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NO NINHO DE HERCULANO
Marcelo Henrique Pereira (*)

Era novembro, 27, de 2013...

Após o café da manhã, conforme combinado, me dirigi do bairro de Moema para o de Vila
Clementino, coração da capital paulista. Encravada na subida da Rua Dr. Bacelar, ao número
505, um elegante sobrado que, por algumas décadas, serviu como moradia do casal José
Herculano e Maria Virgínia Pires.
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Ao chegar, me detive alguns minutos, do outro lado da rua, olhando para o casario que, como
grande parte das edificações das médias e grandes cidades, não escapou da “arte” dos
pichadores. Permaneci ali, por alguns minutos, tentando prever o que, lá dentro, me
aguardava. Mesmo não tendo conhecido pessoalmente o Professor, porque ele retornou ao
Plano Maior em março/1979 e eu só me “encontrei” espírita em dezembro/1981, ao olhar para
o “semblante” da casa, eu imaginei algumas cenas de seu convívio em família e em atividade
– profícua, combativa e destacada no seio espiritista.

Profícua, porque a marca de sua irrequieta produção literária – grafomania era a “doença” que
Herculano dizia “sofrer”, pois dia e noite escrevia – com mais de 80 livros publicados, alguns
póstumos. Combativa, no sentido do bom combate, de deixar claras as convicções e os
postulados espiritistas e de não permitir, como “síndico” do Espiritismo que ocorressem
adulterações, achaques ou atentados, de dentro ou de fora do chamado “movimento” espírita.
Destacada, porque Herculano esteve sempre às voltas com tudo o que tinha relação com a
Doutrina dos Espíritos, no rádio, na TV, principalmente junto a Chico Xavier no famoso
“Pinga-Fogo”, na imprensa escrita, nos eventos e debates, em tudo...

À minha espera já estava Herculano Ferraz, Pires igualmente, filho do Professor, e um largo
sorriso emoldurado por sobrancelhas sempre móveis e ágeis, sobretudo quando pareciam,
depois, nos diálogos, expressar a magia dos bons e dos momentos mais agudos, das lides
piresenanas (como, aliás, gosta de alcunhar as ideias e as ações do Professor, o meu amigo
divulgador, jornalista Wilson Garcia).

A simpatia do interlocutor me fez sentir-me verdadeiramente em casa. Sentamo-nos e um


leque de conversações iria brotar na sequência...

No bolso, uma caneta aparentemente simples e inofensiva – mas que, sabemos nós, que
estagiamos entre as letras, a verdadeira arma para a luta das convicções e a semeadura no
Bem.
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Sentamos em uma pequena antessala, de frente para a rua, com mostruários de livros da
Editora Paidéia, maior legado cultural de Herculano para o mundo, espírita ou não, duas
velhas cadeiras em madeira bem trabalhada, uma mesa de escritório para o atendimento ao
público e uma placa...

Trinta anos... Ah, se as paredes falassem... O que elas nos diriam? Quantos detalhes que as
linhas dos livros de Pires não registraram – por falta de tempo. Quantas intimidades, no
sentido do exemplo e do repasse de belas lições que elas presenciaram?

Ferraz logo quis saber como tinha sido a minha iniciação no mundo de JHP. Sabia ele, pela
minha idade estampada na face, que eu não tinha tido a felicidade e o privilégio de “estar
com” Herculano. Pelo menos, não fisicamente. Pouco a pouco, fui falando detalhes,
ocorrências, fragmentos. Ele, atento, vez por outra fazia dóceis e úteis comentários, como a
perceber que a minha aderência às ideias e familiaridade com a obra de Herculano não eram
acidentais, tampouco vezos de curiosidade, nem mesmo provocadas por terceiros.

O Professor foi o primeiro autor que li após Kardec. Da minha iniciação espírita, que se deu
como de comum ao ouvir palestras, em São José (SC), onde residia, no Centro Espírita Teresa
de Jesus, seguiram-se os grupos de estudos e os cursos de iniciação, estudo sistematizado,
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programa básico e orientação da mediunidade, nesta casa, e nos Centros Espíritas Seara dos
Pobres e Fé, Esperança e Caridade de Jesus, em Florianópolis (SC). Se devorei Kardec e logo
me inseri no contexto no movimento jovem de minha região, foi em José Herculano Pires que
encontrei a sustentação lógica da continuidade dos ensinos dos espíritos. Após a aula,
matutina, eu sempre ia à banca de livros espíritas situada na Praça XV de Novembro, no
coração da Ilha de Santa Catarina, para ver as estantes e solicitar à minha mãe que adquirisse
um ou outro livro para que eu pudesse ler e estudar. Logo depois, era eu mesmo que o fazia.
As atendentes da banca, voluntárias, passaram a me conhecer como o “garoto de Herculano”.

Simples. Depois de ler o primeiro livro, “Curso Dinâmico de Espiritismo: O Grande


Desconhecido”, eu passei a consumir toda e qualquer obra do Professor. À chegada de uma
nova, elas já me mostravam a capa e ao ler o índice e algumas páginas, eu levava o novo
exemplar para casa.

Não era fácil. Primeiro, porque Floripa não participava do “circuito” das editoras espíritas e
também porque sem muito apoio “federativo” os livros de Pires não eram facilmente
encontrados nas casas de Santa Catarina. Daí o relativo “desinteresse” em comprar ou mesmo
ter, inicialmente por consignação, as obras da Paidéia – e de outras editoras paulistas a que o
Professor houvera cedido os direitos de publicação de vários de seus livros.

Mas quando chegavam, era certo que elas me reservavam um exemplar e não houve uma só
vez em que os títulos não eram por mim adquiridos. A biblioteca ia aumentando...

Um grande fascínio me ligava a Herculano. Sua erudição e cultura que poderiam ser um
intransponível obstáculo a um estudante de primeiro grau e iniciante, ainda, nas lides espíritas,
no início da década de 80, foram um desafio e tanto. Ao lado de cada livro – como não havia
internet – eu repousava sobre a mesa um ou dois dicionários, um livro de introdução à
filosofia e algum volume da Enciclopédia Barsa. O que ali eu não encontrava, no dia seguinte,
após a aula, era objeto de pesquisa na biblioteca do Instituto Estadual de Educação, o maior
colégio público catarinense, em que estudei de 1980 a 1986.

Algo me imantava a Herculano. Das leituras e dos estudos, individuais, passei aos coletivos,
inserindo páginas e lições do Professor nas atividades da Juventude Espírita Teresa de Jesus,
que eu e mais três amigos fundamos na casa homônima, depois no Estudo Sistematizado, nas
reuniões mediúnicas e na Mocidade Espírita Luz, assim como nos departamentos de juventude
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espírita que coordenei no meio federativo. Isto, é claro, sem falar das palestras, que comecei a
proferir, ainda muito moço, em 1983, antes dos 14 de idade, conduzido e apresentado pelo
meu “padrinho” de estudos espíritas, João Nunes da Silva.

Hoje, desde 2003, guardando fidelidade à nossa origem e iniciação, inauguramos e mantemos
a Casa do Professor em Santa Catarina, o Centro Cultural Espírita Herculano Pires, que se
situa na Rua Sete de Setembro, 24, no bairro Kobrasol, em São José.

O tempo foi passando e a conversa agradável foi interrompida por um bom motivo: a chegada
do companheiro Edson Audi que tem reunido em acervo audiovisual depoimentos sobre JHP
por ocasião das comemorações do centenário, compondo um filme-documentário que deverá
vir a lume em setembro de 2014, quando efetivamente o Professor completaria o seu
Centenário. A ele repeti, muito sucintamente, a minha iniciação com JHP e um excerto da
importância dele em minha vida e minhas atividades no Espiritismo.

Após isso, Herculano Ferraz operou como “guia turístico”, me levando a cada um dos
recônditos da casa, me apresentando ao “mundo” de Herculano.

A sala de refeições permanece intocada, como na época da vivência do casal, seus filhos,
parentes e amigos. Uma bela mesa de centro com seis cadeiras altas, duas cristaleiras e fotos
dos genitores do casal, às paredes, além de um belíssimo relógio-pêndulo. Também ali estão o
aparador, o cabideiro e porta-guarda-chuvas, tal como eram em seu tempo. Objetos pessoais
do casal e algumas homenagens feitas ao Professor figuram nas cristaleiras.
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E uma placa... Resgatada... A do Clube dos Jornalistas Espíritas, que inspirou o surgimento da
Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, ABRAJEE, que tivemos a honra de
pertencer, ainda na década de 80, depois sucedida, em termos de ideário e trabalhos pela atual
Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (ABRADE), entidade a que
pertencemos desde 1995 e que, atualmente, respondemos por sua Secretaria Executiva.

Contiguamente, uma cozinha, já “modernizada” para atender às necessidades da fundação e de


seus visitantes.
Seguimos nossa viagem ao universo piresneano, descemos por íngreme e difícil escada para a
garagem da casa – que nunca funcionou como tal, abrigando grupo de estudos coordenados
pelo Professor. Hoje, é o depósito dos livros em estoque da Editora Paidéia.

Das caixas, saíram valiosíssimos presentes. Edições novíssimas, relançamentos ou publicações


de obras precocemente esgotadas, além de uma agenda para 2014, com excertos dos livros do
Professor, cuidadosamente selecionados por Garcia, os “365 momentos espirituais com
Herculano Pires”, editado pela EME, de Capivari (SP).
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Era a hora de voltar ao andar principal e, dele, nos dirigirmos por outra escada, igualmente
desafiadora, para o último pavimento da residência, a que iria, por certo, revelar os maiores
tesouros da visita.

Ali está o quarto do casal Pires, que permanece intocado como era, exceto para a falta da
cama, que ficava centralizada, emoldurada por imensa estante de livros, a principal dos
aposentos. No espaço onde se situava a cabeceira da cama, nova estante, menor e mais
moderna, para abrigar cds e dvds, produção contemporânea do conhecimento que o Professor
não pôde conhecer.
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Lateralmente, à direita de quem entra, outra estante de parede inteira e no lado oposto, a
escrivaninha, companheira inseparável do Filósofo de Avaré, e os livros, muitos deles,
empilhados, como era a tônica do trabalho que ele empreendia, na composição de textos e
artigos, assim como seus inesquecíveis programas de rádio “No limiar do amanhã”. Era nela
que Herculano se sentava, olhando para o horizonte, pela janela, e escrevia em sua máquina de
escrever (a da foto é a segunda que Herculano teve).

De frente para a cama, outra estante enorme... Livros e mais livros, por todos os cantos,
prateleiras e escaninhos, de tamanhos e formatos plurais, a fonte onde Herculano bebia todos
os dias, para a produção de seu acervo que hoje bebericamos.
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E, enfim, a janela que dá para a rua, a última “parada” desta viagem. Herculano adorava se
debruçar na janela de seu quarto e contemplar o horizonte... Da janela, além do que
fisicamente se divisava, a imensidão do Universo se lhe plasmava, como a inspirar suas
crônicas e lições. Como a infundir-lhe a necessária coragem para o embate do novo dia, na
defesa incondicional do edifício kardequiano.

Visualmente, àquele tempo, não havia os edifícios, as ruas, os carros... Apenas um grande
pasto onde se criavam cabeças de gado, quase livremente. Ferraz nos conta que, certo dia,
Herculano, do andar de cima, grita para a esposa, Maria Virgínia: - Vi, Bi, Bi, Virgínia... Sobe
aqui, rápido! E a esposa subiu a íngreme escada rapidamente e esbaforida, perguntando em
sobressalto: - O que foi Herculano? E o Professor: - Olha ali, veja que vaquinha mais
graciosa! E ela: - E você me chamou para isso? E ambos gargalharam...

Assim era Pires. Puro na simplicidade. Sério e compenetrado, o que não lhe impedia ser
jocoso e divertido para desanuviar ambientes. Honesto na prática espiritista. Valoroso
companheiro dos amigos. Precioso conselheiro de quem dele se acercava. Carinhoso, a
começar pelos filhos, netos e amigos destes que enchiam de sorrisos e peraltices a casa.
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A casa... Tudo o mais conserva a atmosfera e a energia daqueles dias...

A residência dos Pires, aliás, sempre se via cheia de crianças, seus filhos e os amigos dos
filhos.

Nela, geralmente Herculano ficava de pijamas o dia todo, em casa e, conforme o tempo, com
um robe. Ele também não usava chinelos. Preferia um par de sapatos velhos, surrados, com os
calcanhares amassados, que ele usava como tal. Quando descia do segundo para o primeiro
andar, vinha sempre com bombons nos bolsos e os distribuía, animado e faceiro, para a
garotada. Depois, quem passou a receber tais mimos foram os netos e os amigos dos netos...

Família sempre foi a grande referência de Herculano. Ferraz, a propósito, nos contou
instigante relato, que reproduzimos:

Conta-se que, certa noite, Pires teve um sonho. E numa imagem apareceu uma mulher com
dois filhos, um em cada mão. Herculano aproximou o olhar daquela imagem de mulher, mas já
sabia de antemão que ele era um daqueles meninos. Reconheceu-se. Quem seria o outro? Ao
fitar-lhe a face, não teve dúvidas: era León Denis. Não na última encarnação conhecida do
filósofo francês, já que Pires deu a entender aos mais próximos que teria vivido
contemporaneamente a Kardec e Denis, mas em Portugal, como Alexandre Herculano, o poeta
luso. Mas, ao que tudo indica, numa existência pretérita àquela e à presente, Herculano e
Denis teriam sido irmãos de sangue...

Kardec, Denis e Herculano. Que trinca de Ases! Por eles passa a lógica, o tirocínio, o livre-
pensar, o pluralismo, a elegância ao “duelar” com teorias e escolas do pensamento e com as
religiões de todos os tempos. Não é por acaso que a Filosofia Espiritista tem nestes três
expoentes os seus permanentes e sólidos alicerces.
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Terminei minha jornada na Casa de Herculano com uma grande certeza. A de que não é
acidental minha proximidade com o Professor, minha concordância com seus escritos e teses,
minha familiaridade com o irrequieto espírito que revolucionou o pensar espírita de nosso
Brasil. Sua presença está mais forte do que nunca e me infunde coragem para tratar dos temas
que, à maioria dos frequentadores e dirigentes espiritistas, continua a ser empurrado para
debaixo do tapete, como se não existissem.

O maior deles, a intransigência para com os diferentes, o rechaço das opiniões que
transcendem ao literalismo da “pureza doutrinária” das autoridades espíritas, permanece como
o grande desafio para o presente. Naquelas paredes, naqueles objetos, nos livros está o
combustível para permanecermos firmes e coerentes com José Herculano Pires.

Para o hoje e para o porvir, Herculano à frente... Para outros cem anos!

(*) Marcelo Henrique Pereira, Doutorando em Direito, Secretário Executivo da ABRADE,


presidente do Centro Cultural Espírita Herculano Pires, São José (SC).

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