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2006.
Ideologia e Terror: uma nova forma de governo. Os. 512‐531.
O totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos,
como o despotismo, a tirania e a ditadura. Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou
instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas
do país.
Desde Plantão até Kant observamos que as formas de governo não sofreram variações
significativas, sendo que a totalitária é possível de ser interpretada como uma nova forma de
tirania.
Em vez de dizermos que o governo totalitário não tem precedentes, poderíamos dizer
que ele destruiu a própria alternativa a qual se baseiam, na filosofia política, todas as
definições de essência de governo, isto é, entre governo legal e ilegal, entre o poder arbitrário
e o poder legítimo.
Desafia ainda as leis positivas, como a que ele próprio estabeleceu (como a
Constituição soviética de 1936, ou a que não se deu o trabalho de abolir (Constituição de
Weimar).
Mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário.
A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio de estabelecer a lei da
Justiça na terra – algo que a legalidade da lei positiva certamente nunca pôde conseguir.
A legitimidade totalitária, desafiando a legitimidade e pretendendo estabelecer diretamente o
reino da Justiça na terra, executa a lei da historia ou da natureza sem convertê‐la em critério
de certo ou errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei diretamente à humanidade
sem atender a conduta dos homens. Espera assim que a lei da Natureza ou a lei da Historia,
devidamente executada, engrende a humanidade como produto final.
Se é verdade que os monstruosos crimes dos regimes totalitários destruíram o elo de
ligação entre os países totalitários e o mundo civilizado, também é verdade que esses crimes
não foram consequência de simples agressividade, crueldade, guerra e traição, mas do
rompimento consciente com aquele consensus iuris, que, segundo Cícero, constitui um “povo”;
tanto o julgamento moral como a punição legal pressupõem esse consentimento básico; o
criminoso só pode ser julgado com Justiça porque faz parte desse consensus iuris, e mesmo a
lei revelada de Deus só pode funcionar entre os homens quando eles a ouvem e aceitam.
A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outros; o seu desafio a todas
as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica na crença de dispensar qualquer
consensus iuris e ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da
arbitrariedade e do medo.
O objetivo da educação totalitária nunca foi insuflar convicções, mas destruir a
capacidade de adquiri‐las.
Troca‐se ainda o desejo humano de agir pelo da intuição da lei do movimento, e aqui
encontramos o paralelo com o filme 1984, onde se mover‐se humano baseava na sua
totalidade em ideias, todas elas sendo diariamente atualizadas pelo monitor.
Aquilo que o governo totalitário precisa para guiar a conduta dos seus súditos é um
preparo para que cada um ajuste bem o papel de carrasco e ao papel de vítima. Essa
preparação bilateral, que substitui o princípio da ação, é a ideologia.
O terror total, a sua essência, não existe nem a favor nem contra os homens, mas um
meio de acelerar as forças da natureza ou da história seu movimento. Mas pode ser retardado,
pela liberdade do homem. E isso vem a tolher a própria capacidade humana de começar de
novo.
No cinturão de ferro do terror, ocorre a destruição das pluralidades e faz de todos
aquele Um e agirá como se fosse ele próprio.
Não obstante, enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e, como um
cinturão de ferro do terror, não transforma cada homem em parte de uma humanidade única,
o terror, em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de
movimento, não pode ser completamente realizado.
As grandes potencialidades das ideologias não foram descobertas antes de Hitler e
Stálin.
Ideologia é a lógica da ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a “ideia” é
aplicada. O que torna a “ideia” capaz dessa nova função é a sua própria “lógica”, que é o
movimento decorrente da própria e dispensa qualquer fator externo para colocá‐la em
atividade.
Assim que se aplica uma ideia à lógica como movimento de pensamento – e não como
o necessário controle do ato de pensar ‐ Essa ideia se transforma em premissa.
As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no
desenvolvimento da premissa, e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo já
está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica.
As ideologias do séc. XIX não constituem por si mesmas o totalitarismo, embora
tenhamos o racismo e o comunismo como ideologias principais.
Se revela ainda como um mecanismo de domínio totalitário, surgindo assim três
elementos especificamente totalitários:
1º Não se analisa o que é, mas o que vem a ser, o que nasce e passa.
2º Liberta‐se de toda experiência da qual não se possa aprender algo de novo, emancipando
da realidade que conhecemos e insistindo numa realidade “mais verdadeira”.
3º As ideologias não tem o poder de transformar a realidade; isto é, age com uma coerência
que não existe em parte alguma do terreno da realidade, sempre usando da dedução lógica, o
qual estabelecido a sua premissa, o seu ponto de partida, a experiência não interfere no seu
pensamento lógico, nem este pode aprender com a realidade.
Exemplos de transformação de ideologia em arma: “raciocínio frio como o gelo” (Hitler)
“Impiedade da sua dialética” Stalin
Raças agonizantes: “pessoas indignas de viver” eram pessoas que iam ser exterminadas. Quem
concordasse com a situação e não chegasse a consequência de matá‐los era um estúpido ou
covarde.
Lutas de classes como lei da história, luta de raças como lei da natureza.
Não existe a premissa de “A” sem “B” e “C”
No bolchevismo, para o partido, nas palavras de Tróstki “o partido tem sempre razão.
Pois a história não nos concebe outros meios de termos razão”. Os criminosos devem ser
punidos, o partido necessita de criminosos. “Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste
convocado pelo Partido para desempenhar o papel de criminoso, e de qualquer forma é um
criminoso e inimigo do Partido e deve confessar, pois senão deixará de ajudar a história
através do partido e se tornará um verdadeiro inimigo”.
O governante totalitário conta com uma compulsão que nos impele para frente, o qual
se admite a renúncia da liberdade interior, assim como a liberdade do movimento quando se
curva à tirania externa.
O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria
força de vontade do homem para forçá‐lo a mergulhar naquele gigantesco movimento da
História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora o
nascimento ou a morte .
O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas
aquele para quem já não existe a diferença entre fato e ficção, (isto é, a realidade da
experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios de pensamento).
Já se observou muitas vezes que o terror só pode reinar absolutamente sobre os homens que
se isolam uns contra os outros e que, portanto, uma das preocupações fundamentais de todo
governo tirânico é provocar esse isolamento.
Tem‐se que a solidão é contrária às necessidades básicas da condição humana, sendo
que até mesmo a experiência com o mundo, que nos é dado material e sensorialmente,
depende de outros homens e sem o qual permaneceríamos enclausurados em nossa própria
particularidade de dados sensoriais, que em si mesmos são traiçoeiros e indignos de fé.
Verdade ainda que existe a diferença entre o homem solitário e o homem só. O
primeiro vê‐se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e cuja
hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está desacompanhado, e, portanto, “pode
estar na companhia de si mesmo”. Em outras palavras, quando se está só, está “consigo
mesmo”em companhia do seu próprio eu, e é, portanto, dois‐em‐um; enquanto na solidão sou
realmente apenas um, abandonado por todos os outros.
Para a confirmação de minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas.
Viver só pode levar à solidão. Isso quando, estando a sós, o meu próprio eu me
abandona. Os que vivem sozinhos sempre correm o risco de se tornarem solitários.
O que torna a solidão tão insuportável é a perca do próprio eu, que pode realizar‐se
quando está a sós, mas cuja identidade só é confirmada pela companhia confiante e fidedigna
dos meus iguais.
A única capacidade do espírito humano que não precisa nem do eu nem dos outros
nem do mundo para funcionar sem medo de errar, e que independe tanto da experiência
como do pensamento, é a capacidade do raciocínio lógico, cuja premissa é aquilo que é
evidente por si mesmo. O truísmo de dois mais dois são quatro não se pode perverter nem
mesmo na solidão absoluta, pois é a única “verdade” segura em que os seres humanos podem
apoiar‐se quando perdem a garantia absoluta, de que necessitam para sentir, viver e encontrar
o seu caminho num mundo comum.
Os processos do pensamento caracterizados pela lógica exata tem haver com a
solidão, como observou Lutero, o qual também afirmou: “sempre deduz uma coisa de outra e
sempre pensa o pior de tudo”
O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato
de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas
condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência de
massas cada vez maiores, o que se define como fuga suicida da realidade. O domínio totalitário
procura nunca deixá‐lo sozinho, a não ser na situação extrema da prisão solitária. Elimina‐se
até mesmo a vaga possibilidade da solidão espiritual.
Quando se compara esse método com a tirania, parece que se conseguiu imprimir
movimento ao próprio deserto, meio de desencadear uma tempestade de areia que pode
cobrir todas as partes do mundo habitado.
O domínio totalitário, como a tirania, traz em si o germe da própria destruição.
Tal como o medo e a impotência que vem do medo são princípios antipolíticos, e levam os
homens a uma situação contrária à ação política, também a solidão e a dedução do pior por
meio da lógica ideológica representam uma situação anti‐social contendo em si um princípio
que pode destruir toda a vida humana.
Corremos o risco ainda de ficar com essa nova forma de governo, assim como ficaram,
a despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes
momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais – monarquias, republicas,
tiranias, ditaduras e nepotismos.
Conclui que todo fim da histórica porta consigo um novo começo, um começo como
promessa, pois o começo, antes de se tornar evento histórico, é a suprema capacidade do
homem; “Initium ut esset homo creatus est” – “o homem foi criado para que houvesse um
começo, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada
um de nós.