Diamond
Hugo Cisneiros (Eitch)
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Meia-noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
Convite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
O Mestre de Marionetes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
Mágica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Emerência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
Olhos azuis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
O Ritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Não mais eu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
Escuridão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
Tristeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Vivendo morto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
assistir ao show.
Enquanto seus devaneios corriam pela mente, uma moça se sentou
do lado dele. Ela parecia estar sozinha, e aos olhos de King era
linda. Ele tentava disfarçar um pouco o olhar, mas dava pra perceber
que ficou um encantado com ela. Já ela, estava achando ele muito
esquisito e se sentia um pouco incomodada com aqueles olhares.
King ficou um pouco constrangido com suas próprias ações e fez
um esforço grande pra não olhar mais pra ela.
Acabou conseguindo.
Emerência deixou entrar uma última pessoa e logo fechou a porta
principal do teatro. O ambiente ficou um pouco mais escuro do que
já estava e o palco agora estava bem mais em destaque. Quando
todas as pessoas já estavam sentadas em seus lugares, conversando,
desejando um feliz natal para quem estava perto, e depois de alguns
minutos, Emerência aparece na frente do palco e anuncia:
– Bem-vindos! Bem-vindos ao incrível show do Mestre de Mari-
onetes Laszlo! Um show especial para todos vocês que apreciam
a fantasia! Nesta noite de natal, nós lhe daremos um show único,
como vocês jamais irão ver!
Ao terminar de anunciar o começo do show, Emerência se pôs ao
lado do palco e mexeu em alguns mecanismos. A cortina negra
começou a subir e o silêncio envolto de mistério imperou sob a
plateia. Um boneco de marionete se encontrava no meio do palco,
sentado, inerte. O cenário era simples e representava uma noite de
neve como qualquer outra.
Então apareceu uma outra marionete, do canto do palco. E depois,
logo atrás dele já veio outro. Os dois começaram a andar em direção
à marionete parado. O Mestre de Marionetes estava mais em cima,
controlando os bonecos com seus fios nas mãos. Esbanjava uma
maestria impressionante na movimentação dos bonecos, tão fluidos
que King ficou impressionado e até esqueceu da moça ao seu lado.
As marionetes se encontraram mais ao centro do palco e de repente
O Mestre de Marionetes 6
– Beije-a agora…
E a beijou. Um beijo espontâneo, autêntico e longo, que foi muito
bem recebido por Victoria. Os dois estavam apaixonados um pelo
outro. Uma sensação de amor eterno que os dois nunca sentiram
antes. Naquela noite, tudo era mágico, inesquecível. Os dois viram
mágica nos olhos um do outro. E desde então se tornaram amantes.
Exatamente um ano após aquela noite incrível, Victoria resolveu
sair no dia de natal em busca de alguma coisa que a fizesse reviver
aquilo. Decidiu que iria nas redondezas do teatro procurar algo para
que os dois comemorassem mais tarde o aniversário de um ano que
se conheceram.
Avisou King que iria lá, e fez questão de que ele não fosse, para
não estragar qualquer surpresa que ela tentaria fazer. O desejo de
Victoria era capturar a nostalgia daquele lugar.
Saiu no final da tarde e disse que voltava até as oito.
Não voltou.
Emerência
King escreveu um recado e deixou em cima da mesa, perto da
entrada de casa. Caso Victoria voltasse enquanto ele estivesse
procurando por ela, ele estaria em casa, com certeza, até a meia-
noite. Estava mais frio do que o normal lá fora, então colocou um
casaco bem grosso e saiu à procura de sua amada. Seu rosto estava
mais pálido do que nunca, devido à tanta preocupação.
Chegou no teatro e a rua estava vazia, tudo fechado. Naquele escuro,
as sombras criadas pela lua aparentavam estar grossas e velhas.
King pensou que eles poderiam ter ido ao show desse ano, se
Victoria tivesse voltado cedo para casa, e era isso que ele achava
que ela faria. Mas o show daquela noite já havia acabado há algum
tempo.
Procurou algum lugar aberto por perto. Nada. Olhou nas ruas em
torno do teatro e não encontrou uma alma viva sequer. Voltou ao
teatro, suspirou e sentou um pouco para pensar qual seria o próximo
local que ele procuraria. Do banco que ele sentara, conseguia ver
uma parte dos fundos do teatro, que estava mais escuro do que ao
redor. Enquanto olhava, pensou ouvir alguma coisa e resolveu ir lá
ver se sua amada estava lá.
Chegando bem perto, sentiu mais um daqueles calafrios que ele
conhecia. Era como se fosse uma ordem para ele não prosseguir
em frente, ir embora. Com um pouco de relutância, não quis saber
e continuou. Quando ouviu um barulho de algo se abrindo, se
escondeu atrás de um muro bem perto e percebeu que ali, na parte
de trás do teatro, havia um alçapão que provavelmente dava para
um porão, bem embaixo do teatro.
Espiou pelo canto do muro e viu o alçapão se destrancar e abrir. Sob
aquela lua sinistra, uma sombra imensa apareceu. King viu que não
Emerência 11
era o amor de sua vida, mas conhecia aquela pessoa. Aqueles 120
kg de carne humana naquele lugar só poderia ser de uma pessoa:
Emerência.
Ainda sentindo calafrios estranhos, resolveu esperar um pouco mais
escondido. King poderia ter ido lá e perguntado para Emerência
se ela tinha visto Victoria, mas por alguma razão não queria. A
sombra de Emerência parecia estranha pra ele, como se emanasse
algo diabólico. A lua não mentia.
Durante o ano em que conheceu Victoria, King descobriu que aquele
teatro era realmente especial. A quantidade de shows não era muito
grande, mas todos os shows eram incríveis, principalmente os feitos
em datas comemorativas como o natal. King soube também que
toda essa qualidade era concedida apenas por duas pessoas: Laszlo,
o Mestre de Marionetes, e sua esposa Emerência. Desde então, para
ele os dois eram seres humanos incríveis, misteriosos e fantásticos.
King, ainda escondido, viu que ela estava puxando um carrinho
e estava com uma espécie de bolsa de ferramentas na cintura. O
que seria aquilo? Enquanto Emerência caminhava pelas ruas mais
estreitas de Budapeste, King seguia espionando-a. Ele pensou no
que aquela mulher faria, e se tinha haver com o sucesso com que
faziam o teatro. Quem sabe ele não poderia descobrir algo valioso
que sua amada havia encontrado.
Já era bem tarde da noite, quando Emerência parou em uma das
vielas ao perceber que havia um mendigo dormindo no chão. King
seguiu atrás e ficou com pena daquele homem, sujo, doente e
sozinho no chão, em uma noite de natal.
Emerência começou a andar bem de leve, sem fazer nenhum baru-
lho, em direção ao mendigo. Enquanto chegava cada vez mais perto,
foi colocando a mão na bolsa de ferramentas em sua cintura e tirou
uma faca. King, ao ver isso, ficou um pouco desesperado. Pensou:
– Emerência, o que você está fazendo com essa faca?
A adrenalina que correu pelo corpo de King fez ele até esquecer um
Emerência 12
King então sentiu algo invadindo sua consciência. Ele sentiu como
se aquela entidade estivesse roubando sua alma. King havia desis-
tido e perdido todas as esperanças, mas o desespero de ter sua alma
tirada dele o fez ter um pouco de força e, em pânico, chutou um
suporte de luz que havia do lado do altar e do Mestre de Marionetes.
O suporte caiu forte em uma das estantes e derrubou um dos jarros
de cima no chão. Laszlo interrompe suas palavras e por um instante
King recupera a visão e olha para o jarro quebrado no chão. Era
tudo vermelho. Muito vermelho.
– Tão vermelho… SANGUE! – pensou, tentando gritar mas sem
conseguir.
O Mestre de Marionetes se enfureceu e gritou para King:
– Como você ousa interromper o meu trabalho!?
Então Emerência bateu forte e repetidamente com um pedaço de
madeira nas duas pernas de King, que sentiu mais dor. Suas pernas
então nem podiam mais se mexer direito.
O Mestre de Marionetes esfrega as mãos no chão cheio de sangue e
começa a manchar os símbolos de caveiras demoníacas na parede,
fazendo-os ficar mais vermelhos. Depois volta para o altar, fica ao
lado da cabeça de King e continua seu ritual:
O ritual acabou e King, ainda imóvel, foi solto por Emerência. Ele
ficou ali, deitado naquele altar condenado. Aos poucos foi voltando
a sentir dor. Sua visão e seus sentidos voltaram. Exausto, não
conseguia fazer nada além de continuar deitado, arruinado, então
desmaiou.
Não mais eu
– Por que estou amarrado nesta cama de hospital? – King pensou,
enquanto olhava para o Mestre de Marionetes e sua esposa na frente
dele.
Nas mãos do Mestre estava um bisturi bem brilhante, enquanto sua
esposa estava pegando um jarro vazio, pro sangue. King ainda temia
pela sua vida, e muito:
– Será que isso um adeus à minha doce vida? – King pensava
melancolicamente.
O Mestre de Marionetes começa:
– Primeiro os seus olhos, depois a sua pele. Vamos fazer você se
sentir renascido… Não serás mais tu, meu amigo.
O bisturi começou cortando as pálpebras dos dois olhos, deixando os
olhos bem à mostra. King assistia tudo e estava então chorando san-
gue. Com cuidado, Laszlo enfiou os dedos em volta do olho direito
de King e o puxou pra fora. Emerência pegou uma tesoura e cortou
o nervo ótico, livrando o globo ocular do corpo completamente.
Repetiram o mesmo procedimento no olho esquerdo.
King sangrava bastante. Emerência aproveitou todo aquele sangra-
mento e foi colocando o sangue o jarro, o máximo que conseguia.
Sem os olhos, King não conseguia ver mais. Agora eles estavam em
uma pequena bandeja cirúrgica. Mas de alguma forma, King ainda
achava que tinha seus olhos azuis nele.
O Mestre de Marionetes pegou uma de suas marionetes, ainda
incompleta, e colocou os olhos de King nos soquetes do boneco.
Imediatamente, King recuperou a visão. Ele estava vendo! Mas ele
estava vendo… ele mesmo.
Não mais eu 21
– Estou olhando para mim mesmo… Mas não sou eu… Não mais
eu… Eu não tenho mais olhos.
Confuso e ainda com uma imensa dor, sentiu suas veias como ver-
mes morrendo queimados à luz do sol. Passou um bom tempo assim,
enquanto assistia Laszlo e Emerência tirar a pele de todo o seu
corpo. Seus sentidos começaram a ficar dormentes, entorpecidos.
A dor finalmente passou e King ficou um pouco mais sereno. Todo
seu sangue estava agora em pequenos jarros de vidro.
– Eu deveria estar morto… Mais ainda vivo… Eu ainda vivo dentro
dos meus olhos…
Por fim, viu Emerência jogar a carcaça dele no lixo.
Sangue para andar
Um dia depois, lá estava King sentado em uma estante daquele
porão maldito, olhando para todos as outras marionetes. Seus
últimos restos agora eram um maldito boneco.
King podia ver, mas não podia se mexer. Era muito estranho para
ele, pois ainda tinha sentimentos, mesmo sem seu corpo. Seus olhos
observavam todo o ambiente escuro, procurando alguma resposta.
Todas as marionetes, mesmo com olhos, estavam mortas.
Mais um dia se passou e King não parou um segundo sequer de
olhar. E nem se quisesse ia conseguir. O ritual tornara seus olhos
eternos, olhos que nunca dormiam. E foi então que King percebeu
os olhos de Victoria em uma outra estante. Mesmo naquele escuro,
ele não tinha mais dúvidas: aqueles eram os olhos da sua amada
Victoria. Ela estava lá, sozinha e muito morta.
Algumas horas depois, King enxergou uma luz vindo de uma das
portas do porão. Uma luz na escuridão era algo que King nem
esperava mais ver. E então entraram o Mestre de Marionetes e sua
esposa, com sorrisos na cara. O Mestre então falou com um tom de
empolgação:
– Olá crianças! Mamãe e Papai chegaram. Agora vamos brincar…
Com sangue, vou ensiná-los tudo que precisam saber.
Então pegou Victoria e a colocou sentada no chão. Em seguida
pegou King e o colocou também sentado ao chão, de frente para
Victoria. Duas das mais grotescas marionetes já feitas. Laszlo então
começa a amarrar fios nas mãos, pés e cabeça dos dois. King
observava tudo, inclusive os olhos mortos de Victoria.
Quando todos os fios estavam no lugar, o Mestre começou a fazer
movimentos com os dois. De repente, King sente uma picada,
seguida de um formigamento estranho, que estava fora de seus
Sangue para andar 23
o outro. Era tudo o que restava pra eles, e naquela situação era o
suficiente, valia a pena.
Depois de 2 semanas de treinamento, o Mestre de Marionetes estava
satisfeito com o progresso dos dois e resolveu deixá-los fazer algo
novo. Ordenou:
– Esta noite você dançará para mim, garota marionete. Irá dançar
para mim, sem fios em você.
Victoria ficou nervosa com a notícia. Apenas 13 dias haviam se
passado, e ela não sabia dançar. Ela nunca tinha dançado. Ela não
tinha a mínima chance. E o Mestre de Marionetes não podia saber
o que se passava nos olhos dela. Depois de tirar todos os fios da
marionete, ele novamente ordenou:
– Dance!
E Victoria começou a dançar. Deu o seu melhor, improvisando
danças que ela não fazia ideia de que eram possíveis. Mal havia
aprendido a andar sozinha e já estava dançando para o seu Mestre.
Laszlo se divertia.
Em um de seus passos desastrosos, Victoria tropeçou em sua própria
perna e cai pra frente, atingindo uma das estantes em cheio. Em
alguns segundos que pareciam um lapso temporal interminável e
agonizante, 6 jarros de vidro caem no chão e se quebram.
O Mestre de Marionetes se enfureceu e bateu com as duas mãos
naquele chão cheio de vida das marionetes, cheio de sangue. Ele
olha para Victoria com sangue nos olhos e grita para Emerência:
– Mande ela embora! Quero ela bem longe daqui!
King, que observou tudo que aconteceu naquela escuridão, ficou
quase catatônico ao ouvir as palavras de Laszlo. E o Mestre com-
plementou:
– Para o outro teatro… Amanhã de manhã eu quero ela fora daqui.
Mande-a para Berlim. Mande esta marionete estúpida para Berlim.
Tristeza
Mais uma vez em estantes separadas, um virado para o outro e com
o resto de seus sangues quentes em seus sistemas, King e Victoria se
olharam. Nunca haviam sentido tamanha tristeza em todas as suas
vidas. King sabia que se eles tirassem Victoria de sua vida, ele não
seria mais nada. Não haveria mais vida. Ele estaria morto.
Sentiam um amor tão profundo um pelo outro, e dialogaram com
seus sentimentos, uma última vez.
– Me diga que isso não é um adeus… – Victoria disse com seu
intento.
– Lembre-se daquela borboleta… – respondeu King.
– Ela me fez chorar…
– Eu sei… Mas logo após enxugamos as suas asas para ela poder
voar novamente. Eu não sei se isso é o fim para nós dois, mas sei
que temos que dizer adeus. Eu também sei que eu mudaria toda a
minha vida por você. Eu morreria por você.
– Me lembrarei por toda a eternidade das coisas que costumávamos
fazer. Todas as memórias que eu tenho com você, aqui comigo. Só a
imagem de nós dois, em meus olhos. Levarei você comigo quando
for a hora de ir.
King se sentiu incapaz, mas revoltado:
– Eu prometo… Eu prometo que vou achar você novamente. Eu
continuarei procurando… Procurando até o fim dos tempos se for
preciso.
– E se eu não conseguir sobreviver sem você?
– Então me espere… Me espere do outro lado. Eu estarei lá.
Tristeza 27
Quando chegarmos…
E agora lá vou eu
– Será que algum dia irei ver aqueles olhos novamente? Irei ver ele
novamente? Onde será que ele está agora…?
Enquanto King:
– Onde será que ela está agora…?
Sobre King Diamond e este
conto
King Diamond é uma banda de Heavy Metal formada na Dinamarca
em 1985 que ao longo de sua carreira lançou vários álbuns concei-
tuais com histórias obscuras e de horror. King Diamond, o vocalista
e líder da banda, costuma dizer que todas as histórias são apenas
invenções de sonhos e devaneios de uma mente doente: a mente
dele.
A estória deste conto se baseia no álbum The Puppet Master (O Mes-
tre de Marionetes), lançado em 2003. Houve uma versão limitada
do DVD que trouxe o próprio King Diamond contando a estória.
Este vídeo pode ser encontrado no Youtube¹ e tem uma duração de
aproximadamente 30 minutos. Vale a pena conferir também.