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O Mestre de Marionetes de King

Diamond
Hugo Cisneiros (Eitch)
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Essa versão foi publicada em 2015-01-25

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Conteúdo

Meia-noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

Convite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2

O Mestre de Marionetes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

Mágica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

Emerência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

Olhos azuis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

O Ritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Não mais eu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Sangue para andar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Escuridão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Tristeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Tentando viver novamente . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Vivendo morto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Sobre King Diamond e este conto . . . . . . . . . . . . . . 35


Meia-noite
Era mais uma noite fria de inverno do século 18, em Budapeste. À
meia-noite, King continuava ali parado, olhando para a rua deserta,
para a neve caindo. Era mais uma noite de natal e ele só conseguia
viver do passado, relembrando uma vida que ele nunca mais teria.
Suas memórias o atormentavam sempre. Sua mente se contorcia
enquanto lembrava de como sua vida (se é que ele poderia chamar
de vida) era miserável. Seria ótimo se ele pudesse esquecer tudo
aquilo e só lembrar das coisas boas, mas nada superava o seu desejo
de sua própria morte.
Pena que nem isso ele conseguia fazer.
À meia-noite, ele lembrava de como era bom ter uma vida normal,
livre de miséria, desespero e desesperança. Mas também sempre
lembrava de todo aquele sangue que tinha visto.
– Uma vida normal pra mim não era pra ser – Pensou.
E que comece o show.
Convite
Era mais um dia frio de inverno do século 18, em Budapeste. King
passeava pelas ruas da cidade, procurando lembranças de Natal para
presentear. Havia um pouco de neve, mas o calor humano das ruas
lotadas disfarçava o frio. Nada melhor do que dar uma olhada na
Váci utca, uma rua comercial no centro da cidade.
King estava sozinho, e não por acaso. Ele era reservado e não
conseguia se socializar muito bem com as pessoas. Os presen-
tes eram uma tentativa de melhorar um pouco sua imagem com
alguns conhecidos. Dentro dele, havia uma mente imaginativa,
introspectiva e um pouco perturbada. Seus sonhos eram a maior
fonte de divertimento que tinha. Talvez sua personalidade fosse
consequência de uma enxurrada de histórias, experiências e vidas
completas advindas dos sonhos (e dos pesadelos).
Entre uma loja e outra, King percebeu que havia uma mulher
alta, pesando por volta de 120 kg, cabelos longos e negros, usando
uma roupa colorida, porém escura, um pouco empoeirada. Ela se
destacava bem na multidão, e isso era uma vantagem pra ela, pois
estava convidando a todos que passavam a conhecer o Teatro de
Shows de Marionetes, um pouco ao norte da cidade.
– As marionetes mais fantásticas que você já viu! – começou ela –
Não percam os shows fantásticos, onde o grande Mestre Laszlo fará
as marionetes atuarem de forma mágica! Venham! Venham para o
Teatro de Shows de Marionetes de Budapeste!
Muitas pessoas iam até ela para saber mais, outras passavam direto
olhando estranho. King gostava de ir em peças teatrais, elas faziam o
seu fardo imaginativo escapar um pouco e o mantinham são naquele
mundo de pessoas. Se aproximou da mulher e pediu mais informa-
ções. Por alguns instantes, ela parou um pouco de falar e olhou para
Convite 3

ele com olhos de interesse. Depois segurou amigavelmente o braço


esquerdo de King, indicando:
– Tenho certeza que você apreciará muito o nosso show. Sei
facilmente reconhecer pessoas com bom gosto para um mundo
fantástico! Você é uma delas. Venha para o nosso show no dia de
Natal! É o show mais especial do ano, tenho certeza que você vai
adorar.
King ficou um pouco sem graça e indefeso diante daqueles 120 kg
de persuasão. Mas sorriu e gostou da ideia. Anotou o endereço em
um pedaço de papel, agradeceu e voltou ao seu caminho, quando a
mulher se despediu falando:
– Se precisar de alguma coisa no show, meu nome é Emerência.
Comprou suas lembranças e foi embora para casa.
O Mestre de Marionetes
Era noite de natal e na Kárpát utca em Budapeste, haviam tantas
pessoas na fila que King não conseguia acreditar. O show deveria
ser muito bom para tirar todas aquelas pessoas de suas casas em
pleno natal. Naquela rua, a atmosfera era de uma noite escura e
sem brilho, mesmo assim, um sentimento de mistério e curiosidade
tomava conta daquelas pessoas, incluindo King. Era uma noite e
tanto para assistir um show de natal.
As pessoas foram entrando no teatro, que não era tão grande e
comportava por volta de 250 pessoas. King, que já se encontrava
na fila, foi chegando perto da entrada, quando percebeu que quem
estava recebendo-os era Emerência, que estava praticamente com
as mesmas roupas de quando ele a viu pela primeira vez. Alguma
coisa naquela mulher despertava uma curiosidade sutil em King.
Quando ele chegou na entrada, Emerência deu um pequeno sorriso
de canto da boca, pegou o dinheiro do ingresso e pediu para King ir
entrando e escolhendo o seu lugar.
Sentou-se mais ou menos no meio da plateia, nem muito perto
do palco, nem muito longe. O teatro por dentro tinha uma at-
mosfera escura e sombria, tanto quanto a noite lá fora. Lâmpadas
a gás iluminavam um pouco mais, perto do palco. As cadeiras
começavam a encher. King olhou em volta e percebeu que apesar
de que a noite seria de um show de marionetes, o publico era
em sua maioria adulto. Não conseguiu enxergar nenhuma criança,
no mínimo alguns jovens com 18 anos. Ficou pensando se aquele
pessoal também era como ele, que estava sozinho ali.
Percebeu que ele nem sabia do que se tratava o tema do show.
Naquele dia em que conheceu Emerência, ela foi tão direta e con-
vincente que cativou ele espontaneamente. King não se preocupou
nem um pouco sobre aquilo, ele tinha apenas o simples desejo de
O Mestre de Marionetes 5

assistir ao show.
Enquanto seus devaneios corriam pela mente, uma moça se sentou
do lado dele. Ela parecia estar sozinha, e aos olhos de King era
linda. Ele tentava disfarçar um pouco o olhar, mas dava pra perceber
que ficou um encantado com ela. Já ela, estava achando ele muito
esquisito e se sentia um pouco incomodada com aqueles olhares.
King ficou um pouco constrangido com suas próprias ações e fez
um esforço grande pra não olhar mais pra ela.
Acabou conseguindo.
Emerência deixou entrar uma última pessoa e logo fechou a porta
principal do teatro. O ambiente ficou um pouco mais escuro do que
já estava e o palco agora estava bem mais em destaque. Quando
todas as pessoas já estavam sentadas em seus lugares, conversando,
desejando um feliz natal para quem estava perto, e depois de alguns
minutos, Emerência aparece na frente do palco e anuncia:
– Bem-vindos! Bem-vindos ao incrível show do Mestre de Mari-
onetes Laszlo! Um show especial para todos vocês que apreciam
a fantasia! Nesta noite de natal, nós lhe daremos um show único,
como vocês jamais irão ver!
Ao terminar de anunciar o começo do show, Emerência se pôs ao
lado do palco e mexeu em alguns mecanismos. A cortina negra
começou a subir e o silêncio envolto de mistério imperou sob a
plateia. Um boneco de marionete se encontrava no meio do palco,
sentado, inerte. O cenário era simples e representava uma noite de
neve como qualquer outra.
Então apareceu uma outra marionete, do canto do palco. E depois,
logo atrás dele já veio outro. Os dois começaram a andar em direção
à marionete parado. O Mestre de Marionetes estava mais em cima,
controlando os bonecos com seus fios nas mãos. Esbanjava uma
maestria impressionante na movimentação dos bonecos, tão fluidos
que King ficou impressionado e até esqueceu da moça ao seu lado.
As marionetes se encontraram mais ao centro do palco e de repente
O Mestre de Marionetes 6

os três estavam se movendo! A plateia fazia sons de surpresa e


admiração. O Mestre de Marionetes deveria ser alguém muito ta-
lentoso para conseguir mover daquele jeito três bonecos ao mesmo
tempo. Quando menos se esperou, os bonecos estavam se movendo
por todo o palco, divertindo e impressionando a plateia. No fundo,
algumas tradicionais cantigas de natal tocando. Não havia um
enredo evidente naquilo tudo, mas o ambiente, as músicas e os
movimentos das marionetes deixavam a plateia satisfeita.
King achou os bonecos feios, horríveis. Eles eram grandes, mais
ou menos do tamanho de crianças de 3 a 4 anos. Tinham o corpo
completo e pareciam pesados. Cada um com uma roupa diferente.
Os olhos estranhos fora o que mais chamou a atenção de King.
Passou pela mente dele que eram marionetes grotescos, como se
fossem crianças doentes com a praga.
E o show continuou. Quando as coisas estavam começando a ficar
repetitivas, a música começou a ter um tom mais dramático (e
horripilante). De repente, o Mestre de Marionetes puxou um dos
fios e soltou uma perna de um, puxou outro fio e soltou uma cabeça
de outro boneco, puxou mais um e em seguida soltou todos os fios.
Por um instante, os bonecos pareciam que iam cair e ficar sem
movimento, mas para a surpresa de todos nenhum caiu.
Todas as marionetes ficaram de pé. E depois de um instante,
continuaram a se mover.
Toda a plateia levantou de suas cadeiras e aplaudiu, incluindo King.
No meio das marionetes estava um Little Drummer Boy (Pequeno
Tocador de Tambor) tocando a sua musiquinha clássica. A plateia
começou a sentar novamente, quando King olhou naqueles olhos
bizarros da marionete e sentiu um frio na espinha. Ele pensou:
– Não… Eu acho que ele olhou pra mim… Ele está vivo!?
Terminou de se sentar, com o coração batendo forte e desconfiado,
olhou para o seu lado. Sem querer, seus olhos se encontraram com
os da moça ao lado, e por alguma razão o constrangimento anterior
O Mestre de Marionetes 7

desapareceu. Por alguns segundos, continuaram olhando um para o


outro, como se encontrassem alguém que os entendiam.
Os dois estavam assustados.
Mesmo assim, King voltou seu olhar para o show e continuou
assistindo, impressionado, hipnotizado. O show continuava a lhe
trazer um sentimento mágico e misterioso. No final da música de
tambores daquele marionete, King nota um minúsculo corte na
mão esquerda da marionete. E naquele corte havia uma mancha
vermelha-escura.
– Sangue! – Pensou King.
O show foi acabando, junto com sua magia. Apesar de um pouco
assustado, King ficou bem calmo e sereno. Não era a primeira vez
que a imaginação dele trazia sentimentos tão à flor da pele nele.
Laszlo, o próprio Mestre de Marionetes, agora estava no meio do
palco, cercado pelas suas crianças. Todos aplaudiram com muito
fervor, enquanto as cortinas se abaixavam e o show acabava. As
pessoas conversavam, comentavam, todas felizes. Não tinha como
não amar todo aquele espetáculo. E foram saindo do teatro.
Perto da porta principal, a moça estava andando na frente de King.
Por algum impulso que não era normal nele, tocou no ombro dela
e falou:
– Me chamo King. Espetáculo incrível, não? – Oi, sou Victoria.
Incrível é pouco… Nunca vi nada assim.
E o que antes era constrangedor, agora os dois se sentiram confortá-
veis um com o outro. Saíram juntos do teatro naquela noite incrível.
Mágica
King e Victoria pararam do lado de fora do teatro. O ar estava frio
e úmido. Eles observaram, quietos, as pessoas voltando para casa.
Ambos estavam procurando alguém que tinha sentido o mesmo
que eles, mas não encontravam. Aquelas pessoas não poderiam
acreditar que o que eles viram era mágica.
Quando o teatro já havia fechado suas portas e quase não havia mais
pessoas perto, os dois começaram a andar. Andaram bem devagar
e começaram a conversar. Passaram toda a noite se conhecendo,
percebendo que tinham tantos gostos em comum, tão parecidos.
Quanto mais King a conhecia, mais ele queria se aprofundar nela.
Foi tão bom que ambos se esqueceram, mesmo que por um mo-
mento, daquele bizarro boneco e seu tambor.
King estava anestesiado com Victoria. Não tinha percebido o quanto
ela estava deslumbrante. Apesar de ser noite de natal, ela estava com
um vestido longo, negro, com algumas camadas de tecido descendo
desde a cintura até aos pés. No meio do vestido, indo dos seios até
os pés, um vermelho vinho, sutilmente coberto pela parte externa
do vestido, amarrado com cadarços negros. Usava luvas também
negras, mas que não cobriam seus dedos. Por fim, um casaco por trás
do vestido. Seus cabelos iam até abaixo do ombro, também negros
como o vestido. Para King, aquelas vestes sombrias e deslumbrantes
faziam seu coração bater forte.
De repente, enquanto Victoria contava algumas de suas vontades
sobre conhecer outras culturas em países diferentes, King sentiu um
forte calafrio que o arrepiou por todo o corpo. Continuou ouvindo
as estórias de Victoria, mas seu corpo começou a ficar gelado, sua
mente se distanciando. Sentiu como se um fantasma sussurrasse um
ar frio em seu ouvido:
Mágica 9

– Beije-a agora…
E a beijou. Um beijo espontâneo, autêntico e longo, que foi muito
bem recebido por Victoria. Os dois estavam apaixonados um pelo
outro. Uma sensação de amor eterno que os dois nunca sentiram
antes. Naquela noite, tudo era mágico, inesquecível. Os dois viram
mágica nos olhos um do outro. E desde então se tornaram amantes.
Exatamente um ano após aquela noite incrível, Victoria resolveu
sair no dia de natal em busca de alguma coisa que a fizesse reviver
aquilo. Decidiu que iria nas redondezas do teatro procurar algo para
que os dois comemorassem mais tarde o aniversário de um ano que
se conheceram.
Avisou King que iria lá, e fez questão de que ele não fosse, para
não estragar qualquer surpresa que ela tentaria fazer. O desejo de
Victoria era capturar a nostalgia daquele lugar.
Saiu no final da tarde e disse que voltava até as oito.
Não voltou.
Emerência
King escreveu um recado e deixou em cima da mesa, perto da
entrada de casa. Caso Victoria voltasse enquanto ele estivesse
procurando por ela, ele estaria em casa, com certeza, até a meia-
noite. Estava mais frio do que o normal lá fora, então colocou um
casaco bem grosso e saiu à procura de sua amada. Seu rosto estava
mais pálido do que nunca, devido à tanta preocupação.
Chegou no teatro e a rua estava vazia, tudo fechado. Naquele escuro,
as sombras criadas pela lua aparentavam estar grossas e velhas.
King pensou que eles poderiam ter ido ao show desse ano, se
Victoria tivesse voltado cedo para casa, e era isso que ele achava
que ela faria. Mas o show daquela noite já havia acabado há algum
tempo.
Procurou algum lugar aberto por perto. Nada. Olhou nas ruas em
torno do teatro e não encontrou uma alma viva sequer. Voltou ao
teatro, suspirou e sentou um pouco para pensar qual seria o próximo
local que ele procuraria. Do banco que ele sentara, conseguia ver
uma parte dos fundos do teatro, que estava mais escuro do que ao
redor. Enquanto olhava, pensou ouvir alguma coisa e resolveu ir lá
ver se sua amada estava lá.
Chegando bem perto, sentiu mais um daqueles calafrios que ele
conhecia. Era como se fosse uma ordem para ele não prosseguir
em frente, ir embora. Com um pouco de relutância, não quis saber
e continuou. Quando ouviu um barulho de algo se abrindo, se
escondeu atrás de um muro bem perto e percebeu que ali, na parte
de trás do teatro, havia um alçapão que provavelmente dava para
um porão, bem embaixo do teatro.
Espiou pelo canto do muro e viu o alçapão se destrancar e abrir. Sob
aquela lua sinistra, uma sombra imensa apareceu. King viu que não
Emerência 11

era o amor de sua vida, mas conhecia aquela pessoa. Aqueles 120
kg de carne humana naquele lugar só poderia ser de uma pessoa:
Emerência.
Ainda sentindo calafrios estranhos, resolveu esperar um pouco mais
escondido. King poderia ter ido lá e perguntado para Emerência
se ela tinha visto Victoria, mas por alguma razão não queria. A
sombra de Emerência parecia estranha pra ele, como se emanasse
algo diabólico. A lua não mentia.
Durante o ano em que conheceu Victoria, King descobriu que aquele
teatro era realmente especial. A quantidade de shows não era muito
grande, mas todos os shows eram incríveis, principalmente os feitos
em datas comemorativas como o natal. King soube também que
toda essa qualidade era concedida apenas por duas pessoas: Laszlo,
o Mestre de Marionetes, e sua esposa Emerência. Desde então, para
ele os dois eram seres humanos incríveis, misteriosos e fantásticos.
King, ainda escondido, viu que ela estava puxando um carrinho
e estava com uma espécie de bolsa de ferramentas na cintura. O
que seria aquilo? Enquanto Emerência caminhava pelas ruas mais
estreitas de Budapeste, King seguia espionando-a. Ele pensou no
que aquela mulher faria, e se tinha haver com o sucesso com que
faziam o teatro. Quem sabe ele não poderia descobrir algo valioso
que sua amada havia encontrado.
Já era bem tarde da noite, quando Emerência parou em uma das
vielas ao perceber que havia um mendigo dormindo no chão. King
seguiu atrás e ficou com pena daquele homem, sujo, doente e
sozinho no chão, em uma noite de natal.
Emerência começou a andar bem de leve, sem fazer nenhum baru-
lho, em direção ao mendigo. Enquanto chegava cada vez mais perto,
foi colocando a mão na bolsa de ferramentas em sua cintura e tirou
uma faca. King, ao ver isso, ficou um pouco desesperado. Pensou:
– Emerência, o que você está fazendo com essa faca?
A adrenalina que correu pelo corpo de King fez ele até esquecer um
Emerência 12

pouco de sua busca por Victoria. Continuou a espreitar nas sombras


e viu Emerência enfiar a faca rapidamente no peito do mendigo,
que morreu rapidamente. Emerência então deixou a faca enfiada
no peito do mendigo e rapidamente pegou um saco, embrulhou o
corpo do mendigo e o colocou no carrinho.
Não havia sangue em volta. A mesma faca que matou o mendigo,
ficou enfiada para que o sangue não jorrasse para fora enquanto
Emerência o embrulhava no saco. King ficou praticamente con-
gelado com a cena. Como era estranho… Como era estranho ver
uma vida se escorregar e acabar… Como era estranho que naquela
escuridão, o sangue do morto era negro, e não vermelho.
Emerência saiu tão rapidamente do local como tinha chegado. Era
melhor que ela saísse antes de ser pega em flagrante. De novo entre
as ruas escuras e velhas da região, ela continuou seguindo até chegar
de volta no teatro. Perto do alçapão, em uma escuridão mais sombria
do que o normal, ela tirou o corpo do carrinho, abriu o alçapão e
adentrou pelas suas escadas escuras.
Então King pensou, como se estivesse hipnotizado:
– Emerência… Ninguém deve saber disso. Só a lua e eu somos
testemunhas de tal ato. E nenhum de nós dois vai contar nada disso.
E pensou o pior:
– Por que Emerência fez isso? Victoria… Ela veio aqui mais cedo…
Ela… desapareceu… Não pode ser… Emerência não fez isso…
Enquanto olhava para o alçapão aberto, King estava congelado, em
choque, com aquela possibilidade em mente. Depois de um minuto,
ele não conseguia suportar a ideia de que algo tão ruim pudera
acontecer com sua amada e em um misto de coragem e desespero,
correu em direção ao alçapão. Olhou para dentro e tudo estava
escuro.
Adentrou em busca de sua amada. Quando chegou lá embaixo, viu
o horror, mas não viu Emerência. Onde ela poderia estar? E então
Emerência 13

King caiu desmaiado com um golpe na cabeça que Emerência, de


um canto escuro, acertou na cabeça dele.
Olhos azuis
Estava tudo muito escuro quando King abriu os olhos. King não
conseguia ver nada. Mesmo assim, ele estava com um sentimento
dentro dele, de que não havia ninguém ali além dele. Mesmo assim,
não conseguia enxergar e nem se mexer, estava ainda desorientado
de tudo.
Quando começou a recuperar um pouco mais a sua consciência, ele
se sentiu muito gelado. Ele achou que estava deitado no chão frio, e
percebeu que suas mãos estavam presas na parede. Eram correntes
de ferro, que o prendiam, e nem se ele pudesse, conseguiria se mover
muito.
Enquanto sua visão absorvia o escuro em sua volta, ele foi lem-
brando do que aconteceu. Em vez de desespero, sentiu uma tristeza
profunda, além de um sentimento de incapacidade total. Quando
começou a enxergar na penumbra, sua visão o fez lembrar do
horror. Ele estava no porão do teatro.
King ficou ofegante e atordoado vendo todos aquelas marionetes
grotescas, que agora lhe pareciam mais esqueletos vestidos de pele
humana. Em toda a sala que ele estava, dezenas de marionetes
sentadas em suas estantes. Em cada marionete, ele observava seus
olhos bizarros. Os olhos estavam mortos, diferente de quando tinha
visto no espetáculo.
King só conseguiu pensar naquele porão como um pecado materi-
alizado.
Enquanto olhava aterrorizado para as marionetes e seus olhos,
congelou quando reconheceu alguns deles. Começou a se debater
tentando se mover, sem sucesso.
– Esses olhos azuis… Esses olhos azuis… Eu os reconheço… São os
olhos da minha amada… Nãããooo!
Olhos azuis 15

Lágrimas caíram dos seus olhos desesperados.


– Isto tem de ser um sonho! TEM DE SER UM SONHO!
De repente, todos aqueles olhos que para King pareciam mortos,
se tornaram pra eles tão vivos quanto os olhos da sua amada. Não
havia olhar nenhum, de nenhum deles, mas mesmo assim…
– Olhos azuis… Eu reconheço esses olhos azuis… – Continuou
murmurando repetidamente, enquanto chorava e se debatia.
Aqueles olhos na escuridão acabaram com King.
O Ritual
King continuou preso, sozinho, indefeso, desesperado, chorando,
por uma hora, até que Laszlo, o Mestre de Marionetes, e sua esposa
Emerência chegaram. Olharam imponentes para King, mas não
falaram nada. King, com suas esperanças quase no fim, continuava
em choque e não conseguia falar nada para eles. Tudo o que
conseguia era continuar olhando para os olhos de Victoria.
Enquanto Laszlo olhava para King, Emerência acendia algumas
lâmpadas de gás no porão. Com aquela pouca luz sombria, podia
se perceber outros detalhes no porão, e não apenas as marionetes.
Havia uma estante com livros antigos, daqueles que estão para se
deteriorando. Em uma mesa, em um canto, podia-se ver caveiras
humanas de diversos tamanhos.
Em algumas partes das paredes do porão, havia também estranhos
símbolos pintados do que parecia ser uma tinta de um vermelho tão
escuro que parecia preto. Laszlo e Emerência começaram a acender
várias velas pretas e colocar perto das paredes e no chão de pedra.
No centro, havia um altar.
Emerência tira as correntes de ferro de King e contra a sua vontade,
o carrega e o põe deitado no altar. King estava muito fraco para
conter a força de Emerência, e nada conseguia fazer. Emerência
continua segurando ele pelas mãos, enquanto King se debatia.
Tentou tanto que gastou todas as suas forças, estava completamente
exausto. Parou, olhou para o teto temendo por sua vida.
Inconformado com a situação e sem mais forças, se entregou e
olhou em direção aos olhos de Victoria em uma das marionetes na
estante. Além das marionetes, haviam também jarras de vidro com
um líquido escuro dentro. Para cada uma das marionetes, um jarro.
Enquanto Emerência continuava a segurar King pelos braços, O
O Ritual 17

Mestre de Marionetes começou a murmurar palavras mágicas, de


tempos antigos…

Oculi videre non possunt

Anima autem non potest loqui

Um silêncio mortal tomou o porão, e King começou a sentir estra-


nho, não podia falar. O fogo das velas se tornou mais forte, como se
estivesse criando microexplosões.
E o Mestre de Marionetes então começou a falar mais alto:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

Beze magusde ou dazuribe leie orivan

King sentiu sua mente começar a se esvaziar. Sua visão escureceu


e seus olhos reviraram para cima, deixando apenas a parte branca
do glóbulo à vista. Sua boca estava aberta como quem queria gritar,
mas nada saia. Sua língua entrava e saía da boca como se estivesse
vomitando. Dentro de si, seu estômago se contorcia, seu coração
batia mais forte do que jamais batera.
O Mestre continuou:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

Douvo irum de berbu leie dikatium


O Ritual 18

King então sentiu algo invadindo sua consciência. Ele sentiu como
se aquela entidade estivesse roubando sua alma. King havia desis-
tido e perdido todas as esperanças, mas o desespero de ter sua alma
tirada dele o fez ter um pouco de força e, em pânico, chutou um
suporte de luz que havia do lado do altar e do Mestre de Marionetes.
O suporte caiu forte em uma das estantes e derrubou um dos jarros
de cima no chão. Laszlo interrompe suas palavras e por um instante
King recupera a visão e olha para o jarro quebrado no chão. Era
tudo vermelho. Muito vermelho.
– Tão vermelho… SANGUE! – pensou, tentando gritar mas sem
conseguir.
O Mestre de Marionetes se enfureceu e gritou para King:
– Como você ousa interromper o meu trabalho!?
Então Emerência bateu forte e repetidamente com um pedaço de
madeira nas duas pernas de King, que sentiu mais dor. Suas pernas
então nem podiam mais se mexer direito.
O Mestre de Marionetes esfrega as mãos no chão cheio de sangue e
começa a manchar os símbolos de caveiras demoníacas na parede,
fazendo-os ficar mais vermelhos. Depois volta para o altar, fica ao
lado da cabeça de King e continua seu ritual:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

King então perdeu a visão completamente, e sentiu uma picada


aguda em seus olhos. E com essa picada, sua alma foi direto para
seus olhos e ficou presa dentro deles. Por um momento a dor passou
e ele se sentiu imortal.
O Mestre de Marionetes sabia bem como trocar almas com aquele
demônio. Para ele aquelas almas eram como ouro.
O Ritual 19

O ritual acabou e King, ainda imóvel, foi solto por Emerência. Ele
ficou ali, deitado naquele altar condenado. Aos poucos foi voltando
a sentir dor. Sua visão e seus sentidos voltaram. Exausto, não
conseguia fazer nada além de continuar deitado, arruinado, então
desmaiou.
Não mais eu
– Por que estou amarrado nesta cama de hospital? – King pensou,
enquanto olhava para o Mestre de Marionetes e sua esposa na frente
dele.
Nas mãos do Mestre estava um bisturi bem brilhante, enquanto sua
esposa estava pegando um jarro vazio, pro sangue. King ainda temia
pela sua vida, e muito:
– Será que isso um adeus à minha doce vida? – King pensava
melancolicamente.
O Mestre de Marionetes começa:
– Primeiro os seus olhos, depois a sua pele. Vamos fazer você se
sentir renascido… Não serás mais tu, meu amigo.
O bisturi começou cortando as pálpebras dos dois olhos, deixando os
olhos bem à mostra. King assistia tudo e estava então chorando san-
gue. Com cuidado, Laszlo enfiou os dedos em volta do olho direito
de King e o puxou pra fora. Emerência pegou uma tesoura e cortou
o nervo ótico, livrando o globo ocular do corpo completamente.
Repetiram o mesmo procedimento no olho esquerdo.
King sangrava bastante. Emerência aproveitou todo aquele sangra-
mento e foi colocando o sangue o jarro, o máximo que conseguia.
Sem os olhos, King não conseguia ver mais. Agora eles estavam em
uma pequena bandeja cirúrgica. Mas de alguma forma, King ainda
achava que tinha seus olhos azuis nele.
O Mestre de Marionetes pegou uma de suas marionetes, ainda
incompleta, e colocou os olhos de King nos soquetes do boneco.
Imediatamente, King recuperou a visão. Ele estava vendo! Mas ele
estava vendo… ele mesmo.
Não mais eu 21

– Estou olhando para mim mesmo… Mas não sou eu… Não mais
eu… Eu não tenho mais olhos.
Confuso e ainda com uma imensa dor, sentiu suas veias como ver-
mes morrendo queimados à luz do sol. Passou um bom tempo assim,
enquanto assistia Laszlo e Emerência tirar a pele de todo o seu
corpo. Seus sentidos começaram a ficar dormentes, entorpecidos.
A dor finalmente passou e King ficou um pouco mais sereno. Todo
seu sangue estava agora em pequenos jarros de vidro.
– Eu deveria estar morto… Mais ainda vivo… Eu ainda vivo dentro
dos meus olhos…
Por fim, viu Emerência jogar a carcaça dele no lixo.
Sangue para andar
Um dia depois, lá estava King sentado em uma estante daquele
porão maldito, olhando para todos as outras marionetes. Seus
últimos restos agora eram um maldito boneco.
King podia ver, mas não podia se mexer. Era muito estranho para
ele, pois ainda tinha sentimentos, mesmo sem seu corpo. Seus olhos
observavam todo o ambiente escuro, procurando alguma resposta.
Todas as marionetes, mesmo com olhos, estavam mortas.
Mais um dia se passou e King não parou um segundo sequer de
olhar. E nem se quisesse ia conseguir. O ritual tornara seus olhos
eternos, olhos que nunca dormiam. E foi então que King percebeu
os olhos de Victoria em uma outra estante. Mesmo naquele escuro,
ele não tinha mais dúvidas: aqueles eram os olhos da sua amada
Victoria. Ela estava lá, sozinha e muito morta.
Algumas horas depois, King enxergou uma luz vindo de uma das
portas do porão. Uma luz na escuridão era algo que King nem
esperava mais ver. E então entraram o Mestre de Marionetes e sua
esposa, com sorrisos na cara. O Mestre então falou com um tom de
empolgação:
– Olá crianças! Mamãe e Papai chegaram. Agora vamos brincar…
Com sangue, vou ensiná-los tudo que precisam saber.
Então pegou Victoria e a colocou sentada no chão. Em seguida
pegou King e o colocou também sentado ao chão, de frente para
Victoria. Duas das mais grotescas marionetes já feitas. Laszlo então
começa a amarrar fios nas mãos, pés e cabeça dos dois. King
observava tudo, inclusive os olhos mortos de Victoria.
Quando todos os fios estavam no lugar, o Mestre começou a fazer
movimentos com os dois. De repente, King sente uma picada,
seguida de um formigamento estranho, que estava fora de seus
Sangue para andar 23

olhos eternos. Era Emerência injetando o sangue dele com uma


seringa, dentro do corpo da marionete. King sentia aquele sangue
quente como se percorresse suas veias inexistentes.
Enquanto fazia o mesmo com Victoria, ele começou a sentir cada
vez melhor seu novo corpo. Laszlo levantou as duas marionetes,
deixando-os em pé, olhando um para o outro. Foi aí que King
percebeu que a sua amada estava lá na sua frente. Aqueles olhos
estavam vivos novamente. Se pudesse chorar de emoção, King teria
feito. Ele não podia acreditar que a sua amada Victoria estava de
volta à sua frente, viva.
O Mestre de Marionetes começa a falar:
– Sangue para andar, sangue para ver, sangue para ser…
Com suas mãos habilidosas, começa a fazer com que os dois
começassem a andar, bem devagar. Ambos sentiam pontadas em
sua pele, dos fios que os controlavam. Aos poucos, eles perceberam
que podiam também, se mexer por suas vontades.
Durante cada movimento, os dois aproveitavam a chance de olhar
um para o outro. Era um show de horror. O amor era tão grande
entre os dois, que ambos acreditaram que estavam se comunicando
sem palavras, pelos olhos. Eles podiam sentir e entender, no fundo
de suas consciências, os sentimentos um do outro.
E o que ambos mais sentiam era tentar entender porque isso havia
acontecido justo com eles, e como suas mentes podiam estar dentro
de seus olhos.
– Sangue para andar, sangue para ver, sangue para ser…
Os dois estavam vivos. Se moviam. O Mestre de Marionetes ficou
satisfeito com o resultado, achou que já era o suficiente pelo dia e
os colocou de volta em seus lugares na estante.
Escuridão
Durante os 13 dias que se seguiram, King e Victoria treinaram
e treinaram como andar sozinhos. Aprenderam novamente como
se movimentar novamente, como bebês que nasceram há pouco.
Aprenderam como alongar seus corpos e suas peles. Não havia mais
nada o que fazerem e estas ações eram sua única esperança de vida.
Toda vez que treinavam, Emerência pegava seus respectivos jarros
de sangue e injetava pequenas quantidades. Toda vez que King
e Victoria sentiam a picada e o sangue quente entrando em seus
frágeis corpos, eles viviam novamente. Seus sangues, originais, de
uma vida passada, os lubrificava.

Nossos olhos agora são nossas mentes

Nossas almas… São nossa pele mágica

Nossos sangues… São de nossas vidas passadas

Quando reviviam na escuridão, tinham uma hora para aproveitar a


vida temporária que o Mestre e sua esposa lhes dava.

Na escuridão, vivemos nossas vidas…

Na escuridão, morremos novamente… E novamente, e


novamente

Todos os dias, King e Victoria treinavam e usavam os restos de


sangue para se comunicar com os olhos, cada um em sua estante.
Eles tentavam relembrar os bons momentos que tiveram um com
Escuridão 25

o outro. Era tudo o que restava pra eles, e naquela situação era o
suficiente, valia a pena.
Depois de 2 semanas de treinamento, o Mestre de Marionetes estava
satisfeito com o progresso dos dois e resolveu deixá-los fazer algo
novo. Ordenou:
– Esta noite você dançará para mim, garota marionete. Irá dançar
para mim, sem fios em você.
Victoria ficou nervosa com a notícia. Apenas 13 dias haviam se
passado, e ela não sabia dançar. Ela nunca tinha dançado. Ela não
tinha a mínima chance. E o Mestre de Marionetes não podia saber
o que se passava nos olhos dela. Depois de tirar todos os fios da
marionete, ele novamente ordenou:
– Dance!
E Victoria começou a dançar. Deu o seu melhor, improvisando
danças que ela não fazia ideia de que eram possíveis. Mal havia
aprendido a andar sozinha e já estava dançando para o seu Mestre.
Laszlo se divertia.
Em um de seus passos desastrosos, Victoria tropeçou em sua própria
perna e cai pra frente, atingindo uma das estantes em cheio. Em
alguns segundos que pareciam um lapso temporal interminável e
agonizante, 6 jarros de vidro caem no chão e se quebram.
O Mestre de Marionetes se enfureceu e bateu com as duas mãos
naquele chão cheio de vida das marionetes, cheio de sangue. Ele
olha para Victoria com sangue nos olhos e grita para Emerência:
– Mande ela embora! Quero ela bem longe daqui!
King, que observou tudo que aconteceu naquela escuridão, ficou
quase catatônico ao ouvir as palavras de Laszlo. E o Mestre com-
plementou:
– Para o outro teatro… Amanhã de manhã eu quero ela fora daqui.
Mande-a para Berlim. Mande esta marionete estúpida para Berlim.
Tristeza
Mais uma vez em estantes separadas, um virado para o outro e com
o resto de seus sangues quentes em seus sistemas, King e Victoria se
olharam. Nunca haviam sentido tamanha tristeza em todas as suas
vidas. King sabia que se eles tirassem Victoria de sua vida, ele não
seria mais nada. Não haveria mais vida. Ele estaria morto.
Sentiam um amor tão profundo um pelo outro, e dialogaram com
seus sentimentos, uma última vez.
– Me diga que isso não é um adeus… – Victoria disse com seu
intento.
– Lembre-se daquela borboleta… – respondeu King.
– Ela me fez chorar…
– Eu sei… Mas logo após enxugamos as suas asas para ela poder
voar novamente. Eu não sei se isso é o fim para nós dois, mas sei
que temos que dizer adeus. Eu também sei que eu mudaria toda a
minha vida por você. Eu morreria por você.
– Me lembrarei por toda a eternidade das coisas que costumávamos
fazer. Todas as memórias que eu tenho com você, aqui comigo. Só a
imagem de nós dois, em meus olhos. Levarei você comigo quando
for a hora de ir.
King se sentiu incapaz, mas revoltado:
– Eu prometo… Eu prometo que vou achar você novamente. Eu
continuarei procurando… Procurando até o fim dos tempos se for
preciso.
– E se eu não conseguir sobreviver sem você?
– Então me espere… Me espere do outro lado. Eu estarei lá.
Tristeza 27

Victoria começou a sentir um formigamento no corpo e já tinha


percebido o que estava acontecendo. Sua visão começou a escurecer,
sem sangue para viver. Em seu último momento junto ao seu amor,
falou:
– Eu te amo…
– Eu também te amo… Não esqueça da borboleta. Ela não morreu.
– Eu não consigo mais lhe ver…! – achou que falou, mas King não
viu e não entendeu.
King, com seus olhos eternos, continuou observando-a durante
toda a noite. De manhã, antes mesmo dos primeiros raios de sol
atingirem Budapeste, Emerência pegou a marionete e a levou para
fora do porão. Naquele último momento de visão, King pensou:
– Adeus meu amor.
Tentando viver novamente
King passou muito tempo sozinho e abandonado em seu lugar na
estante do porão. Com seus olhos eternos, observou marionetes
ganhando vida e morrendo durante todos os dias. Observou novas
almas sendo capturadas e velhos corpos sendo descartados no lixo.
Durante todos os segundos se sua meia existência, ele via tudo.
Durante todo o tempo, não conseguia pensar em outra coisa: procu-
rar Victoria. Ele já sabia que ela estava em Berlim, talvez em algum
outro teatro diabólico. Em sua cabeça, planejou minuciosamente
como poderia escapar daquele show de horror. Decorou todos os
movimentos, hábitos e rituais de Laszlo e Emerência, nos mínimos
detalhes.
Mas ele pensava à toa, pois seu corpo era frágil e sem vida. Sem
seu sangue, não conseguiria fazer nada a não ser pensar. E do que
adiantava pensar por todo esse tempo? Ele não iria ver Victoria
deste jeito. Quanto mais o tempo passava, mais ele perdia as forças
e a razão do ser.
King não sabia mais definir o tempo, e para ele era tudo um inferno
atemporal e infinito. Algumas semanas se passaram e o Mestre
de Marionetes finalmente começou a mexer com ele novamente.
Durante 9 dias, King voltava à vida com seu sangue, e seu corpo
morria logo em seguida depois do treino.
Começou a colocar seu planejamento em prática. Ele tinha que fazer
alguma coisa. Enquanto agonizava em sua consciência dentro de
seus olhos, ele se tornou a melhor das marionetes. Aprendeu a se
mexer mais fluidamente do que jamais outro boneco conseguiria.
Acabou toda e qualquer ordem do seu novo pai, o tornou orgulhoso.
King, com aquele corpo mais do que grotesco, era o melhor.
Tentando viver novamente 29

Em um de seus treinamentos, ele aproveitou um instante de distra-


ção de Laszlo e enquanto andava ritmado de um lado para o outro,
chegou perto de onde Emerência guardava as seringas e jogou uma
delas embaixo da estante.
Por mais várias semanas, King esperou que Emerência errasse. Tudo
que ele precisava era que fosse aplicado um pouco mais de sangue
que o normal nele. Ele tinha que conseguir se mover sozinho, sem a
supervisão de seus pais. Era tudo em vão, Emerência era muito boa
no que fazia.
Houve um dia em que King foi fazer um show para o Mestre de
Marionetes. Ele foi esplêndido, perfeito. A plateia se apaixonou
pelos movimentos daquele boneco feio e bizarro. Ao voltar para
o porão depois do show, King resolveu fingir estar completamente
morto novamente. Sua maestria foi tanta, que ele mesmo teve a
impressão que até seus olhos eternos haviam morrido.
Quando o Mestre e sua esposa colocaram-no de volta ao seu lugar
na estante e saíram do porão, King viveu novamente. Não acreditou
na sorte que teve e na oportunidade que estava tendo. Se jogou da
estante e caiu no chão. Um som abafado e uma mistura de panos e
corpo artificial se espatifando no chão de pedra.
King começou a se arrastar para onde ele tinha jogado a seringa há
algum tempo. Seu corpo já estava fraco devido ao show e à queda.
Não desistiu e continuou a rastejar. Conseguiu pegar a seringa, e
foi imediatamente para um dos jarros de sangue da sala. Mais cedo,
Emerência havia usado aquele jarro para injetar sangue nele, então
ele tentou o mesmo. Com sangue suficiente, ele poderia sair de lá.
Passou vários minutos tentando segurar a seringa direito, e mais
ainda tendo dificuldades em colocar o sangue dentro dela. A cada
segundo que passava, a alma de King suava frio, com medo de que
seus pais o vissem fazendo algo que não deveria. Eles não vieram,
e King finalmente conseguiu injetar sangue nele mesmo.
Em questão de segundos, ele começou a sentir seu corpo quente.
Tentando viver novamente 30

Enquanto o sangue fluía dentro dele, a dor veio. Imediatamente ele


se lembrou do ritual e de toda a tortura e sofrimento que passou
antes de se tornar uma marionete. Entrou em desespero. Caiu no
chão, com a seringa do lado, e começou a se contorcer de dor.
Era como se ele tivesse injetado um ácido extremamente corrosivo
dentro de si.
Suas memórias ficaram confusas. Seus olhos eternos começaram a,
pela primeira vez, falhar. Por um instante, sentiu a morte se aproxi-
mar e teve um dos maiores medos que já tivera. Aquele sentimento
era tão ruim, que até esqueceu de Victoria. Sua visão se tornou
turva e seu corpo de marionete estava tendo tiques involuntários.
Foi então que sua consciência foi se apagando, quando ouviu:
– Hahaha meu filho… Por que você usou o sangue de outra alma?
E King apagou.
Natal
Era dezembro e o corpo de King estava vivo novamente, desem-
penhando um espetáculo para o seu pai. O Mestre de Marionetes
se divertia com o seu melhor e mais estúpido filho. King estava
treinando para a sua próxima performance no palco. Naquele natal,
ele seria o Pequeno Tocador de Tambor.

Venha, eles me disseram, param pam pam pam

Há um novo Rei para ver, param pam pam, pam

Nossos melhores presentes trouxemos, param pam pam


pam

Para entregar ao Rei, param pam pam pam

Então honrá-lo, param pam pam

Quando chegarmos…

Para King, não havia mais esperança ou vida de verdade. Naquele


natal, sua alma já era quase a mesma de uma marionete, totalmente
dependente de seu Mestre. Para ele, nunca nada seria como antes.
Só havia tristeza em sua alma.
Em uma depressão imensurável, King pensava:
– Não há mais esperanças… Eu preciso terminar essa vida. Preciso
me livrar disso…
Continuou:
Natal 32

– Amanhã eu não serei mais nada. Mas hoje a noite… Serei o


Pequeno Tocador de Tambor. Hoje a noite… Irei ser aquele que
destrói.
King entendia tudo. Aqueles segredos nunca contados, aquelas
almas perdidas. Ele conhecia a escuridão e sabia que só havia
tristeza ali. Só havia tristeza ao redor de todos.
– É natal novamente, e nada será o mesmo.
Naquela noite, como todo ano, o teatro estava lotado de pessoas.
Pessoas felizes e animadas com o espetáculo. Como há dois natais
passados, o show era o mesmo que King havia visto pela primeira
vez.

Venha, eles me disseram, param pam pam pam

Há um novo Rei para ver, param pam pam, pam

Nossos melhores presentes trouxemos, param pam pam


pam

Para entregar ao Rei, param pam pam pam

E agora lá vou eu

Enquanto tocava o seu tambor de forma espetacular, King resolveu


se vingar de seu pai, e em seu instinto suicida, caiu propositalmente
para frente com o corpo mole, quebrando seu tambor. Com o
personagem principal caído, o show foi interrompido e a magia
nos olhos das pessoas fora quebrada. Uma grande desgraça em uma
noite de natal.
Vivendo morto
King estava lá, como sempre, naquela mesma parede, pendurado
por um pequeno prego enfiado em sua garganta. Já haviam 18 anos
que King estava de volta na Váci utca, a mesma rua comercial onde
tudo começou.
Na vitrine da loja Straaten, adultos e crianças passavam e ficavam
enojados com o boneco. Diziam que o boneco era assustador, que
parecia doente. Não conseguiam entender porque uma marionete
tão grotesca como aquela estava na vitrine da loja. Os olhos eternos
de King seguiam a todos, para nunca serem vendidos.
Durante todos aqueles 18 anos preso na parede da loja, King nunca
havia visto ou ouvido falar de sua amada Victoria em Berlim. Ele
estava ficando cada vez mais louco, insano. Seus restos iriam se
perpetuar por toda a eternidade naquela vitrine.
Aquela vida era um grande VAZIO. King se sentia um morto-vivo,
vivendo uma vida que não era vida. Ele não era mais do que dois
olhos azuis em uma cabeça vazia.
Um assunto recorrente que ouvia era sobre o teatro. Todos sempre
admiravam o teatro e o Mestre de Marionetes. O espetáculo conti-
nuava. Havia um rumor de que o grande Mestre abriria um novo
teatro na cidade de Londres. O teatro iria ser especialmente feito
para crianças.
Mesmo assim, o teatro em Budapeste continuaria. O novo teatro
para crianças seria comandado pelo filho e pela filha de Laszlo e
Emerência. Os dois aprenderam bem as artes dos pais. Aquilo iria
ser uma bagunça bem sangrenta em Londres.
Enquanto King vivia como um morto-vivo, desejando a cada se-
gundo que ele fosse para o além, Victoria estava em Berlim e
pensava:
Vivendo morto 34

– Será que algum dia irei ver aqueles olhos novamente? Irei ver ele
novamente? Onde será que ele está agora…?
Enquanto King:
– Onde será que ela está agora…?
Sobre King Diamond e este
conto
King Diamond é uma banda de Heavy Metal formada na Dinamarca
em 1985 que ao longo de sua carreira lançou vários álbuns concei-
tuais com histórias obscuras e de horror. King Diamond, o vocalista
e líder da banda, costuma dizer que todas as histórias são apenas
invenções de sonhos e devaneios de uma mente doente: a mente
dele.
A estória deste conto se baseia no álbum The Puppet Master (O Mes-
tre de Marionetes), lançado em 2003. Houve uma versão limitada
do DVD que trouxe o próprio King Diamond contando a estória.
Este vídeo pode ser encontrado no Youtube¹ e tem uma duração de
aproximadamente 30 minutos. Vale a pena conferir também.

A intenção deste conto

Este conto foi feito principalmente porque eu tenho uma grande


admiração pela banda e pelo álbum do Mestre de Marionetes, que
conta uma das estórias de horror mais macabras e tristes que já ouvi.
A grande maioria dos versos das músicas estão contidas nos textos.
A intenção é preservar toda a estória do álbum conceitual e deixá-la
o mais fiel possível à estória original.
Tomei a liberdade de adicionar alguns trechos novos, para pre-
encher lacunas que eu achei que seriam importantes na criação
de um conto. Como é uma mídia totalmente diferente, achei as
modificações necessárias para esse formato de livro.
¹https://www.youtube.com/watch?v=fHMV7AGSXwA
Sobre King Diamond e este conto 36

Espero que tenham gostado!

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