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Não se nasce homem


Mariza Corrêa*

[I.M. David Reimer]

It’s easier to poke a hole than to build a pole.

Dedico este trabalho à memória de David Reimer – de quem


a maioria de vocês provavelmente nunca ouviu falar – e cuja
história foi o estímulo inicial para uma pesquisa que estou
realizando.1 Ele se matou, aos 38 anos, no dia 4 de maio deste
ano (2004), e foi enterrado por sua mãe, no Dia das Mães, no
Canadá. Sua morte, e a de seu irmão, que também se suicidara
um pouco antes, encerra um capítulo da história dos estudos de
gênero que faríamos bem em reler.

A história é recente, começa no final dos anos cinqüenta e


pode ser resumida em dois enredos de engano: o primeiro engano,
o mais crucial, é o de um médico, John Money, que tomou ao pé
da letra, e levou às últimas conseqüências, a idéia de Simone de
Beauvoir de que ‘não se nasce mulher’, invertendo o sinal sexual,
e estampando no corpo de meninos a noção de que ‘não se nasce
homem’. O segundo enredo trata da história

* Pesquisadora do PAGU/Núcleo de Estudos de Gênero/Unicamp. Trabalho apresentado no


Encontro “Masculinidades/Feminilidades”, nos “Encontros Arrábida 2004”, Portugal. 1 A
2

pesquisa é parte de um projeto temático em andamento no PAGU/Núcleo de Estudos de


Gênero da Unicamp, financiado pela FAPESP (processo 2003/13691-0), e de um projeto
financiado pelo CNPq (processo 302886/2002-8).
de outro médico, Robert Stoller, enganado por uma paciente,
desde então conhecida como ‘Agnes’, e que passou por uma das
primeiras operações ‘trans’ – trans-sexo ou trans-gênero,
conforme se queira - nos Estados Unidos. Ambas as histórias
estão bem documentadas 1 mas, como acho que são pouco
conhecidas, vou resumi-las aqui. Tanto John Money como Robert
Stoller recebem, na literatura médica e de gênero, o crédito de
terem sido os primeiros a falar em identidade de gênero 2, isto é,
os primeiros a terem adotado o mote de Simone de Beauvoir
cientificamente.

A primeira história, a história de David, durante anos


conhecida nos anais médicos como a história de John/Joan
começou em 1967, quando sua mãe levou os gêmeos Bruce e
Brian a uma clínica para fazerem uma operação rotineira de
circuncisão.3 A operação de Bruce foi mal-sucedida: o aparelho
utilizado queimou seu pênis e praticamente o extinguiu – e, em
conseqüência, seu irmão não foi operado. Um pouco depois disso,
os pais dos meninos, sem terem qualquer opção sobre o que fazer

1 Sobre David, ver John Colapinto, As nature made him. The boy who was raised as a girl.
NY/London: W.W. Norton & Company, 2001; sobre Agnes, ver Harold Garfinkel, Passing and
the managed achievement of sex status in an ‘intersexed’ person, part 1, em colaboração
com Robert Stoller, no livro de Garfinkel, Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs:
Prentice-Hall, Inc., 1977. Ver também o Appendix to chapter five – no qual Garfinkel
transcreve a revelação de Agnes feita a Stoller em 1966.
2 Donna Haraway, “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.

cadernos pagu (22), 2004.


3 O quão rotineira é essa operação nos Estados Unidos, país no qual cerca de 80% dos

homens é circuncidado, é uma outra história, ainda que estreitamente vinculada a esta.Ver
www.norm.org
3

com um filho que perdera o pênis, assistiram a uma entrevista,


na televisão, de um sexólogo americano que começava a se tornar
famoso: o doutor John Money4 explicava na entrevista, segundo a
mãe deles recorda, que as crianças nascem ‘neutras’ e só pela
criação se tornam meninos ou meninas. O menino Bruce foi
levado à clínica de John Money, foi castrado, e sofreu repetidas
operações até a puberdade para se feminizar – época na qual seu
pai, vendo sua rebelião insistente contra essa feminização, lhe
contou sua história. Bruce reassumiu sua identidade masculina,
mudou seu nome para David, passou por mais outras tantas
operações para desfazer os efeitos colaterais da feminização (como
a ablação dos ‘seios’) e para ganhar um pênis funcional, casou-se,
e teria se tornado uma cobaia anônima da medicina, como tantas
outras, não fosse o fato de que sua história já se tornara famosa.5
O caso John/Joan era, de fato, invocado a cada passo, tanto por
Money, quanto pelas feministas e por outros médicos que
passaram a adotar o chamado ‘protocolo Money’ em casos
semelhantes e, principalmente, no caso das redefinições de
hermafroditas, como demonstração de que gênero, por oposição a
sexo, é uma construção cultural. Famoso também graças à
perseguição do caso por um outro pesquisador, que não

4 John Money nasceu na Nova Zelândia em 1921 e era professor emérito de pediatria e
psicologia na Johns Hopkins University. Fez parte da Clínica de Identidade de Gênero da
mesma universidade, na qual foi realizada a primeira operação de um transexual com
permissão legal nos Estados Unidos, em 1965. Morreu em 2006.
5 Vários outros exemplos semelhantes de não adequação ao sexo de criação são

apresentados por Milton Diamond em Pediatric management of ambiguous and traumatized


genitália. Journal of Urology, 30 de outbro de 1998.
4

concordava com as idéias de Money, o doutor Milton Diamond6,


que descobriu o insucesso da sua operação, David acabou
contando sua vida a um jornalista quando descobriu que, ao
contrário do que pensava, tal operação continuava a ser
rotineiramente feita nos hospitais norte-americanos, em casos de
crianças nascidas com ‘sexo ambíguo’ (intersexuais) ou de
meninos com ‘micro-pênis’. No livro, David apresenta um final
feliz da sua história, expressa numa foto de seu casamento,
quando também ficamos sabendo que adotara os filhos anteriores
de sua esposa. Mais tarde, ele perdeu o emprego, a esposa o
abandonou (não estou segura dessa ordem, as reportagens sobre
seus últimos anos de vida variam muito) e David se matou – dois
anos depois de seu irmão gêmeo ter feito o mesmo.7

Em todas as matérias às quais tive acesso via internet – e


no livro sobre a vida de David – o debate sobre sua situação se
resume à velha discussão da oposição entre nature/nurture: isto
é, nós nascemos, ou nos tornamos, homens ou mulheres? Várias
dessas matérias são, é claro, uma acusação ao movimento
feminista, que teria recebido com louvor a proposta de Money nos
anos sessenta do século passado, e desta forma ignorado o
‘chamado’ da biologia. O que não vi em nenhuma das matérias
que pude consultar, no livro sobre David, ou na literatura sobre o
tema, foi qualquer menção ao fato de que o menino Bruce, que

6 Milton Diamond é pesquisador do Pacific Center for Sex and Society da Universidade do
Havaí.
7 Deixo de lado aqui inúmeros detalhes horripilantes da trajetória de David como paciente de

Money e que podem ser acompanhados no livro de John Colapinto.


5

tinha quase dois anos quando foi operado, já tinha feito uma
opção de gênero – diferente da opção de sexo, feita por outros,
confusão sobre a qual toda esta história repousa. Isto é, ele já era,
socialmente, um menino. O médico John Money certamente
acreditava que gênero era uma questão de sexo, e de
heterossexualidade – e vários autores, inclusive feministas, o
seguiram por essa trilha: ‘acertando’ o aparato biológico de Bruce,
que se tornou Brenda, nome que David repudiou assim que pode
usar sua própria voz sobre o assunto, ele fez uma leitura perversa
da famosa frase de Simone de Beauvoir, levando em sua esteira
toda uma geração de médicos americanos, e de outros países, a
tentar ‘acertar’ os ponteiros biológicos com os ponteiros das
convenções de gênero vigentes na sua sociedade.8

A história seguinte, sobre a intervenção de um outro médico


também famoso por ter sido um ‘precursor’ da noção de
‘identidade de gênero’, contemporâneo de Money, completa essa
trama e ajuda a entender como todo o debate atual sobre a
questão dos ‘intersexuais’ – os antigos hermafroditas – é
fundamental para a discussão sobre o tratamento dado a gênero
nas ciências sociais, ainda que tenha sido solenemente ignorado
por ela, com poucas exceções.

8 Sobre a importância do sexo nas convenções médicas e culturais, ver Anne FaustoSterling,
Sexing the body. Gender politics and the construction of sexuality. N.Y.:Basic Books, 2000.
Ver também seu How to build a man, em Roger N. Lancaster e Micaela di Leonardo, eds., The
gender/sexuality reader. Culture, History, Political Economy.
N.Y./London: Routledge, 1997, no qual ela cita o ditado médico transcrito como epígrafe a este
texto.
6

Em 1958, uma moça, depois conhecida na literatura médica


como “Agnes”, de aparência feminina e com seios, apesar de ter
um aparato genital masculino completo, procurou o doutor Robert
Stoller9 e o convenceu de que havia ‘nascido mulher num corpo
(parcialmente) de homem’: tão grande foi seu convencimento que
a equipe da qual o médico participava concordou em operá-la,
realizando nela, sem o saberem, uma das primeiras operações
trans-sexuais, hoje famosas nas revistas de variedades e nas
novelas de televisão. 10 No entanto, conforme se soube depois,
Agnes foi uma agente decisiva de sua própria transformação:
tomando estrogênio receitado para sua mãe, desde os doze anos
de idade, foi aos poucos transformando um corpo de menino num
corpo de moça – transformação essencial (o adjetivo não é casual)
para o convencimento do médico. A aparência da essência sexual,
de fato, levou os médicos a classificarem, Agnes como uma
intersexual – não como uma transexual.

Ambos esses médicos, Money e Stoller, estavam


convencidos, ou se convenceram, da necessidade de um substrato
biológico, sexual, para a famosa ‘identidade de gênero’, isto é, que
a coincidência entre sexo e gênero era fundamental para a
identidade de ser humano. O que é importante ressaltar é o
quanto suas, deles, médicos, experiências com corpos alheios,

9 Robert Stoller (1924-1991), era psicanalista e professor de psiquiatria na Escola de


Medicina da UCLA. Para os antropólogos, é importante registrar que ele colaborou com os
trabalhos de Gilbert Herdt na Melanésia. Ver, por exemplo, o trabalho conjunto de ambos:
Intimate communications. Erotics and the study of culture. N.Y.: Columbia university Press,
1990.
10 Também aqui deixo de contar as vicissitudes médicas de Agnes, analogamente horríveis

às de Bruce/ David – ver Garfinkel, Studies.


7

levaram a uma engenharia sexual aplicada em larga escala nos


hospitais de todo o mundo desde aquela época até hoje. Desde
então, e provavelmente em todas as grandes cidades do mundo
(não sei se há dados sobre o tema em Lisboa), crianças que
nascem portadoras do que agora se convencionou chamar de sexo
ambíguo – e que classicamente eram chamadas de
hermafroditas 11 - são rotineiramente operadas, em sua grande
maioria para se tornarem mulheres. Como afirma o ditado médico,
citado como epígrafe, é mais fácil escavar um buraco do que erigir
um poste. A facilidade da operação é assim, cinicamente, posta
em primeiro plano: meninos com ‘micropênis’, meninas com
‘clitoromegalia’, são reduzidos, ambos, a meninas normais – sem
pênis e sem clitóris ‘aberrantes’.12

Como consequência direta do chamado “protocolo Money”,


a redefinição sexual foi implantada pela medicina em quase todo
o mundo ocidental (não temos referências sobre o que se passa no
Oriente). Essa intervenção médica só se tornou publicamente

11 Ver M. Foucault, Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1983. Desde a entrada do protocolo Money em cena as pesquisas médicas lhe
retiraram o estatuto próprio de hermafroditas que tinham, e que a mitologia clássica parecia
validar, passando a atribuir-lhes um estatuto indefinido. A antropologia ainda não parece
ter se ocupado dessa questão. Para uma análise sociológica, ver Sharon Elaine Preves,
Negociating the constraints of gender binarism: intersexuals’ challenge to gender
categorization. Current Sociology, 48 (3), julho 2000, que sugere que a maioria dos casos de
redefinição sexual é cosmética – sugestão reforçada pela literatura do movimento social
originado dessa prática A maior parte dessas cirurgias também opta por ‘redefinir’ essas
crianças como sendo do sexo feminino – aparentemente, e de maneira intrigante, parecendo
inverter o sinal de outras práticas vigentes em nossa sociedade. Ou não: talvez esse seja o
indício mais forte de uma arraigada crença sobre a sinonímia entre feminino/monstruoso.
Ver Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980.
12 Não estou me referindo aqui a disfunções genéticas que possam ter conseqüências graves

para a vida de meninos ou meninas delas portadoras – falo apenas das ‘cirurgias cosméticas’
realizadas em bebês, ou crianças, para ‘adequá-las’ à ideologia do dimorfismo sexual.
Fausto-Sterling (1997), examinando a bibliografia médica, conclui que a definição de micro-
pênis é dada a um pênis menor do que um centímetro e meio (0,6 inches).
8

conhecida a partir da ação política daqueles meninos, e meninas,


assim operados desde a década de 60 do século passado, nos anos
80 e 90 – quando eles atingiram a maioridade e descobriram suas
histórias, todas elas enterradas em prontuários médicos sob a
lógica do segredo que governa a relação médico/cliente nos
Estados Unidos. 13 Uma daquelas crianças, Cheryl Chase, quando
se tornou adulta descobriu que tinha sido “redefinida” como
menina aos 18 meses de idade, quando lhe cortaram o clitóris,
considerado muito grande, e extirparam seus órgãos masculinos
internos, e fundou, em 1993, a Sociedade dos Intersexuais da
América do Norte (Intersex Society of North América/ISNA) que
em 1999 contabilizava cerca de 400 casos semelhantes ao dela no
mundo inteiro. Em 1996, apesar do escândalo provocado pela
exposição do caso John/Joan e das manifestações públicas
realizadas pela ISNA, a Associação Americana de Pediatria ainda
apoiava publicamente a posição de John Money.

A cuidadosa construção de uma coerência identitária,


orquestrada por Agnes – cujos detalhes são minuciosamente
examinados por Garfinkel como uma estratégia de passing – e a
mesma coerência almejada pelos médicos que, como Money,
extirpam sinais, signos, externos discrepantes do corpo humano,
como no caso de David, para preservar a ilusão dela, a ilusão de
coerência, está bem expressa na definição de identidade de

13Ver Fausto-Sterling, 2000, para vários exemplos da lógica do segredo e, para depoimentos
dos próprios envolvidos nessas cirurgias, Alice D. Dreger, ed., Intersex in the age of
ethics.Hagerstown: University Publishing Group, 1999. Um geneticista aí citado, disse para
uma paciente: “Devo dizer-lhe que não lhe contaram certos detalhes sobre sua condição, mas
não posso lhe dizer quais são eles porque isso iria incomodá-la muito.”
9

gênero, num manual que se tornou best-seller no início dos anos


70, Man and woman, boy and girl, de Money e Ehrhardt:

a identidade, a unidade e a persistência da individualidade de cada


um como macho, fêmea, ou ambivalente. .. A identidade de gênero
é a experiência privada do papel de gênero, e o papel de gênero é a
experiência pública da identidade de gênero. (Citado por Fausto-
Sterling, 2000:257)

Vinte anos depois, a crítica dessa coerência seria feita por


Donna Haraway:

O conceito de um eu interno, coerente, adquirido (cultural) ou inato


(biológico), é uma ficção regulatória desnecessária – de fato,
inibidora, para os projetos feministas de produção e afirmação de
agentes complexos e responsáveis.14

O que esses casos sugerem é que o corpo humano é visto


tanto pelos médicos como pelas pessoas em geral nas nossas
sociedades – não só por Agnes e outros transexuais, mas todos os
pais e mães dos meninos e meninas mutilados – como uma
matéria plástica, flexível, sujeita às convençõe sociais, e antes
um suporte do que parte do que se convencionou chamar mente,
na antinomia corpo/mente. O que Donna Haraway e outras
autoras feministas sugerem é que o corpo e a mente são um
conjunto indissociável, e que, ao contrário do que supunham os
médicos que trabalharam com a noção de identidade de gênero

14Donna Haraway, Simians, Cyborgs, and Women. The reinvention of nature. N.Y.:Routledge,
1991, p. 135.
10

nas décadas de cinqüenta a setenta do século passado, e ao


contrário da hipótese aventada pelo jornalista John Colapinto ao
cabo de sua narrativa – atribuindo o desfecho do caso à vitória da
‘nature’ sobre a ‘nurture’, do inato sobre o adquirido, outra famosa
antinomia – a identidade de gênero, se podemos mencionar este
termo já tão criticado, se forma junto com a identidade de sexo,
ou melhor, é indissociável dela. O que Colapinto não analisa no
seu cuidadoso dossiê sobre David, e que também não é tema de
outras análises sobre o assunto, é a idade dos meninos e meninas
operados, “redefinidos”. Dois dos exemplos mais recorrentes
mencionados na literatura, o de David e o de Cheryl Chase –
ambos ícones da denúncia dessas resoluções à faca de distinções
tão delicadas – foram operados quando tinham dezoito meses –
tempo mais do que suficiente para terem sido expostos às
convenções de gênero na sociedade na qual viviam. A ferida aberta
pelos cirurgiões era também uma ferida simbólica, tanto quanto
corpórea. 15 Seria preciso, assim, investigarmos também de que
maneira o corpo é materialmente investido por símbolos
socialmente valorizados nas sociedades nas quais tais
experiências tem lugar.17

A história dos estudos de gênero começa, assim, por um


engano: a perseguição da ilusão da coerência, como alerta Donna
Haraway. Seja uma auto-ilusão, no caso dos transexuais adultos,

15Aqui, claro, seria preciso citar Freud, mas isso exigiria um maior vagar na análise: ver
Jean Laplanche, Problèmatiques II. Castration. Symbolisations. Paris: Presses Universitaires
de France, 1983. Um resumo da discussão feita por Laplanche sobre gênero está bem
expressa por um cartoon norte-americano contemporâneo de toda essa discussão. O
desenho mostrava duas crianças, um menino e uma menina, diante de um
11

seja uma ilusão imposta, no caso das cirurgias realizadas em


crianças. A importância de reler os capítulos iniciais dessa
história está em que o engano da coerência aparece como que
corporificado em Agnes e em Brenda – apenas para se mostrar
depois que, de fato a coerência era perseguida pelos médicos, os
pesquisadores da questão de gênero, quando os pesquisados, os
objetos da pesquisa, viviam essa ‘ficção regulatória’ como um
pesadelo: ambos queriam livrar-se de órgãos corporais (pênis,
seios) que denunciavam a ficção que eram obrigados a viver como
realidade. Assim como Brenda se tornou um exemplo negativo
dessa ficção, ao negar-se a aderir a ela, Agnes tornou-se um
exemplo positivo dela, por ter propiciado aos médicos a ilusão de
que a incoerência fora ‘naturalmente’ produzida: ainda que

quadro sobre o paraíso, com Adão e Eva nus. Uma delas pergunta quem é homem e quem é
mulher e a outra responde: não sei, não estão vestidos. A memória, como sempre, pode ter
distorcido um pouco as palavras, mas creio que a idéia geral era essa.
17 Vários dos autores de artigos nos quais narram sua experiência com o aparato médico

acentuam o fato de que o aspecto de experiência, da qual eles e elas são cobaias, com todo
seu cortejo de múltiplas cirurgias (entre as quais a vaginoplastia é uma das técnicas mais
invasivas e dolorosas) é o que deixa mais marcas nas suas lembranças de uma infância
passada entre uma hospitalização e outra. Fausto-Sterling (2000) deixa implícita a sugestão
de que, como não é permitido à Medicina usar cobaias humanas, a constituição de grupos
fragilizados como os intersexuados e suas famílias, proporciona uma oportunidade rara de
experimentação em corpos humanos.
tenha sido tratada, e operada, como intersexual, era com uma
transexual que os médicos estavam lidando.16

16Um intersexual era considerado um erro da natureza, que a medicina podia tratar sem
impedimentos. Um transexual era uma espécie de aberração e seriam precisos alguns anos
para que tais operações fossem legalmente permitidas.Sobre a necessidade de as/os
transexuais adequarem a sua aparência à essência do gênero que querem assumir, até hoje,
para provar que merecem receber autorização para operar-se, ver o trabalho de Flavia
Teixeira, em andamento. Sobre as disputas em torno da interpretação da relação entre
Agnes/Garfinkel/Stoller, ver Leia Kaitlyn Armitage, Truth, falsity, and schemas of
presentation: a textual analysis of Harold Garfinkel’s story of Agnes, Electronic Journal of
Human Sexuality, vol. 4, april 29, 2001 (www.ejhs.org)
12

Um dos aspectos dessa constelação de elementos postos em


cena em torno do corpo humano na disputa pela imposição do
dimorfismo sexual como convenção adequada a sua preservação
e reprodução é então a necessidade de coerência entre aparência
e essência: num caso como no outro, tratava-se de adequar ora a
aparência à essência (Agnes), ora a essência à aparência (Brenda),
numa óbvia presunção da plasticidade do corpo.

Outro aspecto, é que presumia-se também uma


plasticidade da alma, por assim dizer: a criança operada se
adequaria ao sexo de criação, ao sexo do corpo, redefinindo-se por
ele. A longa carreira dessa vitória da cultura sobre a natureza,
feita aqui em nome da natureza, merece um tratamento especial,
que não poderá receber aqui: no momento, basta indicar o papel
importante que os antropólogos tiveram para a difusão dessa
idéia, nos primeiros setenta anos do século vinte, sugerindo que
a relação entre antropologia e feminismo tinha, assim, supostos
teóricos bastante sólidos. Mas o que é interessante aqui neste
ponto é não tanto a ‘revolta da natureza’ - enfatizada no caso de
David – mas a revolta da cultura. Como lembra o Dr. Diamond
(1998), com o surgimento dos transexuais em cena, a crença
médica de que era possível criar meninas a partir de meninos, a
crença na força da cultura, era posta em questão: aqui, diz ele,
tínhamos um grande número de pessoas com genitálias não
13

ambíguas, e que tinham sido criadas de maneira não ambígua,


negando o efeito da criação sobre sua identidade de gênero.17

Seria preciso fazer uma análise mais fina sobre a literatura


médica que se seguiu ao estabelecimento desses dois casos como
paradigmáticos, pois, de fato, nenhum deles poderia aspirar ao
estatuto canônico que obtiveram nas discussões teóricas, já que,
num caso, houve auto-manipulação dos caracteres sexuais
secundários e, no outro, manipulação externa. Isto é, nenhum dos
dois casos exemplares da literatura sobre intersexualidade, era de
intersexuais. 18 Este equívoco acrescenta-se, assim, à ilusão de
coerência perseguida pelos médicos – alguém poderia dizer que a
tentativa de concretizar essa ilusão, nos dois casos clássicos aqui
evocados, estava de antemão condenada ao fracasso, já que a
‘natureza’ conspirava contra essa tentativa. Penso, ao contrário,
que, tanto nesses casos, como nos casos evocados pelos militantes
do ISNA, é de manipulação cultural que se trata: Agnes manipulou
os signos culturais para convencer H. Garfinkel malgré lui; David
foi manipulado numa tentativa de convencê-lo e de convencer a
seus pais. Isto é, que menos do que ‘adequar’ os hermafroditas a
algum parâmetro natural, o que os médicos fazem é uma tentativa
de adequá-los a um parâmetro cultural – tentativa cada vez mais
rejeitada por eles, já que implica em usá-los, usar seus corpos,

17 Stoller tentará desmanchar esse paradoxo mais adiante sugerindo, claro, que a criação dos
futuros transexuais havia sido ambígua.
18 É interessante lembrar que as pesquisas da Johns Hopkins University na área dos estudos

sexuais foram generosamente financiadas por Reid Erickson, nascido mulher, mas que
desejava tornar-se homem. Ao herdar uma fortuna de seu pai, criou a Erickson Educational
Foundation (EEF) que se dissolveu em 1979, aparentemente após seu fundador ter
alcançado seu objetivo.
14

mutilar seus corpos, de maneira semelhante aos rituais de


mutilação realizados nas sociedades ditas primitivas.

Se o caso John/Joan pode servir de paradigma para o


protocolo Money – e durante anos ele foi usado sistematicamente
para validá-lo – toda a discussão científica, sem aspas, sobre os
intersexuais fica comprometida: menos do que tentar ajudar a
natureza a encontrar seu rumo, trata-se de manipulá-la para que
se adeque a um padrão cultural.

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