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Como (QUASE) me tornei religioso

[1]

Eu não fiz – e me orgulho disso! :)

Eu fui educado em uma escola católica, nos primórdios da minha infância. Tratava-se do Colégio dos Santos Anjos, de
Vassouras (RJ), e me lembro bem até hoje das tentativas veladas de catequização que sofríamos por parte das "irmãs". Na
hora de fazer fila para ir pra sala, eram colocadas músicas religiosas – e a coisa diária era tão marcante que ainda hoje, mais
de 20 anos depois, me lembro de algumas, como a que dizia Shalom, Maria, Shalom, Shalom... tu és feliz, feliz como
ninguém... também tinha essa aqui:

A ovelhinha que se extraviou, e se perdeu


foi encontrada pelo bom pastor, e agradeceu
igual àquela ovelhinha assim também sou eu
A ovelhinha que fugiu, do seu rebanho se afastou
Mas o pastor não desistiu, e a ovelhinha encontrou
No ombro amigo do pastor, ao seu lugar ela voltou
Está feliz e tem amor, e nunca mais se desgarrou

Olha só, essa eu lembrei inteira! Até que eram musiquinhas bonitinhas, eu gostava de algumas. Mas tinham outras que eram
um saco.
Me recordo de forma muito vívida da veemência que davam à flagelação de Jesus Cristo – aquilo era realmente
impressionante aos olhos de uma criança! Ver aquele homem todo arrebentado sendo despedaçado devagarinho, aquela
sanguera pra tudo quanto é lado, os espinhos entrando na cabeça do sujeito, pessoas rindo e cuspindo na sua cara... eu
particularmente ficava aterrado, quase a ponto de chorar! As freiras ainda ficavam dando detalhes mórbidos da agonia do
cidadão, falando que (dizem que) Jesus antes de morrer estava cego de um dos olhos por causa de um dos espinhos da
coroa, que havia lhe perfurado o globo ocular e outras bizarrices. Também ainda consigo me lembrar bem das pinturas
(lindas, confesso) nas paredes da capela. Conforme íamos andando, víamos imagens daquele homem sendo trucidado aos
poucos, primeiro preso, depois humilhado, depois despido, depois açoitado, depois espetado na cabeça, depois forçado a
carregar uma cruz de madeira que parecia ser pesadíssima – sempre tomando chute, chicote, cuspe, porrada e tudo o mais –
e no final ainda pregado naquela mesma cruz e deixado para agonizar devagarinho, até morrer, provavelmente de
hemorragia e hipotermia, imagino eu.
[2]

Esta imagem realmente lhe transmite PAZ!? Agora imagine uma criança vendo isso – e ouvindo que a culpa
também é dela!

As imagens de Cristo crucificado estavam em todo canto daquela escola, em cada corredor, cada sala, em variados
tamanhos. A imagem da "Virgem" Maria era outra presença onipresente, sempre com aquela carinha de coitada e as mãos
posicionadas de forma acolhedora.
Lembro das aulas de religião, nas quais tínhamos que interpretar passagens bíblicas em teatrinhos – eu mesmo interpretei
Jesus Cristo (é sério!) uma vez, lembro-me até hoje do vá, e não peques mais da situação. Nestas mesmas aulas
aprendíamos a “consultar a Bíblia”, identificando capítulos, versículos e toda aquela bobajada, Chegava em casa feliz da
vida porque havia tirado um 10,0 em religião, contava todo orgulhoso pra minha mãe, que recebia a notícia com
irrelevância, às vezes até com fúria, quando junto com o 10,0 de religião vinha aquele maldito 4,0 em matemática. Eu não
entendia porque uma matéria era mais valorizada que a outra – na minha cabeça, um 10,0 era sempre um DEZ! Motivo de
orgulho e coisa e tal. Demorou mais alguns bons anos para eu entender que a matemática era de fato importante, mas a
religião... não tinha (e não tem, e nunca teve) importância alguma na minha formação moral, ética e humana.
E outra coisa que eu lembro é do material escrito. Uma vez havia um panfleto que eu não lembro exatamente de que assunto
tratava, mas que dizia que Maria com seu pé, havia esmagado a cabeça de Satanás... e eu fiquei imaginando a dita-cuja
pisando e destruindo uma cabeça de monstro. A coisa parecia forte pra mim, na verdade, parecia “legal” – eu, como todo
menino, adorava filmes de monstros, e tal cena pareceu-me bastante similar às de alguns filmes que me eram permitidos ver
na época, como Fúria de Titãs[3] (cujo remake[4] ficou uma MERDA!) e Os Aventureiros do Bairro Proibido[5].

Também não conseguia entender direito aquele negócio de "comer a carne e beber o sangue" de Jesus... crianças não têm
maldade ou noções de interpretação textual na cabeça, de modo que eu considerava aquilo um ato de antropofagia,
canibalismo mesmo! Embora tivesse consciência de que não era exatamente isso que queriam dizer, não conseguia
diferenciar... olha só as coisas que enfiam na cabeça dos pequenos!

Depois fui para outra escola, Colégio Regina Coeli, igualmente católica, mas desta não guardo tantas recordações, até
porque já era mais crescido e não tinha mais tanto espaço na minha cabeça para aquilo no lugar de decorar musiquinhas
cristãs já estava mais empenhado em lembrar senhas de jogos do Dynavision e do Super Nintendo, por exemplo. Mas me
lembro que nesse colégio o livro religioso vinha com figuras de Jaspion (um ícone da época), Robocop e Star Wars,
"explicando" (assim mesmo, em itálico e entre aspas) que os herois de hoje eram esses, que os de antigamente eram o
bandido e o mocinho do faroeste mas que, o verdadeiro heroi, aquele que não tinha época nem geração, claro... era Jesus.
Pffffffff...

[6]

Seja franco: qual deles lhe pareceria mais heróico aos olhos de um garoto?

Também nessa outra escola havia um processo discreto e não declarado de catequização. Todo ano tínhamos de nos
empenhar em realizar algum trabalho relacionado à Campanha da Fraternidade do período. E, novamente, o que mais me
marcou a respeito, foi? Uma musiquinha...
O tema da campanha daquele ano eram os jovens, e diariamente tínhamos que entoar uma música horrorosa, mas que
também ficou na cabeça porque tinha uma parte que era pra gritar bem alto e que a pirralhada obviamente adorava. Só que
desta só lembro o refrão:

Os jovens, teus irmãos, Jesus Senhor, têm fome de justiça e de amor!


Sustenta tua luta e teu vigor na força do teu pão libertador!

Pesquisando no Google, descobri que esta música específica foi usada durante a Campanha da Fraternidade de 1992...
caramba, faz tempo! O Brasil ainda era apenas tri!
Musiquinhas fáceis, repetitivas e altas parecem ser um meio bastante eficaz de enfiar alguma coisa na cabeça das pessoas, o
que explica também o sucesso de jingles políticos, comerciais e afins.

[7]

Mas seria injustiça de minha parte culpar apenas a escola. Minha família teve uma participação no processo de quase-proto-
pré-catequização deste que vos escreve. A situação mais clara nesse sentido que vem à minha cabeça agora é de quando
empurrei minha irmã na piscina da casa da minha madrinha – eu devia ter uns 06 ou 07 anos, era muito novo – e me
disseram (não me lembro quem) que deveria pedir desculpas a ela pelo ato. Dito e feito, fui lá e o fiz, ao que minha irmã
respondeu: não é para mim que você tem que pedir desculpas, mas para Jesus. Criança inocente que (ainda) era, estava eu
lá, no meio daquele monte de parente quando, baixinho e à altura da cintura daquele pessoal (bem diferente dos meus atuais
1,90m) falei baixinho e olhando pro céu: desculpa, Jesus. Todo orgulhoso, encontrei minha mãe e disse-lhe que havia
pedido desculpas a Jesus, e ela me respondeu: não é para Jesus que você tem que pedir desculpas, mas para sua irmã. A
minha confusão foi tanta que eu nunca consegui esquecer, até hoje, daquele momento. E agora, pedia desculpas a quem!?

Mas uma coisa tenho que reconhecer... eles nunca me forçaram, nem de leve, a fazer primeira comunhão, catequese,
eucaristia, catecismo e toda essa inutilidade, como meus irmãos. Provavelmente já haviam percebido que eu era caso
perdido... :D

O irônico é que, muito provavelmente, foi essa série de experiências – aliadas à liberdade cultural, literária e racional – que
me tornaram o ateu convicto e militante que sou hoje.

Pra terminar, assistam o vídeo abaixo. Reparem no terror da criança com a possibilidade de ser condenado por Deus e ir
parar no inferno. Você quer uma criança assim? Quer que ela baseie sua vida no medo do que não existe e de que esta
mesma coisa que não existe a mande para um lugar que também não existe?

Matheus em... a morte do pa…


pa…

Útil fútil: por que catequeSe é o ato de catequiZar? Por que uma é com S e outra é com Z?
A regra é clara, Arnaldo! Verbos cujo substantivo originário não traz IS + vogal são grafados com Z. Exemplos: economia
(economizar), batismo (batizar) e fiscal (fiscalizar). Se houvesse uma vogal depois do IS seria com S, como em aviso
(avisar), análise (analisar) e pesquisa (pesquisar). ;)

Links

1. http://3.bp.blogspot.com/-aekz2HcmJ0s/TdC3QtcrRiI/AAAAAAAAALQ/V2xaoXGe0M0/s1600/comunhao.jpg
2. http://1.bp.blogspot.com/-LTVvVPbXC4A/TdC1CafmgOI/AAAAAAAAALI/S4qYKSIMzsE/s1600/cristo.jpg

3. http://3.bp.blogspot.com/-
mqawhPzmEuk/TXpAJwETRWI/AAAAAAAAAUY/tFSJPx1OrzI/s1600/FURIA_%257E1.JPG

4. http://imotion.com.br/imagens/data/media/26/Furia_De_Titas_capa.jpg
5. http://4.bp.blogspot.com/-
RZLl47C9iOg/TW40TVk6jJI/AAAAAAAAGmg/ipA0q9qNGfs/s1600/Os%2BAventureiros%2BDo%2BBairro%2BProibido.jpg

6. http://3.bp.blogspot.com/-5_Dyzp4ZtQ0/TdDArQXtE6I/AAAAAAAAALY/xfxrib8rU9Y/s1600/heroes.jpg
7. http://2.bp.blogspot.com/-dfhgVRn5hc0/TvVjFDtU-
GI/AAAAAAAAA0A/A11_Q1v2ciY/s1600/drauzio+varela+ateu.jpg

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