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I

A imagem de José Veríssimo (1857/1915), enquanto crítico literário e historiador


da literatura brasileira, encontra-se fortemente solidificada nos diversos estudos
(acadêmicos ou não) e biografias escritas a seu respeito, desde o seu falecimento 1. Por
outro lado, é possível observar que continuam eclipsadas suas idéias e obras no campo
da história do pensamento social brasileiro (ver Barbosa, 1974:42).

Nesse contexto, as obras de José Veríssimo dedicadas aos estudos literários


acabaram constituindo-se em sua "herança intelectual", objeto de análise dos
pesquisadores vinculados às áreas de teoria e história da literatura nacional, ofuscando
suas contribuições no campo da etnografia da Amazônia (ver idem).Na verdade, até
mesmo os estudiosos da raça e da nacionalidade no pensamento social brasileiro
negligenciaram a importância da obra etnográfica do escritor paraense, apesar de não
ignorarem seu papel no campo das letras no Brasil, nas últimas décadas dos oitocentos
e primeiros vinte anos do século XX (ver Skidmore, 1976; Schwarcz, 1993; Ventura,
1991).

Talvez o próprio fato de o pensamento social e etnográfico em José Veríssimo se


circunscrever à análise da realidade amazônica, possa ter contribuído para a sua
suposta menor importância no cenário nacional da época, segundo sugerem os silêncios
da bibliografia, constituindo um mero engano no meu modo de ver.

De qualquer forma, a obscuridade destinada aos livros e ensaios marcadamente


etnográficos de José Veríssimo, como, por exemplo, Primeiras Páginas  (1878)
e Scenas da Vida Amazônica  (1886) ¾ considerados como obras imaturas ou menores
em sua vasta biobibliografia por parte de memorialistas, teóricos e críticos literários,
historiadores, antropólogos e cientistas sociais ¾ , mesmo quando lhe são feitas as
devidas referências, acaba instigando a nossa necessidade de buscar um melhor
conhecimento acerca das mesmas, superando determinadas lacunas no campo da
história do pensamento social brasileiro.
 

II

Nascido na Vila de Óbidos, Província do Pará, em 1857, José Veríssimo Dias de


Mattos "fez os primeiros estudos em Manáos ( sic) e Belém e, ao vir, aos 12 annos ( sic),
para o Rio de Janeiro, entregue aos cuidados de um tio, o Conselheiro Dr. Antonio
Veríssimo de Mattos, aqui [Rio de Janeiro] freqüentou ( sic) os colégios de Pedro II,
Victório e mais tarde a Escola Central, hoje Escola Polytechnica [ Escola de
Engenharia]" (Prisco, 1937:11).

José Veríssimo, entretanto, fragilizado em sua saúde física viu-se forçado a


abandonar os estudos na Corte, regressando, aos 19 anos, para a cidade de Belém do
Pará, onde iniciou suas atividades profissionais no campo das letras nas páginas do
jornal O Liberal do Pará, folha vinculada ao Partido Liberal, publicando os seus primeiros
contos, críticas literárias e impressões de viagens que realizou pelo hinterland paraense.

Na cidade de Belém, sob a folies du latex, José Veríssimo desenvolveu


largamente suas atividades literárias na imprensa paraense, colaborando em outros
jornais, como, por exemplo, o Diário do Gram-Pará, a Província do Pará,  o Comércio do
Pará, A República, ou até mesmo fundando, em 1879, sua própria folha ¾ A Gazeta do
Norte ¾  que, porém, teve vida efêmera.

Em 1883, criou e publicou onze números da Revista Amazônica, na qual


procurava reunir estudos e textos de literatura produzidos por intelectuais locais ou não
que, dessa forma, podiam contribuir para o avanço das letras na região.

Na verdade, os livros de José Veríssimo constituem-se, basicamente, como


resultado de sua atividade periodística nos jornais de Belém (1877/1891) e na imprensa
da capital do país ¾ Rio de Janeiro (1891/1915) ¾ , onde viveu suas últimas décadas de
vida (Barbosa, 1974:68-69).
José Veríssimo, entretanto, não se limitava às atividades jornalísticas; a
educação era outro aspecto importante de suas preocupações intelectuais na Província
do Pará. Em 1883, fundou a Sociedade Promotora da Instrução, impulsionado por sua
crença positivista na ação regeneradora da educação, possibilitando o progresso e a
civilização do país.

No campo da educação, Veríssimo desenvolveu atividades de magistério ao


longo de sua vida, tanto no ensino público como privado. Na cidade de Belém do Pará,
em 1884, encontrava-se à frente da direção do Colégio Americano, dedicado ao ensino
dos dois sexos, introduzindo o jardim de infância e a prática da educação física; em
1890, publicava seu famoso livro Educação Nacional, no qual enfatizava sua crença na
ação pedagógica como medida eficaz para mudanças sociais, uma vez que acreditava
que "as virtudes e vícios de um país não são, senão, as virtudes e vícios de seus
naturais" (apud Veríssimo, 1966:43), sendo, portanto, passíveis de reeducação.

Em 1890, ainda, José Veríssimo é nomeado diretor da Instrução Pública do


Estado do Pará, função na qual procura colocar em prática suas idéias acerca da
educação. Nessa época, inclusive, realiza a reforma do Museu Paraense (1891),
possibilitando sua reinauguração (Schwarcz, 1993:84-85). Em 1891, entretanto, licencia-
se definitivamente desse cargo, desencantado com os caminhos da política republicana,
considerando seus homens públicos descompromissados com as verdadeiras reformas
tão necessárias à regeneração social do país. A partir de então fixa residência na
capital.

Na verdade, entre 1891 e 1915, período em que reside no Rio de Janeiro, José
Veríssimo mostra-se decepcionado com ajovem República brasileira, em nada
dessemelhante das demais latino-americanas, e, pior, não muito distante das práticas
políticas do extinto Império, do qual o autor paraense jamais foi partidário 2. Daí, seu
"auto-exílio" na capital do país 3, após sair da Diretoria da Instrução Pública do Estado do
Pará, por vontade própria, por não desejar submeter-se aos caprichos do mandonismo
político das elites locais (Veríssimo, 1966). Nessa época, o autor paraense se decide por
uma determinada postura perante a sociedade, que ele resume nesta frase: "um grão de
ironia e ceticismo" (apud Barbosa, 1974:63-65).

Entretanto, "um grão de ironia e ceticismo" não significa a ausência de Veríssimo


do debate político de sua época, como, aliás, sugerem determinados críticos e
historiadores da literatura brasileira (ver Barbosa, 1974; Ventura, 1991), na medida em
que nas suas crônicas, publicadas nas páginas dos principais periódicos cariocas, ele
utiliza largamente os artifícios da ironia e o distanciamento cético como caminhos de
análise da situação da vida literária, cultural e política na América Latina (Veríssimo,
1985). Daí, inclusive, seus textos jornalísticos acerca da relação entre México e
EUA ¾ nos quais ceticamente aponta os desmazelos da república latino-americana sob
o peso esmagador do imperialismo norte-americano ¾ revelarem, mesmo que nas
entrelinhas, as próprias opiniões do autor sobre o caso brasileiro, desmitificando-o como
um escritor abstêmio em termos de participação nas discussões políticas.

Não obstante, ao lado das atividades jornalísticas, literárias e pedagógicas, José


Veríssimo busca a sua sobrevivência e a de sua família no exercício de funções
burocráticas como funcionário público, tanto na cidade de Belém como no Rio de
Janeiro. Ao mesmo tempo, empenha-se, nas últimas décadas de sua vida, na
consolidação profissional e pública de sua carreira de escritor e crítico literário, tentando
desvincular a própria produção literária dos favores do Estado no campo da cultura, haja
vista, na época, a quase impossibilidade de literatos e intelectuais sobreviverem
independentemente no mundo das letras, sendo obrigados a buscar melhor sorte e
remuneração sob as asas do serviço público, como professores, funcionários
graduados. É nesse contexto que Veríssimo persegue a constituição da especificidade
do papel atribuído à crítica literária, fundando, inclusive, a terceira fase da Revista
Brasileira  (1895), além de participar da criação da Academia Brasileira de Letras ¾ ABL
(1897), a partir do círculo de letrados da Primeira República reunido na capital do país
(Barbosa, 1974:145-146; Ventura, 1991:102-103).
Toma-se, então, a busca de independência e consolidação da carreira do escritor
e crítico literário perseguida por Veríssimo sem sucesso, como atitude política que, por
isso mesmo, não podia permitir nenhuma forma de concessão ao clientelismo dos
homens públicos à frente da República. Dessa forma, compreende-se a renúncia
definitiva de Veríssimo a continuar no seio da ABL, na qual chegou a ocupar o cargo de
secretário em 1912, quando na mesma se iniciou o processo de diversificação de seus
quadros, permitindo o ingresso de candidatos à condição de imortal no mundo das
letras, mesmo que não fossem egressos do meio literário, como por exemplo o ministro
Lauro Müller, figura política destacada, escolhido na ocasião pela maioria dos membros
da instituição (ver Prisco, 1937:162-166; Ventura, 1991:112-113).

Por outro lado, José Veríssimo, até os seus últimos dias, escreve obras
etnográficas sobre a Amazônia, como, por exemplo,  Interesses da Amazônia, publicada
em 1915, na qual defende posicionamentos políticos acerca da imigração e do
povoamento da região como saída para a superação de seu parco desenvolvimento
social e econômico, concomitantemente à racionalização da exploração do látex que,
por sua vez, permitisse uma retomada dos preços da borracha em situação de baixa no
mercado internacional desde 1912. Na mesma linha, alguns anos antes, em setembro
de 1891, nas páginas do Jornal do Brasil, Veríssimo publica uma série de artigos
desenhando um painel sobre a Amazônia e o tema da colonização e imigração que,
posteriormente, foram reunidos em A Amazônia (Prisco, 1937:89-92). Além disso,
destinava, algumas vezes, sua pena ao desenvolvimento de ensaios marcadamente
políticos, como, por exemplo, Pará e Amazonas (Questão de Limites) , escrito em 1899
sob encomenda do governo Paes de Carvalho, no qual saía em defesa dos interesses
territoriais paraenses, objeto de litígios com o estado vizinho ( idem:100-104).

Dessa forma, é meu objetivo verificar como José Veríssimo, em suas obras
marcadamente etnográficas, pensava, desde a época em que publicou seu primeiro
livro, Primeiras Páginas, em 1878, composto de uma miscelânea de textos, muitas
vezes anteriormente estampados nas páginas da imprensa periódica da capital
paraense, questões como a mestiçagem na Amazônia. A partir dessa obra inicial, é
possível observar as afinidades intelectuais do jovem autor com os paradigmas
postulados pelos representantes daquilo que se convecionou chamar "Geração de 70".

III

Segundo Skidmore (1976), Schwarcz (1993) e Ventura (1991), durante as últimas


décadas dos oitocentos ocorreu um importante processo de renovação intelectual no
país, sob a influência de várias correntes de pensamento, como o positivismo,
evolucionismo, darwinismo social, naturalismo. Nessa época, haviam surgido alguns
círculos de intelectuais preocupados com os caminhos da nacionalidade brasileira que,
participantes da "Geração de 70" 4, se posicionavam diante do que acreditavam ser o
dilema do país: a questão da mestiçagem.

O processo de cruzamento das raças na formação da sociedade brasileira


constituía-se em objeto de estudos e investigações científicas por parte dos "homens de
sciência", particularmente após o término da escravidão, mediante a apropriação das
teses propaladas pelo racismo científico. Muitos intelectuais brasileiros acabaram
buscando no suposto problema da mestiçagem, por meio da teoria do branqueamento,
uma solução para a superação do atraso do país (ver Skidmore, 1976; Schwarcz, 1993).

Por outro lado, nem todos os intelectuais desposavam os paradigmas das teses
raciais em seus estudos acerca da história da sociedade brasileira. O médico e literato
Manoel Bonfim, por exemplo, mesmo preso teoricamente aos princípios básicos
das ciências biológicas aplicados às ciências sociais, em sua obra A América Latina.
Males de Origem (1905)5, elabora um "contradiscurso" que nega qualquer fundamento
ao racismo científico, considerando-o uma ideologia do imperialismo norte-americano e,
particularmente, europeu. Na verdade, Bonfim procura demonstrar que a situação de
atraso do Brasil é uma decorrência de fatores históricos explicados à luz das leis e
categorias biológicas6.

Entretanto, os representantes da "Geração de 70" batiam-se pelo ingresso do


Brasil no seleto clube dos povos civilizados ¾ sendo estes vistos sob o prisma das
ciências biológicas aplicadas ao estudo da realidade social ¾ , concebendo a literatura
como catalisadora das mudanças sociais e revigoradora da nacionalidade, através da
crítica literária baseada no método etnológico e no critério nacionalístico (Barbosa,
1974:34-38).

Neste ponto, inclusive, reside a diferença de perspectiva entre o indianismo


nacionalista da primeira metade do século XIX e o pensamento social da segunda
metade dos oitocentos, quanto ao estudo das origens da nacionalidade brasileira e da
construção da identidade nacional (ver Cunha, 1986:165-173), como é possível observar
nas palavras críticas de José Veríssimo ao comentar a ausência de cientificidade dos
autores indianistas em suas análises das populações indígenas, consideradas pelo autor
paraense como degeneradas:

"E, diante de tôda (sic) esta degradação, a gente não podia deixar de sorrir das
teorias sentimentalistas dos românticos da política ou da arte, e perguntar se êstes ( sic)
sujeitos darão jamais cidadãos aproveitáveis e indagar onde estão, entre estas mulheres
feias e desgraçadas, as Iracemas e entre êstes ( sic) homens rudes e grosseiros, os
Ubirajaras" (1970a:123).

É claro que se faz necessário não esquecer que o surgimento de discursos


literários constituidores da identidade e nação brasileiras, por intermédio do
esquadrinhamento das origens e conformação do país, desde a primeira metade do
século XIX, fragiliza a versão consagrada do pioneirismo, no campo literário, dos
"homens de sciência", no trato e estudo das questões acerca da nacionalidade, a partir
das últimas décadas dos oitocentos 7. Dessa perspectiva, é possível pensar o ensaio
"Como se Deve Escrever a História do Brasil", do naturalista-viajante germânico Von
Martius (1982:85-107), como exemplo de obra dedicada ao tema da construção da
nacionalidade no pensamento das elites na primeira metade do século passado.

De qualquer forma, é no contexto da "Geração de 1870", mais precisamente em


1878, que o jovem José Veríssimo publica seu primeiro livro, Primeiras Páginas,
influenciado pelo naturalismo e convicções positivistas, dando início a uma sólida
carreira intelectual marcadamente voltada para o papel social da literatura brasileira,
sem desvencilhar-se de suas preocupações com os estudos etnográficos da região
amazônica. Faz-se necessário, então, compreender como o escritor paraense construiu
determinados temas em sua obra etnográfica no período entre 1878 e 1915 8.

IV

No seu ensaio, "As Populações Indígenas e Mestiças da Amazônia. Sua


Linguagem, suas Crenças e seus Costumes", publicado pela primeira vez com o
título Raças Cruzadas do Pará, em Primeiras Páginas, e, posteriormente, revisado,
ampliado e republicado pelo autor em seu outro livro Scenas da Vida Amazônica (1886),
José Veríssimo afirma a positivação da mestiçagem: "A América é o vastíssimo cadinho
em que se fundem hoje as diversas raças e gentes do globo. Porventura sua missão
histórica é dar, servindo de campo para o cruzamento de tôdas ( sic) elas, unidade étnica
à humanidade, e, portanto, nova face às sociedades que hão de viver no futuro"
(1970a:11). Aqui, Veríssimo enfatiza a situação brasileira, particularmente a região
amazônica, onde a predominância da população mestiça podia possibilitar seu processo
de branqueamento: "Em regra geral, cada nôvo ( sic) cruzamento aproxima o mameluco,
o filho do branco e do índio (curiboca, ou mameluco propriamente dito) da raça
branca"(idem:14).

José Veríssimo, inclusive, busca na miscigenação racial a originalidade do Brasil


enquanto nação, percebendo as possíveis vantagens advindas do cruzamento das
raças, ou seja, a constituição de uma homogeneidade étnica a longo prazo, impedindo a
existência de problemas raciais no Brasil como acontecia, por exemplo, nos Estados
Unidos da América (idem:27-28), desde que houvesse a hegemonia dos elementos
raciais superiores durante o processo de mestiçagem, subtraindo-se os caracteres
físicos e morais daqueles considerados inferiores.

Em seu estudo acerca das raças cruzadas na Amazônia, Veríssimo afirma que há
forte presença do elemento indígena associado ao branco colonizador, em detrimento
da pouca significância da raça negra: "Esta região, com efeito, foi das menos povoadas
por negros, e hoje é raríssimo encontrar africanos nas duas províncias [Pará e
Amazonas], principalmente fora das capitais [Belém e Manaus]" (idem:24)9. Dada essa
situação, o autor paraense percebe uma grande vantagem étnica para a população
amazônica, uma vez que concebe os negros como inferiores aos índios, os quais por
sua vez, se encontravam mais próximos da raça branca. Posteriormente, nosso autor
altera sua tese inicial, afirmando em sua obra  Estudos Brasileiros (1877/1885) que: "fui
profundamente injusto com a raça negra, na qual tenho antepassados. Ela é porventura
superior a indígena e prestou ao Brasil relevantes serviços" (Veríssimo, 1889:10).

Além disso, também se dedica em seu ensaio aos índios tapuios, considerados


pelo autor como índios destribalizados que viviam em aldeamentos em estágio de
semicivilização, sendo, por isso, distintos dos demais grupos indígenas em perfeito
estado de selvageria: "chamado ao grêmio da civilização e obrigado a partilhar, embora
como pária, a nossa vida, o índio perdeu o caráter acentuado de selvagem: não só o
moral mas também o físico se lhe modificou, como é fácil reconhecer no tapuio, que,
filho do índio, como índio já se diferencia dêle ( sic)" (Veríssimo, 1970a:14)10. Para o
autor, a "influência do meio social" forjada na Amazônia durante o processo de
colonização portuguesa, possibilitou que os filhos de índios nascidos nessa nova
situação fossem muitas vezes forçados a "assimilar costumes, crenças, idéias, língua,
tudo, enfim, inteiramente diversos dos seus", constituindo-se em tapuios, da mesma
forma que os filhos de africanos nascidos no Brasil, sob o peso de uma nova realidade
social, se distinguiam de seus antepassados crioulos.

A determinação do meio social atuava, portanto, não apenas sobre a formação do


caráter dos descendentes dos índios em contato com a civilização européia nos
trópicos, mas também nas transformações dos caracteres físicos dos tapuios,
possibilitando um distanciamento biológico de seus antepassados, galgando mais um
passo na escala evolucionista do aperfeiçoamento da espécie. "O prognatismo maxilar,
a obliqüidade dos olhos, a falta de pêlos no corpo e na barba, só aparecem como casos
de atavismo; são muitos, mas não são regra geral" ( idem:15). Para Veríssimo,
os tapuios  não eram mais índios, porém, ainda não haviam alcançado um lugar na
sociedade civilizada, encontrando-se em situação marginal, sendo, até mesmo,
menosprezados pelos mamelucos, descendentes do cruzamento entre brancos e índios
(idem:14).

Os mamelucos variam enormemente conforme o grau de cruzamento: na primeira


geração, conhecidos como curibocas,

"[...] se não há evidente supremacia da raça branca, como às vezes sucede, os


sinais externos são os do tapuio, com diferenças insignificantes [...]. No segundo ou
terceiro grau, no verdadeiro mameluco de todo o mundo, já a diferença é apreciável,
falta apenas à estátua a última demão [...]. Por uma regressão ao tipo primitivo, ainda
aparecem em alguns indivíduos sinais do índio, no prognatismo das maxilas, na falta
quase completa de barba, no achatamento da fronte, da mesma maneira que noutros,
em que predominou o tipo branco, aparecem olhos azuis, cabelos alourados, nariz
aquilino etc. É de notar, porém, que êstes ( sic) indícios são mais raros do que aquêles
(sic)" (idem:15).

Entretanto, apesar das diferenças indicadas por


Veríssimo, tapuios e mamelucos encontravam-se degradados em seu caráter, embora o
autor argumente a favor dos últimos em relação aos primeiros: "O tapuio, principalmente
por ter, ou por seu gênio esquivo e desconfiado ou por motivo de côr ( sic), vivido mais
afastado da nossa sociedade, ou ainda porque não estivesse apto para a civilização, ou
por tôdas (sic) estas causas juntas, chegou a um abatimento moral lastimoso" ( idem:21).
Quanto aos índios, concebia os mesmos como uma possível raça decaída: "O gentio do
Brasil, ao menos aquêle que habitava a região amazônica, devera ter tido uma
civilização mais perfeita do que as dos restos das tribos esparsas pelo nosso extenso
interior e até, a certos respeitos, do que os seus descendentes atuais" ( idem:16). As
causas para a decadência dessa "raça selvagem, mas talvez aperfeiçoável",
encontravam-se na história da colonização: na falsa catequização, na vilania dos
colonizadores desregrados moralmente e criminosos em sua ambição que, dentre outras
coisas, contribuíram para a transformação dos indígenas em "uma gente abastardada,
dissimulada, odiando a civilização ou amando unicamente os vícios que fatalmente
ela acarreta consigo: a bebedeira, a rapina e a hipocrisia" ( ibidem)11.

Observe-se que as críticas de Veríssimo ao processo de colonização portuguesa


ocorrido no Brasil, particularmente na região amazônica, construíam-se sob a lentes do
positivismo, como, por exemplo, na sua desaprovação da ação catequética dos
missionários católicos nos aldeamentos indígenas.

Por outro lado, o caráter de morigeração das populações indígenas sofria uma
lastimável influência da natureza exuberante dos trópicos que nada lhes permitia faltar
com um mínimo de esforço físico, não lhes exigindo a devoção necessária ao trabalho
(idem:23) como forma de superação da sua condição selvagem. Dessa forma, a
natureza pródiga, "um clima enervante a vencer", e as condições ou o meio social em
que se operaram os cruzamentos entre índios e colonizadores são, segundo Veríssimo,
as causas do abatimento em que se encontram tapuios e mamelucos, descartando a
situação dos mesmos como resultado dos próprios cruzamentos ocorridos entre raças
superiores e inferiores ou, quiçá, "a incapacidade absoluta do índio para a civilização"
(ibidem).
Na verdade, José Veríssimo, mesmo reconhecendo a influência das idéias raciais
de Agassiz (cf. Agassiz e Agassiz, 1938), não concordava com a condenação da
mestiçagem ou do cruzamento das raças defendida por ele, procurando demonstrar a
situação de degradação dos mestiços da Amazônia como resultado das influências
negativas da natureza e meio social em que se encontravam mergulhados desde o
período colonial. Para ele, deve-se atribuir essa realidade "ao meio e às condições
sociais, políticas e religiosas em que se deram os cruzamentos", considerando-se,
ainda, que, "relativamente, predominou nestas raças o elemento tupi, mais do que o
português", independentemente de o restante da população não pertencente a essas
raças ter também sofrido essa influência negativa ( idem:85) .

José Veríssimo também indica a educação como um importante mecanismo de


superação da degradação das raças cruzadas, permitindo que as mesmas
conseguissem alcançar uma maior perfectibilidade, apesar dos vários séculos em que
foram submetidas aos desmazelos da própria civilização na qual, forçosamente, haviam
sido incorporadas, desde o período da dominação portuguesa ( idem:18-19). Para ele, a
ausência da educação se constituía na origem dos males das populações mestiças, cujo
resultado se encontrava em sua vida nômade e incivilizada no meio das matas,
sobrevivendo da prodigiosidade da natureza na extração de produtos como a castanha e
o látex, submetidos à exploração dos regatões ( idem:79).

Entretanto, a educação não bastava! Veríssimo pensava como uma possível


solução para os problemas da Amazônia no recurso à imigração estrangeira,
marcadamente européia, e na ausência desta na utilização de trabalhadores nacionais
advindos da região sul do Brasil ( idem:255). Segundo ele, tais trabalhadores haviam de
misturar-se com a população mestiça, fornecendo-lhe o exemplo e vigor para o mundo
do trabalho (ibidem) e, quiçá, até mesmo os indígenas podiam constituir-se em
elementos produtivos, abandonando sua indolência sob o influxo da civilização
(idem:238).
José Veríssimo procurava, então, desmistificar o clima da região, tido como
insalubre para a vida e o trabalho de imigrantes europeus, sugerindo a adaptação do
homem estrangeiro em determinadas localidades próximas ao litoral, cujas terras não
fossem floresta fechada, estivessem próximas dos centros urbanos e razoavelmente
trabalhadas pelos habitantes locais, acostumados aos serviços mais pesados de
derrubada da mata em meio ao clima tropical. Nessas sugestões, inclusive, residiam as
suas críticas aos projetos imigrantistas aplicados sem sucesso na colonização do Pará
desde a segunda metade do século XIX ( idem:191-195). Ele acreditava no povoamento
como sinônimo de progresso e desenvolvimento da Amazônia, desde que a sua
colonização fosse feita por determinados imigrantes da Europa meridional, à exceção
dos lusitanos porque estes costumavam dedicar-se ao comércio, estando mais aptos à
vida e ao trabalho nas regiões quentes. O autor paraense nutria simpatias pelos
alemães e ingleses por considerá-los verdadeiros povos industriosos ( idem: 246, 254).

Educação e povoamento constituíam, portanto, as bases para o aprimoramento


das raças cruzadas da Amazônia, possibilitando sua retirada do estado de letargia e
abatimento, na medida em que tapuios e mamelucos possuíam um grau de inteligência
mais desenvolvido comparativamente aos outros indígenas, considerados por Veríssimo
como inferiores intelectualmente (idem:22). Também, é verdade, que os processos de
imigração e povoamento defendidos pelo nosso autor como possíveis caminhos de
desenvolvimento material e moral da Amazônia não deixavam de significar a própria
dizimação das sociedades indígenas, haja vista seu virtual desaparecimento, se não
físico, como resultado do contágio, ao menos cultural.

Outros comentários poderiam ser feitos sobre a etnografia construída por José
Veríssimo acerca da Amazônia, porém é possível acreditar que os temas escolhidos
para esta digressão não são menos importantes em sua obra e pensamento social,
muito pelo contrário, aí residem as bases de todo o seu raciocínio influenciado pelas
teses do racismo científico. Na verdade, José Veríssimo procurava compreender a
região do vale do Amazonas dentro do discurso da época, influenciado pelo naturalismo
francês que, só muito parcialmente, abandonaria em sua fase de afirmação enquanto
crítico literário, na cidade do Rio de Janeiro, quando se constituiu em adepto da leitura
impressionista das obras literárias, redefinindo, inclusive, sua própria noção do que
fosse a literatura, distanciando-se das posições defendidas por Sílvio Romero e outros
escritores egressos da famosa "Geração de 70" (cf. Barbosa, 1974; Ventura, 1991;
Süssekind e Ventura, 1984).

Sob as névoas do naturalismo, José Veríssimo enfatiza a determinação dos


meios natural e social no processo de formação da população mestiça da Amazônia,
desde a época colonial, assegurando que os estados moral e material desabonadores
das raças cruzadas da região não se devem ao próprio processo de mistura ou
miscigenação racial ocorrido entre raças puras ¾ se é que existiam ¾ , conforme
induzem viajantes-pesquisadores, como Agassiz, ou cientistas nacionais renomados,
como Nina Rodrigues (1938), mas resultam, lembra o etnógrafo paraense, das
condições em que se operam tais cruzamentos, principalmente quando o elemento
superior se encontra representado pelo que havia de pior na estirpe portuguesa.

Na verdade, José Veríssimo concebe a mestiçagem como caminho necessário ao


processo de civilização da Amazônia, possibilitando o branqueamento de sua
população, na medida em que as cidades e vilas da região só existiam por causa da
presença da colonização européia, mesmo que portuguesa, haja vista a superioridade
destes comparativamente aos indígenas, ainda que não deixassem de sofrer as
influências destes últimos (idem:27, 236).

O naturalismo encontra-se bastante presente nos relatos etnográficos de


Veríssimo, como, por exemplo, nas narrativas de suas viagens particulares ou oficiais a
serviço do governo pelo hinterland da Amazônia, nas quais se preocupava com a
descrição geográfica, topográfica e hidrográfica do território visitado, descrevendo em
suas páginas a natureza como um quadro fidedignamente pincelado pelas primeiras
observações colhidas pelo autor paraense em sua "carteira de viagens" ( idem:210). Em
sua narrativa acerca da viagem de Belém a Óbidos, a bordo do Arari, destaca a
importância social da literatura naturalista:

"Sei que não estão estas linhas no espírito do folhetim, mas tenho para mim que
os estudos e observações práticas são mais úteis em um país nôvo ( sic) como o nosso,
e principalmente em uma província tão atrasada como esta, do que os escritos de outra
qualquer ordem. Por isso os leitores ¾ se leitores tiver ¾ me hão de permitir que desça
algumas vêzes (sic) a tratar, em folhetim, dêsses (sic) assuntos" (idem:227).

José Veríssimo, entretanto, não se limita unicamente aos estudos e descrições


da natureza, mesmo porque o naturalismo não pode ser confundido apenas com a
retratação do meio físico12. Ele busca estudar as populações da região amazônica,
detalhando em seus relatos etnográficos suas crenças, costumes, modos de vida, enfim,
realiza trabalhos na linha do folclore. No seu ensaio As Populações Indígenas e
Mestiças da Amazônia..., por exemplo, o escritor-viajante paraense elabora uma
esmiuçada descrição dos hábitos alimentares dessas gentes:

"A sua mesa é parca e má. A base da sua alimentação é o peixe, principalmente
o pirarucu sêco (sic) (piraém) cozido ou assado, porém mais geralmente assado, e
farinha d’água, uma farinha grossa amarela, não dessaborosa, mas falha de qualquer
parte nutritiva e fàcilmente (sic) fermentável, feita de mandioca apodrecida n’água
(mandioca puba) onde a deixam de molho algum tempo" ( idem:80).

Em outro texto, denominado Os Ídolos Amazônicos, publicado em 1883,


Veríssimo usa a descrição naturalista e cientificista para tratar dos artefatos indígenas
(idem:109-112); na carta Nas Malocas (1882), narra sua viagem ao Amazonas, em
companhia do presidente desta província, em setembro de 1882, descrevendo
detalhadamente suas impressões acerca da natureza daquele vasto vale fluvial e, como
o próprio título do ensaio indica, a vida dos índios, tapuios e mamelucos das aldeias e
aldeamentos localizados nas margens dos rios Andirá, Maués e Canumã, visitados pela
comitiva presidencial. O escritor descreve fascinado as danças do lundu, da tirana e da
jacundá, transcorridas nas localidades onde esteve nessa expedição ( idem:119-122).

Na carta Nas Malocas, Veríssimo observa o processo de degeneração dos


"selvagens" em contato com o único arauto da civilização nessas paragens: o regatão.
Lastimando o estado deprimente das malocas das aldeias dos índios mundurucus e
maués, o ensaísta paraense observa:

"A impressão que deixa no espírito do observador atento e de boa-fé ( sic) o


estudo dêste (sic) meio é má. Vem-nos, por mais que contra ela lutemos, a convicção de
que o índio é um indivíduo com quem a civilização não deve contar. Nada mais
desolador do que estas malocas, em ruínas, sem cultura, sem progresso, sem trabalho,
sem vida, onde vegeta, que não vive, uma população mesquinha e mofina de gente
fraca, sem nenhum vigor moral, nem selvagem, nem civilizada, miserável, indolente,
paupérrima, no meio das máximas riquezas naturais" ( idem:122).

Vê-se, então, na leitura dos textos etnográficos de José Veríssimo a influência


marcante dos postulados das teses raciais, ainda que faça uma descrição detalhada e
até mesmo elogiosa de determinados aspectos culturais e folclóricos das populações
mestiças e, particularmente, indígenas. Sua dubiedade quanto ao caráter de
perfectibilidade ou não deste último grupo populacional (" Vem-nos, por mais que contra
ela lutemos, a convicção de que o índio é um indivíduo com quem a civilização não deve
contar."), indica-nos as próprias incertezas do autor que, mesmo assim, acaba por
defender a mestiçagem, imigração e povoamento na Amazônia como solução de
desenvolvimento da mesma, excluindo os índios desse processo 13.

Outra obra importante de Veríssimo, escrita sob a ótica naturalista, quiçá o seu
mais destacado ensaio etnográfico, foi A Pesca na Amazônia, na qual busca descrever
detalhada e tecnicamente o processo de pesca artesanal das populações ribeirinhas da
Amazônia, fornecendo diversas informações acerca da fauna aquática dos rios da
região, dentre outros aspectos do cotidiano dos pescadores. O caráter marcadamente
descritivo do livro fez com que o mesmo fosse considerado pelo cientista germânico Von
Ihering, polêmico diretor do Museu Paulista, um verdadeiro texto etnográfico sobre a
vida amazônica (Prisco, 1937:93-94)14.

Dessa forma, José Veríssimo encontra no naturalismo a via de acesso para o


estudo da realidade amazônica, inclusive em suas obras de caráter ficcional publicadas
em seu único livro de contos, Scenas da Vida Amazônica. Neste, o autor apresenta
quatro pequenas histórias: O Bôto, O Crime do Tapuio, O Voluntário da Pátria  e A Sorte
de Vicentina. É possível observar nas mesmas, o estilo da prosa naturalista cultuado
pelo autor em seus ensaios e relatos de viagens, na medida em que uma não se
encontra dissociada da outra, porém, complementam-se dentro dos parâmetros literários
defendidos na época por diversos intelectuais vinculados à "Geração de 70".

VI

Em seu texto  "O Folclore do Selvagem Amazônico", publicado em seu


livro Estudos Brasileiros. Segunda Série (1889-1893) , José Veríssimo (1970a:137)
afirma que aos homens da ciência cabia "serenidade e indiferença" na análise de seus
objetos de pesquisa, distanciando-se do "sentimentalismo". Dessa perspectiva, fazia
suas críticas ao indianismo romântico, postulando a realização de uma obra etnográfica
consoante com os ensinamentos das modernas correntes científicas do positivismo e
evolucionismo.

As concepções positivistas e evolucionistas da história da humanidade


encontram-se presentes em Veríssimo, em suas análises das crenças e religiosidade
dos tupi-guaranis, tapuios e mamelucos da Amazônia ( idem:54-55), bem como nos seus
outros escritos acerca da sociedade amazônica, como, por exemplo, em sua resenha do
livro Os Motins Políticos do Pará, de Domingos Antônio Raiol. Nela, o autor afirma:

"Sendo a sociedade considerada atualmente, graças aos progressos das ciências


físico-naturais, como um organismo no qual se verificam fatos pelo menos idênticos aos
da vida dos organismos estudados por aquelas ciências, é prestadio o seu auxílio no
estudo da história, ou da evolução desse organismo" ( idem:95-96).

Ainda segundo ele, a lei da hereditariedade das aptidões e tendências ( idem:96),


ou lei da herança psicológica (idem:98), constitui-se em ferramenta primorosa para uma
melhor e mais eficaz análise da história nacional, na medida em que concebe a mesma
dentro dos parâmetros do evolucionismo e do positivismo, inclusive, defendendo a
história dos grandes homens (idem:108), ou seja, uma história
marcadamente événementielle e, acima de tudo, cívica.

Por outro lado, considerando a similaridade entre as sociedades humanas e os


organismos biológicos, em face do advento de novas descobertas e estudos no campo
das ciências exatas e biológicas aplicados ao processo de investigação e de um melhor
conhecimento dos diversos aspectos das ciências humanas, Veríssimo insere-se
discursivamente nas teorias de sua época, mesmo que não tenha alcançado a mesma
envergadura de outros contemporâneos, como, por exemplo, a figura polêmica e
destacada de Sílvio Romero.

Particularmente na época em que reside em Belém (1877-1891), Veríssimo


destaca-se por sua filiação ao littreismo, sendo um verdadeiro militante da escola
positivista na capital do Pará, através de seus discursos e folhetins publicados em
periódicos paraenses, como, por exemplo, no seu livreto Emílio Littré (1881), em que
reúne diversos artigos, outrora estampados na Gazeta de Notícias, em homenagem ao
pensador francês, ex-discípulo de Auguste Comte (Prisco, 1937:86-88) 15. Nesse tempo,
a larga influência do positivismo no seio de diversos segmentos da  intelligentzia e das
elites locais, favorecia, entre outras atitudes, a panteomização de personagens
destacados, laureados como verdadeiros heróis cívicos, tais como o compositor Carlos
Gomes16. O próprio Veríssimo, em seu positivismo militante, havia participado
destacadamente das festividades de recepção do maestro campineiro, em 1882,
publicando um opúsculo laudatório intitulado Carlos Gomes17.

Nas últimas décadas do Império, o catecismo positivista na província paraense


também significa adesão de seus simpatizantes e partidários ao republicanismo. José
Veríssimo, aliás, participa da fundação do Club Republicano em Belém do Pará, nos
anos 1880, ao lado de personagens destacados do mundo político, como o conhecido
positivista Lauro Sodré. A participação de Veríssimo nessa agremiação, mesmo não
sendo um militante, indica mais uma vez as vinculações do escritor com as questões de
seu tempo, não sendo em nenhum momento ausente das mesmas em termos de
participação política, haja vista ter um partido ou posição definida, conforme as lições de
história do positivismo18.

Por outro lado, como educador, José Veríssimo possui uma perspectiva
positivista da pedagogia enquanto mecanismo de superação do atraso intelectual, moral
e material da sociedade brasileira. Nesse sentido, inclusive, constrói sua crença na
educação nacional, em seu livro homônimo publicado em 1890, como ferramenta
necessária para as mudanças sociais e civilização das raças mestiças, modificando o
meio em que se davam os cruzamentos raciais, permitindo sua evolução como espécie
humana.

Veríssimo, sob o patrocínio de alguns sindicatos, havia participado, como


professor, na cidade do Rio de Janeiro, das atividades da Universidade Popular de
Ensino Livre (Ventura, 1991:151-152), destinada às classes trabalhadoras,
demonstrando que seus postulados positivistas acerca do papel da educação
continuavam norteando suas posições ideológicas e atitudes políticas nesse campo.
Concomitantemente às atividades de magistério, ele prosseguia pensando a história da
instrução pública no Brasil, publicando diversos artigos em várias revistas da área
educacional: Educação e Pediatria; Educação Nacional; Educação e Ensino; ou, então,
em outras não necessariamente específicas do campo da pedagogia, como, por
exemplo, a Revista Brasileira.

Segundo Barbosa (1974), Veríssimo, da mesma forma que se havia afastado do


naturalismo, também abandonara, mesmo que parcialmente, suas convicções
positivistas, ainda que não houvesse revisado as idéias contidas em suas obras
etnográficas. Prisco (1937:88) também afirma tese quase semelhante, indicando que
Veríssimo, no final de sua vida, se distanciou do littreismo em favor de uma postura
próxima ao determinismo em suas análises e opiniões literárias.

Entretanto, além das leituras das obras de Comte, Littré e, quiçá, outros
expoentes do positivismo, Veríssimo também possuía domínio literário das teses do
evolucionismo, particularmente do famoso livro de Charles Darwin, publicado em
1859, A Origem das Espécies. Igualmente, demonstrava conhecer e ler criticamente
outros "homens de sciências" (Agassiz) e viajantes-naturalistas estudiosos da Amazônia
(Wallace, Bates, Hartt etc.). Veríssimo, mesmo sem diploma ou título de doutor, era um
homem erudito, tendo se dedicado a leituras e estudo das modernas ciências de seu
tempo. Talvez, por isso mesmo, destoasse dos demais intelectuais da época, detentores
de formação bacharelesca como médicos (Manuel Bonfim), advogados (Sílvio Romero,
Tobias Barreto), engenheiros (Euclides da Cunha), embora não estivesse tão distante de
outros destacados nomes das letras, sem titulação alguma, como Machado de Assis.

Homem culto, não limita seu universo às cidades de Belém do Pará, sob as folies
du latex, e Rio de Janeiro, capital do país. Veríssimo, ainda jovem, por problemas de
saúde, viaja para a Europa em busca de tratamento médico, tendo aproveitado a
ocasião para participar do Congresso Literário Internacional  em Lisboa, marcando
posição em defesa da literatura brasileira (Prisco, 1937:16). Em 1889, faz uma segunda
viagem ao Velho Continente, participando, a convite da Sociedade de Antropologia Pré-
Histórica, do 10º Congresso de Antropologia Pré-Histórica , realizado em Paris, no qual
expõe seus estudos acerca da civilização indígena da ilha de Marajó. Durante a
realização deste evento, concomitantemente à Exposição Universal, a presidência da
província paraense solicita ao "comendador José Veríssimo", na condição de
"commissionado desta província", que procure "estudar a secção de instrucção pública
na Exposição, tendo principalmente em vista: a organização do ensino primário, escólas
normaes, ensino technico, architectura escólar, methodos e apparelhos
pedagogicos, ensino mixto e educação physica e outros assumptos concernentes a
instrucção pública"19.

Nessa época, Veríssimo também fazia parte do pequeno círculo de cientistas


residentes na cidade de Belém, os quais mantinham permanente diálogo e troca de
idéias e informações acerca da sociedade amazônica. Daí, sua estreita relação com o
geógrafo, etnógrafo e arqueólogo Ferreira Penna, falecido em 1888, em cuja
homenagem escreveu um pequeno texto publicado sob o título: D. S. Ferreira
Penna (idem:95-100). Ferreira Penna foi colaborador da Revista Amazônica, fundada
por Veríssimo, e Archivos do Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Em 1866, participa da
fundação da Associação Filomática do Pará que, em 1867, se constitui em Museu
Paraense, reunindo em seu acervo significativo material coletado pelo próprio Ferreira
Penna em suas atividades arqueológicas na ilha de Marajó. Em 1871, o Museu é
incorporado à estrutura administrativa do governo provincial, declinando até a sua
extinção pela Assembléia Provincial em 1888. Somente em 1891, o Museu é
reinaugurado, na época em que José Veríssimo ocupa a função de diretor da Instrução
Pública, tendo levado ainda alguns anos para sua consolidação institucional, sob a
chefia do zoólogo suíço Emílio E. Goeldi (1893), durante o segundo governo de Lauro
Sodré20.

De todo modo, apesar de não desenvolver investigações no campo da


antropologia criminal, frenologia e antropometria 21, Veríssimo pensava o estudo das
populações mestiças e indígenas da Amazônia sob o prisma do evolucionismo:
propusera certa vez, ainda que vagamente, até mesmo a elaboração de
uma etnogenia (Veríssimo, 1970:155).

Sob a perspectiva evolucionista, ele compreendia como possível o processo de


seleção natural entre as raças humanas, possibilitando a perfectibilidade humana de
determinados segmentos étnicos considerados inferiores no seio dos grupos
populacionais da Amazônia, através da mestiçagem ( idem:27-86), concomitantemente à
ação pedagógica desenvolvida sobre os mesmos e seus descendentes mestiços,
adequando-os à vida civilizada.

Aplicando as leis naturais aos estudos da sociedade amazônica, José Veríssimo


também desenvolvia investigações nas áreas da lingüística e do folclore indígenas e das
populações mestiças; observava a combinação dos fatores étnicos, climatéricos etc. no
processo de formação da linguagem mestiça, destacando o papel social da literatura na
consolidação da mesma. Concebia, igualmente, o elemento indígena como o mais
destacado na constituição da nacionalidade, possibilitando a adulteração da língua
portuguesa na América, desde o período colonial, sob a influência do tupi ou da língua
geral (nheengatú) no português brasileiro (idem:29-36).

A partir de seus estudos lingüísticos acerca do significado e estrutura gramatical


da língua tupi-guarani, Veríssimo constrói um extenso dicionário etimológico dos
vocábulos indígenas acrescentados ao português mestiço ( idem:37-53), considerando
muito pequena a influência africana no linguajar amazônico ( idem:25). Sobre este ponto,
entretanto, Salles (1971) demonstra a carência de fundamento empírico na análise de
Veríssimo sobre a presença negra/africana na Amazônia, desqualificando as assertivas
do mesmo22.

No papel de estudioso dos indígenas da Amazônia, mesmo que muitas vezes


tivesse uma visão genérica dos mesmos como tupis-guaranis ( idem:108), favorecida por
suas observações diletantes das aldeias e malocas visitadas em suas viagens
ocasionais ao hinterland amazônico e leituras de gabinete, Veríssimo concebia os
costumes e crenças dos "selvagens" sob as lentes do evolucionismo e positivismo.
Destacava o espírito infantil e o caráter fetichista das crenças de tupis-guaranis e
tapuias, observando o pragmatismo da religiosidade dos mesmos e a influência de suas
práticas religiosas no seio da população mameluca ou mestiça, como um sinal de
pobreza em termos de um raciocínio mais bem elaborado e abstrato, dada sua
incapacidade de constituir uma sólida civilização, inclusive em aspectos culturais
(idem:54-64).

Dessa perspectiva, José Veríssimo compreende as práticas religiosas de


devoção aos santos e o papel das benzedeiras, rezadeiras e pajés, ambos
característicos do catolicismo popular, como exemplos do fetichismo herdado aos
"selvagens" pelos mestiços. Também observa o caráter pouco religioso das festas de
devoção popular: o círio, a festa do divino espírito santo e o sairé, apresentando
detalhadas etnografias das duas últimas, conforme suas impressões das mesmas
(idem:62-69).

Veríssimo concebe os indígenas distanciados da civilização como que situados


nos primeiros degraus da evolução da humanidade, quer como uma raça decaída quer
como incapacitados por si mesmos de saírem de seu estágio infantil. Daí, inclusive, suas
severas críticas à vida familiar no mundo dos "selvagens" ¾ caracterizava a família
indígena, tapuia e mestiça, como promíscua, haja vista a ausência de qualquer senso de
moralidade e pudor no seio da mesma, particularmente acentuada pelo processo de
desmantelamento dos grupos familiares tapuios e mestiços sob a ação dos
colonizadores e pela prática nociva de distribuição dos filhos e órfãos dos nativos pelas
casas dos colonos, nas quais se empregavam para a realização de serviços domésticos
(idem:70-75).

Observe-se, então, mais uma vez, como as teses desenvolvidas por Veríssimo
acerca dos diversos aspectos das populações indígenas e mestiças da Amazônia
sempre terminam por confirmar seu juízo, construído sob o prisma naturalista,
evolucionista e positivista: somente os cruzamentos raciais, por meio da imigração e
povoamento da Amazônia por grupos étnicos superiores, podiam possibilitar,
concomitantemente à ação pedagógica, a regeneração das raças cruzadas na região,
recolocando-as no caminho da civilização. Dessa forma, fazia-se necessário alterar o
pernicioso meio social onde se encontravam mergulhados, desde a colonização
portuguesa, tapuias, curibocas ou mamelucos, como garantia do sucesso da própria
mestiçagem. Quantos ao índios, os mesmos não podiam nem deviam continuar
existindo autonomamente, sendo necessária sua integração à vida civilizada,
desaparecendo etnicamente do mapa demográfico. Não havia, portanto, na história da
vida civilizada, espaço reservado aos mesmos ou a qualquer outra etnia considerada
inferior pelas cabeças ilustradas dos "homens de sciências", tal como o intelectual José
Veríssimo.

VII

À guisa de conclusão, posso apenas dizer que este texto não tem a pretensa
ingenuidade de esgotar todas as matrizes e os matizes do pensamento social presente
na obra de José Veríssimo. Procurei, é verdade, compreender como este intelectual
paraense concebia a mestiçagem na Amazônia, no contexto das últimas décadas do
século XIX e primeiros quinze anos do XX, sob a influência das idéias raciais em voga
na época, sob o filtro do positivismo, do evolucionismo e naturalismo, escrevendo uma
pequena síntese das principais teses delineadas em seus trabalhos marcadamente
etnográficas, decifrando a química de seu universo intelectual.

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