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cultural indígena
Niterói, 2014
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O Vídeo nas aldeias: o uso do audiovisual como expressão da resistência
cultural indígena
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O Vídeo nas aldeias: o uso do audiovisual como expressão de resistência
cultural indígena
Banca Examinadora
_________________________________________
Prf.° Dr.° Antônio Jr. - Orientador
_________________________________________
Prf.° Dr.° Wallace de Deus Barbosa – UFF
__________________________________________
Prf.° Dr.° Marildo Nercolini - UFF
3
Para minha mãe Mônica e vó Maria de Lourdes,
em memória.
4
Agradecimentos
À minha família, em especial, aos meus tios Fátima e Paulo, que me adotaram como filha,
pelo apoio aos meus estudos e a tudo que decidi fazer na vida. Às minhas irmãs Barbara e
Tainá, pelo carinho e companheirismo de sempre.
Ao meu pai Iverson e minha madrasta Eliana que me mostraram o mundo das letras e da
poesia e também sempre me apoiaram nas decisões mais difíceis.
Ao meu companheiro Orlando pela compreensão e apoio de todo o dia com muito amor e
bom humor.
Aos amigos (as) queridos que me deram força e transmitiram calma para continuar a
caminhada de pé. Em especial, Natália Dias, minha amiga irmã e Drica Carneiro, a pioneira
nesse curso e muito entusiasta.
Á Bernardo Curvelano por acreditar em mim e me mostrar alguns “caminhos das pedras”.
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Resumo
O massacre a povos indígenas perdura por séculos. Constatamos que para que o massacre
ocorra, há um argumento que o justifica; tal argumento é imbuído de estereótipos que alargam
a distância entre o que nós ocidentais entendemos como índios e o que os pŕoprios têm a dizer
sobre si mesmos. A partir desse incômodo, este trabalho busca entender como estes
estereótipos permanecem até os dias atuais e como os indígenas encontraram uma maneira de
reagir a eles através do audiovisual, mais especificamente a partir do trabalho da ong Vídeo
nas Aldeias. No caminho faremos uma conexão entre antropologia e comunicação.
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Sumário
Introdução .......................................................................................................................... 8
7
Introdução
8
comunidades.
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Capítulo I
Ao entrar na van, continuou com o olhar fixo nos mínimos detalhes. De repente,
virou-se para o irmão sentado logo ao seu lado e perguntou, referindo-se a nós: "É
índio, ou é gente?". "É gente", respondeu o irmão.
(Bonvicini, 2011)
1 Os Aimoré ou Botocudo era uma população que habitava o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo nos séculos
XVI e XVII. Foram massacrados durante a batalha do Cricaré na ocupação portuguesa.
2 Os M'bya são um subgrupo do povo Guarani que habita a região meridional da América do Sul, em um amplo
território em que se sobrepõem os Estados nacionais paraguaio, brasileiro, argentino e uruguaio. No Brasil,
estima-se sua população em pouco mais de 8 mil pessoas.
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sobreviver. O vídeo nos mostra o trajeto destas peças, da sua confecção à venda em uma feira.
As imagens produzidas, sem interação com seus personagens, nos mostram como são
feitas estas vendas: sem muitas negociações, as mulheres ficam sentadas com tecidos
estirados no chão que servem de apoio para os objetos artesanais, enquanto os não-indígenas
que visitam a feira passam de pé por elas perguntando o preço, julgando se está barato ou
caro. Poucos compram alguma coisa, a maioria parece estar mais interessada em fotografar os
índios – a despeito destes se mostrarem incomodados com a situação. Em outro corte, num
banco destacado da feira, está um professor que aceita dar um depoimento para os diretores
do filme. Diante da câmera ele diz o seguinte: “A gente vê os alunos ficarem tristes vendo a
situação dos índios dentro desse parque, sujos, dependentes de dinheiro…” O operador da
câmera, rebate sua fala: “sujos?”. O professor confirma: “é, sujos, e até pedindo dinheiro para
fotografarem (...)”. O operador da câmera rebate, afirmando que as pessoas fotografam e
filmam os M'bya para usarem em seus próprios trabalhos e assim ganharem dinheiro. E que
cobrar para serem fotografados, seria uma forma de coibir este tipo de ação. O professor
reluta, mas aceita que isto possa ser verdadeiro.
Duas narrativas: uma adaptação de uma obra literária clássica – e romântica – e um
pequeno documentário. Duas narrativas que, a despeito da distância no tempo – 13 anos entre
um e outro -, tem uma relação profunda entre si. Uma relação que podemos perceber nas
atitudes dos não-indígenas que visitam a feira de produtos M'byá, sobretudo, na fala do
professor claramente desapontado com a realidade indígena, tão distinta daquela imaginada
por José de Alencar – e realizada por Norma Bengell. Entre os M'bya, os Guarani, de fato, não
há um Peri, não há o “Guarani”. Não há ali, aos olhos dos não-indígenas, o “bom selvagem”.
Há tão somente aqueles que foram corrompidos pelos vícios da civilização ocidental. Os
puros de outrora agora não passam, aos olhos dos não-indígenas, de pedintes, de maltrapilhos.
Os M'bya sabem disso. E se afetam. Diz um deles, encerrando o documentário: “a gente não
fica triste porque não vende. É porque parece que a gente depende do dinheiro deles...”.
A distância entre o mito do bom selvagem e a realidade, entre Peri, que vivia livre,
misturado à natureza, puro, e os M'bya do presente, que vivem próximos das cidades e, por
isso, precisam de dinheiro, tem consequências ainda mais profundas do que somente no
emocional indígena. Trata-se de questão política. Como bem notou Fausto (2001, p.18), este
imaginário romântico define uma “atitude mental e um campo de significados, fornecendo um
esquema simples para classificar, conhecer e dominar as populações indígenas das Américas”.
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Esse tipo de imaginário, completa o autor, se presta aos interesses dos latifundiários e demais
inimigos dessas populações. Não é de se estranhar que a ideia de que se trata de “falsos
índios”, “índios impuros”, “cachaceiros” seja sempre evocada por aqueles que desejam
contestar a legitimidade desses povos – algo que, no geral, ocorre no entorno de questões
latifundiárias (cf. Calheiros 2011; Viveiros de Castro 2009).
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1.1 As expedições europeias e o “resto do mundo”
Podemos dizer deste “imaginário romântico” que é “forma que permanece”, como bem
colocou Teodoro da Cunha (2004); que se trata de um repertório imagético produzido em um
momento histórico particular, mas que dentro de uma perspectiva diacrônica permanece,
“enquanto forma, transmutando seus significados, terminando por gozar de uma relativa
autonomia em relação ao seu contexto original” (Cunha, 2004 p.117). Noutras palavras, como
visto no segmento anterior, a representação romantizada do índio brasileiro, continua a
informar (e conformar) o imaginário dos cidadãos contemporâneos – como no caso do
professor e dos alunos do vídeo “Nós e a Cidade”.
No entanto, como nos mostra Pratt (1999, p.59) a origem dessas formas nos remete à
época das grandes expedições europeias do século XVIII. Em seu livro “Os olhos do império
– relatos de viagem e transculturação”, a autora descreve como o pensamento europeu
(colonial) ao produzir o “resto do mundo” a partir de relatos de viajantes, isto é, um mundo
que não aquele das cidades europeias, estabeleceu significados aos continentes pouco
conhecidos. Significados estes que codificavam, davam sentido e legitimavam as aspirações
expansivas do império, convencendo as elites de que esse era o melhor caminho para a
Europa.
Em meados do séc. XVIII, afirma Pratt, observa-se a emergência de um novo
paradigma, a história natural dá origem a um sistema de categorização da natureza, também
conhecido como a Taxonomia de Lineu, cujo intuito, sabe-se, era estabelecer uma grade
classificatória capaz de abarcar a totalidade da vida, seja ela conhecida ou desconhecida pelos
europeus. Era um sistema descritivo designado para classificar todas as plantas, animais e
minerais da Terra. Esse sistema, segundo a autora, corroborou na construção de uma
consciência planetária europeia. Esta consciência planetária exercia o poder de dar nomes
eurocristãos tanto à formações geográficas quanto a elementos da natureza, numa lógica
totalizadora. Assim, esse nomear da história natural se torna transformador ao passo que “(…)
ela extrai todas as coisas do mundo e as recoloca numa nova estrutura de conhecimento cujo
valor repousa precisamente naquilo que a distancia do original caótico” (Pratt 199, p. 69).
Noutras palavras, diria-se que de sua própria perspectiva, estava a cargo dos europeus
enxergar cada elemento da natureza, fosse ele animal, vegetal ou mineral, e imbuí-lo de
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significados condizentes com os de sua própria realidade. Ao descrever a área total visível do
planeta em palavras finitas, se fez não só um exercício de correlação entre a natureza e as
palavras, como também uma redução do planeta a significados finitos (Foucault apud Pratt
199 p. 61). Como diria Franz Boas “o olho que vê é o órgão da tradição”. E esse simples ato,
que à primeira vista nos é inofensivo, esta nova “consciência planetária”, como sugere Pratt,
“é elemento básico na construção do moderno eurocentrismo” (Pratt 1999, p.42): a partir
deste momento, o mundo seria reconhecido segundo a tradição dos impérios europeus. Um
aexemplo são as descrições dos homos sapiens pela taxonomia de Lineu em dois momentos3
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severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por
opiniões.
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele
acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente.
Unta-se com gordura. Governado pelo capricho. (Pratt 199, p. 68)
4 Debate realizado no ano de 1550 por iniciativa do Papa Paulo III com o intuito de decidir se a conquista
espanhola do Novo Mundo era justa. O grupo teve como debatedores Juan Ginés de Sepulveda e Bartolomeu de
Las Casas.
15
p.34 -37).
A guerra aos índios se justificaria como castigo pelos crimes que eles “cometem
contra a lei natural com sua idolatria e sacrifício de vítimas humanas aos deuses” ; “em
preparar o caminho para a propagação da religião cristã e para facilitar o trabalho dos
evangelizadores” (Sepulveda apud Gomes, 2006). Na direção oposta ao imaginário evocado
por Sepúlveda, teríamos os relatos de seu adversário, o teólogo Bartolomeu de Las Casas, que
evocava o “bom caráter” e a organização política e social dos índios – observados in loco
durante as décadas em que viveu entre os povos americanos. Os índios não seriam hereges,
apenas desconhecedores das leis de cristo.
No entanto, independente de serem gentis ou bárbaros, os habitantes do “Novo
Mundo” permaneciam como afeitos aos “maus costumes” dos hereges. E portanto, seres que
deveriam ser catequizados. A título de exemplo deste imaginário, cito a pintura O Inferno (fig.
2), quadro português cujo autoria é anônima. Neste quadro, alguns adornos tipicamente
indígenas são relacionados às figuras demoníacas. Segundo análise do historiador Ronald
Ramineli (1996), a pintura foi baseado em relatos de Pero Vaz Caminha.
Fig. 2: O Inferno
Presidindo essa cena infernal, no fundo do quadro, num plano mais elevado,
sentado num trono, está a figura soberana do diabo. Mas a sua figuração
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apresenta uma particularidade: ele tem cocar indígena e mesmo suas vestes
são em parte compostas por penas. O diabo-índio observa a execução dos
castigos, enquanto à direita podemos observar outro demônio, também
coberto de penas e carregando um condenado, dentre os vários que vemos
caindo pela boca do inferno, para ser devidamente sentenciado e torturado.
(Raminelli apud Cunha 2004, p.105)
Para Teodoro da Cunha, esta e outras imagens expostas em seu artigo “Índio no Brasil:
imaginário em Movimento” mostram várias facetas que conjugam-se na construção desse
imaginário, tendo em vista o contexto europeu, os índios passam de bárbaros a dóceis, por
vezes, surgindo como pecadores arrependidos que se convertem para não se transformar em
demônios.
A “heresia natural” (o culto aos deuses e a antropofagia) dos habitantes das Américas
era uma questão de suma importância para o império – e por isso tão presente nas imagens
pictóricas da época. Práticas reprováveis, e por isso, na lógica cristã, quem as fazia tinha o
inferno como destino. Nessa perspectiva, é possível compreender essas figurações a partir de
um ponto de vista europeu, que em seu “esforço” de absorção do estranho e do exótico e da
diversidade encontrada no novo mundo, utiliza códigos, padrões e cânones estéticos muito
bem fixados, integrando o índio ao imaginário europeu, mas através de uma atribuição de
valores que o aproxima de elementos negativos já presentes em sua cultura, como os estigmas
de selvagens, de bárbaros, de antropófagos, monstros fantásticos, bruxas e demônios (Cunha
2004, p.116).
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1.2 O imaginário que permanece
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Poderíamos descrever inúmeros casos que demonstrem a ideia de atraso e
primitivismo atrelada ao indígena, mesmo hoje em dia, em livros didáticos, em novelas e
filmes. Imagens estas que transmutaram seus significados, mas permaneceram em suas
formas. Se tornam, portanto, ainda distantes, o protótipo de índio e o índio de fato, ou pelo
menos, ao que os próprios se auto denominariam.
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1.3 Do bom e mau selvagem ao falso índio
Os homens nesse estado [de natureza], não tendo entre si nenhuma espécie
de relação moral, nem deveres conhecidos, não poderiam ser bons nem
maus, e não tinham vícios nem virtudes (...). Não vamos, sobretudo, concluir
com Hobbes que, por não ter a menor idéia da bondade, o homem seja
naturalmente mau; (...) de sorte que se poderia dizer que os selvagens não
são maus justamente por não saberem o que é serem bons. (Rousseau apud
Bonivicini, 2011 p. 11)
Contudo, com o passar do tempo, o termo foi reelaborado pelo imaginário romântico e
transformado em uma espécie de ser puro. De um ser que não apenas é desprovido de vícios,
mas naturalmente dado às virtudes. Como o personagem “Peri”, de José de Alencar.
Para termos ciência de como essa representação do “bom selvagem” ainda está
presente entre nós, a mesma, foi questionada quando, no ano de 1992 por ocasião do evento
Eco-92, Paulinho Paiacan (também conhecido como Benkaroty Kayapó), conhecido líder
Kayapó, foi acusado de estupro. A seguir, um trecho da matéria publicada na revista Veja:
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ao modelo ideal de Rousseau – só porque anda de cocar e defende castanhais
– equivale a escarnecer dos direitos humanos de uma pobre professora
(Jornal do Brasil, 26/12/1998 apud Fausto, 2001)
5 O conceito de aculturação, que seria a supressão de uma cultura em contato com outra, nasceu em 1918 na
antropologia, mas a partir dos anos 1940 caiu em total desuso pela disciplina. No lugar, o cubano, Fernando
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garimpeiros, madeireiros)”. Essa explicação responde à frustração do leitor que se pergunta
“ora, mas ele não era bom e dócil, por que estupraria?” A frustração do leitor nos remete à fala
do professor dos M'bya, afinal de contas, tanto em Paican quanto entre os M'bya não há
semelhança alguma com o índio “Peri”, de Norma Bengel e José de Alencar.
Contudo, o que está em jogo é se Paiacan merece ainda o título de índio bom, não se o
estereótipo do “bom selvagem” conformava a figura de Paiacan dentro de si. O estereótipo do
“bom selvagem” se mantém intacto, inquestionável aos olhos da mídia. Noutras palavras, tudo
se passa como se aos jornalistas coubesse questionar (e investigar) o que corrompeu o bom
selvagem e não se o bom selvagem, de fato, existia. Como “aculturado”, Paiacan não
possuiria mais suas práticas tradicionais, sua cultura seria absorvida pela cultura ocidental,
logo, tornara-se um falso índio, esse sim, capaz de estuprar alguém. Esse é o argumento
elaborado para que seja mantida a ideia do índio romântico. O núcleo duro, as “formas que
permanecem”, se mantém intactas por meio daquilo que Evans-Prichard chamou de
elaboração secundária. Isto é, a elaboração de um argumento para que um sistema de
pensamento seja mantido (cf. Giumbelli 2006).
Não só para o jornalismo do JB e da Veja dos anos 1990 o “abandono” de sua cultura
era um caminho óbvio para os indígenas. Na década de 1960/70, o Brasil viu surgir uma série
de medidas para a defesa e ocupação do interior do país, o que incluía a invasão da região
amazônica e suas fronteiras com os países vizinhos. A política do Estado estava baseada no
desenvolvimentismo e progresso econômico. Neste período, o desenvolvimento do interior do
Brasil era tido não só como desejável, mas como inevitável, assim como a assimilação do
índio pela cidade. Ou seja, o índio, ali, estaria no primeiro degrau de uma escala evolutiva da
humanidade, na qual a civilidade estaria no topo, como vimos durante as navegações
europeias e assim é como continua sendo. Desta forma, pode-se dizer que a aculturação do
índio aparece tanto como uma constatação, quanto como um desejo de modernidade, assim
como enfatiza Viveiros de Castro a respeito desse contexto político/social em que o Brasil
vivia:
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zarabatanas, os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” – mesmo
esses ainda eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda
não eram não-índios. O objetivo da política indigenista de Estado era
gerenciar (e, por que não?, acelerar) um movimento visto como inexorável
(e, por que não?, desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé
comum aos mais variados credos modernizadores, do positivismo ao
marxismo. (Viveiros de Castro 2008, p.134)
Com efeito, vimos no decorrer deste capítulo como a própria idéia de que as culturas
“autóctones” do imaginário romântico (sejam elas boas e puras, como a de “Peri” ou
selvagens e bárbaras, como a dos “Aimorés” e de “Paiacan”) estão em vias de desaparecer, de
que seu futuro não é outro que se transformar em uma cópia da civilização ocidental, nos
remete a uma espécie de “atitude mental” típica do contato com esses povos (cf. Pratt 1999;
Fausto 2001). Em outras palavras, pode-se dizer que a ideia de que os índios de outrora (os
bons e maus selvagens) estão em vias de se transformar – ou já se transformaram – em
maltrapilhos aculturados (“sujos”, como nos diz o professor do vídeo feito pelos M’bya)
remete a uma estrutura de pensamento, a uma grade classificatória cuja origem encontra-se no
próprio ímpeto expansivo da empresa colonial ocidental (cf. Pratt 199). Como já se disse, o
“aculturado” – o desaparecimento de uma cultura – nada mais seria do que uma elaboração
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secundária dedicada à manutenção do imaginário criado antes mesmo do contato com esses
povos – como vimos, por exemplo, na argumentação de Sepúlveda. Peri e os Aimorés, o bom
e o mau selvagem, não são apenas formas estéticas e estáticas no quadro, elas representam
maneiras de pensar, elas nos dão a ver – por sua própria permanência – o problema da
representação de um outro (cf. Viveiros de Castro 2008). Como bem disse Fausto, “não é
apenas sobre a manipulação de nossas linhas que devemos refletir, senão também sobre um
plano mais profundo, que é o da continuidade silenciosa de um discurso produzido em
contexto colonial” (Fausto 2001, p.18). Um discurso (um imaginário) que, sabemos (Viveiros
de Castro 2008), tem conseqüências políticas profundas e negativas para essas populações.
Um discurso que reduz esses povos aos olhos de quem os vê, um discurso afeito à uma
história única para todos os povos.
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Capítulo II
De selvagens a aculturados
25
Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de
desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela
modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a
memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no
momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional
que “é” o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente
exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. E
ainda quando o foram, quando foram reduzidas a seus componentes individuais,
extraídos das relações que os constituíam, como aconteceu com os escravos
africanos, esses componentes reinventam uma cultura e um modo de vida — um
mundo relacional que, por constrangido que tenha sido pelas condições adversas
onde vicejou, jamais deixou de ser uma expressão da vida humana exatamente
como qualquer outra. (Viveiros de Castro 2008, p.147)
6 “Ocidente criou a imagem do Oriente, ou imagens do Oriente que identificamos como sendo o orientalismo,
estamos, hoje, diante de situações em que o Oriente – isto é -, o não-Ocidente – também produz imagens de si
mesmo: 'orientalismos que são “invertidos”, inclusive, em função das expectativas que possam existir a respeito
deles mesmos (Velho apud Bacal 2009, p. 145).
26
2.1 Intensificação da cultura ou aculturação?
7 Note-se que não se trata, aqui, de afirmar o contato como algo positivo para estas populações. Apenas de
afirmar que elas dispõe de mecanismos de resistência. Como bem diz Sahlins, “O que se segue, portanto, não
deve ser tomado como um otimismo sentimental, que ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença,
violência, escravidão, expulsão do território tradicional e outras misérias que a "civilização" ocidental
disseminou pelo planeta. Trata-se aqui, ao contrário, de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos,
sobretudo no caso daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições
de existência” (1997).
27
respeito da apropriação ritual de mercadorias pelos Xikrin do Catete, povo mebêngôkre do Sul
do Pará (2006). Processo que, segundo o autor, vem contribuindo para um aumento da vida
ritual deste grupo. Registros apontam para processos semelhantes entre trabalhadores de
minas de ouro africanas, que mesmo inclusos (e reclusos) em situações infernais de
dependência, encontraram meios de re-inventarem determinados aspectos de suas culturas
natais.
Sahlins nota que o processo não é exclusivo das populações não-ocidentais, pois existem
registros históricos de movimentos semelhantes entre os trabalhadores das fábricas inglesas
no século XIX, e entre as nações europeias no fim do século XIV, durante período
reconhecido como “renascimento”:
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da Europa, diria Saussure), crivado de barbarismos, praticando uma religião
semita filtrada por um equipamento conceitual tardo-grego, e assim por
diante descobrem a literatura e a filosofia gregas via os árabes. Refiguram o
mundo grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas
uma “Antiguidade clássica” feita – como sempre – de fantasias e projeções
do presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma
literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando
a poesia grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. Lêem Platão de
modos inauditos, pouquíssimos gregos, imagina-se. Enfim: inventam, e
assim se inventam. E Sahlins conclui: pois é, quando se trata dos europeus,
chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros,
chamamos de invenção da tradição. Alguns povos têm toda a sorte do
mundo. (Sahlins 1997 apud Viveiros de Castro, 2008 p.159)
Dos escravos africanos dos tempos da colonização aos Xikrin do Cateté dos dias de hoje,
dos Mambwe da década de 1950 aos europeus do século XIV, aos olhos da antropologia
moderna atestam que o “renascimento cultural”, a reinvenção de um povo, é um fato concreto
– mesmo em condições tão adversas, mesmo quando estão imersos num sistema de
dominação no qual ocupam lugar inferior na hierarquia social- mesmo nestes contextos, os
povos encontram as condições mínimas necessárias para se reinventar (Latour 1996; Sahlins,
1997; Viveiros de Castro, 2008).
Poderíamos dizer que nestes espaços encontraremos aquilo que Pratt (1999, p.31) chamou
de zona de contato, isto é, “espaços de e no qual as pessoas geográfica e historicamente
separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas,
geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada”.
“Relações contínuas”, com efeito, pois mesmo nestas situações os povos estabelecem trocas
simbólicas – como bem notou Fernando Ortiz, ao cunhar o conceito de transculturação (cf.
Pratt 1999, p.30). É tendo em vista este tipo de contexto que, a seguir, vamos dispor a forma
como o conceito de “cultura” vem sendo apropriado por indígenas brasileiros e como essa
apropriação serve à processos de intensificação cultural desses povos. A discussão nos servirá
de porta de entrada para a problemática trazida pelo Vídeo nas Aldeias.
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2.2 Vídeo, objeto de índio
Assim, diríamos que da mesma maneira que as mercadorias entre os Xinkrin do Cateté,
como nos mostra o trabalho de Gordon (2006), o vídeo foi incorporado às aldeias como parte
integrante de seu mundo vivido, tornando-se, como veremos, não apenas um mecanismo de
resistência, mas também um mecanismo de intensificação cultural (ou re-invenção) e de
integração entre os povos indígenas. Isto é, um experimento de transculturação (tanto quanto
30
da cultura nativa com a cultura ocidental quanto das diversas culturas nativas entre elas
mesmas). Noutras palavras, sendo essa tecnologia originalmente estrangeira à sua cultura, o
uso dela à sua maneira, demonstra uma fusão, relaciona culturas distintas numa espécie de
zona de contato interna à própria cultura. Como bem diz Pinhanta em seu artigo para o
catálogo da mostra de filmes do vídeo nas aldeias em 2004:
(…) Tem gente que diz: Ah! Vocês querem ser branco, né? Todo o
povo hoje domina a tecnologia do japonês, mas o japonês não é brasileiro,
nem brasileiro é japonês. É a mesma coisa, eu não sou Xavante, eu sou
Ashaninka, ele é Xavante. Mas a gente pode se organizar com o mesmo
instrumento que o branco usa, mas com o visual diferente, você vai usar de
acordo com a sua necessidade, com a sua maneira de pensar. (Pinhanta 2004,
p.12)
31
2.2 A Cultura dos outros
“Você vai usar de acordo com a sua necessidade, com a sua maneira de pensar”, diz
Pinhanta. Sua frase corrobora o trabalho de especialistas, como o estudo de Weber sobre os
efeitos do ensino escolar entre os Kaxinawa (2006), onde fica claro que o uso de tecnologias
(a escrita, o vídeo) e saberes estrangeiros (a matemática), servem aos propósitos locais.
Tomemos de exemplo o uso do conceito “cultura” por estes povos, que também é uma
apropriação de um conceito estrangeiro, fenômeno que segundo Bacal (2009), se acentuou
com a chegada do Vídeo nas Aldeias:
(…) Depois a gente foi entendendo, porque vimos mais de quinze povos
diferentes nos vídeos e cada um tinha uma maneira dentro da sua cultura. Os
Ikpeng tinham uma cultura muito forte. Outros não tinham mais nada da
cultura deles mesmos. Então, o pessoal começou a analisar também isso:
aquele que já não tem mais nada, aquele tem um pouco, aquele que já está
perdendo. A gente terminou o resto fora da aldeia, em São Paulo. Lá o
Bebito fez o produto final do trabalho. Quando a gente assistiu o vídeo
pronto lá na aldeia, “No tempo das chuvas”, o pessoal começou a se
envolver. Foi interessante se ver no vídeo porque surgiu aquela questão da
festa, da música não ser a nossa. Aquilo já é de outro povo, vem do contato
com outra sociedade. Aí, eu comecei a perceber que o vídeo podia servir
para discutir a nossa cultura, organizar a escola, pensar em todo nosso
sistema de vida. Por mais que o povo fale sua própria língua, tenha a cultura
forte, tem algo de fora que também está entrando ali e a gente não está nem
percebendo. Então o vídeo serviu muito nas discussões com a comunidade,
por exemplo, para que usar o gravador, para que serve a tv. Foram discussões
grandes.(...) A cultura você vai inventando de acordo com a sua necessidade,
com a sua maneira de pensar.” (Pinhanta 2004, p. 14)
32
história faz parte da nossa cultura. (depoimento de ancião Panará em
vídeo“Para os nossos netos”, 2008).
Na mesma direção, segue a fala de outro realizador indígena, Caimi, um cineasta Xavante
– povo também conhecido pela alcunha A´uwe que vive no Mato Grosso.
Eles [os velhos] sabem que a cultura é dinâmica, e sempre falam que a nova
geração vai ter que lidar não só com as coisas que chegam mas também com
aquilo que nos limita, porque estamos cercados por fazendas agora. (Caimi
em depoimento para catálogo Vídeo nas Aldeias- 25 anos, 2011, p.69)
33
Capítulo III:
O Vídeo nas Aldeias, uma escola indígena de cinema
Neste capítulo, veremos como a trajetória da organização Vídeo nas Aldeias é marcada
pela apropriação e aprendizado do audiovisual, que a princípio era uma linguagem alienígena
aos indígenas, mas que ao passar do tempo se torna um importante mecanismo de reinvenção
das suas próprias culturas. Como vimos em Albert (1998), no capítulo passado, a partir do uso
do audiovisual os indígenas remanejaram a representação que o homem branco ocidental fez
deles por séculos para reinventarem a si mesmos e se comunicar com o mundo exterior à sua
aldeia.
Mas, comecemos do início, contemos um pouco da história da organização. Em 1986, já
haviam dez anos da existência da organização não governamental Centro de Trabalho
Indígena (CTI). Até então, em seu trabalho de assistência jurídica e social aos povos indígenas
ainda não se utilizava o audiovisual como um meio de comunicação capaz de proporcionar
troca cultural e a difusão das formas de vida desses povos à toda a sociedade brasileira. Seu
trabalho visava, basicamente, dar apoio para que esses povos pudessem sentar à mesa de
negociações políticas, expressar suas expectativas e formas de convívio com nossa sociedade,
em prol desse objetivo maior, como meios de documentação se utilizam de fotografias e
gravações em áudio.
Com a inclusão tecnologia do VHS em 1986 por Vincent Carelli, antropólogo e jornalista
integrante da organização, o audiovisual se tornou uma frente de trabalho da ong. Nesse
sentido, esse meio de expressão serviria à tradução das formas de vida indígenas para um
público mais amplo. Feito que objetivada a desconstrução de preconceitos enraizados na
sociedade brasileira a respeito dos povos indígenas.
Quando Carelli, passou a levar uma câmera VHS com frequência para as aldeias atendidas
pela organização, o seu objetivo era a documentação audiovisual de eventos importantes e
fazer o intercâmbio cultural entre diferentes etnias ao assistirem os vídeos uns dos outros.
Segundo Gilberto Azanha, um dos fundadores do Centro de trabalho indigenista, a ideia de
levar vídeos de um povo para o outro vinha da intenção de quebrar a barreira imposta pela
FUNAI com as demarcações de terras, que havia, muitas vezes, separado povos irmãos. Ou
seja, neste primeiro momento, a inclusão do Vídeo nas Aldeias era servir como uma ação
34
política para mobilização dos indígenas não a de formar cineastas. (Azanha apud Bonvicini
2011, p.31)
As imagens produzidas nessa época pelo CTI, não narravam uma “história” com início,
meio e fim, elas registravam rituais e cantos inteiros. Pois, o foco da preocupação estava em
preservar a tradição para as futuras gerações e não em somente divulgar as suas formas de
vida à sociedade brasileira. Aqui, o vídeo servia ao diálogo entre as diferentes gerações da
mesma aldeia assim como a membros de outras etnias de línguas distintas. Ao levá-lo de uma
aldeia para outra, a principal função desse meio de comunicação, nesse momento, era o de
intercâmbio cultural entre os povos.
Essas experiências de intercâmbio cultural que todos esses vídeos promoviam ao serem
assistido, se torna mais relevante se considerarmos que no Brasil os povos indígenas estão
isolados entre si: existem cerca de 210 etnias, falando 180 línguas e mantendo enorme
diversidade cultural, multiplicadas pela variação das experiências de contato com a cidade.
Portanto, a partir dessas primeiras experiências com o vídeo, a equipe do CTI começou a
observar que:
35
organização, vai dizer algo parecido em sua narração em off8 para um vídeo feito com
objetivo de divulgação do trabalho do CTI. Nesse momento, Valadão cita um evento ocorrido
entre os Nambikwara9 que exemplifica como esse povo inicia um processo de reconstrução e
reflexão de sua auto-imagem a partir do vídeo.
Diante de tal pedido dos Nambikwara, a equipe do CTI filmou novamente o ritual da
furação de nariz e lábios, feito que originou o primeiro filme de Vincent Carelli, a “Festa da
moça” (1987), com participação de toda aldeia. Com o vídeo pronto, repetiram o mesmo
exercício: levaram-no para outro grupo indígena, dessa vez, os Gavião ao sul do Pará. E o
efeito foi muito parecido, eles também retornaram com seu ritual de furação de lábios dos
meninos10. E desses intercâmbios, entre outros, feitos no mesmo molde, nasceu uma trilogia
de filmes: “O espírito da TV” (1990), nele vemos a reação dos índios Waiãpi 11 em que ao
verem pela primeira vez suas imagens e principalmente dos Zo'é na televisão, de imediato
várias comparações são feitas; “A arca dos Zo'é” (1993), em que registra o encontro entre os
Waiãpi e os Zo'é12 ocorrido no Pará na aldeia dos Zo'é; Já no “Eu já fui seu irmão” (1993), há
o registro do encontro entre os Paraketejê do Pará e os Krahô do Tocantis que apesar de
falarem a mesma língua nunca haviam se encontrado. A partir dessas experiências, Carelli
percebeu que as diferenças culturais entre esses povos se fortaleciam à medida que a
comunicação entre eles era facilitada por meio do audiovisual.
Surge, então, a necessidade do investimento na formação e compra de equipamentos para
8 Voz de origem invisível no vídeo que pode explicar a imagem ou não. Muito usada no jornalismo.
9 Os Nambikwara se autodenominam como “Anunsu”. Sua língua pertence à família linguśitica Nambiquara.
Segundo dados da Funasa de 2010, sua população tem cerca de 1.950 pessoas que se dividem entre os
estados do Mato Grosso e Rondônia.
10 Segundo Carelli (2011, p.47), o vídeo foi exibido para os Gavião foi feito num contexto onde esse povo já se
encontrava num processo de retomada de sua tradição, pois dominaram a comercialização de sua castanha e
o retorno do uso da própria língua.
11 Grupo residente no Amapá de língua Tupi-Guarani
12 Grupo residente no Pará de língua Tupi-Guarani
36
esses grupos continuarem de forma independente o seu trabalho com o vídeo, por isso o
projeto de uma escola indígena de cinema, se torna indispensável. Assim, Vincent, Virgínia e
Dominique criam o projeto do Vídeo nas Aldeias (VNA). Pois, se antes se fazia necessário o
registro simples dos rituais para que eles não fossem perdidos, agora se fazia necessário
contar suas próprias histórias, bem como construir projetos identitários e se auto-representar,
não só para outros grupos indígenas como para toda a sociedade brasileira.
37
comunicação abrangente, em que todos os segmentos da sociedade poderiam expressar suas
contribuições específicas à construção de uma nação pluriétnica” (Carelli & Gallois 1998,
p.27). E, participar desta rede global de comunicação também se torna a expectativa dos
índios. A abertura de novos espaços na mídia representa, para eles, um duplo desafio: o de
viabilizar seu espaço e o de controlar a difusão de suas próprias vozes.
Por outro lado, na antropologia, questionava-se a respeito das formas tradicionais da
representação do outro no fazer etnográfico. O que se colocava em cheque na escrita
etnográfica era a relação entre o objeto e o etnógrafo, bem como suas implicações políticas,
éticas e estéticas, por isso surge aí uma nova percepção sobre a alteridade e a subjetividade
nos trabalhos etnográficos. Essa nova percepção prevê a produção de conhecimento mútua
entre etnógrafo e etnografado, assim o sujeito não é observado como se fosse um inseto
estudado por um entomólogo, ele se torna partícipe daquela produção, há uma relação de
simetria entre as duas partes quanto à produção de conhecimento (Gonçalves & Head 2009,
p.18).
Fechando o parêntese, veremos que tanto a nova percepção da alteridade e subjetividade
no fazer etnográfico quanto o contexto político-social dos meios de comunicação no Brasil
tiveram influência na construção de uma metodologia de formação para a escola indígena de
cinema e respectivamente como que essa forma de fazer filmes traz características singulares
a esses filmes e constituem uma auto-representação desses atores.
38
3.1 A construção da escola indígena de cinema.
O projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), trabalhando de forma independente ao CTI, ganhou
reconhecimento internacional nos meios que discutiam trabalhos inovadores da área da
comunicação, assim, prosseguiu por meio de bolsas americanas para artistas, das fundações
filantrópicas Guggenheim, MCArthur, Rockefeller, e a apoios da cooperação internacional da
Holanda e Noruega. Convidado para muitos festivais de cinema nacionais e internacionais,
Vincent Carelli percebeu que ao redor do mundo, povos indígenas já estava pegando em
câmeras em prol da resistência cultural. Além disso, as minorias do primeiro mundo, na
década de 1980 já haviam dado passos significativos rumo à democratização das mídias e
inclusão de indígenas e aborígenes nas universidades.
A partir dessa visibilidade e consciência de que outros grupos parecidos ao redor do
mundo, a equipe do VNA estava em busca de uma metodologia de formação para a ampliação
desse trabalho, pois o ato de levar vídeos de uma aldeia para a outra e gravar as reações de
seus espectadores se tornou uma exercício de alteridade que gerava reflexões sobre o próprio
modo de vida de quem assistia, no entanto, para que esses povos tivessem independência no
uso da tecnologia, era necessário o investimento na formação e na compra de equipamentos
que ficassem permanentemente nas aldeias.
Por haver cumplicidade e parceria entre antropólogos e os povos com quem trabalham, a
entrada da equipe do VNA nas comunidades indígenas resulta, geralmente, em relações
agradáveis para todos os lados, o que não é muito difícil de acontecer, pois a chegada da
organização é uma demanda da própria comunidade. No entanto, ainda não se sabia como dar
aulas de vídeo, como tornar fácil a compreensão de uma tecnologia estranha aos indígenas.
A primeira tentativa pela busca de uma metodologia de trabalho foi a oficina interétnica
feita no parque do Xingu em 1999, nela foram reunidos 30 índios de partes diferentes do país,
uns já trabalhavam com o VNA e outros foram chamados por já estarem usando o vídeo por
conta própria, foi um grande encontro entre jovens que não se conheciam. No entanto, a
equipe do VNA se deu conta que trabalhar com jovens de etnias diferentes não era algo
produtivo porque muitos não falavam a mesma língua e tampouco compreendiam bem o
português, por isso decidiram fazer oficinas por etnias, para isso foram atrás de parcerias com
ONGs e associações indígenas regionais. Nesse momento, a integração de Mari Correa à
39
equipe foi crucial para o desenvolvimento de uma linha de atuação para as oficinas. Mari é
formada pelo Ateliers Varan, uma escola de cinema direto, sediada em Paris. A equipe, então,
trabalhou para que o método da escola francesa fosse adaptada à realidade dos indígenas
brasileiros.
Conforme os integrantes do projeto foram apresentados, percebemos que há uma
influência francesa na metodologia das oficinas, não só por serem Vincent Carelli e
Dominique Gallois de origem francesa, mas também por Mari Correa trazer o método da
escola francesa Ateliers Varan. Esta escola é influenciada pelo cinema de Jean Rouch,
antropólogo famoso por seus filmes etnográficos feitos em alguns países africanos. Jean
Rouch foi percursor do cinema-verdade13, a partir dos seus filmes etnográficos radicalizou a
relação de alteridade com os povos por ele etnografados. Rouch trouxe a subjetividade dessas
pessoas para o primeiro plano de seus trabalhos fazendo com que eles se tornassem partícipes
da construção do filme etnográfico. Percebemos que nos filmes do Vídeo nas Aldeias, assim
como em alguns filmes de Jean Rouch, essa proximidade entre o cinegrafista e quem está
diante da câmera também está presente em diversos momentos.
Pois, diferentemente dos outros tipos de documentários, muito comuns na TV, que dizem
respeito a povos indígenas, e nos quais há uma voz em off explicando as imagens que
aparecem na tela, estes filmes trazem as comunidades falando por si mesmas. Ao contrário
dos documentários expositivos (Nichols 2005, 146), onde defendem um argumento e tem a
convergência perfeita entre o que é narrado em off e o que é mostrado em imagens, estes aos
quais assistimos em canais como Discovery channel e National Geografic; no cinema direto14
escolhido pelo VNA, privilegia-se o som direto, aquele onde as vozes dos personagens estão
em primeiro plano, sem a voz em off que caracteriza uma parcela dos documentários
clássicos sobre índios. A passagem da locução em off para a palavra direta é muito importante
em termos de um deslocamento autoral, “pois se antes o 'autor branco ocidental' tinha, por
intermédio de sua narração, o poder de inventar a cultura do outro para a sua sociedade, esse
outro passa a compartilhar essa autoridade ao ganhar o direito à sua própria voz” (Gonçalves,
2009 p. 137).
13Segundo Gonçalves (2008,p.58-61), Jean Rouch diz que a câmera intervém na realidade filmada, ou seja, essa
realidade é objetivamente registrada pela câmera ao mesmo tempo em que é provocada por sua presença.
Quando o cineasta e etnólogo nomeia sua forma de fazer filmes etnográficos como cinema-verdade aponta
para a provisoriedade da construção de uma verdade a qual está buscando-se interpretar. A verdade do
cinema é tudo aquilo que se tornaria passível de ser filmado, do mesmo modo que a verdade da etnografia
seria o que pode ser escrito.
14No cinema direto o áudio dos diálogos e depoimentos dos atores em cena é gravado ao mesmo tempo da
imagem, em sua edição privilegia-se a voz dos atores e não a da narrador em off.
40
Dessa forma, o VNA nos revela autores com subjetividade e não objetos de estudo da
antropologia. Essa escolha se relaciona diretamente com o momento em que a antropologia se
questiona a respeito da subjetividade de seus etnografados, como citamos anteriormente.
Contudo, antes mesmo de Carelli descobrir Jean Rouch e o seu cinema-verdade, antes de
mais nada, ele diz que o jeito de fazer cinema do VNA é fruto de um estilo de relacionamento,
de convivência, de escuta dos povos com os quais trabalham. O método de filmagem é
importante, mas se não houver um bom relacionamento e respeito com toda a aldeia o
trabalho com o vídeo fica impossibilitado. Nessas comunidades é preciso entender as políticas
internas e saber se colocar, se nesse primeiro contato, algo der errado, pode impossibilitar
qualquer trabalho. Assim, o VNA trabalha numa produção compartilhada conceito que a a
organização cita em seu site como sendo a essência do seu trabalho e guia para sua
metodologia.
Para entendermos melhor a ideia de produção compartilhada do Vídeo nas Aldeias
podemos traçar um paralelo com o método instaurado por Jean Rouch, na etnografia,
denominado como antropologia compartilhada. Este método de pesquisa tem como princípio
“compartilhar [o fazer etnográfico] com as pessoas que, de outro modo, não passariam de
objetos de pesquisa”, fazendo delas sujeitos (Gonçalves 2008, p.62). Dessa maneira, a ong
coloca os personagens como protagonistas de todo o processo de produção dos vídeos. Sendo,
esses vídeos, frutos de um encontro assim como no método antranpológico citado.
41
3.2As oficinas e a sua metodologia
Por serem, os grupos indígenas, muito diferentes entre si em sua formação social e
expressões culturais, encontrar uma única metodologia de trabalho para uma escola de cinema
indígena seria um tanto trabalhoso. Por isso, a partir de relatos da equipe 15 ,podemos entender
que, dificilmente, poderíamos traçar aqui uma única metodologia de trabalho que atenderia à
diversidade dos grupos indígenas num espaço de tempo de 28 anos de existência do Vídeo nas
Aldeias. Contudo, há atuações e objetivos em comum, o própria câmera a qual os indígenas
aprenderão a manejar é a mesma que usamos em nossas escolas de comunicação, isso implica
num vasto conhecimento acumulado de décadas desde a origem do cinema aos dias de hoje
que dão base aos instrutores, e é esse conhecimento que eles se empenharão em traduzir aos
indígenas. Dessa forma, podemos encontrar atuações semelhantes nas diferentes oficinas.
Outro fator que complica a busca por um método único é a formação das equipes. Atualmente,
por ter sérios problemas de financiamento, a organização conta com uma rede de
colaboradores que são chamados eventualmente para oficinas propostas por outras
organizações em parceria com o VNA. Portanto, cada instrutor, ditará as regras para cada
oficina e o sucesso delas dependerá em muito da aceitação e demanda da aldeia.
Em entrevista por telefone, Pedro Portela 16, que presta serviços como coordenador de
oficinas à organização há 8 anos, afirma que apesar do método mudar de acordo com os
instrutores, algumas ações permanecem desde a época em que Mari Correa trouxe o método
de gravação do Ateliers de Varan. Isto é, basicamente, menor interferência dos instrutores na
hora da filmagem e a busca por um trabalho de autoria por parte dos indígenas. Sendo assim,
o que permanece na prática, primeiramente, é a discussão sobre os temas com os quais a
aldeia gostaria de trabalhar em vídeo; uma introdução ás noções de fotografia, diz-se nas aulas
o que é sombra, o que é cor saturada, brilho e etc; o exercício de sair com a câmera por um dia
na aldeia e no fim do dia fazer os visionamentos dessas imagens - dessa forma, os instrutores
apontam para erros e acertos - e por último, as sessões de filmes todos os dias. Essas são as
ações que permanecem independente do instrutor e da etnia, a interferência do instrutor na
filmagem mudará de acordo com a necessidade do grupo que participa da oficina. No fim da
oficina cada aldeia ganha um kit com equipamentos para produzir e editar seus vídeos.
15 Há um vasto material com entrevistas de alguns participantes das oficinas no último livro lançado pela ONG
intitulado “Vídeo nas Aldeias, 25 anos” e lançado em 2011.
16 Entrevista realizada em 26 de abril de 2014.
42
3.3 Os Vídeos
Um exemplo emblemático para esse deslocamento do centro para que torne ele também
um “outro”, é o filme “Priara-Jo, depois do ovo a guerra”. A narrativa nos leva ao seio da
aldeia Panará. Nos tornamos estrangeiros partícipes de uma brincadeira de criança. O filme
começa assim: em meio as galinhas, dentro de uma casa Panará tradicional, três meninos
conversam a respeito de fazerem algo. O primeiro diz: “Vou pegar numa arma de fogo de
verdade, para matar mesmo”, dito na língua dos Paraná. A câmera os pega de frente, eles
43
estão sentados e não olham para ela, aliás, não se incomodam com sua presença em nenhum
momento. Até que o mesmo menino continua: “Que tal a gente fazer borduna 17?” E todos se
levantam saindo da casa. Num outro plano, os vemos cortando troncos de madeiras com
facões para a confecção da borduna, o maior diz: “Vamos matar os Txukarramãe18, eles estão
vindo por ali”. Todo o preparo para a guerra continua: os três se alimentam de ovo e tapioca, e
o menino que serve o alimento diz para a câmera: “Estou alimentando eles, as mulheres não
vão comer o ovo.” Dada descrição olhando para a câmera, é como se eles dissessem que o quê
estão fazendo não é um dado, não é obvio para nós que estamos assistindo, por isso é
necessário explicar. Aqui ele identifica seu espectador como um outro também.
Voltando ao filme; os meninos, que agora são quatro, caminham rumo à floresta com suas
bordunas e uma garrafa com urucum dissolvido em água. Com a câmera e o plano fixos a
vemos um a um passando diante dela enquanto dizem: “Estou carregando isso para a gente se
pintar”; “eu peguei essa tesoura pra cortar o cabelo”. E, continuam sua caminhada. Temos aí
duas outra frases descritivas. Esse caráter descritivo permanece até o fim do filme quando eles
realmente cortam os cabelos uns dos outros, se pintam e simulam uma guerra como faziam
seus ancestrais. Por ora, nos sentimos uma outra criança por somente entendermos como
funciona a brincadeira deles a partir do que nos explicam. Diferentemente de documentários
feitos por não-indígenas e que tem essas etnias como tema, na maioria dos vídeos produzidos
pelo Vídeo nas Aldeias vemos que:
17 Diferente do arco e flecha que são usados no di-a-dia para caça, a borduna é usada exclusivamente para a
guerra.
18 Povo inimigo dos Panará.
44
3.4 O uso do vídeo para além do que se imaginava
A descrição de cenas e a fala direcionada à câmera são elementos que prevêem uma
relação direta com seu espectador, sendo esta fala de caráter descritivo, como nos disse
Bernadet, isso nos leva a um espectador que não é ambientado ao mundo do qual esses
sujeitos narram. Esses dois elementos nos indicam que a relação comunicativa daquele vídeo
não está atrelada somente aos seus familiares, mas também ao seu redor, o mundo urbano. É a
partir dessa reflexão que podemos dizer, portanto, que os vídeos do VNA estão em
basicamente três tipos de relação comunicativa: (1) entre membros da própria comunidade,
pois refletiram sobre seu modo de vida e planejaram projetos de identidade quando viram as
próprias imagens (como no caso dos Nambikwara); (2) a segunda relação acontece entre
povos distintos que não falam a mesma língua, mas mesmo assim se veem como “parentes”,
pois também são indígenas; (3) a terceira se dá entre esses povos e a sociedade não indígena,
esses vídeos já passaram na televisão, é reconhecido nacional e internacionalmente e
agraciados com inúmeros prêmios em festivais de cinema.
Na comunicação primeira, feita entre os membros da mesma aldeia, há a possibilidade de
se enxergar à distância fazendo com que seja viável a análise de si próprio, sendo assim,
pode-se fazer ajustes e discutir as próprias formas de vida e projetos de identidade. Como
afirma Pinhanta:
Pode-se perceber que uma análise parecida com a de Pinhanta é feita pelo diretor guarani
Ariel ao gravar o filme “Nós e a cidade” (2009). Este último vídeo, já citado no primeiro
capítulo deste trabalho, mostra como os Mbya Guarani vendem seu artesanato na cidade. A
fala de Ariel feita a seus parentes discorre sobre a mudança de seus rostos durante a venda.
Segundo Ariel as pessoas mudam seus semblantes quando começam a vender o artesanato aos
brancos, detalhe que não haveria percebido se não estivesse ali em função do vídeo, como um
45
observador em posse de uma câmera. No fim do dia quando os clientes vão embora, Ariel diz
aos seus parentes: “Hoje, eu percebi o que acontece aqui, experimente vir sem vender e só
ficar observando. Aí, vocês vão ver como os rostos dos Mbya Guarani mudam”.
Um outro evento que marca esse tipo de interação que a presença da câmera incita dentro
da aldeia é o narrado por Carelli (2011) que nos conta que já aconteceu de “ver um grupo de
jovens entrevistando um velho – feliz este por estar sendo indagado – se espantarem com
histórias desconhecidas para eles, e chegar até a cobrar do velho: “Por que nunca nos contou
isso antes? E o velho responder: porque vocês nunca me perguntaram.”
O segundo nível, observado também por depoimentos dos participantes, é a comunicação
entre povos indígenas, que não necessariamente falam línguas parentes. A título de exemplo,
um relato de Carelli quando o mesmo apresenta seu filme feito entre os Nambikwara, A festa
da moça (1987), para uma aldeia de índios Gavião. O filme exibia um rito de passagem de
jovens moças para a vida adulta que consistia, entre outras ações, na furação dos lábios delas.
Após a sessão do filme feita por Carelli na aldeia, os Gavião decidiram fazer uma retomada
do ritual de furação de lábios dos meninos, evento que não realizavam há anos. A chegada
desse vídeo na aldeia coincidiu com a retomada cultural e econômica 19 do grupo. Portanto, ao
assistirem ao filme dos Nambikwara tiveram mais um incentivo para voltar a fazer o ritual.
Esse diálogo interétnico entre indígenas está resultando, hoje em dia, numa rede entre povos
indígenas20 . Sendo o vídeo o melhor instrumento para tal feito, nas palavras de Gallois e
Carelli:
19 Depois de uma traumática "pacificação" feita pelo governo, ocorrida na década de 1970, na qual perderam
70% da população, os Gavião venceram a crise populacional e reconstruíram seu modo de vida retomando o
domínio da venda da castanha.
20 A mérito de exemplo dessa rede, em julho de 2013 mais de 10 grupos de cineastas indígenas se reuniram no
contexto do 45º Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais na escrita de uma carta
reivindicando um acesso mais democrático aos meios de comunicação.
46
p.16)
Já no terceiro nível, a comunicação entre esses povos e a sociedade não- indígena, temos
o exemplo de diálogo entre aldeia e cidade envolvente que é o episódio descrito também por
Pinhanta no qual o seu vídeo cria um elo de ligação entre sua aldeia e a cidade vizinha:
Ao também filmar “Shomõtsi”, filme que narra a história de seu vizinho que foi até a
cidade para dar entrada na sua aposentadoria, Isaac percebeu que a aposentadoria também era
uma questão relevante para seu povo no contato com a cidade. Por isso também o levou para a
exibição em escolas e outras instituições no município, assim conseguiram conversar sobre a
aposentadoria e questões afins.
O uso que o Vídeo nas Aldeias faz do audiovisual nos mostra sua polivalência
comunicativa. Portanto, suas narrativas alcançam objetivos variados e exercem a função
comunicacional em diferentes níveis: intertribal, entre aldeia e cidade e entre os próprios
membros da mesma comunidade.
Portanto, além da sua força política no que tange as reivindicações desses povos por seus
direitos, a experiência do VNA também comprova que a apropriação do vídeo pelos povos
indígenas pode extrapolar a função instrumental da comunicação. “Comparado com outros
instrumentos de comunicação utilizados em programas de “resgate” cultural, a inovação que o
vídeo representa tem uma dupla vantagem: sua apreciação passa pela imagem, mas sua
apropriação é coletiva” (Carelli & Gallois 1998).
47
Considerações Finais
Das idas e vindas dos meus encontros com a vida acadêmica da qual esta monografia
resulta, a maior proximidade com alguma realidade conclusiva a qual cheguei é a de que o
processo de aprendizagem me foi imensamente transformador. Durante a escrita, por vezes,
me vi distante de mim mesma, do meu objeto e, sobretudo, do “como escrever” essas pouco
mais de 40 páginas. Por vezes, é possível que essas dúvidas estejam transcritas no próprio
texto como transparências de mim, pois o “eu” que escreve esteve ali desde o início. Posso
dizer que dar lugar à escrita científica aos meus dedos foi um grande exercício de
deslocamento do meu olhar, centrado no meu mundo cheio de opiniões, para um objeto de
estudo com seu outro próprio universo. Contudo, o maior desafio, sem dúvidas, foi o de fazer-
me inteligível a outrem, a ação comunicativa com o meu leitor. A comunicação em si é um
grande desafio, era no século XVIII, assim como o é agora.
Quando me propus a estudar a ong Vídeo nas Aldeias, sabia que estava entrando em
um terreno pedregoso (mas não tinha ideia o quanto). Por mais que estivesse ambientada com
o universo da antropologia através de pessoas próximas e meus próprios estudos, sabia que
não tinha bagagem teórica/conceitual para falar em conceitos como cultura, transculturação,
representação, alteridade, e ainda se prestar a uma análise de cerca de 70 vídeos de uma
organização com 28 anos de trabalho. Por isso, este trabalho é fruto de um namoro, mesmo
que à distância, com a antropologia, principalmente com os filmes etnográficos, onde a
pretensão está em tentar trazer à tona algumas das questões que este objeto poderia ter aos
olhos da comunicação. Acima de tudo, quis conectar o fazer etnográfico aos estudos de mídia,
um pretensioso objetivo para quem teve uma formação conturbada pela vida profissional.
Entretanto, a respeito do produto final desse processo de escrita, talvez o fato de, nos
primeiros capítulos, ter optado por remontar a trajetória de alguns estereótipos a cerca dos
indígenas tenha sido uma tentativa de, a todo custo, buscar entender os motivos que tornou
necessária a existência do Vídeo nas Aldeias. Nessa busca, encontrei uma possível origem do
estereótipo do “selvagem” atribuído aos indígenas, assim como um debate que trazia à
antropologia o conceito de transculturação. Nesse sentido, os estudos de Mary Louise Pratt e
Marshall Sahlins serviram como dois pilares teóricos que auxiliaram no entendimento do
contexto histórico do qual a criação de narrativas indígenas se fez necessária.
Ao entrar em contato com a ressurgência desses estereótipos, dessas “formas que
48
permanecem”, desde as grandes navegações europeias até os dias atuais, percebi, de fato, a
urgência de narrativas que falassem o oposto dessas, que nos dessem a ouvir as próprias vozes
indígenas. Narrativas estas que revelam diante dos nossos olhos o quanto a distância entre o
estereótipo do “selvagem” e a realidade de indígenas que vivem próximos à cidade tem
consequências profundas em suas vidas. Portanto, na reconstrução do imaginário europeu até
os dias atuais, demonstra-se um cenário no qual a criação de narrativas de auto-representação
é primordial para re-significar esse imaginário em prol das populações indígenas.
E, mais que a re-significação de um imaginário, vimos como o uso do audiovisual
promoveu relações comunicativas em diferentes níveis, vimos que a resistência cultural
desses povos se deu numa boa convergência entre esse meio de expressaõ e suas culturas.
Portanto, a partir da comunicação vimos que houve um fortalecimento dessas aldeias diante
da opressão da cidade, dentre os próprios membros delas e para com outras etnias.
49
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51