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Assata: Uma Autobiografia - Capítulo 17

Assata: Uma Autobiografia (Assata: Na Autobiography, 1987)


Tradução: foc – Assata Shakur em Português
https://assatashakurpor.wordpress.com

D urante os anos seguintes, lar virou diversos lugares. Eu viajei bastante e conheci
algumas pessoas lindas, tão lindas que restauravam minha fé na humanidade cada vez que eu1 as
encontrava. Como a maioria de nós naquela época, eu era nova nisso, aprendendo sobre lutar na
clandestinidade enquanto a vivia. Eu não tinha muitas ideias fixas sobre o que eu pensava de como
a luta armada dentro da amérika2 deveria ser. Eu li bastante sobre isso em outros lugares, mas eu
não tinha nenhuma ideia concreta sobre como aplicar as lições dessas lutas à luta do povo Preto
nos Estados Unidos.
Estava claro que o Exército pela Libertação do Povo Preto3 não era um grupo centralizado,
organizado com uma lidenraça comum e uma linha de comando. Invés disso, havia diversas
organizações e coletivos atuando de forma independente. Muitos membros de vários grupos foram
forçados a se esconder como resultado da extrema repressão da polícia que ocorreu no final dos
anos 60 e início dos anos 70. Alguns tinham casos bem sérios, outros casos menores e outros,
como eu, eram procurados apenas por “questionar.”
Irmãs e irmãos se juntaram a esses grupos porque eles eram compromissados com a luta
revolucionária em geral e com a luta armada em particular e queriam ajudar a construir o
movimento armado na amérika. Era o sentimento mais estranho. Pessoas que eu costumava
encontrar em atos agora estavam se escondendo, mandando mensagens que queriam se encontrar.
Irmãs e irmãos de todos os grupos militantes ou revolucionários no país estavam ou apodrecendo
na prisão ou forçados a viver clandestinamente. Todo mundo com quem eu falava estava
interessado em levar a luta a um nível maior. Mas a questão era como. Como juntar todas essas
pessoas espalhadas pelo país em um corpo organizado que fosse efetivo em lutar pela libertação
do povo Preto.
Tornou-se evidente, quase do início, que consolidação não era uma boa ideia. Havia muitos
problemas de segurança e diferentes grupos tinham ideologias diferentes, diferentes níveis de
consciência política e diferentes idéias de como a luta armada na amérika deveria acontecer. No
geral, nós éramos fracos, inexperientes, desorganizados e nos faltava seriamente treinamento. Mas
o maior problema era o de desenvolvimento político. Havia irmãs e irmãos que foram tão
vitimizados pela amérika que estavam dispostos a lutar até a morte contra seus opressores. Eles

1
Do original i. O termo eu na língua inglesa é sempre escrito em letra maiúscula I. Assata utiliza o termo em letra
minúscula como forma de demonstrar a importância do coletivo em vez da individualidade.
2
Do original amerika. Na língua inglesa, muitas vezes os Estados Unidos da América é referenciado apenas como
América. Assata utiliza a grafia de algumas palavras com a letra k, fazendo referência à Ku Klux Khan (KKK),
organização supremacista branca dos Estados Unidos.
3
Do original Black Liberation Army.
Assata: Uma Autobiografia - Capítulo 17

eram inteligentes, corajosos e dedicados, dispostos a fazer qualquer sacrifício. Mas nós estávamos
pra descobrir rapidamente que coragem e dedicação não eram suficientes. Para ganhar qualquer
luta por libertação, você precisa ter o caminho assim como a vontade, uma ideologia geral e uma
estratégia que venha de uma análise científica da história e das condições presentes.
Alguns grupos achavam que eles podiam simplesmente pegar em armas e lutar e que, de
alguma forma, as pessoas veriam o que eles estavam fazendo e começariam a lutar também. Eles
queriam se engajar em uma batalha de matar ou morrer com a estrutura de poder da amérika,
mesmo sendo fracos e despreparados para tal luta. Mas o fator mais importante é que luta armada,
por si só, nunca trará a revolução. Guerra revolucionária é uma guerra do povo e nenhuma guerra
do povo pode ser vencida sem o apoio de uma grande massa. Luta armada nunca irá ser bem
sucedida por si só; ela precisa ser parte de uma estratégia maior para triunfar e a estratégia precisa
ser tanto política quanto militar.
Como nós não possuíamos as estações de TV ou jornais, era fácil para a mídia nos mostrar
como monstros e terroristas. A polícia podia aterrorizar a comunidade Preta diariamente, mas se
alguma pessoa Preta se defendesse com sucesso de um ataque policial, ela era chamada de
terrorista. Logo ficou claro para mim que nossa batalha mais importante era ajudar a mobilizar
politicamente, educar e organizar uma massa do povo Preto e ganhar seus corações e mentes. Era
inconcebível que nós conseguiríamos sobreviver, que dirá ganhar qualquer coisa sem o seu apoio.
Todo grupo lutando por liberdade está sucetível a cometer erros, mas a não ser que você estude
as leis mais comuns e fundamentais da luta armada revolucionária, você está sucetível a cometer
erros desnecessários. Guerra revolucionária é uma guerra prolongada. É impossível que vençamos
rápido. Para ganhar, nós precisamos desgastar nossos opressores, pouco a pouco, e, ao mesmo
tempo, nos fortalecermos, devagar, mas certo. Eu entendia algumas das irmãs e irmãos mais
impacientes. Eu sabia que era tentador substituir a luta militar pela luta política, especialmente
sabendo que todas as nossas organizações públicas estavam sob ataques malignos do FBI4, da CIA5
e dos agentes de polícia locais. Todos nós que vimos nossos líderes serem assassinados, nosso
povo ser baleado a sangue frio, sentimos a necessidade, o desejo de lutar de volta. Uma das lições
mais difíceis que tivemos que aprender é que a luta revolucionária é científica mais que emocional.
Eu não estou dizendo que não devemos sentir nada, mas as decisões não podem ser baseadas em
amor ou raiva. Elas precisam ser baseadas nas condições objetivas e no que é a coisa racional a se
fazer.
Em 1857, a suprema korte6 dos eua7 disse que Negros eram apenas um-quinto de um homem
e que não tinham nenhum direito o qual brancos deveriam respeitar. Hoje, mais de cento e vinte e
cinco anos depois, nós ainda ganhamos menos que três-quintos do que os brancos ganham. Era
claro pra mim que nós não podíamos esperar a liberdade vir da suprema korte e da justiça, assim
como não podíamos esperarar conseguir a liberdade participando do sistema político dos eua e era

4
Federal Bureau of Inestigation ou Grupo Federal de Investigação.
5
Central Intelligence Agency ou Agência Central de Inteligência.
6
Do original kourt.
7
Do original us. Assata utilizava a grafia de algumas palavras que deveriam ser escritas com letra maiúscula em
minúscula, mostrando a pouca importância delas.
Assata: Uma Autobiografia - Capítulo 17

pura fantasia achar que pudéssemos conseguir pedindo. A única alternativa que restava era lutar
por ela e nós vamos ter que lutar como qualquer outra pessoa que tenha lutado por libertação.
Eu não era alguém que acreditava que nós tínhamos que esperar até nossa luta política
atingisse um ponto alto antes de começarmos a nos organizar clandestinamente. Eu senti que era
importante começar a construir estruturas clandestinas o quanto antes. E apesar de eu sentir que a
maior tarefa da clandestinidade devesse ser organizar e constuir, eu não achava que atos armados
de resistência deveriam ser cortados. Desde que eles não impedissem nossos planos a longo prazo,
unidades de guerrilha deveriam poder realizar algumas ações armadas bem pensadas, no tempo
certo, que fossem bem coordenadas com objetivos políticos não-clandestinos. Não só ações do tipo
antigas, mas ações que o povo Preto certamente entenderia e apoiaria e ações que fossem bem
publicizadas na comunidade Preta.

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