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Revista Âmbito Jurídico

Nº 135 - Ano XVIII - ABRIL/2015 - ISSN - 1518-0360

SEPARATA

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Apontamentos sobre a filosofia atrevida de
Michel Foucault

Maristela Carneiro e Vilson André Moreira


Gonçalves
Revista Âmbito Jurídico

Apontamentos sobre a filosofia atrevida de Michel


Foucault
Maristela Carneiro e Vilson André Moreira Gonçalves

Resumo: O objetivo do presente trabalho é lançar um vislumbre sobre a obra e as ideias do


filósofo francês Michel Foucault. Embora seja comumente associado às correntes
pós-estruturalista e pós-modernista, o autor mantém-se fugaz diante de classificações
rigorosas. O que apresenta-se, todavia, como uma constante em sua obra é certa mirada
arqueológica acerta de sua elaboração, ou seja, a busca do sentido nas palavras, como pode
ser visto de forma especialmente clara em sua obra “As palavras e as coisas”. Fala-se em
arqueologia porque Foucault busca de forma arqueológica investigar a formação da episteme
ocidental e, deste modo, o próprio nascimento e configuração das ciências humanas. Para o
autor, esta arqueologia do saber presta-se, finalmente, à problematização do sujeito moderno,
posto que, em seu ponto de vista, as ciências humanas constituem-se na análise histórica do
objeto, portanto arqueológica e genealógica.

Palavras-chave: Foucault, arqueologia, genealogia do saber.

Abstract: The aim of this article is to glimpse the works and ideas of french philosopher
Michel Foucault. Altough he is frequently associated with post-structuralist and postmodernist
lines of thinking, the author remains averse to rigorous classification. What can be seen,
however, as constant fator in his body of work, is a certain archaeological look about its
elaboration, as the search for meaning in words, as it can be seen with particular clarity in “The
Order of Things”. We refer to archaelogy because Foucault looks in na archaelogical fashion
to investigate the formation of western epistemology and, this way, the very birth and
configuration of humanities. For the author, this archaeology of knowing gears itself, mainly,
towards the problematization of the modern subject, considering that, in his point of view, the
humanities constitute themselves though the historical analysis of the object, which is,
therefore archaelogical and genealogical.

Keywords: Foucault, archaeology, genealogy of knowing.

Filósofo francês (1926-1984), Foucault se propôs a elaborar uma história do pensamento


desenvolvida em torno de três eixos fundamentais, quais sejam poder, saber e si. Paul-Michel
Foucault nasceu em Poitiers, na França, em 1926, herdeiro de toda uma geração de médicos
de sobrenome Foucault, mas se decidiu pelo caminho da filosofia durante a juventude,
contrariando a tradição familiar. Assistiu ao contexto do entre-guerras e a eclosão da Segunda
Guerra Mundial.

Em 1946 foi admitido na École Normale Supérieure de Paris, onde conheceu Louis
Althusser, Pierre Bourdieu, Jean-Paul Sartre, dentre outros. Foi aluno de Maurice
Merleau-Ponty e de Jean Hyppolite. Graduou-se em Filosofia na Sorbonne em 1948 e em
Psicologia em 1949, quando também concluiu seus Estudos Superiores de Filosofia, com uma
tese sobre Hegel, orientado por Hyppolite.

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Em meio a angústias e descaminhos que o levaram a algumas tentativas de suicídio,


Foucault aderiu ao Partido Comunista Francês em 1950, do qual se desligou já em 1952,
após a morte de Stalin e motivações pessoais, possivelmente em função de desavenças
políticas. Sua opção sexual provocou vários conflitos ao longo de sua vida, visto que viveu
num contexto que considerava a homosexualidade uma doença ou uma degeneração moral.

Em 1951, tornou-se professor de psicologia na École Normale Supérieure de Paris, onde


teve como alunos Derrida e Paul Veyne, por exemplo, bem como trabalhou como psicólogo
junto ao Hospital Psiquiátrico de Saint-Anne. Conforme Eizirik (2005:150), essa experiência
lhe desafiou a estudar a separação historicamente estabelecida da relação humana com a
loucura. No decorrer da década de 1950, prosseguiu com seus estudos na área de psicologia;
com efeito, seus primeiros trabalhos, até sua tese “Loucura e desrazão. A história da Loucura
na idade clássica” (1961), terão fundamentos psicológicos.

Durante a década de 1960, publicou O nascimento da clínica, As palavras e as coisas e


Arqueologia do Saber. Em 1970, Foucault foi nomeado para o Collège de France, para ocupar
a cadeira de História dos Sistemas de Pensamento, em substituição a seu mestre, Jean
Hyppolite, na qual permaneceu até sua morte. Sua aula inaugural foi a famosa A Ordem do
discurso.

No decorrer da década de 1970, publicou Eu, Pierre Rivière, que matei minha mãe, minha
irmã e meu irmão, Vigiar e Punir, A vontade de saber, primeiro volume de seu mais ambicioso
projeto, A história da sexualidade, o qual deixou inacabado. Em 1984, ano de sua morte,
publicou outros dois volumes, dos seis anunciados para sua história da sexualidade, O uso
dos prazeres e O cuidado de si. Neste mesmo ano, em função de complicadores provocados
pela AIDS, Foucault tem septicemia e faleceu, num tempo em que a doença era rapidamente
mortal, descoberta apenas dois anos antes.

Esteve na Tunísia, Suécia, Polônia, no Canadá e nos Estados Unidos, também no Japão,
na Alemanha e até mesmo no Brasil, buscando “despreender-se de si mesmo”, conforme nos
esclarece Eizirik (2005:151). Vindo de uma formação intelectual bastante heteróclita, discutido
e estudado por várias áreas do saber, Foucault é um pensador “atrevido” que, preocupado
com o presente em que se encontrava inserido, construiu uma forma de pensar que desloca
conceitos, territórios e saberes. [1]

A obra de Foucault é comumente dividida em temáticas e períodos, sem no entanto


encerrá-los em si mesmos, mas antes considerando suas interconexões e recorrências.
Seguimos a divisão apresenta por Marisa Faermann Eizirik, elencando somente as obras
mais conhecidas, conforme segue:

“a) Arqueologia, período voltado à articulação dos saberes:

- A História da Loucura na Idade Clássica (1961);

- O nascimento da clínica (1963);

- As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966);

- A arqueologia do saber (1969);

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- A ordem do discurso (aula inaugural no Collège de France) (1971);

b) Genealogia, centrado nos dispositivos de poder:

- Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irma e meu irmão... um caso de
parrícidio no século XIX (1973);

- Vigiar e punir: o nascimento da prisão (1975);

- História da sexualidade I: a vontade de saber (1976);

c) Ética, trata das questões relativas à conduta individual:

- A desordem das famílias (1983);

- História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984);

- História da sexualidade III: o cuidado de si (1984).”

Por uma epistemologia arqueogenealógica: apontamentos sobre a trajetória


intelectual de Michel Foucault

Localizar ou inscrever Michel Foucault em uma escola de pensamento, algo como um


molde, é uma tarefa muito difícil. Durante toda a sua trajetória, o filósofo se insurgiu contra
categorizações, rótulos, simplificações, de certo modo, impulsionado pela sua própria luta
pelo direito de mudança e de olharmos para a história, as práticas sociais, as redes de poder
e saber, a partir de perspectivas novas e criativas, conforme argumenta Eizirik (2005:21).

Com efeito, o trabalho de Foucault é comumente associado à pós-modernidade ou aos


movimentos estruturalista e pós-estruturalista. Porém, para o próprio autor tais rotulações
eram inapropriadas, pois não entendia seu trabalho conformado a concepções formalistas.
Nesse sentido, Nalli argumenta que, além da vinculação de Foucault ao estruturalismo,
quando jovem, ele também foi influenciado pela fenomenologia bastante enviesada através de
Merleau-Ponty, sem falar do seu envolvimento com a epistemologia francesa, desde
Bachelard até Camguilher, bem como de sua leitura de Nietzsche, por causa de seu interesse
inicial por Heidegger. (NALLI, 2006: 265-6) Posto que sua formação é bastante heteróclita,
também é a sua produção intelectual, como já referido.

O que é certo apontar é como suas teorias arqueológicas, sobre o saber, genealógicas,
inferindo acerca das relações de poder e éticas, nas quais o enfoque se volta ao sujeito,
romperam com as concepções modernas destes termos. Isso leva a suposição de Foucault
como um pós-moderno. Todavia, isso nos parece um contrasenso, dentro das próprias
proposições foucaultianas. Conforme Eizirik (2005:19-20), Foucault, enquanto pensador,
defende o levantamento e desdobramento de questões, deslocamentos, movimentos,
mudanças no e para o pensamento. Ou seja, construir-se na própria ordem do discurso e das
práticas, sem rotulações.

No que tange ao viés arqueológico em sua produção, vê-se que em sua obra “ As palavras e
as coisas”, conforme Japiassu (1977:113), Foucault pretende “encontrar” o espaço
epistemológico das ciências humanas no que chama de “triedro dos saberes”. Trata-se de um

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espaço epistemológico de três dimensões, que se define a partir de três eixos principais da
racionalidade organizadora do saber, quais sejam:

“a. Eixo das Matemáticas e Psicomatemáticas;

b. Eixo das Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem;

c. Eixo da Reflexão Filosófica.”

Para Foucault, segundo Japiassu, tais eixos se encontram inter-relacionados - tomados dois
a dois, estabelecem três planos:

“a. o Plano comum ao eixo das Matemáticas e ao das Ciências da Vida, da Produção e da
Linguagem seria o das Matemáticas Aplicadas;

b. o Plano comum ao eixo das Matemáticas e ao da Reflexão Filosófica seria o da


Formalização do Pensamento;

c. o Plano comum ao eixo das Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem e ao da


Reflexão Filosófica, seria o das Ontologias Regionais e das diversas filosofias da vida, do
homem alienado e das formas simbólicas.”

Isto posto, as Ciências Humanas não se enquadram em nenhum dos eixos ou planos
epistemológicos, são excluídas do Triedro Epistemológico. Todavia, para Foucault, estas
Ciências participam do Triedro no interstício desse saber, ou seja, no volume definido pelas
demais dimensões. Conforme Japiassu:

“Formam uma espécie de nuvem de disciplinas representáveis, no interior do triedro, e


participando mais ou menos, de modo diversificado, de suas três dimensões. Elas aparecem,
em primeiro lugar, em conexão com as ciências da Vida, da Produção e da Linguagem. A
cada uma destas disciplinas, correspondem “regiões epistemológicas”, congregando um
grupo de ciências humanas com características comuns e certos modelos de organização do
saber. A primeira região é a das ciências Psicológicas: tomam de empréstimo à Biologia um
modelo que se equilibra em torno dos conceitos de “função” e “norma”. A segunda é a das
ciências Sociológicas: tomam de empréstimo à Economia política um modelo girando em
torno dos conceitos de “conflitos” e de “regras”. A terceira, é a das ciências Lingüísticas e
Culturais: tomam de empréstimo à ciência da linguagem um modelo organizado em função
das idéias de “sentido” e de “sistema”.” (JAPIASSU, 1977: 115)

Portanto, através do volume provocado pela interseção entre os eixos e os planos


epistemológicos, as Ciências Humanas formam “regiões epistemológicas”. Todavia, Japiassu
esclarece que, muito embora haja aparente simplicidade neste sistema, para Foucault as
regiões epistemológicas somente poderão ser compreendidas a partir da sua historicidade
própria. Além disso, cada região é abalada por algo que pode ser entendido como uma
contraciência, que quebra a aparente estabilidade, o equilíbrio – trata-se de uma dialética
epistemológica. Se não vejamos. Japiassu esclarece que após a proposição epistemológica
positiva, o fenômeno de uma dialética epistemológica perpassa e arruína a solidez sugerida
pelas regiões, através de um permanente processo de inquietação, questionamento, crítica e
contestação do “saber adquirido” (1977:116).

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Tal sistema epistemológico é para Foucault resultado e não um ponto de partida. O que o
filósofo pretende, com “As palavras e as Coisas”, é a própria análise da episteme ocidental. O
subtítulo da obra é “uma arqueologia das ciências humanas”. Arqueologia porque Foucault
busca de forma arqueológica investigar a formação da episteme ocidental e, deste modo, o
próprio nascimento e configuração das ciências humanas, que resulta no “Triedro
Epistemológico”, conforme exposto.

Para Foucault, é possível identificar três momentos da Episteme Ocidental:

“- A Época da Renascença – Século XVI;

- A Época Clássica ou da Ciência das Luzes – Séculos XVII e XVIII;

- Inicio do Século XIX até os dias atuais.”

O que faz Foucault na obra é problematizar o sujeito moderno, a partir de uma arqueologia
do saber. De acordo com Candiotto, a episteme designa as condições históricas a partir das
quais filosofias e saberes empíricos, científicos ou não, são apreensíveis ao conhecimento.
Trata-se da rede na qual as múltiplas discursividades se relacionam entre si. No renascimento
a episteme é a Semelhança entre coisas e palavras que permite a ambas serem conhecidas;
a idade clássica é marcada pela episteme da Representação e a modernidade é definida pela
episteme da História.

Não nos ocuparemos em resenhar a obra foucaultiana, mas tão somente pontuar algumas
questões. Como mencionado, a episteme clássica é marcada pela “representação”. Para
Japiassu, a representação é aqui tomada não apenas como um fato mental, mas como um
registro epistemológico específico.

“Para Foucault, a representação deverá ser entendida a partir da compreensão da função


do signo. (...) A antiga economia do signo era ao mesmo tempo unitária e tríplice,
comportando três elementos distintos: o que era marcado pelo signo, o que nele era
marcante, e o que permitia ver nisto a marca daquilo. Esse sistema unitário e tríplice
desapareceu ao mesmo tempo que o “pensamento por semelhança”. Ele foi substituído por
uma organização estritamente binária, por um sistema igual ao da representação por um
quadro: de um lado, aquilo que é representado; de outro, o quadro representante. (...) esse
quadro é investido de representatividade clara e distinta: par significante-significado
funcionando indissociavelmente graças à natureza da representação.” (JAPIASSU,
1977:119-0)

Entre o cálculo das igualdades e a gênese das representações, há o espaço da


empiricidade, no espaço do quadro – trata-se da quebra da quarta barreira. Há que se
acrescentar que para Foucault, o homem é uma invenção. Segundo Araújo, Foucault parte da
concepção nietzscheana de história, com a hipótese de que nela se realizam formas
diferentes de relação entre o saber de uma dada época e os respectivos exercícios de poder.
“Ao invés de localizar o poder em alguma esfera que comanda e ao mesmo tempo dissimula
esse comando, Foucault irá inverter a análise do poder.” (ARAÚJO, 1998:209) Isto posto, o
filósofo não busca pelo poder soberano que se alimenta de regras e legislações, mas busca o
poder entre os súditos – “um poder cujas relações são múltiplas, heterogêneas, e que se
localiza ora num, ora noutro ponto estratégico da sociedade disciplinar.” (ARAÚJO, 1998:209)

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Neste sentido, Foucault considera o uso do conceito de ideologia inadequado, porque está
atrelado ao mesmo a noção de sujeito racional cartesiano. Para Foucault, ao supor que a
ideologia deforma e ilude, que distorce a verdade, supõe-se também que há um sujeito que
pode conhecer a verdade e distingui-la do que é falso. Porém, não há um único sujeito
conhecedor.

“Sujeito”, portanto, é uma categoria que possui diferentes funções, em conformidade com os
diferentes discursos e em ordens diferentes de saber. Nos enunciados do discurso o sujeito
do conhecimento é um lugar vazio a ser preenchido conforme quem tenha acesso
regulamentado socialmente para ocupá-lo. Por exemplo, no discurso sobre a loucura, o lugar
do sujeito no enunciado só pode ser ocupado pelo médico. Ou seja, não há que se falar em
postular um único sujeito do conhecimento que esteja atrás de todos os discursos, saberes e
domínios.

Além disso, o conceito de ideologia não é suficiente para exprimir a enorme “produção de
verdade” feita especialmente pela ciência, ou em seu nome. Conforme Araújo, toda sociedade
possui um regime de verdade, ou seja, modos institucionalizados e efetivos de circulação de
discursos que produzem “efeitos de verdade” em discursos que não são em si mesmos nem
verdadeiros nem falsos – basta que um discurso tenha estatuto de cientificidade para produzir
efeitos de poder. (ARAÚJO, 1998:209)

Japiassu aponta que enquanto epistemologia, a arqueologia foucaultiana, sua teoria


epistêmica, é a teoria de um sistema. “Não se trata de uma teoria do método cientifico, mas
de uma teoria do dispositivo que funda o sistema das ciências, seu campo epistemológico,
sua estrutura e sua história.” (JAPIASSU, 1977:125) A arqueologia de Foucault busca o
fundamento das ciências humanas.

Araújo observa que as ciências humanas, na confluência entre as demais ciências, não
conseguiram sair do terreno da representação, isto é, não atingiram propriamente um “objeto”,
que seria o homem, como o era na biologia, porque não conseguiram evitar a pergunta
ontológica pelo ser do homem Vê-se: “(...) o problema epistemológico das ciências humanas
não reside na complexidade do objeto de estudo e nem na impossibilidade de se estatuírem
cientificamente (...) por ser resultado da ocupação dos interstícios destes saberes, não são
propriamente uma ciência.” (ARAÚJO, 1998:213) Em Foucault, o homem nasceu para o saber
somente a partir do século XVIII, com as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, como
aquele ser que vive, trabalha e fala. Porém, para as ciências humanas não se sabe se o
homem existe, de certa forma. O homem é o modelo lingüístico formal? Ou o que é o ser do
homem? Restringe-se à representação?

O campo epistemológico ou o domínio onde ela se situa, não é a ciência, mas o solo sobre
o qual se constrói a ciência. Trata-se de um sistema orientador das ciências, constituindo para
elas um a priori de historicidade. Não são as coisas que constituem problemas, ou seja, toda
a problemática é determinada pela disposição epistemológica do momento histórico. “Para a
epistemologia, o importante não é o objeto tratado por uma ciência, mas o lugar que esta ou
aquela ciência ocupa no espaço do saber.” (JAPIASSU, 1977:125)

Para Foucault, a ciência é um veículo e produtora de saber, como todo discurso e por isso
mesmo, é veículo e produtora de poder, ao ser considerada como lugar privilegiado da
verdade. “Nossa vontade de verdade deseja enunciados neutros, objetivos, testados.”
(ARAÚJO, 1998:211) A verdade não é objeto de suspeita. Porém, para Foucault, conforme

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nos esclarece Araújo, a verdade é um discurso produzido, acontecimento estabelecido em


uma luta.

Em síntese, a intuição inicial de Foucault é a raridade: os fatos humanos são raros,


arbitrários e datados, não racionalizados. Ou seja, a história não se repete. Por isso, conforme
Veyne, é preciso desviar os olhos dos objetos naturais para perceber a prática datada, que os
objetivou sob um aspecto também datado como ela. A prática leva a objetivação que conduz
às atitudes, não é uma instancia misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto: é o que
fazem os homens.

A prática determina os objetos, sendo que o objeto ao qual a prática se aplica só é objeto
através da relação, que determina o objeto, e só existe o que é determinado. O objeto não é
senão o correlato da prática; não existe, antes dela. Uma noção que não se traduz em nada
efetivo, não passa de uma palavra, que só tem existência ideológica, ou antes, idealista.

Para Foucault, o método consiste em compreender que as coisas não passam das
objetivações de práticas determinadas, cujas determinações devem ser expostas à luz, já que
a consciência não as concebe. Porque cada prática engendra o objeto que lhe é
correspondente. Assim, não há objetos naturais e não há coisas. Os objetos são os correlatos
das práticas, sendo que a ilusão dos objetos naturais dissimula o caráter heterogêneo das
práticas e cria a impressão de unidade: as práticas sucessivas parecem reações a um mesmo
objeto, material ou racional, dado inicialmente.

Veyne discute, em resumo, que a prática lança as objetivações que lhe são
correspondentes e se fundamenta nas objetivações das práticas vizinhas. Se estas mudam, a
prática também muda. As práticas dependem umas das outras. Tudo é histórico e tudo
depende de nós, nada é inerte, indeterminado ou inexplicável. A negação do objeto natural
confere a obra de Foucault o seu estatuto filosófico. Por exemplo, a loucura não existe como
objeto, a não ser dentro de e mediante uma prática, que também não é propriamente a
loucura. Existe porque é autorizada pelo poder exercido pelo sujeito do conhecimento que
detém o saber do que é objetivado como loucura. Ainda que a história fosse explicável
cientificamente, o ponto importante é que as supostas ciências humanas não podem ser uma
racionalização dos objetos naturais, mas que suponham uma análise histórica do objeto, ou
seja, uma genealogia.
Referências
Espaço Michel Foucault. Disponível em: www.filoesco.unb.br/foucault ; acesso em
01/06/2010.
Grupo de Estudos e de Investigação Acadêmica nos “Referenciais Foucaultianos”
(GEIARF). Disponível em: http://www.propp.ufms.br/psgrd/grupo-mf/index2.html ; acesso em
01/06/2010.
ARAÚJO, Inês Lacerda. O enfoque arquegenealógico de Foucault. In: Introdução à filosofia
da ciência. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.
EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault. Um pensador do presente. Ijuí: Ed. Unijuí,
2005.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
2007.

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GROS, Frédéric. Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
JAPIASSU, Hilton Ferreira. A epistemologia “arqueológica” de Michel Foucault. In:
Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
NALLI, Marcos. Foucault: um fenomenólogo malgré lui? In: SCAVONE, Lucila; ALVAREZ,
Marcos Cesar & MISKOLCI, Richard (orgs.). O legado de Foucault. São Paulo: Editora da
UNESP, 2006.
VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a historia. -//-

Notas:

[1] Para a construção deste esboço biográfico, além da obra de Marisa Faermann Eizirik (
Michel Foucault. Um pensador do presente) nos utilizamos das informações disponibilizadas
pelo Espaço Michel Foucault e pelo Grupo de Estudos e de Investigação Acadêmica nos
“Referenciais Foucaultianos” (GEIARF), da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
Para consultar os websites correspondentes, vide referências ao final do trabalho.

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CERTIDÃO

Certificamos para os devidos fins de direito e a quem interessar possa que


Maristela Carneiro e Vilson André Moreira Gonçalves tiveram o trabalho intitulado:
Apontamentos sobre a filosofia atrevida de Michel Foucault, publicado na Revista
Âmbito Jurídico, Revista Jurídica Eletrônica Nº 135 - Ano XVIII - ABRIL/2015 -
ISSN - 1518-0360 , de 01/04/2015, editada por Âmbito Jurídico - O seu portal na
Internet, em:
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934.

Rio Grande, RS, 19 de Novembro de 2015

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