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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – FAFIC


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – DHI
Disciplina: Teoria da História
Docente: Prof. Dr. Francisco Linhares Fonteles Neto
Discente: Arthur Ebert Dantas dos Santos

PAPER
ENTRE A TAIPA E A CARNAÚBA: O DESCASO ESTATAL PARA COM OS
MORADORES DA “VELHA” SÃO RAFAEL/RN

Em meados do século XX, os Annales revolucionaram a maneira de se produzir


historiografia, visto que a História até aquele ponto era considerada metódica e/ou dita
positivista. Os métodos positivistas de se produzir a antiga história limitavam as noções
de fontes, excluíam os indivíduos que eram considerados como “pequenos” e eram
quase que exclusivamente focados na narrativa, fazendo assim com que os objetos de
pesquisa também fossem limitados, obrigando aos historiadores daquela época a focar
na História Politica e sempre analisar os acontecimentos históricos considerando apenas
os feitos executados pelas grandes figuras. Até que por volta de 1929, ano da primeira
publicação da revista Annales d'histoire économique et sociale, Marc Bloch e Lucien
Febvre renovaram o quadro de pesquisas históricas ao ampliarem a noção de fonte,
inserirem a interdisciplinaridade fazendo assim a História dialogar com outras ciências,
enfoque para a Antropologia, além da maior valorização das massas, dando se início
também à análise da “História Vista de Baixo”.

A partir da “Nova História”, o mundo conheceu vertentes como a “História das


Mentalidades”, “História Cultural” e a “História Social”. Nesse ensaio, se trabalhará
com a História Social, sendo assim, podemos caracterizá-la como sendo a escola
historiográfica que irá tratar da experiência dos grupos sociais mais pobres ou excluídos
da sociedade, sempre dando enfoque a como essas relações sociais conformavam
historicamente as estruturas sociais. Características essas que podem ser confirmadas a
partir da afirmação de Hebe Castro, “[...] A história social em sentido restrito surgiria,
assim, como abordagem que buscava formular problemas históricos específicos quanto
ao comportamento e às relações entre os diversos grupos sociais.” (1997, pág. 48).
Por muito tempo se esteve presente no imaginário popular brasileiro a imagem
do Nordeste como uma região atrasada e arrasada pela seca, seja por falta de
investimentos dos diversos governos que se sucederam ou então pelas condições
climáticas da própria região. Interior do estado do Rio Grande do Norte, mais
precisamente na região do Vale do Açu1, se encontrava uma pequena cidade de nome
São Rafael, cidade ribeirinha que teve sua origem na beirada do Rio Piranhas-Açu.
Assim como todas as cidades vizinhas, a cidade de São Rafael e toda sua população
sofriam com as dificuldades que as secas traziam ao Nordeste. Como forma de sanar as
dificuldades do semiárido potiguar, o DNOCS2 apresentou o Projeto Baixo-Açu, que
consistia na construção de uma barragem para as imediações da cidade de Assú,
afirmando que esse projeto traria o desenvolvimento econômico e o progresso para
aquelas redondezas. Dentre tantos empecilhos que viriam a se apresentar contra aquele
projeto, talvez o de maior impacto para a obra fosse a própria cidade de São Rafael que
se encontrava no caminho das águas. O governo daquela época teve de pensar em toda a
reestruturação, tanto geográfica quanto econômica, da cidade e de sua população, para
isso foi assegurada à população que eles receberiam novas moradias em outra região,
inclusive sendo de pedido da maioria de que suas casas fossem estabelecidas ao lado de
seus vizinhos originais, formas de obtenção de renda, saindo da agricultura para a pesca.
A partir desse pressuposto, o presente trabalho pretende abordar a forma como as
famílias da “antiga” cidade de São Rafael foram prejudicadas pelo não cumprimento das
promessas feitas pelo DNOCS, produzindo assim um pequeno grupo de miseráveis e
“sem-terra” temporários.

Para iniciar, analisaremos o fato social a partir de uma análise macro, é


importante entender que o combate à seca ocasionalmente era a prioridade do governo
federal, só chegando a ser posta em prática quando o problema já atingia não só a região
Nordeste, mas também as grandes capitais do Brasil. Referente a isso, é possível
observar que o Diário de Natal traz a seguinte notícia: “Estudos realizados no Centro
Técnico Aeroespacial de São José dos Campos, pela Divisão de Ciências Atmosféricas,
e já encaminhados às autoridades federais, chegaram à conclusão da existência de
sombrias perspectivas de que o Nordeste seja flagelado por mais um prolongado

1
É comum a palavra Açu aparecer também grafada como Assu e Assú. Nesse ensaio, ela será escrita com
Ç, ao se referir ao Projeto Baixo-Açu e ao Rio Açu.
2
DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
período de estiagem que se estenderia até 1985.” (DIÁRIO DE NATAL, 1980 , ed.
10925, pág. 2).

Na esfera do micro, no Rio Grande do Norte, o combate aos flagelos da seca


também não foram bem estimulados por seus governadores, pelo menos não enquanto
não se tivesse algum tipo de beneficiamento em troca da obra. No caso da “velha” São
Rafael, alguns pontos devem ser levados em consideração para o maior entendimento
do retorno político que o Projeto Baixo-Açu iria trazer para os mandatários estaduais e
federais. A microrregião do Vale do Açu, polo econômico estratégico do RN, assim
como grande parte da região Nordeste, passava por grandes dificuldades no início da
década de 70, fosse por falta d’água ou pelo transbordamento do Rio Açu, ocasionando
na inundação parcial da cidade do Assú. Sendo assim, o Projeto Baixo-Açu viria em boa
hora para resolver tais problemas, seja com o barramento do Rio Açu, ou com o
prometido fim da falta de água, resultado da barragem. Então para fortalecer a economia
do Estado e garantir uma possível melhora na manutenção dos recursos hídricos da
região, os mandatários preferiram sacrificar a “velha” cidade de São Rafael sem algum
tipo eficaz de reestruturação da cidade e de seus habitantes.

Foi então que na década de 80, com as obras da barragem já próximas de sua
conclusão, que grande parte da população da “velha” São Rafael já teria migrado para a
nova cidade, localizada a pouco mais de 4 km da cidade original. Mas pelo
descompromisso do DNOCS em cumprir o que foi acordado com os moradores,
algumas famílias da “velha” cidade ainda se encontravam em suas localidades originais,
como mostra a notícia do Diário de Natal, contendo a súplica da moradora Maria
Cândida Pinheiros: “A população receia que as águas atinjam a nova São Rafael. A
velha está desaparecendo sob as águas.” (DIÁRIO DE NATAL, 1984, ed.00077, pág.
5).

“Na antiga cidade, uma verdadeira caravana de curiosos retira os últimos


animais domésticos, ou transferem, das últimas casas ainda de pé, os restos
de tijolos, telhas e todo material de construção encontrado. Os
paralelepípedos da antiga avenida principal também estão sendo removidos e
as últimas quatro famílias ainda lutam por uma casa na nova São Rafael, hoje
negadas pelo DNOCS. Este é o caso de Maria Cândida Pinheiros que mesmo
com a expectativa da proximidade das águas, ainda espera que o DNOCS
cumpra a promessa. Ela acusou a existência de subornos entre as assistentes
sociais do Departamento, que teriam dado casas a famílias estranhas ao
município, preterindo as carentes que não tinham dinheiro para pagar o que
chamou de “gratificação”.” (DIÁRIO DE NATAL, 1984, ed.00077, pág.5)

A partir dessa narrativa, pode se perceber um dos problemas sociais criados com
a construção da barragem, um número considerável de famílias estaria sem habitações e
ainda morando entre às águas por não terem para onde ir. O que segundo o prefeito
daquela época, viria ser um problema recorrente, como visto na matéria do Diário de
Natal: “... enquanto o prefeito do município, Daniel Januário de Farias (PDS), temia
pela sorte de mais 80 famílias, ainda sem casas, e que estão residindo na casa de
parentes,...” (DIÁRIO DE NATAL, 1984, ed.00077, pág. 5). Como dito acima, houve o
aparecimento de indivíduos naquela época que podem ser considerados como “sem-
terra”. Não parando o flagelamento por ai, os moradores da “nova” São Rafael ainda
tiveram de conviver com as poucas oportunidades de obtenção de renda que se
encontravam na nova localidade. Sem espaço para agricultura, jazidas de minérios
alagadas e com uma das principais fontes de renda, que seria o manuseio da carnaúba
impossibilitada pela água, o cidadão rafaelense se viu dificultado em levar adiante a
vida de suas famílias normalmente. Como se pode ver na notícia do Diário de Natal:
“São Rafael vive sérios problemas sem recursos.” (DIÁRIO DE NATAL, 1984,
ed.00078, pág. 5).

Com a safra agrícola totalmente perdida com as inundações provocadas pelas


águas da Barragem, plantações de carnaúba e jazidas de minérios inundadas,
o Prefeito não tem a quem recorrer. No município, não há parque industrial, a
não ser uma fabriqueta de sabão, para ocupar a mão-de-obra. Afora o
problema da falta de geração de renda, São Rafael enfrenta outro mais grave:
o abandono pelo Dnocs. (DIÁRIO DE NATAL, 1984, ed.00078, pág.5)

A partir dessas informações, onde foram utilizadas matérias do Diário de Natal,


pode se perceber e compreender um pouco de como se deu a experiência dos habitantes
da “velha” São Rafael, na estruturação de suas vidas em uma nova cidade. Esse trabalho
tentou remontar um pouco do descaso estatal sofrido por esses habitantes, descaso esse
que traz consequências até os dias de hoje, visto que a maioria das famílias prejudicadas
por essas ações atualmente se encontram na região mais pobre da São Rafael de hoje. A
cidade não se recuperou totalmente da perca de vias econômicas e hoje sua situação
trabalhista se assemelha muito a de 3 décadas atrás.

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