer lugar”. Percorremos várias
vezes o país todo. Entrevistamos todos os cientistas nucleares à disposição. Destruímos
equipamentos, confiscamos registros, fizemos o material nuclear restante passar pela
certificação da AIEA e explodimos as instalações de produção nuclear em Al Atheer.
Comparar 2003 a 1991 era uma distorção. Aparentemente, a sorte havia sido lançada.
O telefonema aconteceu no início da madrugada, cerca de 1 da manhã, horário de Viena, numa
segunda-feira, 17 de março. Quem ligava era Ken Brill, embaixador dos EUA na AIEA, para
dizer que o governo nos aconselhava a deixar Bagdá. A julgar pela maneira como Brill nos
dava o recado, a intenção de Washington era avisar com antecedência, de modo que
pudéssemos preparar nossa equipe no Iraque.
Liguei imediatamente para Hans Blix – que recebera um telefonema semelhante – e para
Kofi Annan, que claramente queria evitar uma guerra por meio de uma solução diplomática.
Annan realizara um grande esforço para manter a legitimidade da ONU e para impedir que o
Conselho de Segurança fosse manipulado em nome do interesse de alguns poucos países. Em
um discurso proferido um mês antes, no William and Mary College, ele declarou: “Esta é uma
questão a ser tratada não por um único Estado, mas pela comunidade internacional de modo
geral”. E acrescentou: “Quando os Estados decidem usar a força não em autodefesa, mas para
lidar com ameaças mais abrangentes à paz e à segurança internacionais, não existe um
substituto para a legitimidade excepcional garantida pelo Conselho de Segurança”.
Kofi Annan vinha sendo duramente criticado por uma atitude que tomara em 1998, depois
de uma pressão bem-sucedida exercida sobre Saddam Hussein, para que permitisse a entrada
em oito locais – palácios presidenciais – que estavam fora dos limites de acesso. À época, ele
disse: “Posso confiar em Saddam Hussein? Penso que é possível fazer negócios com ele...
Acho que não estou tão pessimista como alguns de vocês”. A reação de algumas pessoas foi
ridicularizar o secretário-geral, chamando-o de ingênuo.
Nesse momento decisivo, me peguei desejando que Annan, um homem de fala mansa,
tivesse elevado o tom de voz em relação ao Iraque, particularmente diante das acusações feitas
por Bush em novembro, de que a ONU não tinha força moral e que se tornaria uma
organização irrelevante. Eu ficara bastante impressionado com o empenho determinado de
Annan em envolver a sociedade civil e explicar o papel da ONU, pressionando por ações
globais para tratar de assuntos como a pobreza e a disseminação do HIV. Embora ele não
exercesse nenhuma autoridade no processo de inspeção, teria refletido sobre o ponto de vista
da esmagadora maioria da opinião pública, em nível global, caso fosse mais ativo na defesa dos
princípios de ordem mundial expressos no Estatuto da ONU. Porém, na época, seu foco estava
centrado na resolução do caso da divisão do Chipre.
Nos momentos aflitivos daquela madrugada de 17 de março, quando conversamos por
telefone, Annan revelou sua intenção de adiar a tomada de decisão sobre a retirada dos
funcionários do Iraque até a manhã seguinte, horário de Nova York, para poder discutir o
assunto com o presidente do Conselho de Segurança e conversar com Powell. Também liguei
para o presidente do Conselho de Segurança para informá-lo sobre a mensagem que havíamos
recebido. Do mesmo modo, ele decidiu discutir a questão com seus colegas pela manhã. Blix
queria retirar-se imediatamente de Bagdá em virtude das preocupações relacionadas à
segurança dos funcionários da ONU. A meu ver, devíamos esperar – não deveríamos partir
simplesmente por causa da ordem dada pelos EUA.
Desliguei o telefone. Demoraria para pegar no sono. Estava quase amanhecendo quando
falei com minha esposa, Aida, minha conselheira predileta. Juntos, especulamos sobre os
desdobramentos disso tudo. Quanto tempo duraria a guerra? Qual seria o número de mortos e
feridos? Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Meus sentimentos oscilavam entre a raiva,
uma sensação de impotência e um grande pesar pela perda de vidas que estava por vir. Qual era
a justificativa para aquilo tudo?
É verdade que, ao longo das inspeções, acreditei que os iraquianos pudessem ter agido com
maior rapidez e mostrado maior transparência. Nunca tive plena certeza do porquê de isso não
ter acontecido. Em parte, creio que eles desejavam preservar sua dignidade: o respeito é a
moeda mais valiosa nas negociações realizadas no Oriente Médio e teria sido inaceitável, para
os iraquianos, parecer que foram intimidados ou humilhados pelas inspeções. Talvez tenha
havido uma contínua suspeita de que as inspeções da ONU eram um instrumento para a coleta
de informações secretas, para a preparação de uma guerra. Ou talvez eles simplesmente
acreditassem que, uma vez que não havia armas de destruição em massa a serem descobertas, a
verdade, no fim das contas, prevaleceria.
Os iraquianos também compreenderam que os Estados Unidos não tinham a intenção de
permitir que Saddam Hussein escapasse às suas responsabilidades. Nesse contexto, é possível
que a transparência e o pleno apoio às inspeções não parecessem o caminho para uma solução.
E é claro que muitos acreditavam que a guerra era inevitável, que não havia luz no fim do
túnel.

Hans Blix, Kofi Annan e eu voltamos a nos reunir numa teleconferência naquela mesma manhã
de segunda-feira. Sentíamo-nos paralisados, por concordar com a adoção de medidas em que
nenhum de nós acreditava. Annan decidiu recomendar ao Conselho de Segurança, por razões
de segurança, a suspensão de todas as operações da ONU no Iraque. A resposta do Conselho
foi que “tomariam nota da decisão”. Alguns membros, como foi o caso dos russos e dos sírios,
não ficaram satisfeitos; mas é claro que o Conselho, de modo geral, compreendia o
contrassenso de – ao mostrar-se contrário às ações da coalizão – colocar em risco a segurança
dos funcionários da ONU. Tendo em vista que a AIEA dependia da UNMOVIC em questões
logísticas, não tivemos outra escolha a não ser a adesão a essas ações. Emiti um comunicado
determinando que nossos inspetores voltassem para casa.
Por coincidência, naquele mesmo dia começou o encontro do Conselho de Governadores da
AIEA, um dos cinco encontros regulares que ocorrem ao longo do ano. Neste houve várias
expressões de reconhecimento ao nosso trabalho. Diversos países, como África do Sul, Japão,
França, Alemanha e Brasil, enalteceram a agência por seu profissionalismo e integridade na
condução das inspeções no Iraque.
As palavras do embaixador sul-africano na AIEA, Abdul Minty, indicavam um mau
presságio em particular. Além de o mundo estar diante da lamentável perspectiva de uma
guerra com amplas consequências, disse ele, a desconsideração pelo papel das Nações Unidas
teria um impacto profundo sobre as futuras relações internacionais.
As declarações do embaixador dos EUA, por sua vez, causavam um enorme contraste; ele
sequer mencionou o Iraque. Os britânicos tampouco comentaram o assunto. A maioria dos
diplomatas presentes estava completamente ocupada com os preparativos para a guerra
iminente.
Eu não tinha ânimo para conversar. Quando chegou minha vez de me dirigir ao Conselho,
terminei minha fala com uma citação: “Com relação a todas as nossas atividades”, disse “me
lembro das palavras de Adlai Stevenson, em 1952: ‘O mal não está no átomo, mas na alma dos
homens’ ”.
O papel da AIEA na narrativa sobre o Iraque não terminou com o início da guerra, em março
de 2003. Nossa incumbência de realizar as inspeções, conferida pelo Conselho de Segurança,
continuava em vigor. Estávamos preocupados com a integridade das substâncias nucleares
armazenadas sob a aprovação internacional. Também ouvimos boatos, transmitidos por nossos
contatos no Iraque, de preocupações relacionadas à segurança sobre a pilhagem descontrolada
em locais anteriormente submetidos a um rígido controle.
Circularam boatos, vindos do Centro de Pesquisa Nuclear de Tuwaitha, por exemplo, de que
tambores de metal contendo material radioativo estavam sendo esvaziados e usados pela
população civil para armazenar e transportar água potável, leite e outros bens de consumo, e
também para lavar roupas. As implicações dessa prática, no que se referia à segurança, eram
terríveis. Fomos também informados de que moscas-varejeiras não irradiadas, que poderiam
causar problemas nocivos à saúde humana e ao gado, foram soltas em laboratórios . Era difícil
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saber em que acreditar. Tuwaitha era uma instalação enorme, com centenas de estruturas;
várias toneladas de óxido de urânio yellowcake eram armazenadas ali, uma quantidade muito
menor de urânio de baixo enriquecimento, vários isótopos radioativos e outros materiais
perigosos. A perspectiva de que Tuwaitha e outras instalações nucleares fossem abandonadas
sem segurança, à disposição de civis sem treinamento específico – ou mesmo de militantes que
poderiam fazer uso do material radioativo para a fabricação de uma bomba suja , ou vendê-lo
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no mercado negro internacional – era terrível.


Em entrevistas à imprensa, comecei a pressionar para que os inspetores da agência
pudessem retornar ao Iraque. Enviei um comunicado à imprensa em 11 de abril, com a
observação de que eu escrevera aos norte-americanos ressaltando a importância da segurança e
da proteção física de Tuwaitha, dizendo que recebera deles uma garantia verbal.
Também deixei claro para qualquer um disposto a ouvir que a situação exigia o
conhecimento técnico da AIEA. Segundo a Associated Press, um grupo de fuzileiros navais
norte-americanos, ao entrar na instalação de Tuwaitha, acreditou ter encontrado provas do
programa nuclear clandestino de Saddam Hussein em “uma rede clandestina de laboratórios,
armazéns e escritórios à prova de bombas”. A verdade é que os fuzileiros não encontraram
nada de novo. Eles haviam rompido os lacres da AIEA. Aquele material estava controlado; eles
simplesmente não sabiam o que tinham diante dos olhos .
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Conforme eu disse a Wolf Blitzer, da CNN, em 27 de abril, a AIEA era o único órgão com
autoridade legal e com a devida experiência de campo para realizar tais buscas. “Estamos no
Iraque há mais de dez anos. Conhecemos as pessoas. Conhecemos a infraestrutura.
Conhecemos a documentação. Sabemos para onde ir. Por que deveríamos reinventar a roda?”
Na condição de funcionários públicos internacionais, nossa credibilidade também era maior.
O embaixador dos EUA na AIEA, Ken Brill, telefonou para David Waller, meu vice-diretor
de administração e o norte-americano de mais alto cargo dentro da agência, para dizer que
desagradara a Washington o fato de eu estar “extrapolando os limites técnicos em minhas
falas”. Em meu encontro seguinte com Brill, expressei meu desalento em relação às críticas
feitas à agência. Ele disse que eu não deveria dar conselhos aos EUA ou à coalizão sobre as
políticas de ação e sobre o que deveria ser feito. Respondi: “Enquanto eu acreditar que esse
aspecto das políticas faz parte de minhas responsabilidades, e enquanto eu estiver ocupando
este cargo, continuarei expressando minhas opiniões”.
No final de abril, me encontrei em um café da manhã com John Wolf, secretário-assistente
de Estado dos EUA para a Não Proliferação. Ken Brill também estava presente. Eles me
disseram que o Departamento de Estado não era mais o único a ter informações privilegiadas
sobre o Iraque; o Departamento da Defesa tinha agora o controle sobre elas. No entanto,
insistiram em que eu não pressionasse para que os inspetores da AIEA retornassem ao país. Se
eu fizesse isso, disseram eles, “você terá uma resposta que não irá lhe agradar”.
“Vocês têm uma agenda política”, eu lhes respondi, “mas, na condição de diretor da AIEA,
minha agenda é diferente: é fornecer fatos à comunidade internacional e fazer uma avaliação
técnica, sem nenhuma manipulação política.” Prometi a eles que a agência, caso recebesse a
permissão para retornar, seria transparente e objetiva como de costume.
Logo depois disso, enviei uma carta aos Estados Unidos, dizendo que nós precisávamos
voltar ao Iraque para continuar com as inspeções. Não tive resposta. Quando me encontrei com
Jack Straw em 12 de maio, novamente insisti nesse ponto. A essa altura, reportagens
começavam a chamar a atenção para os riscos – humanitários, entre outros – das substâncias
nucleares não protegidas . Disse a Straw que, considerando os riscos relacionados à segurança,
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a inércia da parte da coalizão basicamente transmitia a mensagem de que as vidas dos


iraquianos eram descartáveis.
Straw pareceu compreender e concordou com minha solicitação de que deveríamos retornar,
especialmente a Tuwaitha. Porém, segundo ele, Washington estava dividida quanto a essa
questão. Straw telefonaria a Colin Powell naquele mesmo dia para insistir nesse ponto.
Também deu ordens a um de seus assistentes para pedir a Blair que trouxesse o assunto à pauta
quando falasse com Bush, momentos depois. Além disso, estava sendo elaborado um projeto
de resolução do Conselho de Segurança cujo objetivo era, entre outras coisas, revogar algumas
das sanções impostas ao Iraque, interrompendo o programa de troca de petróleo por
mantimentos e dando à coalizão um estatuto jurídico de força de manutenção da paz. Contudo,
fui informado posteriormente de que, tendo em vista que os britânicos não conseguiam obter o
aval dos EUA, a resolução não incluiu o retorno dos inspetores da AIEA .
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Depois de muita polêmica, a coalizão fez uma concessão, concordando em fornecer apoio
logístico aos inspetores para que realizassem uma “inspeção material de inventários” em
Tuwaitha. A inspeção ocorreu em meados de junho, com alcance limitado. Não podíamos
investigar os potenciais efeitos provocados à saúde dos civis em decorrência da pilhagem.
Tampouco pudemos retomar nossas tarefas regulares de inspeção no Iraque, ou mesmo
concluí-las. Porém, àquela altura, os EUA e seus aliados haviam criado um órgão à parte, com
a finalidade de buscar as armas de destruição em massa “desaparecidas” do Iraque: o Grupo de
Inspeção no Iraque.

A conclusão mais abrangente da AIEA sobre o Iraque no período anterior à guerra – de que
não havia provas sobre o regime de Saddam Hussein ter reconstituído seu programa de armas
nucleares – estava sendo duramente criticada. O fato de a UNMOVIC não ter conseguido
revelar armas biológicas e químicas também levantou suspeitas. A coalizão estava determinada
a provar, nem que fosse após a ocorrência dos fatos, que as reservas de armas de destruição em
massa iraquianas e a infraestrutura a elas associada – a razão de ser da guerra – de fato
existiam. Essa missão coube ao Grupo de Inspeção no Iraque, composto de mais de mil
especialistas dos EUA, do Reino Unido e da Austrália, acompanhados de suas equipes de
apoio. Eles deveriam reportar-se diretamente ao secretário da Defesa dos EUA, Donald
Rumsfeld.
David Kay reapareceu em cena com a função de liderar o Grupo de Inspeção no Iraque. Kay
deixara a AIEA ao término de sua missão no Iraque no início da década de 1990,
presumivelmente devido ao fato de não lhe terem oferecido um posto mais alto. Assumira um
cargo no Instituto do Urânio , um grupo de defesa da indústria nuclear. Mas deixou o órgão
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quando declarações suas, criticando a AIEA, supostamente desagradaram a indivíduos


próximos à organização, algo que teria consequentemente enfraquecido os esforços do Instituto
do Urânio em promover a energia nuclear. Nos meses que antecederam a guerra, Kay foi
entrevistado como especialista sobre os programas de destruição em massa do Iraque, e
declarou: “O Iraque está claramente violando as determinações internacionais de livrar-se
dessas armas”.
Mas é claro que o Grupo de Inspeção no Iraque não encontrou nenhuma prova que pudesse
embasar tal alegação. Kay demitiu-se em janeiro de 2004 e foi honesto o bastante para
confessar ao Comitê das Forças Armadas do Senado dos EUA: “Todos nós estávamos
errados”. Ele foi sucedido por Charles Duelfer, ex-vice-diretor-executivo da UNSCOM, e a
busca prosseguiu de modo obstinado. Finalmente, no início de 2005, após dois anos e meio de
inspeções no Iraque, a um custo de US$ 3 bilhões, o grupo foi dissolvido. Não foi encontrado
nada que pudesse contradizer as conclusões da AIEA e da UNMOVIC. Para se ter uma ideia,
US$ 3 bilhões equivalem, aproximadamente, ao orçamento de verificações para inspeções no
mundo inteiro num período de 25 anos.

Com o passar dos meses, as tragédias e as ironias da guerra continuavam a crescer. Em 14 de


agosto de 2003, a Missão da ONU de Assistência para o Iraque, cuja função era coordenar a
assistência humanitária e outros assuntos, instalou-se no Canal Hotel em Bagdá, onde a AIEA
e a UNSCOM já haviam fixado suas sedes. Cinco dias depois, um ataque suicida com um
enorme caminhão-bomba atingiu o hotel. Mais de 20 pessoas morreram, incluindo Sergio
Vieira de Mello, o alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, que havia sido nomeado
representante especial no Iraque. Vieira de Mello era um verdadeiro astro: carismático e
brilhante, além de pragmático e com uma ação voltada à obtenção de resultados. Muitos o viam
como um possível sucessor de Kofi Annan.
Naturalmente, o ataque foi um choque. Perdemos colegas valiosos. Conheci muitas pessoas
que perderam a vida, além de Vieira de Mello. Porém, igualmente significativo foi o fato de o
incidente ter simbolizado um momento decisivo para a imagem da ONU. Durante décadas, o
icônico capacete azul da organização representou um sinal de imparcialidade – e, por tabela, de
imunidade. Agora estávamos sendo tratados como os auxiliares de uma força de ocupação que
agia em benefício das grandes potências.
Um mês depois, outro carro-bomba foi detonado do lado de fora do Canal Hotel, matando
um policial iraquiano e ferindo mais funcionários da ONU. Os cerca de 600 funcionários da
organização em Bagdá foram retirados do país; outras organizações de assistência também
retiraram seus funcionários. Na reunião seguinte com os chefes das agências da ONU em Nova
York, enfatizei a urgência de que a ONU e as suas agências voltassem a ser concebidas como
entidades politicamente independentes.
No fim de outubro de 2004, às vésperas da eleição presidencial nos EUA, surgiu uma nova
polêmica. O ministro iraquiano da Ciência e Tecnologia escreveu à AIEA em 10 de outubro,
dizendo que uma quantidade imensa de explosivos HMX e RDX – suficientes para a
fabricação de 700 mil carros-bomba – havia sido saqueada de uma instalação de munições em
Al-Qa’qaa, que estivera sob monitoramento da AIEA . Antes de avisar ao Conselho de
49

Segurança, resolvi primeiro informar aos Estados Unidos. A notícia então vazou de Bagdá para
a mídia, resultando em grandes reportagens no New York Times e no programa 60 Minutes . 50

Enviei, então, uma carta ao Conselho de Segurança, conforme exigido por meu mandato da
AIEA, fornecendo as informações que a agência tinha em relação à questão.
Seguiu-se um tumulto político: fui acusado de tentar manipular a eleição presidencial dos
EUA, como se, de algum modo, eu tivesse influenciado o timing das revelações. William
Safire deu sua contribuição, comparando-me a Osama bin Laden, acusando-me de dar meu
voto a John Kerry pelo fato de ter retransmitido o relatório sobre Al-Qa’qaa ao Conselho de
Segurança . Foi um golpe baixo. Safire foi impiedoso: “Bin Laden foi o segundo forasteiro a
51

tentar influenciar as nossas eleições, numa ‘surpresa de outubro’. Suspeito que o primeiro
tenha sido Mohamed ElBaradei, o inspetor-chefe de armas nucleares da ONU”.
Colin Powell me telefonou em Nova York, onde eu estava para assistir à Assembleia Geral
da ONU. Não fez nenhuma acusação sobre o vazamento de informações, mas disse, em tom
amistoso, que eu deveria ter cautela durante a época eleitoral, caso alguém da mídia me
perguntasse sobre a questão.
Expliquei a Powell a maneira como os acontecimentos tinham sido divulgados. Observei
que, depois de ter recebido a carta do Iraque, informei primeiramente aos EUA, por meio da
missão norte-americana em Viena. Minha expectativa era que ainda poderia restar alguma
chance de as tropas de coalizão encontrarem parte dos explosivos, antes que a notícia viesse a
público. Naturalmente, eu estava ciente da complexidade do timing.
Porém, assim que a notícia vazou do Iraque e alcançou a mídia, não tive muita oportunidade
de escolha quanto ao modo de proceder. O embaixador britânico na ONU, Sir Emyr Jones-
Parry, telefonou para nosso escritório em Nova York para saber mais sobre o fato.
Juridicamente falando, os explosivos de Al-Qa’qaa estavam sob nossa custódia. Era
absolutamente necessário que reportássemos seu desaparecimento ao Conselho de Segurança.
Eu disse a Powell que, a meu ver, a questão fundamental era por que os iraquianos teriam
escolhido aquele exato momento para reportar o desaparecimento dos explosivos. O problema
central, obviamente, era a falta de controle generalizada sobre o Iraque naquele momento; essa
era apenas uma das várias instalações essenciais que a coalizão deixara desprotegida. Lembrei-
me da doutrina de Powell, de longa data: se você decide ir à guerra, deve garantir um número
adequado de soldados.
O chargé d’affaires do Iraque em Viena me disse, posteriormente, que a decisão de reportar
ou não à AIEA o desaparecimento dos explosivos foi longamente discutida em Bagdá. O
consultor político da embaixada norte-americana em Bagdá aconselhou os iraquianos a não nos
informar, pois, a seu ver, o mandato que o Conselho de Segurança nos havia conferido tinha
sido suspenso. Porém, após ter discutido a questão com seu ministro de Ciência e Tecnologia,
Dr. Rashad Omar, decidiu que deveria reportar o fato. O porquê de eles terem redigido a carta
algumas semanas antes da eleição e se estavam ou não cientes de suas implicações ainda são
um mistério.
David Sanger, do New York Times, me informou que Karl Rove, o principal conselheiro de
Bush, acreditava firmemente que eu havia arquitetado o vazamento da história dos explosivos
de Al-Qa’qaa para a mídia. Rove também teria ficado enfurecido com minha franqueza numa
palestra na Universidade de Stanford, em 4 de novembro, poucos dias depois das eleições nos
EUA. A intenção de meu discurso era extrair lições do colapso iraquiano e enfatizar a
importância de trabalhar por meio de instituições multinacionais e de ações coletivas. Eu disse
acreditar que as inspeções vinham sendo eficazes e questionei se uma ação militar preventiva
justificava-se de acordo com os princípios descritos no Estatuto da ONU. Também lembrei que
todas as partes perdem quando a comunidade internacional está dividida em questões decisivas
sobre paz e segurança:

A coalizão, no entender de determinadas pessoas, perdeu em credibilidade ao decidir pelo uso da força sem ter o endosso
do Conselho de Segurança. A ONU perdeu em credibilidade, como organismo que conduz as ações contra o Iraque em
nome da legitimidade internacional, e como consequência passou a ser considerada em alguns meios – especialmente por
muitos no Iraque – como um mero auxiliar da Força de Coalizão, e não mais como uma instituição independente e
imparcial. E talvez tenha sido o povo iraquiano quem sofreu a maior perda: após anos de sofrimento sob uma ditadura
brutal e uma série de dificuldades em um extenso período de sanções, lhe foi causado um sofrimento ainda maior com a
devastação da guerra e o imprevisto e prolongado período de revoltas e distúrbios civis.

Considerando o que fora constatado por inúmeros analistas políticos desde então, não havia
nada de chocante nessas observações. O problema era que, à época, praticamente ninguém, em
nenhum meio diplomático de destaque, estava disposto a questionar publicamente as ações do
governo dos EUA. A manchete do San Francisco Chronicle no dia seguinte só agravou a
situação: “Inspetor de armas nucleares faz duras críticas à administração Bush”.

A experiência mais chocante da Guerra do Iraque e seu prolongado período subsequente – um


aspecto alarmantemente minimizado pelas reportagens da mídia ocidental – é a perda de vidas
de civis iraquianos. Estimativas chegam a contabilizar 800 mil mortos durante os três primeiros
anos da guerra – número que não leva em conta os milhões de mutilados ou feridos, ou os
milhões de desabrigados e privados de seus meios de subsistência. Os EUA e o Ocidente
mantiveram, em geral, um registro preciso do número de seus soldados mortos. No entanto, a
população civil iraquiana permanece privada de rostos ou de identidade nas reportagens da
mídia. O mesmo tem acontecido, numa escala razoavelmente menor, no Afeganistão.
Como é que os líderes ocidentais podem deixar de compreender o ultraje – o sentimento de
injustiça, humilhação e amargura – causado por essa tragédia, ou as sequelas culturais com as
quais provavelmente conviveremos durante, pelo menos, uma geração?
Em janeiro de 2005, encontrei-me com Muwafaq al-Rubaie, conselheiro de Segurança
Nacional iraquiano, no Fórum Econômico Mundial em Davos. Ele vinha trabalhando em
estreita cooperação com o governo dos EUA, mas afirmou que a maneira como os norte-
americanos estavam conduzindo a ocupação no Iraque era “criminosa”. Al-Rubaie disse que,
quando as tropas dos EUA entraram em Fallujah e mataram centenas de civis, ele protestou ao
general George Casey, o mais alto comandante norte-americano no Iraque naquele momento,
que aquele não era um modo humano de conduzir a guerra. A resposta de Casey, do modo
como Al-Rubaie a transmitiu, carecia – para usar uma expressão amena – de qualquer piedade:
“Sou um fuzileiro naval, e é assim que faço as coisas”.
As ações realizadas pelos EUA e pela coalizão no Iraque e, de maneira geral, na assim
chamada “guerra ao terror” foram consideradas precursoras de um choque de civilizações e
excelentes instrumentos para os extremistas usarem como recrutamento. Os exemplos mais
extremos incluíam as “rendições” da CIA , o presídio da Baía de Guantánamo e os abusos
52

praticados no presídio Abu Ghraib. Essas imagens – um cardápio quase diário de violências
impostas a civis, filmadas no Iraque e no Afeganistão e transmitidas pela televisão árabe –
permitiam entrever um desprezo fundamental pelos direitos humanos, uma flagrante
discriminação e o desrespeito pelas normas internacionais sobre procedimentos em tempos de
guerra (tais como a proteção de civis e o uso indiscriminado da força).
De maneira trágica, essas ações também macularam a percepção de democracia no mundo
árabe e muçulmano. Longe de promover os valores americanos de liberdade e respeito pela
dignidade humana – valores que aprendi a estimar e nos quais acreditei firmemente enquanto
fui estudante em Nova York –, os EUA e seus aliados fomentaram um ethos de violência e de
divisão cultural que nos remete a eras passadas da história humana.
Na condição de diretor da AIEA, passei a me preocupar seriamente com a reputação das
instituições internacionais, incluindo a nossa agência.Tinha receio que nos considerassem
agentes dos EUA e de seus aliados ocidentais. Para mim, talvez o aspecto mais difícil de
aceitar em relação às inspeções do Iraque é elas terem sido, em essência, um exercício
burlesco; ou seja, os Estados Unidos e seus aliados mais próximos jamais pretenderam levar o
resultado das inspeções a sério, exceto na medida em que elas reforçavam seus argumentos a
favor da mudança de regime mediante o emprego da força militar.
Desde o início da década de 1990, eu estava ciente de que o regime de não proliferação
nuclear havia entrado numa nova fase, caracterizada pela atividade clandestina e pela
disposição de alguns países de praticar fraudes em grande escala, a fim de atingir objetivos
políticos e relacionados à segurança, em um cenário que às vezes se mostrava favorável a tais
fraudes. A lição que aprendi com a Guerra do Iraque foi que essas fraudes deliberadas não se
limitavam a países pequenos governados por impiedosos ditadores. Mais do que nunca, os
princípios essenciais da agência, de preservar a independência e a objetividade – ou, como os
inspetores gostavam de dizer, “Verificar, verificar, verificar” –, tornara-se um código ético que
bem definia a integridade de nossa organização.
Em última instância, a história da Guerra do Iraque talvez possa ser resumida por uma série
de questões diretas e reveladoras. Se a comunidade das nações deseja viver de acordo com as
normas da lei, então quais medidas devem ser tomadas quando as violações da lei internacional
resultam em um número imenso de mortes? Quem deve ser responsabilizado quando a ação
militar preventiva for adotada em contravenção à lei, tal como foi codificada no Estatuto da
ONU – ou, ainda pior, quando é constatado que a ação militar baseou-se em informações
falsas, no tratamento deliberadamente seletivo das informações, ou na disseminação de
informações equivocadas?
O Estatuto da ONU proíbe o uso unilateral da força militar imposto por um Estado a outro,
exceto em casos de autodefesa contra um ataque armado. Quando se trata de uma ameaça
iminente, é utilizado o argumento de que a “autodefesa preventiva” também se justifica,
particularmente em assuntos nucleares. A mudança de regime, entretanto, não constitui uma
motivação legítima para a guerra. Tampouco é legítimo inventar argumentos para uma guerra
quando a mudança de regime é a motivação maior. E, no momento em que uma guerra é
declarada, o texto da 4a Convenção de Genebra é muito claro em relação à necessidade de
proteger civis, da mesma forma que o Direito Humanitário Internacional claramente proíbe o
uso indiscriminado da força .
53

Em um artigo da Newsweek intitulado “O dilema da divergência” e em seu recente livro,


War of Necessity, War of Choice [Guerra da necessidade, guerra de escolhas], Richard Haass
relata que, em julho de 2002, já havia expressado a Condoleezza Rice sua preocupação sobre
atitudes que julgava ser a preparação para a guerra no Iraque. Segundo Haass, antes que ele
pudesse se estender no assunto, ela o interrompeu: “Você pode economizar saliva, Richard. O
presidente já tomou sua decisão sobre o Iraque”. Haass acrescenta: “A maneira como ela disse
aquilo deixou claro que Bush decidira ir à guerra” .
54
O mesmo ficou implícito por meio de outras fontes de informação internas. O embaixador
britânico em Washington, Sir Christopher Meyer, alegou que a decisão de ir à guerra fora
tomada em 2002, em Camp David, em um encontro entre Tony Blair e Bush. Vários outros
relatos insinuam que, após os ataques terroristas de setembro de 2001, a obsessão
neoconservadora era punir um país muçulmano, de preferência árabe – o Iraque era o alvo
predileto. De acordo com essas interpretações, a Guerra do Iraque era uma guerra ideológica,
motivada pelas fantasias de estabelecer esse país como um oásis de democracia que, por sua
vez, transformaria o cenário geopolítico do Oriente Médio.
Tanto Blair quanto Bush deram indicações de que a motivação essencial para ir à guerra era
a mudança do regime, independentemente das justificativas que apresentaram. Assim como
vários de seus parceiros principais, eles exageraram de modo significativo a iminência da
ameaça nuclear de Saddam Hussein, que na verdade não existia . Em setembro de 2003, Dick55

Cheney deu uma entrevista ao programa Meet the Press, da MSNBC, em que, respondendo a
questões contundentes, reconheceu que havia “se expressado com inexatidão” antes da guerra:
“Jamais tivemos provas de que Saddam Hussein possuía qualquer arma nuclear”.
Bush e Blair também fizeram declarações que comprovadamente tinham frágil sustentação
em fatos, tais como a divulgação da importação, pelo Iraque, do urânio do Níger, baseada
numa clara fraude (Bush), ou a declaração da capacidade do Iraque de lançar um ataque com
armas químicas em 45 minutos (Blair). Ambos se mostraram deliberadamente seletivos no uso
dos fatos à sua disposição. E ambos administraram uma guerra na qual, repetidas vezes,
campanhas de bombardeio e ataques blindados envolviam limitadas tentativas de proteger a
população civil contra o uso indiscriminado da força, referindo-se às mortes e aos ferimentos
dos civis com o eufemismo “danos colaterais”.
O que deve ser feito em relação a essa ladainha? A ONU deveria solicitar uma opinião à
Corte Internacional de Justiça quanto à legitimidade da Guerra do Iraque? Se a guerra foi, de
fato, ilegítima – e mais, se for levada em consideração a imensa quantidade de mortes de civis
–, a Corte de Crimes Internacionais não deveria investigar se isso constitui um “crime de
guerra” e determinar quem é responsável por ele? O Iraque deveria pedir reparações junto à
56

Corte Internacional de Justiça, ou a outro fórum, pelos danos causados durante uma guerra
iniciada em violação do direito internacional e baseada em falsidades?
Se seguirmos os preceitos da lei, então a acusação para quem cometeu crimes de guerra não
deve limitar-se àqueles que perderam – os Slobodan Miloševic´s do mundo – ou aos Omar a-
Bashirs, que são originários de regiões pobres e há muito tempo oprimidas. Para que tenham
legitimidade, as normas jurídicas devem ser uniformes em sua aplicação. Caso contrário, na
condição de comunidade internacional, somos culpados por aplicar dois pesos e duas medidas.
Na condição de comunidade das nações, temos sabedoria e coragem para adotar medidas
corretivas necessárias, a fim de garantir que uma tragédia como esta não ocorra nunca mais?
31 “Até certo ponto”, ou “mais ou menos (um tratado)”. (N. dos TT.)

32 O P5 é uma sigla simples, usada em referência aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU – China,
França, Rússia, Reino Unido e EUA. Não é mera coincidência que esses também sejam os cinco países aos quais o TNP faz
referência como detentores de armas nucleares.

33 Na época, Condoleezza era a conselheira de Segurança Nacional. Wolfowitz era o vice-secretário da Defesa. Libby era o chefe
do Estado-Maior do vice-presidente Cheney.

34 O Comando das Nações Unidas (Coreia) do início da década de 1950 era uma estrutura de comando que combinava forças
militares de múltiplos países, a fim de dar assistência à Coreia do Sul, para que repelisse as hostilidades da Coreia do Norte. A
Resolução 84 do Conselho de Segurança recomendava que os países-membros da ONU se colocassem “à disposição de um
comando unificado sob a direção dos Estados Unidos da América”, oferecendo suas tropas e outros tipos de assistência.

35 Um ponto de vista subjacente voltava a surgir: determinadas facções políticas dos EUA têm, em geral, considerado a ONU um
mero instrumento a ser usado quando for conveniente, como um modo de tornar as ações lideradas pelos EUA mais palatáveis
aos demais países, mas a ser descartado ou evitado sempre que seus objetivos não atenderem aos interesses dos EUA. Esses
indivíduos ou grupos tendem a não considerar os EUA como um membro da ONU – não seriam, de fato, um país da comunidade
das nações –, e sim como uma espécie de patrono ou guardião dela, isento das regras que ajuda a estabelecer para os demais. Tal
ponto de vista talvez tenha ficado em evidência durante a administração George W. Bush.

36 Posteriormente, foi veiculada (pela NBC Nightly News e pelo programa 60 Minutes) a informação de que Sabri era uma fonte
de serviços secretos para a CIA. De qualquer modo, quando a guerra começou, Sabri não constava da lista dos 55 iraquianos mais
procurados, e, assim que possível, deixou discretamente o Iraque e fixou residência no Qatar.

37 Posteriormente, Ramadan foi incluído na lista norte-americana dos iraquianos mais procurados. Foi capturado em agosto de
2003 e executado em março de 2007.

38 8 de setembro de 2002. Foi durante esse pronunciamento que Condoleezza, acrescentando um esplêndido toque de
melodrama, cunhou a frase: “Nós não queremos que uma prova irrefutável se transforme em uma nuvem de poeira radioativa”.

39 Haroun al-Rashid, que governou o império árabe a partir de Bagdá, no final do século VIII, é uma figura histórica de
proporções míticas, sendo considerado o maior dos califas abássidas. O reinado de Al-Rashid tornou-se célebre por sua
extraordinária prosperidade cultural, científica e política.

40 “How the White House Embraced Disputed Arms Intelligence”, de David Barstow, William J. Broad e Jeff Gerth, New York
Times, 3/10/2004.

41 O presidente Bush, em suas memórias Decision Points, afirma que Mubarak dissera ao general norte-americano Tommy
Franks que “o Iraque tinha armas biológicas e certamente as usaria no ataque contra suas tropas”. Essa informação, segundo
Bush, influenciou suas ideias sobre o status do Iraque como país detentor de armas de destruição em massa e sobre a necessidade
de uma ação militar. Citado em: “Bush: Mubarak Informed U.S. that Iraq Had Biological Weapons”, de Diaa Bekheet. Voice of
America, 11/11/2010. Disponível em: <www.voanews.com/english/news/Bush-Says-Egypts-Mubarak-Informed-US-that-Iraq-
Had-Biological-Weapons-107247693.html>.

42 Muitos líderes norte-americanos caracterizaram a posição francesa sobre a guerra no Iraque como deslealdade; membros do
Congresso chegaram a pedir que as batatas fritas (French fries) e as torradas (French toast) do cardápio da cafeteria da Casa
fossem renomeadas como “batatas da liberdade” e “torradas da liberdade”.

43 Uma praga carnívora, as moscas-varejeiras foram, em grande medida, eliminadas da América do Norte e de outras regiões por
meio da “técnica de insetos estéreis”, na qual moscas macho saudáveis são irradiadas – o que as torna estéreis – e então liberadas
no meio ambiente para acasalamento. Dado que as fêmeas só conseguem reproduzir uma única vez em seu ciclo de vida, isso
reduziu rapidamente a população dessa espécie. A AIEA ajudou muitos países no desenvolvimento dessa técnica para as
varejeiras e outras pragas. O Iraque possuía um inventário de moscas-varejeiras com essa finalidade.

44 A bomba suja, também conhecida como “bomba de dispersão radiológica”, é um dispositivo de baixa tecnologia que poderia
ser usado por grupos extremistas. Basicamente, ela consiste em explosivos convencionais atados a um material nuclear ou
radioativo. Não resulta em uma explosão nuclear, mas ainda assim ela poderia dispersar seu conteúdo de modo eficaz, por
exemplo, em vários quarteirões de uma cidade, contaminando a área e provocando pânico generalizado, além de provocar graves
consequências econômicas.

45 “Experts Say U.S. ‘Discovery’ of Nuclear Materials in Iraq Was Breach of UN-Monitored Site”, de William J. Kole,
Associated Press, 10/4/2003.

46 Por exemplo, dois artigos de Barton Gellman, publicados no Washington Post, em 25 de abril e 4 de maio, descreviam em
detalhes os esforços desordenados para controlar as instalações nucleares conhecidas no Iraque.

47 A última das sanções impostas ao Iraque só foi revogada em 15/12/2010, liberando o país, por exemplo, de desenvolver um
programa nuclear de natureza civil e devolvendo o controle das receitas de petróleo e gás natural ao governo iraquiano a partir de
30/06/2011. “UN Lifts Nuclear Weapons Sanctions on Iraq”, Associated Press, 15/12/2010.
48 Posteriormente rebatizado de Associação Nuclear Mundial.

49 O HMX e o RDX são poderosos explosivos químicos. Ambos eram controlados pela AIEA, pois, embora tenham muitas
aplicações de finalidade não nuclear, podem ser usados como substância detonadora de uma arma nuclear.

50 “Huge Cache of Explosives Vanished from Site in Iraq”, New York Times, 25/10/2004.

51 Artigo “Osama Casts His Vote”, New York Times, 1/11/2004.

52 A “rendição” à qual se faz referência, às vezes como “rendição extraordinária”, consiste no processo de transferência de
presos de um país para outro sem que haja procedimentos jurídicos. Havia rumores de que as rendições da CIA nesse período
tinham o objetivo de enviar prisioneiros a países onde se praticava a tortura. Tais rendições foram objeto de inúmeras
investigações e relatórios. Exemplo disso é o relatório do Comitê sobre Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos do Conselho
Europeu, de junho de 2007, intitulado “Detenções secretas e transferências ilegais de detentos envolvendo os Estados-membros
do Conselho Europeu: 2o relatório”. Documento disponível em:
<http://news.bbc.co.uk/2/shared/bsp/hi/pdfs/mary_08_06_07.pdf>.

53 As quatro Convenções de Genebra, de 1949, bem como seus protocolos adicionais, compõem a base do Direito Humanitário
Internacional, instituto jurídico que regula a conduta em conflitos armados e procura limitar seus efeitos. Em particular, elas
protegem as pessoas que não estão tomando parte das hostilidades (civis, trabalhadores na área da saúde e na de assistência
humanitária) e aqueles que deixaram de participar das hostilidades, como os soldados feridos, os doentes e os que sofreram
naufrágio e prisioneiros de guerra. O Conselho de Segurança da ONU concluiu, em 1993, que as convenções passaram a integrar
o Direito Internacional Consuetudinário, tornando-as compulsórias para todos os países, incluindo os não signatários.

54 Richard Haass é o atual presidente do Conselho de Relações Exteriores e, na época da invasão iraquiana, era um consultor de
confiança de Powell. Seu artigo foi publicado na Newsweek em 2/5/2009. Seu livro War of Necessity, War of Choice: A Memoir
of Two Iraq Wars foi publicado pela editora Simon and Schuster em 2009.

55 Ao testemunhar no Inquérito Chilcot, Blair afirmou que seu apoio à ação dos EUA foi impelido pelo medo de “consequências
desastrosas provocadas por uma posição inflexível em relação às armas de destruição em massa e sua proliferação, e em prol do
relacionamento entre o Reino Unido e os EUA”. Blair também afirmou ter dito a Bush, no final de 2001, que “se a mudança de
regime revelar-se a única maneira de lidar com a questão, estaremos dispostos a participar”. Em meados de 2002, quando Colin
Powell redigiu um memorando dizendo: “Precisamos apresentar estes argumentos. Precisamos ter uma campanha de informações
do estilo Rolls Royce, semelhante à que tivemos no final da campanha do Afeganistão, antes de começarmos no Iraque”, Blair
acrescentou, à margem do documento: “Concordo plenamente com isso”. Richard Norton Taylor, “Tony Blair’s Promise to
George Bush”, The Guardian, 21/1/2011. Disponível em: <www.guardian.co.uk/politics/2011/jan/21/tony-blair-george-bush-
iraq/>.

56 Se o promotor da Corte de Crimes Internacionais instalasse uma ação criminal contra indivíduos específicos, qualquer país-
membro da convenção poderia, então, efetuar a prisão legal dessas pessoas, no caso de elas desembarcarem em seu território.

Conclusão
A BUSCA PELA SEGURANÇA

O anseio por segurança é uma característica humana universal. Mas, tanto para nações quanto
para indivíduos, a definição de segurança e as estratégias para alcançá-la variam muito, seja
para garantir comida, água, assistência médica e o direito de ter as necessidades atendidas, seja
para garantir outros direitos humanos básicos – como a liberdade de expressão, a liberdade
religiosa e o direito de viver sem medo da guerra. Para as nações, a segurança pode ser
sinônimo de dominação econômica, militar ou ideológica, ou então projeção de força e
influência. Em muitas regiões do mundo, tensões antigas bloqueiam o caminho para a
segurança, e a busca por ela deve começar pela solução das tensões.
Apesar dessa variedade de cenários, seria um erro pensar que as inseguranças globais
estejam desvinculadas. As ligações são evidentes: a pobreza geralmente está vinculada ao
desrespeito pelos direitos humanos e à falta de um bom governo, o que por sua vez gera
injustiça, ódio e humilhação – ambiente ideal para o desenvolvimento de vários tipos de
violência: extremismo, conflitos civis, guerras. E é nas regiões de conflitos antigos –
independentemente da natureza do regime no poder – que os países são mais frequentemente
levados a reforçar suas defesas ou adquirir suposta vantagem estratégica com a aquisição de
armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa. A sobrevivência é essencial
para todos os regimes, sejam eles democráticos ou autoritários.
Na era da globalização, é mais evidente do que nunca que essas inseguranças são ameaças
sem fronteiras. Não podemos nos conformar com a ideia de que uma ameaça à segurança a
meio mundo de distância não irá nos afetar, seja na forma de um ataque cibernético, seja na
forma de um colapso financeiro, uma pandemia ou o roubo de material nuclear. Essas ameaças
não podem ser combatidas de maneira eficaz por nenhum país ou organização; por sua própria
natureza, exigem respostas multidimensionais, cooperação multinacional.
No caso das armas nucleares, se o perigo for mitigado e depois eliminado, deve ser visto em
um contexto mais amplo. A ameaça irá persistir enquanto a comunidade internacional
continuar a tratar apenas dos sintomas de cada ameaça de proliferação nuclear: travando uma
guerra com um primeiro país, fazendo acordo com um segundo, impondo sanções a um
terceiro, buscando a mudança de regime em um quarto. Enquanto as armas nucleares
continuarem a fazer parte da estratégia de segurança de alguns poucos países, com acordos que
estendem essa segurança a um pequeno círculo de países “aliados”, enquanto outros caem no
esquecimento, o risco de proliferação estará presente. Com o surgimento de grupos extremistas
sofisticados, para quem a ameaça de retaliação é irrelevante, a dissuasão nuclear não passa de
estratégia de segurança temporária, senão ilusória. A segurança é indivisível.
Fundamentalmente, isso significa que a comunidade internacional precisa desenvolver um
sistema alternativo de segurança coletiva, que seja visto não como um jogo de resultado zero
para um determinado país ou grupo de países, mas como um imperativo universal enraizado na
noção de segurança humana e de solidariedade totalmente coberta por um mandado de
injunção . Essa mudança no pensamento não é apenas uma obrigação moral ou ética, mas
225

também uma necessidade prática: enquanto a população do planeta continuar a crescer e os


recursos se tornarem cada vez mais limitados, a sobrevivência humana dependerá da eficiência
com que conseguimos administrar nossa interdependência.
Um sistema alternativo de segurança coletiva deve ser, em todos os aspectos, equitativo e
inclusivo. Devemos desenvolver estratégias para compartilhar a riqueza do planeta de maneira
mais igualitária – reconhecendo que a pobreza também é uma arma de destruição em massa.
Precisamos investir em tecnologia e ciência avançadas para atender às necessidades de
desenvolvimento, em vez de criar produtos que apenas geram mais riqueza para os ricos. Os
investimentos atuais em tecnologia visam apenas ao lucro; é preciso colocar mais ênfase nas
descobertas científicas e nas inovações tecnológicas para tratar da fome e das doenças. Só
quando começarmos a aliviar a pobreza seremos capazes de gerar o incentivo, nas regiões
afetadas, a uma dinâmica de governo eficaz. Quando as necessidades humanas básicas são
atendidas, o ambiente se torna propício para que os cidadãos voltem sua atenção à conquista de
direitos políticos, civis e sociais.
Um paradigma de segurança multinacional deve estar assentado em instituições
multinacionais fortes, ágeis. As crises e desafios em questões de não proliferação nuclear que a
AIEA enfrentou nos últimos anos revelaram, no mínimo, as falhas das nossas atuais
instituições multinacionais e os contornos de como consertá-las. O Conselho de Segurança da
ONU, organismo internacional encarregado de manter a paz mundial, precisa redirecionar sua
atenção para a origem dos conflitos em vez de focar apenas os sintomas de insegurança. Isso
significaria uma ênfase muito maior na pacificação e na manutenção da paz; na identificação e
prevenção de disputas; na mediação e na reconciliação ágil e eficaz; e em assumir o controle na
administração dos conflitos. Da mesma forma, o Conselho, dominado como é atualmente por
um ou alguns membros do G5, deveria reduzir a ênfase em medidas coercitivas pós-fatos, que
invariavelmente vitimizam civis vulneráveis, como ocorreu no Iraque antes da segunda Guerra
do Golfo. O Conselho também precisa reconstruir sua credibilidade baseado na consistência e
na imparcialidade, eliminando o padrão de dois pesos e duas medidas associado à geopolítica
ou ao relativismo moral.
Na frente nuclear, em particular, as estruturas multinacionais para evitar, detectar e combater
a proliferação exigem reforço. A AIEA, como guardiã de fato do Tratado de Não Proliferação
de Armas Nucleares, pode ser mais eficaz na verificação dos programas nucleares em todo o
mundo – inclusive detectando atividades clandestinas –, se lhe forem conferidos os fundos, a
tecnologia e a autoridade necessária e, onde for aplicável, a inteligência disponível e outras
informações.
Autoridade legal é o primeiro passo. É preciso um esforço unificado para que os acordos de
salvaguardas – e os Protocolos Adicionais – sejam colocados em prática por todas as partes do
TNP. Isso poderia ser concluído de forma relativamente rápida. A comunidade internacional
também precisa enfrentar as limitações atuais das funções de verificação da AIEA, centradas
no material nuclear. Caso caiba à AIEA detectar e perseguir operações clandestinas de
armamento nuclear, ela deve ter a autoridade legal correspondente.
Para acompanhar o ritmo das mudanças tecnológicas que facilitam a proliferação nuclear e
para manter sua credibilidade como corpo de verificação independente, a AIEA deve ter o
apoio financeiro necessário para poder adquirir e manter tecnologia de ponta própria e para
formar e renovar sua força de trabalho na área de inspeção. Dólar por dólar, a agência provou
que é um investimento extraordinariamente seguro. Mas com o nível atual de financiamento e
o estado de sua infraestrutura tecnológica completamente dilapidado, a AIEA cedo ou tarde
ficará sem condições de cumprir sua missão de verificação nuclear.
Todos os Estados deveriam reiterar o compromisso de compartilhar informações relevantes
com a agência quanto a preocupações sobre potencial proliferação nuclear de forma rápida e
consistente. Essa é uma obrigação legal sob o TNP. As trapaças por parte dos candidatos a
proliferadores não podem ser combatidas eficazmente se os países que dispõem de informações
relevantes ignorarem ou apoiarem as estruturas de não proliferação multinacionais de acordo
com caprichos políticos.
Além disso, quando os países com esse tipo de informação atacam primeiro e compartilham
as informações depois – configurando uma contravenção direta da lei internacional, como no
caso dos bombardeios efetuados por Israel em 2007 contra as instalações de Dair Alzour, na
Síria, e em 1981 contra o reator de pesquisa de Osirak, no Iraque –, a condenação desses atos
deve ser imediata e, mais importante, ser acompanhada de consequências. A regra não tem
sentido se a aplicarmos seletivamente. Duas iniciativas multinacionais já em andamento
deveriam ser reforçadas. A primeira é proporcionar o máximo de segurança ao material nuclear
e radioativo, a fim de mantê-lo longe das mãos de grupos extremistas. A segunda é passar o
controle sobre o ciclo de combustível nuclear de nacional a multinacional. Em dezembro de
2010, a diretoria da AIEA adotou a decisão de autorizar a existência de um banco de
combustível de urânio de baixo enriquecimento, sob o controle da agência, para garantir o
fornecimento de combustível a usuários bona fide – medida pela qual lutei durante anos . Esse 226

é um primeiro passo importantíssimo. O grande objetivo, porém, deve ser a total


internacionalização do ciclo de combustível, paralelamente ao desarmamento nuclear
universal.

Do meu lugar na primeira fila, de onde assisti aos dramas nucleares durante as duas últimas
décadas, pude ver inúmeras vezes como a falta de um senso de justiça e equidade nas
negociações pode sabotar até a resolução mais justa, desejável e sensata. O caminho para uma
cooperação bilateral em que ambas as partes ganhem está cheio de obstáculos a superar – as
vítimas do desrespeito, da desconfiança, da política doméstica autodestrutiva e de legados
históricos dolorosos não desaparecem da noite para o dia.
Ainda assim, por mais improvável que pareça, depois de tantas frustrações e até mesmo
ultrajes em todos esses anos à frente da AIEA, continuo a acreditar que a diplomacia tem a
capacidade de resolver problemas que podem parecer intratáveis. O principal motivo para
otimismo no progresso recente – tanto ideológica quanto concretamente – do desarmamento
nuclear é uma transformação total, movida pela consciência de que, com a disseminação da
tecnologia nuclear, o crescimento do extremismo e o aumento dos casos de proliferação, a
continuidade do statu quo é uma fórmula para a autodestruição. Em um ensaio histórico, quatro
veteranos da Guerra Fria – Henry Kissinger, George Shultz, Sam Nunn e William Perry –
declararam que o mundo estava “à beira de uma nova e perigosa era nuclear” e foram ousados
o bastante para defender, como objetivo realista, “um mundo sem armas nucleares” . A reação 227

foi impressionante. No ano seguinte à publicação do artigo, tive a oportunidade de encontrar-


me com cada um desses cavalheiros. Eles falaram da recepção entusiástica ao seu chamado
para o desarmamento, que era muito mais do que um simples artigo de opinião bem escrito;
cada um deles o via como o início de uma campanha para mudar o panorama global . 228

No aniversário de seu primeiro ensaio, os mesmos quatro homens publicaram um segundo


ensaio, após uma conferência na Instituição Hoover, da Universidade de Stanford. Dessa vez,
fizeram recomendações concretas sobre como alcançar o desarmamento . O fato de esses 229

firmes combatentes da Guerra Fria terem seguido nessa direção é uma indicação inequívoca da
nova urgência que animava o ativismo desarmamentista.
Margaret Beckett, ministra britânica das Relações Exteriores, juntou-se ao coro pelo
desarmamento, indicando a aprovação de seu governo e traçando as medidas a serem tomadas:

Precisamos de visão – um cenário para um mundo sem armas nucleares – e de ação – medidas progressivas para reduzir o
número de ogivas e limitar o papel das armas nucleares nas políticas de segurança. Essas duas vertentes são separadas, mas
se reforçam mutuamente. Ambas são necessárias, mas no momento estão muito frágeis. 230

Inúmeros esforços semelhantes estão em andamento. Uma grande campanha internacional


foi lançada em Paris em dezembro de 2008, com o nome “Global Zero”; a ela aderiram mais de
duas centenas de figuras públicas de todas as esferas: ex-chefes de Estado, oficiais militares,
ganhadores do Prêmio Nobel, ministros e parlamentares, escritores influentes e outros líderes
civis. Usando sua influência e suas redes de contatos, esses indivíduos buscam avançar e
expandir o diálogo diplomático entre os governos mais importantes, defendendo uma redução
gradual dos arsenais nucleares por todos os países que possuem tais armas.
No dia 8 de abril de 2010, o presidente norte-americano Barack Obama e o presidente russo
Dmitri Medvedev assinaram um novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START –
Strategic Arms Reduction Treaty) em Praga. Pelo novo tratado, o limite de ogivas estratégicas
é de 1.550, bem abaixo daquele estabelecido pelo Tratado de Moscou de 2002 – e dessa vez os
números serão irreversíveis e passíveis de verificação. Mesmo antes da ratificação do novo
tratado pelo Senado norte-americano, os Estados Unidos começaram a colocar em prática suas
disposições. As estatísticas publicadas pelo Departamento de Estado no final de 2009
mostravam um total de 1.968 ogivas estratégicas. Segundo a Federação de Cientistas Norte-
Americanos, “a última vez em que os Estados Unidos tiveram menos de 2 mil ogivas
estratégicas de prontidão foi em 1956” .
231

Esse movimento por parte dos Estados Unidos e da Rússia – os dois países com a maior
responsabilidade de demosntrar liderança na questão do desarmamento, uma vez que juntos
respondem por mais de 95% das ogivas nucleares existentes – enviou um sinal bastante
positivo para a comunidade global. Mas ainda não é suficiente. Os dois países precisam
acelerar o ritmo de desmontagem de milhares de armas de reserva, reduzir as armas
distribuídas estrategicamente de acordo com o status de alerta da Guerra Fria e dar mais tempo
aos líderes de cada país para que verifiquem relatos de possível uso de armas nucleares e
respondam a eles. Além disso, o novo START deve ser seguido e reforçado em breve por
outros acordos multilaterais de controle de armas, como o Tratado Abrangente de Proibição de
Testes (CTBT – Comprehensive Test Ban Treaty) e o Tratado de Redução de Materiais Físseis
(FMCT – Fissile Material Cut-off Treaty), que estão sendo planejados há tempos. Mas é
gratificante ver um movimento substancial na direção certa. Ao demonstrar seu compromisso
irreversível com um mundo livre da ameaça nuclear, os países que possuem armas nucleares
podem contribuir enormemente para a legitimidade do regime de não proliferação e ganhar
autoridade moral para detectar, deter e derrotar os que tentarem trapacear o sistema, com o
apoio de toda a comunidade internacional.
Outro motivo de esperança, da forma como vejo a situação, é o potencial para um acordo
negociado no impasse EUA-Irã. Tendo observado o que funcionou e o que não funcionou em
cenários complexos de diplomacia nuclear, acredito que os elementos para uma solução
finalmente estejam no lugar. Os dois lados estão motivados a realizar uma parceria. Isso não
significa que todos os indivíduos sintam-se motivados; existem hordas de detratores plantadas
em ambos os governos – para não falar dos especialistas que rondam as ondas aéreas da mídia
e ocupam vários conselhos editoriais. Mas os indivíduos mais importantes estão ansiosos para
encontrar uma forma de avançar.
A mudança ocorrida em meados de 2009 não tem precedentes. Não é fácil transmitir a um
público cuja porta para acompanhar tais temas costuma ser o Washington Post ou o Financial
Times a natureza dessa mudança de atitude nos bastidores. Mas, nas agitadas semanas finais do
meu mandato, os esforços para identificar soluções criativas, juntamente com as garantias de
boa vontade e respeito transmitidas de um lado a outro entre o Irã e os Estados Unidos,
praticamente não existiram nos oito anos anteriores. Os avanços posteriores realmente foram
pequenos – algumas conversas entre autoridades, troca de correspondência nos bastidores e o
reatamento das seis partes envolvidas na negociação, com os Estados Unidos finalmente
representados à mesa. O progresso é sempre hesitante. Longos períodos de 2010 foram
desperdiçados com bravatas e mais atrasos. Mas, se esses pequenos passos alteram a noção do
que é possível, o conceito de laços renovados entre os dois países já não é mais tão
inimaginável. Qualquer que seja o resultado, essa mudança é uma prova das alterações
possíveis quando existe a vontade política necessária, com justiça e equidade como pontos de
partida.
É claro que o caso do Irã não é o único. A capacidade de produção de armas nucleares da
Coreia do Norte, mesmo que não definida completamente, há muito é grande fonte de
insegurança no leste asiático. As manobras políticas complexas de Pyongyang são
historicamente difíceis de entender. Mas também nessa frente as sementes foram plantadas
para uma resolução pacífica das preocupações com a proliferação nuclear e outras inseguranças
na península coreana. Quaisquer que sejam os obstáculos, as lições do passado nos dizem que
toda solução passa pela ajuda à Coreia do Norte para que ela saia da sua condição de pária e
volte para a comunidade das nações.
A última razão para não perder a fé em que a diplomacia e o diálogo podem prevalecer
como estratégia para lidar com as crises nucleares se baseia em uma questão de lógica: a
alternativa é inaceitável. É claro que o otimismo está muito distante da certeza. A diplomacia
nuclear é um negócio entediante, tortuoso. Mas o caminho à frente é claro. Por fim, somos uma
única família humana unida; gostemos ou não, estamos juntos nessa. A única busca que faz
sentido, a única por que vale a pena lutar, é a segurança coletiva.
225 “Writ”, no original. Termo de origem inglesa que também significa mandado ou ordem e que, no ordenamento jurídico
brasileiro, pode ser interpretado como medida impetrada pela autoridade competente. (N. dos TT.)

226 A aprovação dessa medida passou com 28 votos favoráveis. Seis países se abstiveram – Argentina, Brasil, Equador, África
do Sul, Tunísia e Venezuela – e o Paquistão não compareceu. As abstenções refletem vestígios de desconfiança em relação ao
propósito do banco de combustível, provenientes da proposta inicial de seis países ocidentais que haviam solicitado aos
participantes que abrissem mão dos seus direitos sobre o ciclo de combustível como condição para o suprimento. Esperamos que,
com o tempo, essa desconfiança se dissipe.

227 “A World Free of Nuclear Weapons”, Wall Street Journal, 4/1/2007.

228 Durante os preparativos para as eleições presidenciais primárias de 2008 nos EUA, Bill Perry e Sam Nunn me disseram que,
dos quatro veteranos, os dois democratas estavam trabalhando com os candidatos democratas, e os dois republicanos, com os
candidatos republicanos, para que, independentemente de quem vencesse a eleição, o presidente eleito dos Estados Unidos
estivesse comprometido com um mundo sem armas nucleares.

229 George P. Shultz, William J. Perry, Henry A. Kissinger e Sam Nunn, “Toward a Nuclear-Free World”, Wall Street Journal,
15/1/2008.

230 Ibid.

231 Hans M. Kristensen, “United States Moves Rapidly Towards New START Warhead Limit“, Blog da Federation of American
Scientists Strategic Security, 2 de maio de 2010, retirado de: <www.fas.org/blog/ssp/category/hans_kristensen>.

Agradecimentos
A diplomacia nuclear é uma tarefa complexa e de longo prazo. Ainda assim, o mundo é um
lugar melhor por causa do trabalho intensivo e do compromisso permanente de pessoas de toda
a comunidade internacional: diplomatas, inspetores, cientistas, advogados, técnicos de
laboratório, jornalistas, ativistas e acadêmicos, líderes de todos os setores e de todos os níveis
e, em especial, meus colegas, os homens e mulheres dedicados da Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA). Muitos foram fonte de inspiração e incentivo para a redação deste
livro; muitas de suas ideias, observações e até mesmo piadas animaram e enriqueceram estas
páginas; apesar de ser impossível citar todas as pessoas pelo nome, cada uma delas tem minha
sincera gratidão.
Algumas pessoas merecem menção especial por sua contribuição para este projeto.
Sou especialmente grato a Laban Coblentz, meu principal colaborador no desenvolvimento
conceitual e na redação do texto; sem ele este livro não seria o que é. Redator extraordinário,
pensador inovador e amigo sempre alegre e leal, Laban encontrou maneiras de acender a
chama em locais em que isso seria humanamente impossível. Também preciso destacar seu
bem mais valioso, Angeline, sua esposa, ex-colega da AIEA, sem cuja paciência, apoio e
disciplina este livro não teria sido concluído.
A redação também se beneficiou imensamente da ajuda de vários colegas da AIEA –
Jacques Baute, Vilmos Cserveny, Olli Heinonen, Herman Naeckerts, Tariq Rauf, Laura
Rockwood e David Waller –, que complementaram graciosamente minhas lembranças do que
aconteceu, quando e onde, acertaram e esclareceram as explicações dos meus advogados sobre
tecnologia nuclear e responderam a muitas perguntas para garantir a exatidão dos relatos. Eva
Moosbrugger, minha dedicada assistente de tantos anos e confidente na AIEA, doou inúmeras
noites para transcrever cuidadosamente minhas reflexões desconexas ditadas ao gravador e
transformá-las em texto inteligível, me incitando a gravar meus pensamentos mesmo nos
momentos mais movimentados. Ewelina Hilger, pesquisadora por excelência, fez esforços
igualmente exaustivos para localizar a documentação de apoio, confirmar coordenadas e
cronologias e checar detalhes importantes com vários especialistas da AIEA e da indústria.
Stephanie Zupancic, minha assistente atual, acompanhou-me sem reclamar até o Cairo, a Gers,
na França, e a muitos outros lugares, ajudando-me a manter contato com o mundo, por mais
remota que fosse minha localização ou por mais desafiadora que fosse minha agenda.
A maioria dos temas e conceitos examinados nestas páginas foi primeiro articulada em
discursos e textos durante meu mandato como diretor-geral da AIEA. Além dos já citados,
entre os colaboradores fundamentais para a formulação e a expressão dessas ideias estão
Richard Murphy, Melissa Fleming, Graham Andrew, Geoffrey Shaw e Ian Biggs.
Noah Lukeman, meu agente, procurou-me anos atrás com a ideia de escrever este livro,
entendendo o quanto era importante que essas mensagens atingissem um público mais amplo, e
gentilmente recusou-se a sair da tela do meu radar. Sou especialmente grato a Noah por ter
ajudado o livro a encontrar um lar verdadeiramente solidário na Metropolitan Books. Sara
Bershtel, publisher da Metropolitan, foi uma advogada rigorosa e atenciosa, dando conselhos
cruciais e incentivo, enquanto minha editora, Riva Hocherman, mostrou-se a parceira ideal
para a definição e a nitidez do foco do manuscrito. Riva é, sem dúvida alguma, a melhor
editora que um autor de primeira viagem poderia esperar: sua inteligência para captar o que eu
queria dizer, sua habilidade incomum, sua paixão para colocar as ideias da maneira perfeita e
manter a mensagem ajudaram a transformar a narrativa em uma leitura afiada e atraente.
Nenhum autor poderia desejar uma família mais amorosa e solidária. Minha esposa e filhos,
assim como minha mãe, irmãs e irmãos, estiveram sempre ao meu lado, nos altos e baixos do
período em que fui diretor-geral da AIEA. Meu filho Mostafa, com seu jeito pensativo e
discreto, estava sempre presente para desafiar com gentileza minha habilidade intelectual, e,
quando precisava dele para consertar uma conexão de internet ou para me ajudar com meus
conhecimentos rudimentares de informática, seus talentos de “nerd” estavam sempre à
disposição. Minha filha Laila e meu genro Neil Pizey, infelizmente advogados como eu, leram
inúmeras versões da narrativa, produzindo páginas com perguntas pertinentes, ajudando-me a
destrinchar detalhes técnicos que precisavam ser mais bem explicados aos leitores leigos –
Laila, com seu jeito direto e irreverente, e Neil, com seu jeito inquisitivo e fala mansa.
Nada do que eu colocar em palavras será suficiente para descrever o quanto sou afortunado
por ter Aida, minha esposa, como parceira, amiga e alter ego. Em todas as situações de estresse
físico, mental e emocional desencadeadas pelos episódios descritos neste livro, assim como
pelo trabalho da escrita, ela foi minha aliada constante, minha conselheira franca e meu
santuário. Por fim, quero homenagear meu falecido pai, que, mesmo em sua ausência, continua
a ser uma inspiração para mim, por muitos dos valores que mais prezo.

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