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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia

ISSN 2318-0811
Volume II, Número 2 (Edição 4) Julho-Dezembro 2014: 727-730

O Conflito na Cultura Moderna


e Outros Escritos
Georg Simmel
Organização de Arthur Bueno
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2013. (188 páginas)
ISBN: 9788539603954

G
eorg Simmel (1858-1918) compõe, Uma boa introdução para uma obra
ao lado de Karl Marx (1818-1883) e tão vasta quanto heterogênea é a coletânea
Max Weber (1864-1920), o cânone O Conflito da Cultura Moderna e Outros Escri-
fundador da Sociologia alemã. Embora seja tos, organizada por Arthur Bueno, douto-
menos celebrado que os outros dois auto- rando em Sociologia pela USP, que também
res, sua obra influenciou pensadores impor- escreveu um longo posfácio no qual analisa
tantes como Walter Benjamin (1892-1940), os ensaios compilados. Pretendo desenvol-
György Lukács (1885-1971), Norbert Elias ver, ainda que de forma sucinta, um esforço
(1987-1990) Theodor Adorno (1903-1969), e semelhante nesta resenha; para isso, aceito a
Zygmunt Bauman (1925-). Além de ter con- proposta de Bueno de dividir os ensaios em
tribuído para os campos da sociologia urba- três eixos temáticos: 1) a “compreensão e crítica
na, da sociologia econômica e da sociologia da cultura moderna”; 2) “os efeitos psicológicos do
da cultura, Simmel foi pioneiro no estudo de dinheiro numa economia monetária”; e 3) “o sen-
vários temas por muito tempo considerados tido social e psicológico de certos fenômenos de sua
heterodoxos nas ciências sociais: a prostitui- época ligados ao âmbito das diversões, do lazer, do
ção, o casamento, as exposições de arte, a ali- entretenimento e da experiência estética”3.
mentação, a experiência do aventureiro, as Sobre a primeira temática, o ensaio Da
sociedades secretas, entre outros. essência da cultura (1908) oferece um trata-
Anti-sistemático, Simmel escreve de for- mento sintético e elucidativo. Simmel define
ma ensaística para expressar o caráter fluido e por cultura as manifestações intensificadas
contingente da própria modernidade. Se esta de vitalidade natural e potencial, cujo nível
se caracteriza “por uma libertação dos conte- de plenitude, desenvolvimento e diferencia-
údos e resultados, do que é fixo e sólido”, e ção vai além do que seria alcançado pela sua
pela “mobilidade do espírito”, logo é preciso natureza simples; em outras palavras, são as
encontrar um estilo que acompanhe essa “pos- formas intelectualizadas da vida. Vista pelo
sibilidade dos mais díspares conteúdos”1. Além autor como um processo teleológico, a cultu-
disso, do ponto de vista metodológico, Sim- ra é o caminho que sai da unidade fechada,
mel trabalha com um conceito de indivíduo passa pela pluralidade desenvolvida e chega
extremamente forte: este não se dissolve no à unidade desenvolvida.
social, permanecendo sempre senhor de si; é A cultura também é associada ao culti-
um “sujeito autônomo e livre, que pode percorrer vo, isto é, ao processo de aperfeiçoamento no
tantos caminhos quanto sua exigência, voracidade
e multidirecionalidade propiciarem”2. 3
BUENO, Arthur. Simmel e os paradoxos da cultura
moderna. In: SIMMEL, Georg. O Conflito da cultura
1
WAIZBORT, Leopoldo. As Aventuras de Georg moderna e outros escritos. Org. Arthur Bueno; trad.
Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 23-24. Laura Rivas Gagliardi. São Paulo: Editora Senac São
2
Idem. Ibidem, p. 25. Paulo, 2013. p. 145-146.
O Conflito na Cultura Moderna e Outros Escritos
728 Georg Simmel

qual o indivíduo desenvolve suas potências total da alma”7 – em outras palavras, quando
latentes incorporando algo que é externo a geram equilíbrio e harmonia entre as partes
ele. Em outras palavras, o indivíduo conduz a discordantes, um vínculo entre o interno e o
sua alma no caminho de uma existência mais externo.
elevada através de um processo de elabora- A partir da segunda metade do século
ção, crescimento e consumação por meio dos XIX, houve uma aceleração e intensificação
objetos “cultivados” e cultivadores4. Segundo das transformações sociais iniciadas gradual-
Simmel, um ser humano só pode ser consi- mente nos três séculos anteriores. A principal
derado cultivado se a passagem pela cultura consequência dessas mudanças para a “vida
objetiva lhe tiver permitido educar sua alma a do espírito” foi o crescente descompasso en-
um ponto tal de perfeição que ele jamais po- tre a hipertrofia e autonomia da cultura obje-
deria ter atingido se tivesse sido abandonado tiva e a incapacidade da cultura subjetiva em
a si próprio. absorver a cada vez maior extensão do domí-
Para Simmel, uma genuína formação nio objetivo das coisas; ou seja, na moderni-
cultural (Bildung5) passa por um aperfeiço- dade se perderam as condições sociais ade-
amento permanente, por um auto-cultivo; é quadas para o aperfeiçoamento do indivíduo
preciso moldar uma subjetividade porosa, ca- através das experiências e produtos culturais.
paz de absorver os produtos da tradição cul- Nas palavras do próprio autor: “embora as coi-
tural de forma a fortalecer as tendências es- sas se tornem cada vez mais cultivadas, os homens
senciais e fundamentais da personalidade. O somente num grau menor estão em condições de
que este processo de amadurecimento busca, extrair, a partir da consumação dos objetos, uma
portanto, é uma “versão mais sofisticada de si consumação da vida subjetiva”8.
mesmo”: a característica interior é aprimora- Os desdobramentos dessa crise da cul-
da pelo contato com a experiência. tura moderna são discutidos em três outros
Simmel, entretanto, alega que as gran- ensaios. O primeiro deles, O futuro de nossa
des realizações no mundo objetivo (arte, mo- cultura (1909), rechaça a idéia – aliás, bastante
ral, ciência e economia) não necessariamente comum na Alemanha bismarckiana – de que
implicam em cultura; isto é, nem sempre elas uma política cultural organizada e aplicada
são significativas para o desenvolvimento do pelo Estado seria a panacéia para os impasses
sujeito. Isso ocorre porque as obras e pensa- culturais. Simmel enfatiza a dimensão subje-
mentos mais impressionantes “são dema- tiva do problema: “a educação dos indivíduos”
siados senhores no interior de sua província precisa torná-los capacitados para a
para se submeter à categoria de servir” como apropriação e a elaboração dos valores cul-
meio para “o desenvolvimento de muitas almas turais do presente, políticos e artísticos,
individuais”6. Para o autor, “a especialização ain- éticos e científicos, para a compreensão do
da não é cultura”, que “só surge quando aquelas nosso espírito cultural, cristalizado nas nos-
sas leis, na literatura, nas visões de mundo
perfeições unilaterais se adaptam à [estrutura]
conflitantes9.
4
SIMMEL. O conflito da cultura moderna e outros No ensaio A crise da cultura (1917), Sim-
escritos. p. 85-86.
mel observa uma reversão a essa tendência
5
Bildung é um conceito da tradição filosófica alemã que de “retardo do aperfeiçoamento das pessoas em
evoca à idéia de uma formação integral e harmônica
do ser humano. Este processo de autoaperfeiçoamento
relação ao das coisas”10 por um motivo descon-
do indivíduo envolve uma atividade espontânea do
self para aprimorar suas aptidões e faculdades, mas 7
Idem. Ibidem, p. 82-83.
também passa por uma absorção criativa da tradição 8
Idem. Ibidem, p. 87.
cultural e da experiência comunitária.
9
Idem. Ibidem, p. 92-93.
6
SIMMEL. O conflito da cultura moderna e outros
escritos. p. 84-85. 10
Idem. Ibidem, p. 104.
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certante: a guerra (mais especificamente a I o qual não existe “uma verdade independente de
Guerra Mundial, iniciada em 1914). O conflito antemão”, pois é “a própria vida que, ora segundo
bélico permitia, segundo o autor, uma unida- suas grosseiras utilidades, ora segundo suas ne-
de engendrada pela “elevação e o excitamento cessidades anímicas mais profundas, produz essa
inauditos da vida em cada um de nós”; com isso, ordenação de valores em nossas representações”16.
a crise crônica da cultura moderna, marcada Simmel, todavia, afirma que esse combate às
pelo “caos de singularidades desvinculadas, des- formas está fadado ao fracasso: por mais que
tituídas de qualquer estilo comum”11, seria tem- se queira mostrar a vida em sua imediatidade
porariamente atenuada. Ao colocar a guerra nua, o ato de conhecer, querer e formar “pode
como parte da “luta da vida” contra as formas apenas substituir uma forma pela outra, mas nun-
antigas e decadentes que tentavam contê-la, ca a forma em geral pela vida mesma, como algo
Simmel revela certa influência do pensamento que está além da forma”17.
vitalista de Friedrich Nietzsche (1844-1900)12. Sobre o tema do dinheiro, Georg Simmel
O ensaio O conflito da cultura moderna oferece considerações que podem ser compa-
(1918), que dá título a esta coletânea, foi um radas às da Escola Austríaca. Este sociólogo
dos últimos de Simmel, sendo também um rejeita a teoria marxista do valor objetivo do
dos melhores deste autor. Nele é apresenta- trabalho em prol de uma abordagem próxima
da a tese – vitalista, diga-se de passagem – de à “marginalista”, na medida em que este au-
que a vida é “inquietação, desenvolvimento e tor reconhece a dimensão subjetiva e contin-
fluxo contínuo”, mas para se expressar precisa gente do valor. Exemplo dessa aproximação é
ser cristalizada em formas, alcançando assim o ensaio Para a psicologia do dinheiro (1889), no
“uma validade para além do transitório, emancipa- qual o autor se debruça sobre os efeitos cog-
da da pulsação da própria vida”13. Eis uma situa- nitivos e os impactos sociológicos desse meio
ção paradoxal: “a vida está intrinsecamente con- de troca. Para Simmel, “o dinheiro na forma do
denada a se realizar apenas em seu contraponto”14. concreto é a mais alta abstração a que a razão prá-
Em seu contexto histórico, Simmel veri- tica ascendeu”18. Além disso, o caráter impes-
ficou uma alteração nessa dinâmica: se até en- soal do dinheiro enquanto meio de troca uni-
tão as mudanças culturais sempre se davam versal permite a “redução de todos os valores ao
na substituição de uma forma antiga por uma dinheiro”; sendo assim, ele é o “absolutamente
nova (por exemplo, da ideia de Deus na Ida- objetivo, no qual tudo o que é pessoal cessa”19.
de Média para a ideia de natureza secular no Esta discussão é aprofundada em O di-
Renascimento), o antagonismo passou a se di- nheiro na cultura moderna (1896), em que Sim-
recionar contra o próprio princípio de forma. mel analisa os efeitos paradoxais do meio
Um dos exemplos citados pelo autor é o mo- monetário: se por um lado o dinheiro institui
vimento filosófico do pragmatismo15, segundo uma liberdade negativa ao tornar o homem
moderno menos preso aos laços comunitá-
rios, por outro ele cria uma “colonização dos
11
Idem. Ibidem, p. 115. fins pelos meios”: ou seja, ele se torna a “meta
12
Sobre a corrente filosófica do vitalismo, recomendo: incondicional que pode em princípio ser almejada
STJERNFELT, Frederick. “A vida em si – filosofia da a todo instante”, alimentando assim a “enorme
vida e conservadorismo”. In: Literatura e crítica. Org.
Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schöllhammer. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 49-64.
13
SIMMEL. O conflito da cultura moderna e outros 16
SIMMEL. O conflito da cultura moderna e outros
escritos. p. 120-121.
escritos. p. 135.
14
BUENO. In: SIMMEL. Ibidem, p. 176. 17
Idem. Ibidem, p. 140.
Dentre os principais representantes do pragmatismo
15
18
Idem. Ibidem, p. 27.
podem ser citados Charles Sanders Peirce (1839-1914),
William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). 19
Idem. Ibidem, p. 21-22.
O Conflito na Cultura Moderna e Outros Escritos
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demanda de felicidade do homem moderno”20. O arte, a especialização e diversificação dos ob-


dinheiro, contudo, não passa de um meio; sua jetos artísticos impedem o entendimento pro-
incapacidade de satisfazer essa “cobiça” leva fundo de cada um dos elementos individuais.
a uma desolação do indivíduo, explicitada no Já na exposição industrial, para provocar o in-
“tédio” das classes superiores. teresse dos consumidores, os expositores bus-
A construção social dessa associação cavam não apenas mostrar a funcionalidade
do bem-estar pessoal com a posse de certa dos objetos, mas também o encanto externo
soma de dinheiro também foi atenuada com e a maneira em que são dispostos. Em ambos
a I Guerra, como Simmel procura demonstrar os casos, a quantidade de estímulos “pode ser
no ensaio Dinheiro e alimentação (1915). A ne- sentida por aquele que as frequenta como uma vio-
cessidade de racionar alimentos transformou, lência infligida à sua sensibilidade”, a qual se vê
ainda que temporariamente, a função social “aturdida pela abundância e a vivacidade de im-
predominante do dinheiro: se antes do con- pressões velozes”23.
flito a posse de meios monetários era a princi- Por fim, o ensaio Viagem aos Alpes (1895)
pal meta da maioria das pessoas, os objetos de possui uma temática que curiosamente se
consumo (principalmente os gêneros alimen- assemelha à do romance A Montanha Mági-
tícios), cada vez mais escassos, passaram a ser ca (1924), de Thomas Mann (1875-1955). Em
objeto primordial de economia. ambos se discute qual o ganho cultural, a Bil-
O terceiro eixo temático – isto é, a aná- dung que se pode extrair de uma estadia nesta
lise do valor cultural de certas experiências região montanhosa. No caso do romance de
estéticas e formas de entretenimento – está Mann, o protagonista Hans Castorp, em meio
presente nos quatro demais ensaios. Em Infeli- a um sanatório para tuberculosos, desenvolve
ces possidentes! (1893), as casas de diversão de seu auto-aperfeiçoamento de forma incons-
Berlim são palco de divertimentos que atiçam tante, alternando momentos de aprendiza-
os sentidos e geram “a mais fantástica embria- do moral e estético com outros de lassidão e
guez, o mais deslumbrante efeito”21; porém, um simpatia pelo abismo; por sua vez, o ensaio
olhar sociólogo revela uma dimensão trágica: de Georg Simmel chega à conclusão de que o
a agitação da vida moderna – por exemplo, alpinismo não fornece tantos valores educati-
nas exaustivas jornadas de trabalho – tem vos e éticos como se costumava alegar: “per-
como reflexo psicológico o caráter blasé: a su- siste o caráter antiético do risco de vida em nome
perexcitação da vida moderna leva o indiví- de um mero gozo, [...] de excitações e satisfações
duo a perder a vivacidade e a disposição para puramente subjetivas”24.
lidar com o mundo. Com diversidade temática e reflexões
Em Sobre as exposições de arte (1890) e Ex- inquietantes, os ensaios de Simmel em O Con-
posição industrial de Berlim (1896), Simmel no- flito da Cultura Moderna e Outros Escritos per-
vamente detecta este embotamento do espíri- mitem uma melhor compreensão de questões
to e a subsequente “sede de excitações cada vez sociológicas, culturais e econômicas que per-
maiores e mais vibrantes”22. Nas exposições de manecem relevantes.

20
Idem. Ibidem, p. 62-64.
21
Idem. Ibidem, p. 42. 23
BUENO. In: SIMMEL. Ibidem, p. 165.
22
Idem. Ibidem, p. 32. 24
SIMMEL. Ibidem, p. 49.

Kaio Felipe
Doutorando em Sociologia (IESP-UERJ)
Doutorando em História Social (PUC-Rio)
kaiofelipe@gmail.com

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