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Análise comparativa de “Funes, o memorioso” e “Toda a sua vida – Black

Mirror” a partir de Tempo e Narrativa de Paul Ricoeur

Patrick Bastos

Conto fictício do autor Jorge Luís Borges, “Funes, o memorioso” tem como
personagem central um jovem cuja memória é tão vívida que sobrepuja todos
seus outros sentidos. Ireneo Funes, após um acidente, no qual perde a
mobilidade, passa a lembrar-se de tudo com enfática riqueza de detalhes, tal
qual estivesse revivendo aquela memória. Desde então, passa seus dias no
quarto, rememorando outros dias de sua vida, tarefa a qual poderia tomar-lhe
um dia inteiro para rememorar outro. Lembrava das coisas com tamanho
detalhamento que um objeto visto num determinado momento num
determinado ângulo e num momento depois sob um ângulo diferente, poderia
muito bem ser classificado como diferentes. Da mesma forma, nossa semiótica
lhe parecia excessivamente generalizada, uma vez que ele reconhecia um
número muito maior de especificidades a diferenciar as coisas e classificá-las
do que a percepção humana geral.

“Toda a sua vida”, terceiro episódio da primeira temporada do seriado “Black


Mirror” se passa num futuro distópico em que os personagens dispõem de uma
tecnologia que permite, não somente armazenar suas memórias pessoais em
arquivos audiovisuais, em um dispositivo subcutâneo, como projetar o
conteúdo destes arquivos, para que outras pessoas tenham acesso a essas
memórias. Além disto, é possível também deletá-las de seu armazenamento
artificial quando o indivíduo quiser. A trama dá-se especificamente a partir da
relação de um casal protagonista, que após confraternizar com um grupo de
amigos da noiva, se vêem num enredamento de tensão crescente, conforme as
paranóias do noivo vão aparecendo e a narrativa criada pela noiva para ele, é
confrontada pela narrativa criada por ele a partir de suas próprias memórias
arquivadas, assim como as de outros.

Podemos fazer algumas considerações acerca das obras a partir da


argumentação ricoeuriana acerca de tempo e narrativa. Primeiramente,
podemos observar como ambas as obras mimetizam suas respectivas redes
conceituais de ações para a composição de suas respectivas intrigas
evidenciando principalmente o caráter consonante da narrativa ficcional com a
realidade, ou ainda, com nossa narrativa não-ficcional. Em “Funes, o
memorioso”, isto dá-se principalmente pelo forma quase que documental ou
factual que a história é contada pelo narrador-personagem. Esta disposição
dos acontecimentos dentro da obra é responsável por aproximar ainda mais o
leitor e possibilita acompanhá-la. Ou seja, a construção da sua poética é efetiva
e reafirma o próprio caráter que a composição da intriga tem de interpolar o
consoante e o dissonante de modo dialético.

Já em “Toda a sua vida”, o aspecto que mais chama a atenção é o referencial.


Isto pois, tem a assustadora capacidade de simular ser extremamente
contemporâneo ainda que seja extemporâneo. Tomando vários elementos da
ordem paradigmática da contemporaneidade e extrapolando em alguns pontos
– mantendo-se, no entanto, dentro de uma cadeia de significados que nos é
estranhamente familiar.

Voltando-se agora ao que as obras têm em comum, que é a problemática da


memória, mas que ao mesmo tempo trazem pontos divergentes dentro deste
aspecto. Em ambas as obras, estamos lidando com o exaurir do esquecimento,
ou seja, a relação permanente com a rememoração dos acontecimentos: a
inumana percepção da memória completamente vívida e permanente. Nos dois
casos, o que resulta deste fenômeno é, para dizer o mínimo, a angústia. Em
Funes, nosso personagem vê-se esvaído de outras atividades cognitivas, pois
está completamente submerso em sua rede de memórias. Diferentemente de
Funes, cuja disfunção de memória é inerente ao funcionamento do seu corpo
natural, no seriado, o acesso às memórias não é intermitente, é sim, deliberado
e opcional, enquanto que os indivíduos ainda têm as suas memórias humanas.
No entanto, o desenrolar é tal qual de sofrimento e destrutivo, pois a
possibilidade de resgate das memórias atemporalizadas alimentam as
neuroses dos personagens, assim como as confirmam e endossam seus atos
inconseqüentes.

Assim, podemos ver dois exemplos de obras fictícias, onde as narrativas


criadas pelos personagens partem de uma quase que total consonância com a
realidade, considerando que não podemos falar de uma total consonância, pois
isto seria revivê-las na experiência. O caso de Funes certamente se aproxima
demasiado disto. Pelas conseqüências abruptas dessa relação consoante entre
a narrativa e a temporalidade é possível observar, não só a importância na
relação entre memória e esquecimento dentro da experiência humana, como a
necessidade da distensão dentro da composição da intriga. É, portanto, um
bom ponto de contrapartida à violência da interpretação.

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