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II
Na verdade, entre 1891 e 1915, período em que reside no Rio de Janeiro, José
Veríssimo mostra-se decepcionado com ajovem República brasileira, em nada
dessemelhante das demais latino-americanas, e, pior, não muito distante das práticas
políticas do extinto Império, do qual o autor paraense jamais foi partidário 2. Daí, seu
"auto-exílio" na capital do país 3, após sair da Diretoria da Instrução Pública do Estado do
Pará, por vontade própria, por não desejar submeter-se aos caprichos do mandonismo
político das elites locais (Veríssimo, 1966). Nessa época, o autor paraense se decide por
uma determinada postura perante a sociedade, que ele resume nesta frase: "um grão de
ironia e ceticismo" (apud Barbosa, 1974:63-65).
Por outro lado, José Veríssimo, até os seus últimos dias, escreve obras
etnográficas sobre a Amazônia, como, por exemplo, Interesses da Amazônia, publicada
em 1915, na qual defende posicionamentos políticos acerca da imigração e do
povoamento da região como saída para a superação de seu parco desenvolvimento
social e econômico, concomitantemente à racionalização da exploração do látex que,
por sua vez, permitisse uma retomada dos preços da borracha em situação de baixa no
mercado internacional desde 1912. Na mesma linha, alguns anos antes, em setembro
de 1891, nas páginas do Jornal do Brasil, Veríssimo publica uma série de artigos
desenhando um painel sobre a Amazônia e o tema da colonização e imigração que,
posteriormente, foram reunidos em A Amazônia (Prisco, 1937:89-92). Além disso,
destinava, algumas vezes, sua pena ao desenvolvimento de ensaios marcadamente
políticos, como, por exemplo, Pará e Amazonas (Questão de Limites) , escrito em 1899
sob encomenda do governo Paes de Carvalho, no qual saía em defesa dos interesses
territoriais paraenses, objeto de litígios com o estado vizinho ( idem:100-104).
Dessa forma, é meu objetivo verificar como José Veríssimo, em suas obras
marcadamente etnográficas, pensava, desde a época em que publicou seu primeiro
livro, Primeiras Páginas, em 1878, composto de uma miscelânea de textos, muitas
vezes anteriormente estampados nas páginas da imprensa periódica da capital
paraense, questões como a mestiçagem na Amazônia. A partir dessa obra inicial, é
possível observar as afinidades intelectuais do jovem autor com os paradigmas
postulados pelos representantes daquilo que se convecionou chamar "Geração de 70".
III
Por outro lado, nem todos os intelectuais desposavam os paradigmas das teses
raciais em seus estudos acerca da história da sociedade brasileira. O médico e literato
Manoel Bonfim, por exemplo, mesmo preso teoricamente aos princípios básicos
das ciências biológicas aplicados às ciências sociais, em sua obra A América Latina.
Males de Origem (1905)5, elabora um "contradiscurso" que nega qualquer fundamento
ao racismo científico, considerando-o uma ideologia do imperialismo norte-americano e,
particularmente, europeu. Na verdade, Bonfim procura demonstrar que a situação de
atraso do Brasil é uma decorrência de fatores históricos explicados à luz das leis e
categorias biológicas6.
"E, diante de tôda (sic) esta degradação, a gente não podia deixar de sorrir das
teorias sentimentalistas dos românticos da política ou da arte, e perguntar se êstes ( sic)
sujeitos darão jamais cidadãos aproveitáveis e indagar onde estão, entre estas mulheres
feias e desgraçadas, as Iracemas e entre êstes ( sic) homens rudes e grosseiros, os
Ubirajaras" (1970a:123).
IV
Em seu estudo acerca das raças cruzadas na Amazônia, Veríssimo afirma que há
forte presença do elemento indígena associado ao branco colonizador, em detrimento
da pouca significância da raça negra: "Esta região, com efeito, foi das menos povoadas
por negros, e hoje é raríssimo encontrar africanos nas duas províncias [Pará e
Amazonas], principalmente fora das capitais [Belém e Manaus]" (idem:24)9. Dada essa
situação, o autor paraense percebe uma grande vantagem étnica para a população
amazônica, uma vez que concebe os negros como inferiores aos índios, os quais por
sua vez, se encontravam mais próximos da raça branca. Posteriormente, nosso autor
altera sua tese inicial, afirmando em sua obra Estudos Brasileiros (1877/1885) que: "fui
profundamente injusto com a raça negra, na qual tenho antepassados. Ela é porventura
superior a indígena e prestou ao Brasil relevantes serviços" (Veríssimo, 1889:10).
Por outro lado, o caráter de morigeração das populações indígenas sofria uma
lastimável influência da natureza exuberante dos trópicos que nada lhes permitia faltar
com um mínimo de esforço físico, não lhes exigindo a devoção necessária ao trabalho
(idem:23) como forma de superação da sua condição selvagem. Dessa forma, a
natureza pródiga, "um clima enervante a vencer", e as condições ou o meio social em
que se operaram os cruzamentos entre índios e colonizadores são, segundo Veríssimo,
as causas do abatimento em que se encontram tapuios e mamelucos, descartando a
situação dos mesmos como resultado dos próprios cruzamentos ocorridos entre raças
superiores e inferiores ou, quiçá, "a incapacidade absoluta do índio para a civilização"
(ibidem).
Na verdade, José Veríssimo, mesmo reconhecendo a influência das idéias raciais
de Agassiz (cf. Agassiz e Agassiz, 1938), não concordava com a condenação da
mestiçagem ou do cruzamento das raças defendida por ele, procurando demonstrar a
situação de degradação dos mestiços da Amazônia como resultado das influências
negativas da natureza e meio social em que se encontravam mergulhados desde o
período colonial. Para ele, deve-se atribuir essa realidade "ao meio e às condições
sociais, políticas e religiosas em que se deram os cruzamentos", considerando-se,
ainda, que, "relativamente, predominou nestas raças o elemento tupi, mais do que o
português", independentemente de o restante da população não pertencente a essas
raças ter também sofrido essa influência negativa ( idem:85) .
Outros comentários poderiam ser feitos sobre a etnografia construída por José
Veríssimo acerca da Amazônia, porém é possível acreditar que os temas escolhidos
para esta digressão não são menos importantes em sua obra e pensamento social,
muito pelo contrário, aí residem as bases de todo o seu raciocínio influenciado pelas
teses do racismo científico. Na verdade, José Veríssimo procurava compreender a
região do vale do Amazonas dentro do discurso da época, influenciado pelo naturalismo
francês que, só muito parcialmente, abandonaria em sua fase de afirmação enquanto
crítico literário, na cidade do Rio de Janeiro, quando se constituiu em adepto da leitura
impressionista das obras literárias, redefinindo, inclusive, sua própria noção do que
fosse a literatura, distanciando-se das posições defendidas por Sílvio Romero e outros
escritores egressos da famosa "Geração de 70" (cf. Barbosa, 1974; Ventura, 1991;
Süssekind e Ventura, 1984).
"Sei que não estão estas linhas no espírito do folhetim, mas tenho para mim que
os estudos e observações práticas são mais úteis em um país nôvo ( sic) como o nosso,
e principalmente em uma província tão atrasada como esta, do que os escritos de outra
qualquer ordem. Por isso os leitores ¾ se leitores tiver ¾ me hão de permitir que desça
algumas vêzes (sic) a tratar, em folhetim, dêsses (sic) assuntos" (idem:227).
"A sua mesa é parca e má. A base da sua alimentação é o peixe, principalmente
o pirarucu sêco (sic) (piraém) cozido ou assado, porém mais geralmente assado, e
farinha d’água, uma farinha grossa amarela, não dessaborosa, mas falha de qualquer
parte nutritiva e fàcilmente (sic) fermentável, feita de mandioca apodrecida n’água
(mandioca puba) onde a deixam de molho algum tempo" ( idem:80).
Outra obra importante de Veríssimo, escrita sob a ótica naturalista, quiçá o seu
mais destacado ensaio etnográfico, foi A Pesca na Amazônia, na qual busca descrever
detalhada e tecnicamente o processo de pesca artesanal das populações ribeirinhas da
Amazônia, fornecendo diversas informações acerca da fauna aquática dos rios da
região, dentre outros aspectos do cotidiano dos pescadores. O caráter marcadamente
descritivo do livro fez com que o mesmo fosse considerado pelo cientista germânico Von
Ihering, polêmico diretor do Museu Paulista, um verdadeiro texto etnográfico sobre a
vida amazônica (Prisco, 1937:93-94)14.
VI
Por outro lado, como educador, José Veríssimo possui uma perspectiva
positivista da pedagogia enquanto mecanismo de superação do atraso intelectual, moral
e material da sociedade brasileira. Nesse sentido, inclusive, constrói sua crença na
educação nacional, em seu livro homônimo publicado em 1890, como ferramenta
necessária para as mudanças sociais e civilização das raças mestiças, modificando o
meio em que se davam os cruzamentos raciais, permitindo sua evolução como espécie
humana.
Entretanto, além das leituras das obras de Comte, Littré e, quiçá, outros
expoentes do positivismo, Veríssimo também possuía domínio literário das teses do
evolucionismo, particularmente do famoso livro de Charles Darwin, publicado em
1859, A Origem das Espécies. Igualmente, demonstrava conhecer e ler criticamente
outros "homens de sciências" (Agassiz) e viajantes-naturalistas estudiosos da Amazônia
(Wallace, Bates, Hartt etc.). Veríssimo, mesmo sem diploma ou título de doutor, era um
homem erudito, tendo se dedicado a leituras e estudo das modernas ciências de seu
tempo. Talvez, por isso mesmo, destoasse dos demais intelectuais da época, detentores
de formação bacharelesca como médicos (Manuel Bonfim), advogados (Sílvio Romero,
Tobias Barreto), engenheiros (Euclides da Cunha), embora não estivesse tão distante de
outros destacados nomes das letras, sem titulação alguma, como Machado de Assis.
Homem culto, não limita seu universo às cidades de Belém do Pará, sob as folies
du latex, e Rio de Janeiro, capital do país. Veríssimo, ainda jovem, por problemas de
saúde, viaja para a Europa em busca de tratamento médico, tendo aproveitado a
ocasião para participar do Congresso Literário Internacional em Lisboa, marcando
posição em defesa da literatura brasileira (Prisco, 1937:16). Em 1889, faz uma segunda
viagem ao Velho Continente, participando, a convite da Sociedade de Antropologia Pré-
Histórica, do 10º Congresso de Antropologia Pré-Histórica , realizado em Paris, no qual
expõe seus estudos acerca da civilização indígena da ilha de Marajó. Durante a
realização deste evento, concomitantemente à Exposição Universal, a presidência da
província paraense solicita ao "comendador José Veríssimo", na condição de
"commissionado desta província", que procure "estudar a secção de instrucção pública
na Exposição, tendo principalmente em vista: a organização do ensino primário, escólas
normaes, ensino technico, architectura escólar, methodos e apparelhos
pedagogicos, ensino mixto e educação physica e outros assumptos concernentes a
instrucção pública"19.
Observe-se, então, mais uma vez, como as teses desenvolvidas por Veríssimo
acerca dos diversos aspectos das populações indígenas e mestiças da Amazônia
sempre terminam por confirmar seu juízo, construído sob o prisma naturalista,
evolucionista e positivista: somente os cruzamentos raciais, por meio da imigração e
povoamento da Amazônia por grupos étnicos superiores, podiam possibilitar,
concomitantemente à ação pedagógica, a regeneração das raças cruzadas na região,
recolocando-as no caminho da civilização. Dessa forma, fazia-se necessário alterar o
pernicioso meio social onde se encontravam mergulhados, desde a colonização
portuguesa, tapuias, curibocas ou mamelucos, como garantia do sucesso da própria
mestiçagem. Quantos ao índios, os mesmos não podiam nem deviam continuar
existindo autonomamente, sendo necessária sua integração à vida civilizada,
desaparecendo etnicamente do mapa demográfico. Não havia, portanto, na história da
vida civilizada, espaço reservado aos mesmos ou a qualquer outra etnia considerada
inferior pelas cabeças ilustradas dos "homens de sciências", tal como o intelectual José
Veríssimo.
VII
À guisa de conclusão, posso apenas dizer que este texto não tem a pretensa
ingenuidade de esgotar todas as matrizes e os matizes do pensamento social presente
na obra de José Veríssimo. Procurei, é verdade, compreender como este intelectual
paraense concebia a mestiçagem na Amazônia, no contexto das últimas décadas do
século XIX e primeiros quinze anos do XX, sob a influência das idéias raciais em voga
na época, sob o filtro do positivismo, do evolucionismo e naturalismo, escrevendo uma
pequena síntese das principais teses delineadas em seus trabalhos marcadamente
etnográficas, decifrando a química de seu universo intelectual.