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AS NOVAS FORMAS DE GUERRA E O CORPO DAS MULHERES

(RITA SEGATO)

- As guerras de hoje não estão destinadas a terminar e seu objetivo não é a paz, em
nenhuma das suas versões. O projeto de guerra é hoje, para seus administradores, um
projeto de longo prazo, sem vitimização ou derrotas conclusivas. Hoje a guerra emerge e se
torna o horizonte irredutível de toda política, ou seja, uma política por outros meios.

- O texto nos convida a pensar sobre o impacto das novas formas de guerra na vida das
MULHERES, tendo em vista que a guerra hoje foi transformada.

- Desde as guerras tribais até as guerras convencionais que ocorreram na história da


humanidade até a primeira metade do século XX, os corpos das mulheres, como território,
acompanharam o destino das conquistas, inseminadas pelo estupro dos exércitos ocupantes.

- Hoje, esse destino sofreu uma mutação. A rapacidade desencadeada sobre o feminino se
manifesta tanto em formas sem precedentes de destruição do corpo quanto nas formas de
tráfico e comercialização do que esses corpos podem oferecer, até o último limite.

- Apesar de todas as vitórias no campo do Estado e da multiplicação de leis e políticas


públicas para a proteção da mulher, sua vulnerabilidade à violência aumentou,
especialmente a ocupação predatória dos corpos femininos ou feminizados nos contextos
das novas guerras.

Elizabeth Odio – Os conflitos do século XX não só pioraram a situação dos civis, e


especialmente das mulheres e crianças, como também estupro e abuso sexual parecem ter
aumentado em sadismo (Odio, 2001, p. 101).

- A impressão que emerge dessa nova ação bélica é que a agressão, a dominação e a
pilhagem sexual não são mais, como eram anteriormente, complementos da guerra (danos
colaterais), mas adquiriram centralidade na estratégia de guerra.

Para entender as novas guerras, é preciso analisar as mudanças contextuais que as tornam
possíveis. Essas mudanças estão em consonância com uma economia de mercado global,
instabilidade política, declínio da democracia real, porosidade dos Estados e territórios
nacionais que eles administram, bem como ciclos críticos cada vez mais frequentes do
capitalismo.

- Informalização das regras contemporâneas de guerra

- Nova estrutura na cena de guerra, atribuindo ao corpo feminino ou feminizado um novo


papel que o transfere de uma posição marginal para uma posição central.

- O novo conflito informal e as guerras não convencionais são uma ciência em expansão no
mundo, especialmente na américa latina, com muitas faces.

- Essa violência corporativa e anômica é expressa de forma privilegiada nos corpos das
mulheres. Ela é “escrita” nos corpos das mulheres vitimadas pelo conflito informal ao fazer
de seus corpos a moldura na qual a estrutura da guerra se manifesta.

Mas por que nas mulheres e por que por meio de formas sexualizadas de agressão? Porque
é na violência executada por meios sexuais que a destruição moral do inimigo é afirmada,
quando não pode ser encenada pela assinatura pública de um documento formal de
rendição. O corpo da mulher é a moldura ou o suporte no qual a derrota moral do inimigo é
escrita.

- Não se trata de uma agressão contra o corpo do antagonista, do assassino da facção


inimiga. Os atacados são corpos frágeis, não corpos guerreiros. A truculência é a única
garantia de controle sobre territórios e corpos, e corpos como territórios e a pedagogia da
crueldade é a estratégia para reprodução do sistema.

- Segundo Segato, essas novas formas de guerra precisam ser urgentemente incorporadas
com novas categorias legais no direito, especialmente no direito internacional, no campo
dos direitos humanos e da justiça humanitária.

 Características dessa nova forma de guerra: informalização, já que os conflitos deixam


de ser entre estados-nação; privatização e comercialização da guerra (Munkler); caráter
lucrativo da guerra, uso de mercenários e crianças como recursos humanos,
transnacionalização e desmilitarização da guerra, transferência do controle da guerra dos
exércitos dos estados para gangues comerciais, envolvimento de Estados, entidades
paraestatais e atores privados.
A antiga fronteira claramente traçada entre a violência permitida na guerra e a violência
criminosa se dissolve.

- Mulheres sempre foram tratadas como “despojos de guerra, prêmio de vitória e objeto
sexual dos soldados”. Sempre houve violência contra as mulheres nas guerras clássicas
entre Estados, mas desde o século 18, no mínimo, isso tem sido considerado um crime de
guerra pelo qual a pena geralmente é de morte. Entretanto, as guerras das duas últimas
décadas não demonstram nenhum respeito por qualquer tipo de instrumento ou
regulamentação para a proteção de mulheres e crianças.

- Eficácia do estupro como um instrumento de baixo custo de limpeza étnica: uma forma de
eliminação sem o custo de bombas ou reação de estados vizinho (Munkler, 2005, p. 83).

- Segundo Munkler, existem 3 etapas da dissolução de um povo sem genocídio: execução


pública de suas figuras proeminentes; destruição de seus tempos, edifícios sagrados e
monumentos culturais e estupro sistemático e a gravidez forçada de suas mulheres.

- O estupro em massa, embora tenha ocorrido em outras guerras, o caráter sistemático que
agora assume em centros de detenção e em espaços específicos, agora assume um novo
caráter, como uma estratégia deliberada de guerra (Kalder).

- Tudo que era considerado efeito colateral indesejável e ilegítimo da guerra antiga se
tornou o modo central de luta nas novas guerras.

Mudança do paradigma territorial

- A posição e o papel dos corpos das mulheres são ancestralmente relacionados


cognitivamente à ideia de território. O que a nova territorialidade introduz é uma
reviravolta nessa relação, pois o corpo se torna independente dessa contiguidade e
pertencimento a um país conquistado e se torna, em si mesmo, o terreno-território da
própria ação de guerra.

Mudança correlativa na cultura política ou faccionalização da política.

- Nesse novo layout territorial, o valor está no pertencimento, na afiliação, na identidade


política, na existência como um rebanho, como membro da rede.
- Segundo Segato, a cultura política das identidades também é territorial e até mesmo a
política partidária atual é uma questão de identidade e, portanto, de território. A razões da
política perderam seu foco na dimensão ideológica e hoje são da ordem de coesão e das
alianças.

Mafialização da política e captura do campo criminal pelo Estado

- Violência urbana, cenários de guerra difusos e em expansão, intimamente ligados à


informalização da economia e ao aumento vertiginoso do capital não declarado.

- Paraestatalização do Estado,

- Que tipo de violência protege a grande propriedade variada no nível subterrâneo da


“segunda economia”? Primeira realidade: tudo que é regido pela esfera do Estado,
declarado ao Estado – esse universo conta com as forças policiais e militares, instituições e
políticas de segurança pública, judiciário e sistema prisional.

- Por outro lado, existe o subsolo desse mundo de suposta transparência, o “segundo
Estado” que tem suas próprias forças de segurança, corporações armadas ocupadas em
proteger a propriedade para seus “donos”.

- Não há linguagem jurídica para falar sobre essas novas formas de guerra, elas não estão
legisladas em lugar algum. A convenção contra tortura, por exemplo, fala de tortura por
agentes do Estado, mas a tortura é praticada por agentes de outro Estado, por membros de
outro tipo de corporação armada. A segunda realidade é um campo incerto, um pântano
inexplorado.

- Essa situação desenha um cenário de imensa instabilidade e anomia estatal que emana da
própria estrutura do Estado. Essa anomia abre a porta para uma belicidade que se expressa
de maneira particular na violência exercida sobre os corpos das mulheres.

- Toda violência tem uma dimensão instrumental e uma expressiva. Na violência sexual, a
expressiva é predominante. O estupro não é uma anomalia de um sujeito solitário, é uma
mensagem de poder e apropriação pronunciada na sociedade.

- Processos de dessensibilização extrema e ilimitada, desmantelamento deliberado e


sistemático de toda empatia humana e demonstração de crueldade como única garantia de
controle territorial.
- O estupro público e a tortura de mulheres até a morte nas guerras contemporâneas é uma
ação de um tipo diferente e com um significado diferente. É a destruição do inimigo no
corpo da mulher, e o corpo feminino ou feminizado é o próprio campo de batalha no qual as
insígnias da vitória são pregadas e significadas. A devastação física e moral do povo, da
tripo, da comunidade, do bairro, da localidade, da família, da vizinhança ou da gangue em
que esse corpo feminino está inscrito. (p. 361)

- Crimes de ódio: é uma explicação monocausal e de senso comum que atribui agressões
letais de gênero ao motivo do “ódio”, como se os motivos fossem restritos a uma esfera
íntima do indivíduo. A monocausalidade é uma maneira superficial de tratar qualquer ação
humana.

- O estupro como método. No novo contexto de guerra, não se trata de apropriação, mas de
destruição, devastação física e moral de um organismo-pessoa. Espetáculo de poder,
exibição de barbárie e ferocidade, expressão de supremacia anômica. Esse tipo de violência
é dificilmente inteligível

- Femigenocídio: a dificuldade de perceber a dimensão pública do feminicídio na guerra.

- Nas guerras convencionais do passado o corpo feminino era anexado, inseminado em


massa, incorporado como parte do território conquistado, sua posse distribuída entre
homens e famílias, como um corpo escravo ou servil. Nas guerras informais de hoje, o
corpo feminino é torturado até a morte por meios sexuais- corpos de mulheres, campos de
batalha.

- Estamos diante de uma agressão e eliminação sistemática de um tipo humano, que não
responde a um motivo ou gatilho imediato que possa ser referido à intimidade.

- Femigenocídios, segundo Segato pois aproximam-se em suas dimensões da categoria


genocídio por causa de suas agressões às mulheres com intenção letal e deterioração física
em contextos de impessoalidade, nos quais os agressores são um coletivo organizado.

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