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ESTAMOS EM
GUERRA
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.
maio_2017
O texto “O intolerável” foi apresentado
no ato oficial de lançamento da Carta
Aberta à Comunidade Internacional,
em 6 de abril de 2016, na Faculdade de
Filosofia e Ciências Sociais da USP.
Tratava-se de uma iniciativa de
professores universitários para alertar
a comunidade acadêmica
internacional do golpe em curso e
solicitar tanto o seu apoio à
resistência quanto a difusão de
informações sobre o que estava
acontecendo. Já “Escutas em transe”
foi inicialmente publicado na revista
serrote no 23 (São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2016, pp. 28-32).
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ESTAMOS EM GUERRA
A guerra da paz
É onde reencontramos a fórmula de Clausewitz, enuncia-
da também de maneira invertida por Deleuze e Guattari,
porém diferentemente da versão foucaultiana: a política
é a continuação da guerra por outros meios, porém a
paz que ela parece proporcionar “libera tecnicamente
o processo material ilimitado da guerra total.” Essa fór-
mula não é estranha ao nosso contexto atual, no qual a
guerra e a paz se alavancam mutuamente: “não havia
mais necessidade de fascismo. Os fascistas tinham sido
só crianças precursoras, e a paz absoluta da sobrevi-
vência vencia naquilo que a guerra total havia falhado.
Estávamos já na terceira guerra mundial.” Apoiando-se
em Virilio, eles completam: “essa máquina de guerra não
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tinha mais necessidade de um inimigo qualificado, mas...
se exercia contra o ‘inimigo qualquer’, interior ou exterior
(indivíduo, grupo, classe, povo, acontecimento, mundo);
[…] daí saía uma nova concepção da segurança como
guerra materializada, como insegurança organizada ou
catástrofe programada, distribuída, molecularizada.”
Não queremos ser apocalípticos. E de fato, talvez
nisso concordem as várias perspectivas elencadas, e
outras ainda, por maiores que sejam suas diferenças
de análise, desde Foucault e Deleuze até Agamben, o
Comitê Invisível ou Toni Negri: não há totalização sem
resto — chame-se a isso contrapoder, linha de fuga, su-
plemento de potência, formas de vida, força do comum.
Há um avesso, um fora, um irredutível, um inapropriável,
ou fluxos que escapam por toda parte e se conjugam
em planos aberrantes. É apenas na experimentação
multitudinária de tais planos que uma outra correlação
entre guerra e paz, constituição e destituição, apropria-
ção e desapossamento — em suma, desejo e poder —
pode ser pensada e ativada. Por paradoxal que possa
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parecer, começamos com a cólera e terminamos com
a alegria, que resulta, em Espinosa, de um aumento na
potência de agir.
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Peter Pál Pelbart é filósofo, parte da Cia. Teatral Ueinzz,
professor titular do Departamento de Filosofia e do Núcleo
de Estudos da Subjetividade da PUC-SP e coeditor da n-1
edições. Como tradutor, foi responsável pela versão brasi-
leira de Conversações e Crítica e Clínica, de Gilles Deleuze,
e parte de Mil Platôs, de Deleuze e Guattari. Possui diversos
livros publicados, entre eles, Da clausura do fora ao fora da
clausura (1989), O tempo não-reconciliado (1998), Vida
Capital (2003) e O avesso do niilismo — Cartografias do es-
gotamento (2013).
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