Você está na página 1de 35

GETEB – O Coração não envelhece

Depto de Letras, Artes e Cultura

O CORAÇÃO NÃO ENVELHECE


Paulo de Magalhães

**********************************

Comédia em 3 atos

PERSONAGENS (CRIADORES)

GI Hortência Santos
ALDA Sónia Veiga
PVA Pepita de Abreu
LÉO Restier Júnior
JOÃO Juvenal Fontes
RAUL Armando Rosas
Dr. LUZ Mendonça Balsamão
TOM Eurico Silva

Esta peça está traduzida para o espanhol por Angelo Curotto e para o italiano por
Américo Donnicci.

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

PRIMEIRO ATO
(Sala de estar de casa rica.)

CENA I
EVA, JOÃO e LÉO

EVA (entrando com uma bandeja, seguida de João) — Não me aborreça!... Já são 10
horas. O menino não deve dormir tanto!...
JOÃO — Deixa o menino dormir mais uma hora! Ele deitou-se tarde ontem.
EVA — Você não sabe nada. (dirige-se a porta) Vou acordá-lo.
JOÃO — Não acorde o menino!
EVA — Acordo e não tenho que lhe dar satisfações!
JOÃO — Deixa o menino dormir mais um pouco.
EVA (insistindo) — Menino Leo! Menino Léo!
VOZ DE LÉO (dentro) — Já vou...
JOÃO — Vê? Eu acho que ele se zangou...
EVA — O doutor já disse que o menino não deve dormir mais de 7 horas...
JOÃO — Mas, o menino só dormiu 6 horas!
EVA — Mentira! Dormiu sete. Deitou-se às 3 e são 10 horas.
JOÃO — Mentira! Deitou-se às 4 horas.
EVA — Você não sabe o que diz...
JOÃO — E você é idiota...
LÉO (entrando) — Então? Que é isso? Vocês vivem a brigar desde que se
conheceram...
JOÃO — Ela é impossível!
EVA — E você é irritante...
LÉO — Admiro a vossa persistência na disputa. Vivem aqui ha 48 anos sempre juntos
mas amanhecem discutindo e dormem discutindo...
EVA — A culpa é dele...
LÉO — A culpa é dos dois... Dois não brigam quando um não quer...
EVA — Tome o seu chocolate. Trouxe-lhe também umas torradas com manteiga... • .
JOÃO — Você sabe muito bem que o senhor Léo não pode comer torradas com
manteiga...
EVA (exaltando-se) — Pode, sim senhor...
JOÃO — Não pode, não senhora! Idiota!
LÉO (rindo) — Outra vez? Bem. Para não zangar nem a um nem a outro, eu não como
as torradas...
EVA — Vê? Por sua causa o menino não come as torradas...
JOÃO — Por minha causa não... Por sua culpa. Você vive sempre a teimar...
EVA (para Léo) — O senhor está vendo? Não é de irritar?
LÉO (rindo) — E dizer-se que vocês brigam ha 48 anos...(noutro tom) Escutem cá.

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

Porque é que vocês não se casam?...


EVA — Deus me livre!...
JOÃO — Cruzes, credo!...
LÉO — Era melhor; olhem: para marido e mulher já estão ultra práticos — brigam,
diariamente, ha 48 anos!
EVA — Bem. Quer que bote açúcar no chocolate?
JOÃO — O menino não pôde abusar do açúcar.
EVA — Pede!...
JOÃO — Não pode!...
LÉO — Basta. Outra vez? Porque é que vocês não arranjam logo dois revolveres e não
dão um tiro um no outro?
EVA (para João, resmungando) — Você é que é o culpado!
LÉO (tomando o chocolate) — Está bonito o dia?
JOÃO — Está muito bonito.
EVA — Mentira! Está ameaçando chuva!
JOÃO — Mentira! Ha um sol lindo.
EVA — Mentira! Vae chover.
LÉO — Vocês são incorriGÍveis! (afastando a bandeja) Levemisto.
EVA — Quem a leva sou eu!
JOÃO — Não senhora. Quem a leva sou eu.
EVA — Sou eu!
LÉO — Leve-a você, Eva!
EVA (triunfante) — Bem feito! (sai com a bandeja.)
LÉO — Dá-me o espelho.
JOÃO (dando-lhe o espelho) — Aqui está.
LÉO (mirando-se) — Estou com boa cara, hoje, João?
JOÃO — O senhor está sempre com uma cara excelente...
LÉO — Se as mulheres pensassem do mesmo modo...
JOÃO (apresentando a correspondência) — Há aqui algumas cartas perfumadas que
parecem confirmar a minha opinião...
LEO — Realmente, as mulheres gostam... do meu dinheiro.
JOÃO — Injustiça... O senhor é um homem perfeitamente digno do amor das mulheres.
Elegante, brilhante, finíssimo...
LÉO — Vamos parar com estes galanteios matinais. Eu não me faço ilusões, meu
amigo. Um homem só merece o amor das mulheres jovens quando é jovem... Quando
se chega à nossa idade, só se pode aspirar ao amor das velhas... É por isto que eu te
aconselhava a Eva...
JOÃO — Vá de retro!
LÉO — Leia a correspondência...
JOÃO — Começo pelas duas cartas perfumadas?
LÉO — É melhor? Cartas de mulher, mesmo mentirosas ou interesseiras, predispõem a
gente para um dia bom... Abra lá...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO (abrindo e lendo) — "Meu chuchu".


LÊO — É da Lizette. Continua.
JOÃO — "Meu chuchu" — cheguei bem a São Paulo.
LEO — Pudera! Levou-me 10 contos para pagar a passagem...
JOÃO (lendo) — Estou com saudades tuas.
LÉO — Mau sinal. Embarcou ha dois dias e já fala de saudades... Vai pedir dinheiro na
certa...
JOÃO (lendo) — "Estou muito triste e só...
LÉO — Só? Então o "gigolô" não foi?...
JOÃO (lendo) — "Embarco amanhã ou depois para Poços de Caldas e preciso"...
LÉO — Lá vem a "dentada"...
JOÃO (lendo) — "Que me mandes"...
LÉO — E agora!
JOÃO (lendo) — "... todos os jornais do Rio".
LÉO — Só?...
JOÃO — Amanhã escreverei de novo. Um beijo da tua Lizete. Em tempo.
LÉO — É agora...
JOÃO — Não te esqueças de mandar-me os cinco contos que me prometeste.
LÉO — Era fatal.
JOÃO — Ha outra, (lendo) "Meu Totó".
LÉO — É da Zizi...
JOÃO — "Totózinho da minha alma!
LÉO — Esta mulher é "pão"!
JOÃO (lendo) — "Porque não apareces"?
LÉO — Não apareço porque a última vez que fui vê-la surpreendi-a aos beijos com o
Chôfér... Passa adiante.
JOÃO — Ha aqui uma "dentada" também...
LÉO — Quanto?
JOÃO — Seis contos.
LÉO — Deus a favoreça!...
JOÃO — As mulheres de hoje são verdadeiros bancos emissores.
LÉO — E dão notas falsas como qualquer caixa de amortização que se prese... Notas
sentimentais é claro!...
JOÃO — Ha aqui uma carta curiosa. Um cavalheiro, como sabe que o sr. é rico,
escreve-lhe isto: "Meu caro e ilustre senhor. Eu sou pobre. O sr. é riquíssimo. Eu com
10 contos faço a minha felicidade. O sr. com 10 contos não faz nada. Poderá, pois, o
senhor dar-me esses dez contos, que não lhe farão falta e a mim tanto ajudarão?
LÉO — Acontece cada coisa nesta terra! (ri). Olhe, João: Se este cavalheiro aparecer
aqui para saber a resposta da carta, dize-lhe que eu não posso dar-lhe os dez contos,
mas que dez mil reis ele pode levar. É sempre um abatimento e uma maneira gentil
de atender ao pedido.
JOÃO — Muito bem. Que 10 contos não pode ser, mas 10 mil réis, com muito prazer...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

(ri)
LÉO (sempre com o espelho na mão, senta-se no sofá e mira-se) — Ó João...
Sinceramente... Eu ainda sou um homem prestável?
JOÃO — É mais! É um homem brilhante e um homem bom.
LÉO — És suspeito, João. Tu não és apenas o meu mordomo, e o meu "fac-totum", és
quase o meu irmão de criação...
JOÃO — Muito obrigado, senhor...
LÉO — Há 56 anos que vives perto de mim, sempre bom, sempre atento...
JOÃO — O menino exagera...
LÉO — E ainda chamas-me o "menino" como o fazias ha 30, ha 40 anos! Meu bom
João!
JOÃO — Hoje é dia da manicura, senhor...
LÉO (sobre saltando-se) — Bem o sei... (ternamente) Como é linda a Gi, hein?...
JOÃO — Realmente, senhor, a menina Gi é interessante.
LÉO (entusiasmando-se) — Interessante só, não! A Gi, é simplesmente, deliciosa,
encantadora...
JOÃO — Deve ser, sim senhor...

CENA II
OS MESMOS E ALDA

ALDA (entrando) — Bom dia, senhor.


LÉO — Entre. O que ha?
ALDA (dando uma carta) — Esta carta chegou agora mesmo. Suponho pela letra, que é
do senhor Raul.
LÉO (abrindo a carta) — Sim. É do meu filho, (lê rapidamente) — É. Está bem e
embarca breve de retorno ao Brasil...
JOÃO — Já vem de volta? De certo fez alguma das suas lá pela Europa. Partiu ha
apenas 3 meses.
ALDA — Dá licença que eu leia a carta, senhor Léo?
LÉO — Certamente. Ele fala em você aí...
ALDA (lê, a carta) — É. Fala...
LÉO (para João) — Dá-me o polidor e arruma a mesa. Gi não deve tardar...
JOÃO (para Alda) — O senhor Raul está bem de saúde?
ALDA (que acabou de ler) — Diz que sim.
LÉO (sorrindo). — Gosta você muito de ler as cartas do meu filho... Ele nunca escreveu
a você?
ALDA — Só um cartão postal da Madeira... Nada mais...
LÉO (malicioso) — Gostaria que ele escrevesse muito a você?
ALDA — Porque pergunta?
LÉO — Alda, minha filha. Sabe que aqui você não é, apenas, uma secretaria como as
outras: você é quase da família...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

ALDA — Tenho muito prazer em ser considerada como tal, senhor Leo.
LÉO — Vou fazer-lhe uma pergunta que é quase indiscreta: você ama o Raul, não?
ALDA — Ó senhor Leo!
LÉO — Diga... Diga... O João é da família... Eu sei que você gosta do meu filho...
ALDA — Quem sou eu?...
LÉO — Isto é frase feita. Você gosta ou não? Confessa... Fica entre nós...
ALDA — Não sei... isto é... não sei...
LÉO — Pois eu sei. Você gosta do Raul. E é pena...
ALDA — Pena porque?
LÉO (rindo) — Viu? Eu não dizia?... Caiu! ...
ALDA — O senhor é invencível...
LÉO — Disse que é pena, não por meu filho, mas por você. Raul infelizmente, não é o
homem que lhe serve, minha filha.
ALDA — E porque?
LÉO — Porque é um estroina ou melhor, porque é um mau estroina... Eu também fui
aloucado nos meus tempos de rapaz, mas nunca cheguei aos exageros do meu filho.
Às vezes, chego a temer por ele... Raul é muito mal educado e tem um caráter frágil
de mais...
ALDA — O senhor exagera...
LÉO — Infelizmente não exagero, Alda. O Raul já me tem dado vários e ainda me dará
muitos desgostos!...
ALDA — O Raul... O senhor Raul é bom...É preciso saber levá-lo.
LÉO — E você crê que o saberá? (ri)
ALDA — Ó, senhor Léo!
LÉO — Pois eu não creio... O Raul não merece o amor de uma menina boa e
interessante como você, Alda... Seu insuspeito, mas digo a verdade... Não achas,
João?
JOÃO — O senhor quase sempre tem razão...
LÉO — Alda, o meu filho... enfim...
ALDA — Senhor Léo. Ha dois avisos de banco e uns papeis para despachar.
LÉO — Irei mais tarde ao escritório. Você já passou à máquina as copias do contrato
das casas da Tijuca?...
ALDA — Quase todas. Hoje termino o serviço todo. Não precisa mais nada?
LÉO — Não, minha filha.
ALDA — Com licença, (sai)

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

CENA III
LÉO, JOÃO E EVA

EVA (entrando com um violino na mão) — Ó João! Você não tem outro lugar para por
a sua rabeca senão na minha caixa de roupa?
JOÃO — Pu-lo lá e está muito bem posto.
EVA — Pois fique sabendo que a primeira vez que encontrar esta porcaria, parto-a em
três pedaços.
LÉO — E então?
EVA — O menino... Não vê? Além de azucrinar os ouvidos da gente com as suas
musicas chorosas, este cavalheiro...
JOÃO — Já lhe disse que não quero que me chame — cavalheiro.
EVA (frisando) — Este cavalheiro ainda vai deixar esta rabequinha na minha caixa! ...
JOÃO — Mas, senhor Léo, é ou não é para desesperar uma mulher assim? (para Eva)
Você é uma víbora!
EVA — E você é um hipopótamo!...
JOÃO — O senhor ouviu? Hipopótamo, eu!...
LÉO — Basta! Deixa o violino e telefone ao barbeiro aí do lado para que venha aqui.
EVA — Sim senhor, (deixando o violino) — Eu deixo aqui porque o "menino" mandou,
mas se o apanho de novo... racho-o! ... (sai)
LÉO — Eu gosto tanto de ouvir-te tocar, João. Tu sabes que tocas bem? Principalmente
aquela Romanza Poloneza...
JOÃO — Bondade sua... Arranho... arranho...
LÉO (mirando-se de novo no espelho) — João... Mas, tu achas mesmo que eu ainda
estou bem conservado?
JOÃO — O "menino" está esplendido. Ninguém lhe dará mais de 45 anos.
LÉO (levanta-se e passeia) — Tu sabes, João... eu queria dizer-te umas coisas... Ouvir-
te responder a certas perguntas...
JOÃO — Estou às suas ordens...
LÉO — Pois bem. Estou com 56 anos e depois de viver muito, e gozar muito, de ter tido
muitos amigos e... amigas, cheguei à conclusão de que, depois da morte de minha
esposa, só me restam dois amigos verdadeiros — tu e a Eva... O meu filho, sabes, é
— como direi? — demasiado fútil e doudivanas... Não chega a ser amigo de
ninguém... Os outros são amigos de ocasião ... Estou num desses momentos em que a
gente precisa falar, fazer perguntas, pedir conselhos, (senta-se no sofá e João na
cadeira) Pensei, pensei e resolvi que tu, melhor que ninguém, podes ouvir-me e -
responder-me. És inteligente e és bom.
JOÃO — Agora, como sempre, estou às suas ordens.
LÉO — João, meu amigo, o que pensas do amor?
JOÃO — Do amor?... Agora, francamente, já não penso mais nada...
LÉO — Compreendo... mas insisto: o que pensas do amor?
JOÃO — O amor... (suspira) Eu já sofri tanto por causa dele...
LÉO — Mas achas bom ou achas mau?...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO — Nem bom, nem mau... Depende. O amor varia com as pessoas, com os
ambientes e com as idades...
LÉO — Com a idade sobretudo.
JOÃO — Confesso que não sou autoridade na matéria...
LÉO — Foste infeliz, bem sei, mas és um filósofo, meu amigo, da melhor das filosofias:
a filosofia da bondade. E do casamento, o que pensas tu?
JOÃO — O casamento é muito complicado. Eu não me casei... mas v« tanta coisa a
respeito...
LÉO — Pensa bem e responde: — achas que eu tenho direito ao amor?
JOÃO — Todos o tem. O amor é de todos e para todos. O senhor é como todos
LÉO — A resposta é vaga... Achas que eu posso ser amado ainda sinceramente?
JOÃO — Acho.
LÉO — Mesmo por uma mulher que podia ser minha filha?
JOÃO — Sim... Acho...
LÉO — E se eu te dissesse que pretendo casar, o que dirias?
JOÃO — Eu?...
LÉO — Responde francamente.
JOÃO — Eu o aconselharia a estudar bem a mulher com quem pretendesse casar...
LÉO — E se eu te dissesse que já a observo a quase um ano e que ela é a mais adorável
das mulheres?!...
JOÃO — Toda a mulher que a gente gosta é adorável...
LÉO — Mas ela, a que eu escolhi, é uma maravilha. Bonita, boa, inteligente, modesta,
bem educada.
JOÃO — Confio no seu critério...
LÉO — Mas, responde afinal: achas que eu devo, ou melhor, que eu posso casar?
JOÃO — Pelo senhor, sim. Pela mulher escolhida... depende.
EVA (reentrando) — O telefone do escritório chama o "menino".
JOÃO (levanta-se) — Vou atender, (sai)
LÉO — Eva, minha boa e velha amiga. O que pensas tu do casamento?
EVA — O pior possível! Casei duas vezes, enviuvei duas e ainda me arrependo até hoje
de não ter ficado a vida toda solteira.
LÉO — A tua opinião não é das melhores...
EVA — E falo com experiência...
LÉO — Sim. Mataste dois maridos... mas eu não pergunto por ti. Pergunto em geral: por
exemplo, se eu te dissesse que ia casar o que dirias?
EVA — Dizia que não vale a pena. O senhor é feliz. Depois que enviuvou tem vivido
sempre livre e alegre. Para que complicar a vida com uma mulher a mais e que será a
definitiva?...
LÉO (levanta-se) — Mas, achas que eu já não sirvo?
EVA — Serve e bem. Tenho medo é da escolhida... Os homens não prestam, mas as
mulheres de hoje ainda são piores! Em todo caso... Podemos estudar a questão...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

CENA IV
OS MESMOS, JOÃO e TOM

TOM (entrando com a maleta de barbeiro) — O senhor queira desculpar. Mas como o
Feitosa hoje não veio à loja, o patrão mandou-me aqui para servi-lo. (afetado) Eu,
toda a gente diz, sou o artista mais perito da cidade! Escanhoo sem suscetibilizar a
epiderme...
LÉO — Estou com a cara cortada...
TOM — Corto o cabelo à perfeição, perfumo, "massajo".
LÉO — "Massajo"?
TOM — Neologismos meus! "Massajo"... verbo "massajar"... Fazer massagens...
LÉO — "Massajar"? Verbo? Muito bem...
TOM — Trabalho com rapidez, elegância e assepsia.
LÉO — E depois?
TOM — Sou, enfim, um artista "raffinée".
JOÃO — Deixe-se de lorotas e arranje a navalha e o pincel, homem!
TOM (arranjando o estojo) — E até o meu nome é interessante e bizarro. Chamo-me
Tom. Tom Broadway. Não sou barbeiro: sou dermatólogo!
LÉO — Tom Broadway. É americano?...
TOM — Não senhor. Nasci em Niterói. Mas compreende, o nome é tudo. Se eu usasse o
meu verdadeiro nome não dava certo...
LÉO — Como se chama?
TOM — Pafuncio de Sousa.
LÉO — Realmente. Pafuncio de Sousa é banal. Não dá nada... (ri; toca a campainha
fora)
EVA — Parece que tocaram a campainha da porta. Vá verJoão.
JOÃO — Não vou. Vá você.
EVA — Pois vou, mesmo só para não olhá-lo por mais tempo, (sai)
TOM — A sua cútis, senhor Léo de Avelar, é predisposta a rupturas capilares?
LÉO — Como é?...
TOM — Pergunto se a sua cútis é suscetível de desagregações subcutâneas.
LÉO — Eu não faço a barba com este sujeito! João! Ponha esse individuo na rua!
JOÃO — Ponha-se lá fora!
TOM — Perdão. Mas, compreende que é sempre bom precisar as prováveis equimoses
sanguíneas da epiderme.
JOÃO — Rua! Vá ser as "equimoses sanguíneas" no raio que o parta!
LÉO — Que raridade! ...
JOÃO — Fantástico!
TOM (da porta) — Lamento profundamente este despautério e retiro-me consternado,
(sai)
LÉO — Ponha-se lá fora! Ora a minha vida!... Aparece cada um...
JOÃO (rindo) — Ele é engraçado...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

LÉO — Sim. Pode ser que seja um excelente cómico. Mas como barbeiro,
francamente, não lhe confio a minha cara! ...
JOÃO — Certamente...
LÉO (depois de pausa) — Sabes, João? Hoje vou jogar uma das cartadas mais sérias da
minha vida. E, não sei porque, eu, velho jogador, sinto-me nervoso e inquieto...
JOÃO — Eu quase que compreendo, senhor...
LÉO — Depois do que te disse não é preciso ser adivinho...
JOÃO — Deus queira que o senhor se saia bem...
EVA (entrando) — A manicura está aí!
LÉO (enervando-se) — A manicura! A GÍ? Espere, (vai ao espelho e endireita-se)
Pode entrar.
EVA — Sim senhor, (sai).

CENA V
JOÃO, LÉO e GI

GI(entrando) — Bom dia, senhor Avelar.


LÉO — Bom dia, senhorita GÍ. Como passou?...
JOÃO — Com licença, (sai)
GÍ — (arranjando o seu estojo sobre a mesinha) — Recebi, ontem, as suas flores,
senhor Léo Avelar. Eram lindas. Muito obrigada.
LÉO — Gostou?
GÍ — Gostei muitíssimo. Sou louca por violetas. E aquelas eram maravilhosas.
LÉO -— Hei de mandar-lhe violetas todos os dias senhorita Gí.
GÍ — Será demasiado incomodo para o senhor...
LÉO — Incomodo? Creia que será um grande prazer. É uma maneira de pensar mais
seguidamente na senhora...
GÍ(interrompendo) — Estou às suas ordens. Podemos começar quando quiser... (senta-
se)
LÉO — Perfeitamente, (há uma pausa) Está calor.
GÍ — Está.
LÉO (depois de pausa) — Que tempo inconstante e aborrecido ...
GÍ — Realmente.
LÉO — A senhora não acha?
GÍ — Acho.
LÉO Pois é.
GÍ — Podemos começar quando quiser.
LÉO (nervoso) — Perfeitamente, (pausa) Que calor, não? Está horrível.
GÍ — Sim.
LÉO — Como faz calor no Brasil, não é?
GÍ — É. (pausa).
LÉO (indo ao fundo). E. Parece que vae chover.

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

GÍ — Senhor Avelar... Estou às suas ordens.


LÉO — Perfeitamente, (pausa) Senhorita Gí... Eu...
GÍ — Que deseja?
LÉO — Eu... Está refrescando, não?
GI — Está.
LÉO — Senhorita Gí... Eu... quero dizer... A senhora quer casar comigo?...
GÍ — Casar com o senhor? Eu?...
LÉO — Sim. Falo seriamente. Ha muitos dias, ha vários meses, que procuro dizer-lhe
esta frase e a frase não me sai. Já deve ter reparado. A minha assiduidade não salão
onde a senhora trabalha, o meu ar tímido diante de si, o meu nervosismo quando lhe
falo, tudo já lhe deve ter dado a perceber os meus sentimentos a seu respeito...
GÍ — Não reparei, francamente, senhor Avelar. Na minha profissão ha tanta facilidade
de se ouvir um galanteio e de sentir um olhar insistente que eu já nem mais reparo na
atitude dos homens a meu respeito. Eu não vejo homens, vejo fregueses.
LÉO — Falei-lhe de tanta coisa. Disse-lhe frases galantes, fiz "blagues", fiz paradoxos.
A senhora ora ria, ora sorria, ora contestava. E pelas suas respostas cheias de graça e
espirito eu vi logo que tratava com uma mulher superior e admirável.
GÍ — Pobre de mim!...
LÉO — Voltei no outro dia. Voltei sempre. Eu, o vivedor, eu, o homem que amava a
todas as mulheres, senti cada dia crescer em mim um sentimento estranho, novo e
irresistível. Criei coragem e hoje, vencendo-me a mim mesmo, aqui estou a falar-lhe
deste modo.
GÍ — Como tudo isto é estranho...
LÉO — Já pensei muito, já pensei em tudo. Sei que sou velho, que posso ser seu pai.
Sei que ha de ser difícil, talvez até impossível que me ame. Sei tudo, compreendo
tudo, mas o que quer? Sinto uma força irresistível que me impele para você... para a
Senhora...
GÍ — Mas o senhor já mediu bem o alcance das suas palavras? O senhor já reparou na
distancia que nos separa?
LÉO — Preconceitos? Não os tenho...
GÍ — O senhor já pensou que é um milionário ilustre e que eu sou uma manicura?
LÉO — Tudo isto é ridículo diante do amor, do meu amor por você... r
GÍ — E o senhor já estudou, sobretudo, a verdade, a autenticidade desse amor que supõe
ter por mim?
LÉO (exaltando-se) — Tudo pôde falhar! Eu posso estar enganado em tudo, errado em
tudo. Mas, o que eu sinto por você, Gí, não é amor apenas, é fanatismo. É religião.
Édevoção. Eu não quero que você me ame, eu não quero que você me satisfaça, eu
não quero nada mais de você que a crença nas palavras que lhe digo!
GÍ — Mas é espantoso tudo isto.
LÉO — Mas, você, GÍ, tem alguma razão grave para não poder aceitá-la?
GÍ(depois de pausa) — Tenho.
LÉO — E qual é ela?
GÍ — O meu passado...
LÉO — Não me interessa. Aceito-a sem perguntas, sem condições. Eu amo a você tal

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

qual é agora. Ontem, você não existia. Ontem, você não existiu...
GÍ — O senhor fala-me com tão cristalina sinceridade que eu seria indigna de mim
mesma se não lhe dissesse — antes de dar-lhequalquer resposta definitiva — da
minha vida e do meu passado. (senta-se no sofá).
LÉO — Repito que a aceito sem condições, sem perguntas...
GÍ — Falarei ainda assim. Sou filha de um ex-senador com uma nobre dama
portuguesa. Nasci em berço de ouro. Fui educada cuidadosamente.
LÉO — Não me interessa o seu passado...
GÍ — Ha dois anos conheci um rapaz...
LÉO (pondo-lhe a mão na boca) — Não quero saber de nada. Fosse você, Gí, a mais
infeliz das mulheres e eu lhe daria o meu nome, com a mesma ternura, com que levo
ofereço agora, sem condições.
GÍ — Eu não devo responder assim, apressadamente, a sua proposta é tão honrosa para
mim... Mas é tão perigoza ao mesmo tempo... que eu não sei...
LÉO — Se não ha nenhum impedimento material — entende bem? — diga que sim sem
receio, porque a responsabilidade é toda e apenas minha!
GÍ — Mas...
LÉO —- Suponho que não posso ser mais claro, mais formal.
GÍ — Realmente... O senhor compreende, a sua proposta para mim é tentadora, e
brilhante. Casar com o senhor é voltar à minha vida antiga, é ser de novo alguém, é
gozar a vida com a elevada dignidade que eu aprendi a admirar no lar de meus pais...
LÉO — E então? Diga que sim, desasombradamente, e, eu, serei o mais feliz dos
homens. Diga que sim! (pega-lhe nas mãos) Sim?
GÍ — Pois bem. Em principio... Confesso que a proposta começa a tentar-me... Eu...
eu... não digo que... não!...
LÉO (depois de pausa) — Obrigado! (beija-lhe as mãos) Obrigado! ...
GÍ — Mas se o senhor errar, se o senhor tiver errado, propondo me esse casamento,
lembre-se sempre, lealmente, de que a responsabilidade de um tal passo é
exclusivamente sua!
LÉO (enlaçando-a) — Meu amor! Meu amor!...
JOÃO (entrando) — Dá licença?
LÉO — João, chame a Alda e a Eva.
GÍ — A vida é um sonho....
LÉO — O sonho é a vida!...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

CENA ÚLTIMA
OS MESMOS, ALDA E EVA

EVA (entrando seguida de João e Alda) — Não precisa gritar! Eu não sou surda!
LÉO — Meus amigos: tu, João, meu velho mordomo, meu bom amigo de 50 anos; tu,
minha boa Eva e você, Alda, vão ter agora uma enorme surpresa. Chamei-os aqui
para apresentar-lhes minha noiva, a mulher que será a dona desta casa, a vossa nova
amiga e senhora...
ALDA — Você, Gí?
GÍ — Estou tão surpresa quanto todos!...
ALDA — Meus parabéns...
JOÃO — Meus parabéns...
EVA (abraçando-se a Léo e chorando) — Então, o meu "menino" vae casar?
Coitadinho!... (chora forte).

PANO

FIM DO PRIMEIRO ATO

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

SEGUNDO ATO
(O mesmo cenário do 1.° ato)

CENA I
ALDA, JOÃO e EVA

ALDA — João, você já providenciou quanto às flores para o quarto?


JOÃO — Já, dona Alda. O quarto do menino está inundado de rosas vermelhas.
ALDA — Rosas vermelhas, só?
JOÃO — São as suas flores prediletas.
ALDA — E quanto ao almoço? Possivelmente virão alguns amigos do Raul almoçar
com ele.
JOÃO — Já pensei em tudo. O cozinheiro tem todas as instruções.
ALDA — Tu achas que o Raul virá mais gordo ou mais magro?
JOÃO — O senhor Raul não engorda nem emagrece... Ele varia muito é no caráter...
ALDA — Aqui todos são injustos com o Raul. Ele também não é tão mau assim.
EVA (entrando) — Foi você que quebrou o jarro de porcelana do salão?
JOÃO — Eu? Está louca!
EVA — Só podia ter sido você!
JOÃO — Ainda bem o dia não começou e você já vem implicar comigo. Isto é
promessa ou mania?
ALDA — Bem. Eu vou ao escritório telefonar para a companhia de vapores.
JOÃO — Eu já telefonei. Em todo o caso, a menina, como é mais interessada pôde ter
melhores informações.
ALDA — Até já. (sai)
EVA — Você precisa ter mais respeito pela menina Alda. Nada de graçolas sobre o
senhor Raul!
JOÃO — Não me aborreça! Vá arrumar a sala de jantar que está num alvoroço...
EVA — Não vou.

CENA II
JOÃO E EVA

EVA (mudando de tom) — Estão demorando.


JOÃO (com um jarro de flores na mão) — Eles n3o devem tardar. O trem chega às 9
horas.
EVA — Já deviam estar aqui. (outro tom) Ó palerma!... O que faz com este jarro!
JOÃO — Procuro um lugar para colocá-lo.
EVA — Aqui não chega mais nada. Todos os lugares onde poderia haver flores eu já os
aproveitei.
JOÃO — Este jarro tem de ficar aqui.

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

EVA — Não fica!


JOÃO — Fica!
EVA — Veremos se fica...
JOÃO (pondo o jarro sobre a mesa) — Pois fica aqui!
EVA (tirando o jarro e pondo-o no chão) Não fica!
JOÃO (recolocando o jarro) — Fica!
EVA (tirando o jarro) — Não fica!
JOÃO (recolocando o jarro) — Não seja implicante! O jarro vai ficar aqui.
EVA — Não fica porque eu não quero!
JOÃO — Fica porque eu quero!
EVA (agarrando o jarro) — Pois, não fica! (vai à porta e joga o jarro para fora) Não
fica porque quem manda aqui sou eu! Percebeu? (sorri sarcasticamente).
JOÃO — Víbora "butàntanica!"
EVA — Rinoceronte africano! (ri) Sim... mas o jarro não ficou...
JOÃO — Um dia corto-lhe a cabeça! (significativo) Se bem que a existência da tua
cabeça é muito problemática...
EVA (indignada) — Claro! Com você quem é que não "perde" a cabeça?
JOÃO — Um dia você m'as pagará todas!
EVA (mais calma) — Venha cá. (procura colocar outro jarro a um canto) Ajuda-me
aqui.
JOÃO — Agora não posso...
EVA — Não seja imprestável, homem!
JOÃO — Sabe do que mais? Eu não quero este jarro aqui!
EVA — Mas eu quero e acabou-se...
JOÃO (carregando o jarro) — Mas como quem manda aqui sou eu este jarrinho vae
fazer companhia ao outro, (ri) E então? (atira o jarro fora) Quem é que pode mais?
A víbora "butantânica" ou o "rinoceronte africano"? (ri) "Gozado", hein?
EVA (indignada) — Malcriadão! Malcriadão!
JOÃO — Serpentina... no sentido de serpente, hein? (ri) (noutro tom) O menino já devia
estar aqui...
EVA — Eu só quero ver a sua cara...
JOÃO — Como ele ficou alegre e remoçado com o casamento! Parece outro!
EVA — Hoje voltam da lua de mel...
JOÃO — É pena... Eles casaram apenas ha vinte dias! E já são obrigados a voltar.
EVA — É por causa da chegada do "seu" Raul...
JOÃO — É verdade. O navio já deve ter atracado.
EVA — Ele também não deve tardar aqui.
JOÃO — Porque terá voltado tão depressa?
EVA — Seguramente fez novas traquinadas lá pela Europa. Esse "seu" Raul!
CENA III
OS MESMOS E ALDA

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

ALDA (entrando) — Então como vae essa arrumação?


JOÃO — Se a Eva não estivesse atrapalhando, já estaria pronta!
EVA (para João) — Você telefonou para a agência de vapores?
ALDA — Telefonei eu, mas está em comunicação.
JOÃO — O senhor Raul deve estar desembarcando...
EVA — Mentira! O navio só atraca ao meio dia.
JOÃO — Mentirosa é você! O navio atraca às 9 e meia.
EVA — Não atraca!
JOÃO — Atraca!
EVA — Não atraca!
JOÃO — Eu é que me "atraco" com você, daqui ha pouco!
ALDA — Fiquem quietos! De qualquer maneira esperaremosaqui.
JOÃO — Então, a menina Alda está contente com a chegada do senhor Raul?
ALDA — Contentíssima! Quero a Raul como a um irmão...
JOÃO (malicioso) — Só como irmão?
ALDA (risonha) — Quem sabe!...
EVA — Sim, sim... Não é preciso mais pôr na carta...
JOÃO — Palpiteira! Ninguém pediu a sua opinião...
EVA — Mas eu quis dá-la...
ALDA — Outra vez?
JOÃO — A culpa é desse terremoto!
EVA — Se eu sou terremoto você é o diluvio universal...
ALDA — O Raul quase não demorou na Europa.
JOÃO — O sr. Raul não demora em parte alguma. Ele tem alma de borboleta.
ALDA — Realmente. Como é volúvel!
JOÃO — Este é o seu maior defeito...
ALDA — Defeito que eu tanto temo.
EVA — Ele será assim até o dia em que gostar de alguém, de verdade.
ALDA — E chegar á esse dia?
JOÃO — Quem sabe!
EVA — Não desanime, d. Alda: agua mole em pedra dura...
JOÀO (rindo) — Tanto fura até que dá!
ALDA —- Eu temo também pelo sr. Avelar...
JOÃO — Porque?
ALDA — Na hipótese pouco provável de vir o Raul a querer-me, não acham vocês que
o sr. Avelar se oporá ao nosso casamento?
EVA — E porque?
ALDA — Quem sou eu, pobre de mim!
JOÃO — A menina é injusta. O senhor Avelar quer-lhe tanto bem como a uma filha
verdadeira.
EVA — De certo.

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO (para Eva, rindo) — Ora até que enfim, concordamos! (ouve-se a buzina de um
automóvel) (indo à porta) O menino e a senhora!

CENA IV
OS MESMOS, LÉO e GÍ

LÉO (entrando de roupa clara, ar feliz e risonho) — Bom dia meus amigos! (abraça a
todos)
GÍ(tailleur de viagem, ar de alegria sincera) — Bom dia meus amigos! (abraça a
todos).
EVA — Então o menino fez boa viagem? E a senhora?
GÍ — Excelente! Dormi a noite toda. Nem o ruído nem a trepidação do trem
despertaram-me.
LÉO — Eu não dormi... (com encantamento) Mas vim contente por ver Gí a ressonar
tranquilamente, sorrindo como uma criança...
JOÃO — A senhora teve bons sonhos?
GÍ(olhando significativamente, para Léo) — Desde que nos casamos... vivo sonhando.
ALDA — Gostou de São Paulo?
GÍ — Maravilhosa cidade! Terra gigantesca e admirável! São Paulo não é um Estado
apenas... É um país dentro de uma nação gigante!
LÉO (entusiasmado) — Realmente! Há quatro anos que eu não ia a São Paulo e volto
deslumbrado. É uma terra formidável e a sua gente entusiasma e orgulha os
brasileiros! Viajamos muito, de automóvel, pelas suas estradas excelentes e, de
cidade em cidade, de vila em vila, de fazenda em fazenda, nós sentimos sempre o
surto palpitante de um progresso estupendo! Terra rica! Linda terra! Eu sou carioca
da gema mas sou paulista-amador! São Paulo é a vaidade mais bonita do meu
coração de brasileiro!
ALDA (rindo) — Meu Deus! Voltam paulistas até a medula!
LÉO — Todo o brasileiro que for a São Paulo voltará mais orgulhoso ainda do seu
Brasil querido!
EVA — Querem dizer, então, que a lua de mel corre às maravilhas?
LÉO (pegando na mão de GÍ) — Minha encantadora mulherzinha!
GÍ — Não me vais fazer agora uma declaração de amor hein? (ri)
LÉO — És a mais doce e a mais adorável das mulheres!
EVA — A senhora não quer arranjar-se?
GÍ — Sim. Vou ao meu quarto, (sai com Eva e Alda)
LÉO — Sou o mais venturoso dos mortais meu bom João! A vida é bela, a vida é
admirável! Milagrosa a força do amor! Eu me sinto feliz e renovado como se tivesse
vinte anos!
JOÃO — Ainda bem...
LÉO — E Gí! Não me enganei. Gí é o próprio amor feito mulher! Dócil, carinhosa,
encantadora! Sou feliz, meu João, sou feliz!
JOÃO — Que Deus os abençoe...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

LÉO — Só me arrependo de não ter tido, antes, a coragem necessária para dar tal
passo... Perdi muito tempo de felicidade...
JOÃO — Não importa. Agora contará o tempo dobrado...(ri)
EVA (entrando) — João! (enérgica) Você sempre desastroso!
JOÃO — Ó! meu Deus! Soprava uma brisa amena... Veio o tufão e escangalhou tudo...
EVA (indignada) — Imagine o menino que este palerma misturou o pó de arroz lilás da
patroa com o pó branco. Resultado: estragou tudo!
JOÃO — Não fui eu. Foi você mesma!
EVA — Minha Nossa Senhora da Penha! Você não tem vergonha de mentir assim?
JOÃO — Não fui eu, já disse!
EVA — Eu vi você misturar os dois pós!
JOÃO — Sacrílega! Está levantando falso testemunho!
LÉO — Bem. Chega! Não vale a pena brigar por tão pouco. (ri) Vocês até parecem
casados! Brigam tanto, brigam sempre!
JOÃO — A culpa é dela!
EVA — A culpa é dele!
LÉO — E o Raul? Tens noticias do navio?
JOÃO — Sim. Deve estar atracando aos cães.
EVA — Mentira! O navio só atraca ao meio dia...
JOÃO (para Eva) — Você é a própria teimosia!
ALDA (entrando) — Telefonei para a agencia. O navio já atracou.
JOÃO (dando uma gargalhadinha "gozada", para Eva) — Vossa Excelência ouviu ou o
seu tímpano auditivo está "enguiçado"?
EVA (saindo zangadíssima) — Idiota (sai).
ALDA — O Raul não deve tardar.
LÉO — Como estás alegre, Alda! Você gosta muito do Raul, não?
ALDA — Para que dissimular?
JOÃO (significativo) — O senhor Raul tem muita sorte...
LÉO — Realmente. Interessar a uma menina boa e bonita como a Alda...
JOÃO — Se o navio já atracou, ele deve estar a chegar.
LÉO — Avise-me quando chegar meu filho. Vou lá dentro, (sai).
JOÃO — Como ele está bem disposto!
ALDA — É o amor!
JOÃO — É o amor... (buzina fora) ,
ALDA (indo à porta) — Chegou um automóvel!
CENA V
OS MESMOS E RAUL

RAUL (entrando) — Olá João! Olá Alda!


ALDA (abraçando-o) — Como estás Raul? Boa viagem?
RAUL — Banal como todas as viagens...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO — Porque não ficou mais tempo, como pretendia?


RAUL — Estava nostálgico. A Europa não vale mais nada. Tudo velho, tudo igual, tudo
muito "pau"...
ALDA — Fizeste bem em voltar. Todos estávamos aqui saudosos de ti. Vou avisar teu
pai. (sai)
JOÃO — O senhor Raul voltou apenas porque a Europa estava "pau" mesmo?
RAUL — Não... Vim atrás de uma mulher do outro mundo!
JOÃO (rindo) — Sim, do velho mundo...
RAUL — É uma russa do "barulho"...
JOÃO — Eu logo vi. O senhor em assuntos de mulher é um caso perdido...
RAUL — Não brinque. Este caso agora já dura "à bessa"! Estou com a russa ha quase
dois meses!
JOÃO (artificial) — Meus Deus! Que eternidade!

CENA VI

LÉO (entrando, indo a Raul sem grande efusão) — Como estás Raul?
RAUL (também seco) — Bem. E o senhor?
LÉO — Ótimo!
RAUL — Recebi o seu telegrama comunicando-me que casava. Meus parabéns.
LÉO — Casei-me e sou felicíssimo!
RAUL — E quem é a eleita?
LÉO — Ela já vem aí. (noutro tom) — Porque voltaste tão depressa?
RAUL (cínico) — "Comidas"...
LÉO — Quando tomarás juízo?
RAUL (intencional) — Cada um é desajuizado à sua maneira ...
LÉO — És um caso perdido meu filho...
RAUL — Ora bolas! A vida é boa e só os "trouxas" não sabem gozá-la.
LÉO — Exageras um pouco na maneira de encarar a vida...

CENA VII
OS MESMOS, GI E ALDA

JOÃO (à porta) — A senhora vem aí.


LÉO (para Raul) — Vais conhecer minha mulher, (indo à porta) Ei-la.
GI (entrando e vendo Raul) — Você? (recua).
RAUL (surpreso) — Você? LÉO — Já se conhecem?
GI (perturbadíssima) — Sim... Quero dizer... Sim... Lá do Salão... O Raul... O senhor
Raul... era... meu freguês...
RAUL (perturbado) — Sim... Eu fazia os unhas com a GÍ...
LÉO — Pois melhor ainda. Esta é a minha esposa muito amada, (sorri)É a maia linda e
jovem madrasta.
RAUL (dominando-se e beijando a mão de GÍ) — Tenho muito prazer...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

GÍ(retirando a mão com mau estar visível) — Eu também...


LÉO — Raul, quero que tu e a Gí sejam bons amigos, hein?
RAUL — Certamente. Eu e Dona GÍ já somos antigos camaradas ...
LÉO — Ainda bem.
GÍ(perturbada) — O senhor Raul...
LÉO — Não digas "senhor": diga, simplesmente, Raul.
RAUL — Certamente. Eu sou seu enteado...
GÍ — De fato...
LÉO — Já abraçaste à Alda, Raul?
RAUL —Sim. Logo à chegada. t
LÉO — Ela se interessa tanto por ti...
RAUL — É natural. A Alda é minha amiga de infância.
ALDA (entrando) — Estamos em conselho de família? (ri).
LÉO — Então, Alda? Estás contente agora? O Raul já chegou...(ri).
ALDA — Vamos deixar de brincadeiras... O Raul pode pensar que é verdade...
LÉO — Verdade o que? Não te denuncies... (ri) Bem: vou passar um pente no cabelo.
Até já (sai).
ALDA — Vou ao escritório (deita um olhar meigo a Raul e sai).
JOÃO (rindo) — Que olhar, meu Deus! Eu não sei como o senhor Raul resiste... Com
licença, (sai).
(Há uma pausa. GÍ senta-se, perturbada, enquanto Raul passeia preocupado).
RAUL — É extraordinário tudo isso!
GÍ(procurando dissimular) — Tudo isso, o quê?
RAUL — Eu esperava que a nova esposa de meu pai fosse todo o mundo... menos tu!
GÍ — Cuidado. Podem ouvir-nos.
RAUL — (olhando para os lados) — Mas, conta-me como tudo isso aconteceu?
GÍ — Fatalidade!...
RAUL — Tu conhecias meu pai ao tempo do nosso...
GÍ — Cuidado...
RAUL (atento) — Do nosso... romance?
GÍ — Não.
RAUL — E então?
GÍ — Eu mesma não sei bem como isto foi. Teu pai, um dia, apareceu no meu "Salão".
Fiz-lhe as unhas. Há um mês chamou-me aqui. Falou, apaixonadamente, em casar-se
comigo. Quis confessar-lhe o nosso passado... Não o consentiu. Entrei, pois, naquela
manhã como pobre manicura e sai noiva.., e futura "Madame" Léo de Avelar...
RAUL — E não sabias que ele era meu pai?
GÍ — Como poderia eu adivinhar? Teu pai chama-se Léo de Avelar. Tu, Raul
Sarmento... Nunca poderia atinar que tu fosses o filho do homem com quem casei...
RAUL — Realmente. Eu uso apenas o nome de minha mãe, apesar de chamar-me,
legalmente; Raul Sarmento de Avelar... (há uma pausa).
GÍ — Vês como a essa foi?

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

RAUL — Mas tu, Gí, pensaste ainda em mim quando aceitaste o casamento?
GÍ — Se pensei!... Apesar de toda a tua maldade, de toda a má ingratidão, de todas as
tuas infâmias...
RAUL — Exageras...
GÍ — Eu pensei muito em ti, Raul, antes de casar-me...
RAUL — E depois?
GÍ — Depois não. Teu pai é um homem admirável!
RAUL (chegando-se) — Gí... eu não sou assim tão culpado.
GÍ — Tens todas as culpas da minha queda e da minha tragédia. Tu te portaste,
infamemente, comigo.
RAUL (chegando-se mais) — Eu estava disposto a casar-me contigo, a reparar todo o
mal que te havia feito... Foi tudo obra da fatalidade!...
GÍ — Sim, da fatalidade... Desculpa cômoda e cínica.
RAUL — É melhor não lembrarmos o passado.
GÍ — Não! É preciso que eu o relembre agora mais que nunca!
RAUL (observando as portas) — Cuidado! Fala baixo... Não te exaltes... Foi tudo obra
de um mau destino...
GÍ(exaltada) — Como queres que não me exalte se só agora, passados dois anos, eu te
revejo e encontro nestas condições! ? Agora que tudo passou, que tudo acabou, eu
quero dizer-te apenas uma frase que me queima os lábios, desde aquela época: — És
um canalha!...
RAUL — (cínico) — Exageras as coisas... (pausa sorrindo) — Sabes que ficas linda,
assim zangada?
GÍ — Terminemos! E, agora que tudo mudou, peço-te que não olhes mais para mim se
não como a tua madrasta que procurará ser o mais cordial e gentil possível com o seu
enteado... Apenas...
RAUL — Há de ser difícil...
GÍ — Porque?
RAUL — Porque, quer creias, quer não creias, eu ainda te amo, Gí. (avança).
GÍ(recuando) — Hipócrita!
RAUL — Amo-te agora mais do que nunca!...
CENA IX
OS MESMOS, ALDA E JOÃO

JOÃO (entrando) — Dona Gí: coloquei o sofá onde a senhora mandou.


GÍ — Vamos lá ver esse tal sofá...
JOÃO — No salão da frente.
GÍ — Vamos vê-lo. (sai com João).
ALDA (entrando) — Onde está o senhor Léo?
RAUL — Meu pai foi pentear o cabelo, (noutro tom). Então, como vai a tua vida?
ALDA — Tudo aqui vai na mesma. A única coisa extraordinária foi o casamento de teu
pai.
RAUL — Aqui para nós: tu não achas que foi ridículo para o meu pai este casamento?
ALDA — Ridículo? Por que?

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

RAUL — Certamente. Em primeiro lugar pela diferença de idades. Meu pai podia ser
quase avô de Gí.
ALDA — O amor não olha idades...
RAUL — Talvez... mas hás de convir comigo que foi um casamento desproporcionado,
desigual. Meu pai é um homem ilustre, um grande nome, um milionário. Gí, afinal de
contas, não passa de uma manicura...
ALDA — Há manicuras que valem rainhas! (amargada) Tenho muita pena que tu
penses assim, Raul...
RAUL — Eu... não penso nada. Mas os outros, quase todos pensam assim...
ALDA (tristemente) — Achas, então, que uma mulher porque não nasceu em berço de
ouro, porque tem na vida social uma posição menos brilhante, apesar de honesta, de
inteligente, de bem educada, não pode aspirar a um homem ilustre?
RAUL — Há convenções e preconceitos que devem ser respeitados... A sociedade está
orgulhosa assim. Assim deve ser...
ALDA — Como me fazem mal as tuas palavras! (chora).
RAUL — Choras? Por que?
ALDA — Não reparaste ainda que eu sou como a Gí, que eu sou, talvez, menos que a
Gí?
RAUL — Bem... Mas tu és diferente. Eu não pensava em ti quando falava. E depois,
suponho que tu não projetas casar com um homem rico e velho, de elevada posição...
ALDA — As tuas palavras tiram-me todas as ilusões...
RAUL — Como assim?
ALDA — Mas Raul, tu ainda não percebeste nada a meu respeito?
RAUL — A teu respeito?
ALDA — Sim. Tu ainda não pensaste na possibilidade de eu amar alguém?
RAUL — Certamente. És uma mulher nova e bonita. Tens todo o direito ao amor.
ALDA — E não reparaste ainda? É melhor não prosseguir. Eu volto ao escritório, (vai
sair).
RAUL — (impedindo) — O que queres dizer, Alda? Mas... Agora começo a
compreender... Então... Tu... Ó! Queres dizer que...
ALDA (baixando a cabeça) — Deixe-me sair, por favor...
RAUL — Queres dizer que me amas?
ALDA — E ainda não p sabes?
RAUL — Não me diga! (noutro tom) Sabes que estás linda! E que és extremamente —
como direi? — provocante?
ALDA (enlevada) — Raul!
RAUL (beijando-a) — Alda.
. ALDA — Meu Deus! (desvencilha-se e sai a correr).
RAUL — Que "boia" louca! (ri).

CENA X
JOÃO, RAUL, LÉO E GÍ

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

LÉO (entrando) — A Eva levou-me um café intragável e sem açúcar.


JOÃO (entra seguindo Léo) — Eu bem lhe disse, senhor. Mas aquela "jararaca" não me
ouve nunca.
LÉO — Tenho umas voltas a dar.
GÍ(entrando) — Vais sair, meu maridinho?
LÉO — Sim.
JOÃO — Quer que chame o automóvel?
LÉO — Não. Vou apenas ver as obras ao lado.
GÍ — Voltas logo, não?
LÉO — Dentro de alguns minutos estarei aqui. Até já. (beija GÍ). Até já, Raul.
RAUL — Até já.
LÉO — Temos um bom almoço, João?
JOÃO — Comidas especiais... Como o senhor gosta. (ri).
LÉO — Muito bem. Até logo. (sai).
GÍ(depois de pausa) — Vou ao meu quarto, (vai sair).
RAUL — Preciso falar-lhe, dona GÍ.
GÍ — O que quer?
RAUL — As suas palavras de há pouco fizeram-me mal... fizeram-me bem...
GÍ — Já o proibi de falar-me neste tom.
RAUL — Não seja tão arisca,
GÍ. Pensa mesmo que eu acredito na sua regeneração?
GÍ — Eu não admito?...
RAUL — Você tem de admitir...
GI — Você é inconsciente.
RAUL — Como todos os amorosos... (acercando-se) Gí!
GÍ (afastando-se) — Deixe-me!
(João mostra-se à porta e acompanha, sem ser visto, a cena toda, ansiosamente).
RAUL — Eu não posso acreditar que você tenha esquecido o nosso amor... O nosso
romance...
GÍ — Peço-lhe que me deixe. Se não quer respeitar-me a mim, lembre-se, ao menos,
que estamos no lar de seu pai!
RAUL — Eu não quero saber nada! Sei apenas que a amo. (acerca-se) com loucura!
GÍ(querendo sair) — Você é um louco!
RAUL — Louco por você! (enlaçando-a à força). Louco por você! (GÍ debate-se
enquanto Raul forceja por beijá-la).
JOÃO (aparecendo francamente) — Senhor Raul!
RAUL (afastando-se de GÍ) — Ó... és tu João?
JOÃO (imponente e firme) — Sim. Sou eu. (ameaçador) E não sei onde estou...
RAUL — Ameaças-me, acaso?
JOÃO — E porque não?
RAUL (sarcástico) — Os criados não se devem meter nos assuntos dos patrões!

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO (enérgico) — Aqui não há criado nem patrão! Há apenas dois homens: um que
defende a honra do seu maior amigo! Outro que desrespeita e enxovalha o lar do seu
próprio pai!
GÍ (interpondo-se) — Obrigada, João! Eu mesma saberei defender-me.
JOÃO — Vou sair, senhora. Mas se precisar do meu auxílio, é só chamar (sai).
(Há uma pausa angustiosa e enervante).
GÍ — Vê o que você fez?
RAUL — Realmente...
GÍ — Isso não pode continuar assim...
RAUL — Perdoa-me, Gí. Estou cego de amor.
GÍ — Não insista!
RAUL — Farei por ser coerente e bom...
GÍ — É o único favor que eu lhe peço.
RAUL — Mas, então, já que tudo vai acabar, eu quero fazer-lhe um último pedido.
GÍ — E qual é ele?!
RAUL — Beija-me!
GÍ(recuando com dignidade) — Porque? Para que?
RAUL (enleiante) — Será o último... Será o melhor... Será
0 maior de todo o nosso romance...
GÍ — Insensato!
RAUL (avançando) — Gí! (agarra-a violentamente e beija-a na boca).

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

CENA ÚLTIMA
OS MESMOS, LÉO E DEPOIS JOÃO

LÉO (entra e surpreende o beijo de Raul em GÍ) — Ó!... (fica estático).(GÍ e Raul
separam-se, bruscamente e olham com ansiedade e temor para Léo. Há uma pausa
trágica. Léo sofre a tortura da desilusão e o desencanto amargo do seu sonho,
introspectivamente. Gí faz gesto de explicação e pretende ir a Léo. João entra e
compreende tudo).
GÍ(dolorosamente) — O teu filho... é o meu passado! (baixa a cabeça, esmagada pelo
peso da própria tragédia íntima).
LÉO (olha para GÍ, amargurado e fala como um eco) — Saia!... Saia, pelo amor de
Deus!... (GÍ sai cabisbaixa. Raul também sai. Léo abraçando-se a João e
desprezando, em avalanche, a caudal da sua tremenda mágoa!) João! João (chora
alucinadamente).

PANO RÁPIDO

FIM DO SEGUNDO ATO

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

TERCEIRO ATO
(O mesmo cenário do segundo ato)

CENA I
LÉO E JOÃO

LÉO (acabrunhado) — Sinceramente, meu bom João, eu nunca esperei que uma tal
coisa fosse possível de acontecer!...
JOÃO — Realmente... Mas é preciso ter coragem.
LÉO — A minha primeira impressão foi chocante. Quando eu entrei aqui e vi meu filho
abraçado a minha mulher, tive a sensação mais dolorosa. Sofri, nesses minutos, uma
vida inteira! E, ainda atordoado, pergunto a mim mesmo como tudo se encadeou
dessa maneira...
JOÃO — Realmente tudo isso é muito doloroso...
LÉO — Nunca podia esperar que o passado de minha esposa... fosse o meu filho!
JOÃO — Não desanime. Nem tudo está perdido.
LÉO — Tu crês que ainda há remédio?
JOÃO — Creio.
LÉO — Como?
JOÃO — É preciso apenas estudar uma fórmula...
LÉO — E qual será essa fórmula?
JOÃO — Antes do senhor eu surpreendi as palavras do senhor Raul à dona GÍ.
LÉO (interessado) — Tu ouviste alguma coisa?
JOÃO — Não ouvi apenas: assisti a cena toda.
LÉO (ansioso) — Conta-me, conta-me!
JOÃO — Eu ia entrando aqui. Ouvi uma altercação. Era o senhor Raul que dizia
coisas intencionais à dona Gí...
LÉO — Leviano!
JOÃO — Dona Gí reagiu. Quando me viram entrar, o sr. Raul recuou. Quis castigá-lo.
Dona GÍ interpôs-se. LÉO — E depois?
JOÃO — Voltei aqui há pouco. Compreendi tudo.
LÉO — E porque dizes que talvez haja uma solução para todo esse drama?
JOÃO — Eu ouvi as palavras de dona Gí. Dona Gí é infeliz, foi leviana no seu passado,
mas hoje, senhor Léo, parece-me que se tornou uma mulher digna do seu respeito.
LÉO (animando-se) — Dizes isto sinceramente? Não será um consolo?
JOÃO — Eu não diria nunca palavras de tal gravidade numa situação dessas...
LÉO — Mas então...
JOÃO — Todos foram culpados...
LÉO — Compreendo. Eu fui culpado porque não quis ouvir Gí quando ela desejou
falar-me do seu passado. Gí foi culpada... Não! A Gí não tem culpa de nada... Ela é
tão boa, tão gentil... Mas... Esse Raul! (dolorosamente) E é meu filho! Que poderei
fazer, João? Que poderei fazer? (passeia agitado)

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO — Aja com serenidade, senhor Léo, e pense acima de tudo na felicidade! Eu o
aconselharia, antes de mais nada, a afastar o senhor Raul do Rio de Janeiro, do
Brasil, se possível...
LÉO (interessadamente) — Sim...
JOÃO — Seria ainda melhor que o senhor obrigasse seu filho a mudar de vida...
LÉO — Mas, como?
JOÃO — Eu lembraria ao senhor Léo que fizesse casar o senhor Raul...
LÉO — Casar? — Mas... e se ele se opuser?
JOÃO — O senhor Raul terá que obedecer. Ele depende inteiramente do senhor.
LEO — Muito bem! Eu imponho! Ou ele muda de vida, casa, e vai ser feliz longe daqui,
ou eu o abandono a sua sorte...
JOÃO — É uma solução...
LÉO (raciocinando) — Mas casá-lo com quem?
JOÃO — É a parte mais fácil do problema: dona Alda gosta dele com loucura!
LÉO — A Alda? (depois de curta indecisão) Mas não será uma maldade imensa
entregar uma moça encantadora como a Alda a um homem como meu filho?!...
JOÃO — O amor faz milagres... Quem sabe se o carinho, a bondade e o encanto de
dona Alda junto ao senhor Raul não o regenerarão?

CENA II
OS MESMOS E ALDA

ALDA (entrando) — Senhor Léo, há um papel urgente para o senhor assinar.


LÉO — Deixemos isso para depois...
ALDA — Mas...
LÉO — Preciso falar-te, minha filha, muito seriamente. Eu quero fazer-te uma consulta.
ALDA — Estou às suas ordens!
LÉO — Senta-te aqui e escuta, (noutro tom) Estás bem certa de que amas o Raul?
ALDA (confusa) — Ó, senhor Léo!...
JOÃO — Não ocultes nada, dona Alda. Trata-se da tua felicidade.
ALDA — Poderei negá-lo? O Raul é o sonho mais lindo da minha vida!
LÉO — Muito bem! E se eu te dissesse que teria um grande prazer em que tu e o Raul
se casassem?
ALDA (erguendo-se, atônita) — Casar? O Raul casar comigo?
LÉO — Sim. Esse é o meu desejo mais sincero. Aceiras?
ALDA — Mas... certamente.
LÉO — Antes, porém, de tornar definitivo esse meu desejo, devo avisar-te lealmente,
que meu filho é um homem perigoso, um caráter débil e sinuoso, um temperamento
volúvel e fútil...
ALDA — Raul não é mau. É preciso saber levá-lo...
LÉO — Entende bem, Alda: eu falo, agora, mais como teu grande e sincero amigo que
como pai de Raul... E digo-te mais ainda: eu te estimo mais a ti que ao meu próprio
filho, cuja conduta irregular, estouvada, desrespeitosa, cuja vida de dissipações e
estroinices de todo o gênero, só me tem dado desgosto e desilusões... Aceitas o Raul

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

apesar de todos os perigos a que te vai expor um tal casamento?


ALDA (conscientemente) — Aceito. O meu amor é tão forte e tão puro que fará de Raul
não apenas um homem regenerado, mas um homem feliz!
LÉO — Deus te ouça, minha filha! Queres dizer, então, que eu posso avisar o Raul...
ALDA (sobressaltada) — Mas... não foi o Raul quem o encarregou de falar-me?
LÉO (indeciso) — Sim... Quero dizer...
JOÃO (categórico) — Sim! Foi o senhor Raul!
ALDA (abraçando Léo) — Como sou feliz, senhor Léo, como sou feliz! (sai a correr).
LÉO (significativamente) — Encantadora menina! (noutro tom) Mas tu não achas, João,
que é demasiado egoísmo meu, forçar um casamento tão desigual?
JOÃO —. Deus sabe o que faz!
LÉO (decidido) — Chame o Raul. (João sai. Léo acende um cigarro, passeia
preocupado). Eu faço tudo isso pelo meu amor!

CENA III
JOÃO, LÉO E RAUL

JOÃO (entrando à frente de Raul) — O senhor Raul.


RAUL (entrando, ressabiado) — O senhor chamou?
LÉO (depois de pausa resolutiva) — Sabes que apesar de tudo eu não te chamei aqui
para castigar-te?
RAUL — Eu desejo pedir-lhe desculpas. Confesso que agi mal. Há, porém,
circunstâncias...
LÉO — Não desejo explicações. O meu juízo já está formado a teu respeito. Chamei-te
agora para regular a tua vida, a nossa situação... Em primeiro lugar, quero que saibas
da disposição em que estou de não consentir na tua permanência nesta casa nem mais
um dia.
RAUL (cínico) — Muito bem... E depois?
LÉO — Quero dar-te, apesar de tudo, a última oportunidade de saíres desta casa
airosamente.
JOÃO — Chamo a sua atenção, senhor Raul, para a bondade extrema de seu pai.
RAUL — Suponho que os criados não devem assistir nunca a conferências como esta e,
muito menos, opinar sobre elas...
JOÃO — Perfeitamente. Eu me retiro. (vai sair).
LÉO — Não. Tu, João, ficas, (pondo-lhe a mão no ombro) Tu és o único amigo
verdadeiro que eu tenho! O único, entendes? (para Raul) A minha proposta é esta:
deves casar-te o mais breve possível.
RAUL (surpreso) — Devo casar-me?
LÉO — Sim. E com a maior brevidade.
RAUL — E se eu não concordar?
LÉO (incisivo) — Abandono-te a tua sorte! Corto-te a mesada! Expulso-te!
RAUL — Mas isto é uma violência... uma infâmia!
LÉO — Infâmia foi o que tu fizeste e eu...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

RAUL — Mas, casar, por que?


LÉO — Porque eu quero! Porque eu exijo!
RAUL — O Senhor, meu pai, não conhece a minha vida intima...
LÉO — Queres, acaso, dizer-me que estás comprometido? Compromissos como os
teus... pagam-se a dinheiro!
RAUL — Mas eu não tenho nem vontade, nem vocação para casar... para viver a vida
inteira com uma mulher só...
LÉO — Justamente por isso. É preciso que a bondade de uma mulher e que a aconchego
de um lar, eduquem o teu caráter, transformem o teu temperamento. O casamento que
eu ordeno, agora, será a tua cura e tua redenção!...
RAUL — A maneira é fácil e amável de mascarar o seu egoísmo... Eu percebo tudo
muito claro: o Senhor quer que eu me case, que eu me afaste daqui por causa dela...
LÉO — Cala-te! Não permito que pronuncies, sequer, o seu nome!
RAUL — Pode ficar descansado... Eu não ficarei mais aqui... Mas casar-me também é
demasiado sacrifício...
LÉO — É a minha última palavra. Escolhe: ou te casas e partes, imediatamente, ou eu
olharei para ti como para um estranho. Não contarás mais comigo nem para pagar-te
os cigarros. Escolhe!
RAUL (cínico) — Que ridícula chantagem! Mas, não! Eu não aceito às suas condições
humilhantes. Partirei, irei trabalhar. Ganharei a minha vida...
LÉO (irônico) — A vida é tão difícil de ganhar para homens como tu...
RAUL — Partirei hoje mesmo! (sai arrebatadamente).
LÉO (desapontado depois de pausa, para João) E agora?
JOÃO — Esta foi a primeira escaramuça. Não desanime, (sai).

CENA IV
LÉO E GÍ

GÍ (entrando de chapéu à cabeça) — Léo...


LÉO (reparando) — Vais sair?
GÍ — Sim. Parto. Compreendo que devo partir desta casa... Não digas nada. Foi obra
terrível do destino. Lembra-te quando eu, naquela manhã, queria dizer-te tantas
coisas e que tu me tapaste a boca, carinhosamente? Eu tinha um pressentimento
desagradável. A chegada do teu filho Raul, — desse Raul que eu nunca podia supor
fosse teu filho! — veio precipitar os acontecimentos. Parto, meu amigo, para evitar
males maiores...
LÉO (depois de fitá-la significativamente) — Mas... então, ainda amas o Raul?
GÍ — Eu não posso amá-lo depois de tudo que ele me fez... depois de todo o mal que ele
continua a fazer-me...
LÉO — Mas...
GÍ — Podes ficar certo que eu parto magoada e triste e que levo de ti, desta casa, de
tudo, uma grande, dulcíssima saudade!
LÉO — Porque partes, então?

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

GÍ — Porque Raul é teu filho e eu não pretendo separar e tornar inimigos um pai e um
filho!
LÉO (eloquente) — Não! Tu não partirás! Tu és o meu amor e a minha vida! Fica. Fica.
e partilha comigo do meu lar; das minhas alegrias como dos meus penares. Fica.
Quando a gente chega a ter, amadurecido e sazonado, um amor, nada é mais infeliz
do que perdê-lo! E eu prefiro tudo a perder-te, minha querida! (pausa) Parece que
depois dessas palavras tu não tens mais o direito de partir.
GÍ (carinhosa) — Meu bom, meu admirável Léo!
LÉO (beijando-lhe a mão) — Dize-me que ficas, dize-me que não me abandonarás e eu
serei feliz como um deus!
GÍ — Pois bem: ficarei. E tá, meu amigo, podes contar que a tua mulher há de saber ser
digna de ti e do teu carinho! (sai olhando para Léo inundada de ternura)
LÉO — Ainda bem, meu Deus! Ainda bem! (acende um cigarro) Como o dia está
bonito! Que temperatura agradável! (passeia) Como a vida é bela! Como eu me sinto
bem disposto!

CENA V
JOÃO, DR. LUZ e LÉO

JOÃO (entrando) — Está aí o doutor Jorge Luz.


LÉO — Mande-o entrar.
JOÃO (indo à porta) — Tenha a bondade de entrar, doutor.
LUZ (entrando) — Tenho o prazer de cumprimentá-lo senhor Léo de Avelar.
LÉO — A que devo o prazer da sua visita, doutor Jorge Luz?
LUZ (olhando, significativamente, para João) — Eu desejava falar-lhe a sós...
LÉO — O João é como meu irmão. Pode falar francamente.
JOÃO (à parte) — Que mania tem toda a gente de mandar-me embora!
LUZ — Está bem. Como sabe, sou o advogado do banqueiro Morton. Venho aqui
cumprindo penosa missão. Trata-se de seu filho, o senhor Raul Sarmento de Avelar.
LÉO — De meu filho?
LUZ — Perfeitamente. O senhor seu filho, ha seis meses, levou ao banqueiro Morton
estas letras promissórias (mostra as letras) aceitas por ele e endosadas pelo senhor...
LÉO (estupefato) — Por mim?
LUZ — Sim senhor. Uma do valor de 60 e outra de 40 contos de réis.
LÉO (lendo as promissórias) — Mas estas assinaturas não são minhas!
LUZ — Também sei disso... O banqueiro Morton só agora, comparando a assinatura do
endosso com a sua, chegou à conclusão de que a sua firma fora falsificada nas
promissórias...
LÉO — É fantástico!
LUZ — Apenas, ha um detalhe importante: a assinatura do senhor é, realmente, falsa
mas, a do seu filho, não o é!
LÉO — Quer dizer que foi o meu próprio filho que a falsificou! 1
LUZ — Infelizmente, esta é a verdade. O Banqueiro Morton, atendendo à consideração

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

que o senhor nos merece, mandou-me aqui avisar-lhe que o assunto ficará entre nós
desde que as letras sejam pagas.
LÉO — E se eu não pagar?
LUZ — O banqueiro Morton ver-se-á na dura contigência de mandar prender o senhor
Raul Sarmento de Avelar como falsário.
LÉO (iluminando-se ante uma ideia feliz) — Mas... estas letras... (para João,
significativamente) — Podem servir-me de muito. Percebes, João?
JOÃO — Se percebo!...
LÉO — Muito bem, doutor Luz. O senhor terá a gentileza de passar para o escritório
enquanto eu falo a meu filho.
LUZ — Perfeitamente. Com licença, (sai)
LÉO — João: chame o Raul.
JOÃO — Sim senhor, (sai)

CENA VI

LÉO (dissimulado e irônico) — Meu caro filho: conhece, acaso, o banqueiro Morton?
RAUL — Como diz?
LÉO — Digo apenas que o senhor Raul Sarmento de Avelar falsificou a firma de seu
pai, Léo de Avelar, e que se não pagar as promissórias até amanhã, irá para a cadeia
como falsário que é!
RAUL — Está muito bem. O que quer que eu faça? Deseja que eu me suicide?
LÉO — Quer dizer... que sabes estar perdido...
RAUL — Não... Eu sei que Léo de Avelar é bastante vaidoso para não consentir na
prisão escandalosa do seu filho...
LÉO (irônico) — Sabe? Pois muito bem. O senhor meu filho vae cumprir o seu
destino...
RAUL — Faça o que quiser...
LÉO (enérgico) — Não por ti, mas pela minha própria tranquilidade futura, vou dar-te a
última oportunidade; escolhe: — Ou aceitas o casamento com a Alda, como te
propus ha pouco, ou não aceitas e eu te abandono à tua sorte.
RAUL (rancoroso) — A quanto chega o seu egoísmo de amoroso ridículo!
LÉO — Frases não resolvem nada agora... Responde: sim ou não?
RAUL (cínico) — Meu querido papá: o senhor fala com tanta ternura e eloquência que
eu não devo opor-me... Caso-me com a Alda ou até, com a velha Eva, quando
quiser...
LÉO — Perfeitamente. (Indo à porta) Dr. Jorge Luz!
CENA VII
OS MESMOS, JOÃO, ALDA e EVA

Dr. LUZ (entrando) — Estou às suas ordens.


LÉO — É favor comunicar ao banqueiro Morton que eu me responsabilizo pelo
pagamento das promissórias e que elas serão pagas dentro de quinze dias, justamente
na data em que o meu filho Raul e a Srta. Alda Barros assinarem o seu contrato
nupcial...

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

LUZ — Perfeitamente. Às suas ordens sr. Léo de Avelar, (sai)


RAUL — É só?
LÉO — Não. Vou chamar a Alda. Quero participar-lhe que tu tens imensa satisfação em
aceitá-la por esposa. (Toca a campainha),
JOÃO (entrando) — O sr. chamou?
LÉO — Chame a Alda.
JQÂO — Perfeitamente. (sai)
LÉO — Saiba dissimular. A Alda é uma menina encantadora. Tens tanta sorte que ela é
até capaz de transformar-te num homem de bem...
RAUL (cínico) — Esperemos...
ALDA (entrando seguida de João) — O sr. chamou?
LÉO (abraçando-a) — Sim, minha filha. Chamei-te para apresentar-te ao teu noivo!
ALDA (radiante) — Raul!
LÉO — O Raul sente-se feliz porque tu o aceitas para marido!
ALDA (indo a Raul) — Raul! como sou feliz! Tudo isto parece-me um sonho lindo!
RAUL (abraçando-a, cínico, para Léo) — Ela é bem "boa"!...
JOÃO (a Léo) — Parabéns sr. Léo, muitos parabéns.
EVA (entrando) — Ha aqui um ar de solenidade.
LÉO — Realmente. O Raul e a Alda casam-se nesses quinze dias mais próximos.
EVA — Não diga! Ainda bem. (a Raul) O sr. merece parabéns ... A menina Aída... Não
sei, não...
JOÃO (rindo) — Ela é estúpida, mas às vezes, diz coisas com jeito...
EVA — Mas como foi isso, afinal?
JOÃO — Não seja ingênua, mulher. Como é que podia ser? Ela gosta dele, ele gosta
dela... Vão casar e pronto!
EVA (irritada) — Eu não lhe perguntei nada, palerma!
JOÃO — Mas eu quis esclarecê-la, ó seráfica bobalhona!...
EVA — Cuidado meus filhos: O casamento é uma coisa muito complicada!
JOÃO (rindo) — Você só tem pensamentos profundos!

CENA II
OS MESMOS E GÍ

GÍ (entrando) — Eva! Eva (reparando em todos) O que há?


LÉO — Tenho o prazer de comunicar-te, minha Gí, que o Raul e a Alda vão casar-se.
GÍ — Casar-se?
LÉO — Sim... O Raul manifestou tão sincero desejo... que eu aprovei o casamento
imediatamente.
EVA — Não é verdade que será um lindo par?
JOÃO (rindo) — Isto é pura "chapa"...
LÉO — Muito bem. E agora que tudo está resolvido, satisfatoriamente, para todos,
podemos pensar no almoço.
EVA — Vou providenciar. (sai)

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

JOÃO — Sempre que ela toma providencias o feijão queima... (ri)


ALDA — Almoças conosco, Raul?
RAUL — Não posso. Tenho negócios a tratar. Até logo.
ALDA — Levo-te até o portão, (sai com Raul)
LÉO — Vês, Gí? Tudo se arranjou da melhor maneira.
GÍ — Ainda bem... (sai)
JOÃO — Eu não lhe dizia?
LÉO (abraçando João) — Meu bom João. Não sei se tenho vontade de rir ou de
chorar...
JOÃO — Ambas as coisas far-lhe-ão bem...
EVA (entrando) — Está quase tudo pronto.
JOÃO (rindo) — Bonito! Depois da bonança vem a tempestade!
EVA — Isto é comigo?
JOÃO — Em se falando em catástrofe só pode ser referente a você.
EVA — Grosseirão!
LÉO — Vamos... vamos! Eu, ha muito tempo, ando pensando numa coisa que talvez
seja interessante para vocês: qual é o teu maior desejo, João?
JOÃO — Primeiro, é viver sempre junto do senhor... e depois é ver-me livre da Eva!
EVA — Estúpido!
LÉO — E qual é o teu maior desejo, minha boa Eva?
EVA — É ficar sempre aqui com o senhor mas... sem ver o João... (faz uma careta a
João)
LÉO (ri) — É curioso! O meu projeto está de acordo com o desejo de vocês apenas com
uma pequena diferença...
JOÃO — E qual é essa diferença?
LÉO — É que vocês vivam aqui comigo para sempre... mas casados!
EVA — Casados?
JOÃO — Casados?
LÉO — Sim. Casados!
JOÃO — Deus me livre!
EVA (benzendo-se) — Cruz, credo!
LÉO — Não sejam hipócritas! Então vocês pensam que eu não percebi, de ha muito,
que esta má vontade permanente entre vocês é, nada mais nada menos que — amor?
EVA — O menino está enganado...
JOÃO — Enganadíssimo...
LÉO — O amor é original nos seus caprichos. Há os que amam, beijando... Há os que
amam, esbordoando... O amor de vocês vive da implicância...
JOÃO — Mas...
LÉO — Não... Vocês, como eu, já sabem que isto é verdade... Meus amigos, — não
vivem impunemente, 50 anos sob o mesmo teto, duas criaturas de sexos diferentes!...
EVA — Mas casar para que? Estamos velhos, no fim da vida...
LÉO — Vês como eu tinha razão? Tu mesma não achas absurda a ideia do casamento se

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

não pela idade tardia de ambos!... Mas tal coisa não tem importância. Vocês têm a
mesma idade — 60 anos! Estão fortes, sadios podem viver até os 100 anos... E
depois, meus amigos, é justamente na velhice que nós necessitamos de uma
companhia boa e desinteressada... Envelhecer sem amparo e sem amor, envelhecer
sem ligações e sem liames, envelhecer sem a ternura de uma voz amiga: é morrer
antes do tempo!
JOÃO — O senhor talvez tenha razão...
EVA — Quem sabe?
LÉO — Estão vendo? Havia dentro de vocês a chama e o desejo... Mas vocês não o
sabiam definir... Vamos, meus amigos, abracem-se, beijem-se e amem-se
sinceramente.
JOÃO (comovido) — Minha boa Eva!
EVA (choramingando) — Meu bom João!
LÉO (aproximando-os) — Vamos... Abracem-se de uma vez!
JOÃO (abraçando Eva) — Estou comovidíssimo!
LÉO — Vou ao meu quarto, (da porta, vendo João e Eva abraçados) — Lindo quadro!
Lindo quadro! Deixem lá falar... O amor ainda é a coisa mais interessante que existe
sobre a terra! (sai)
JOÃO — Tudo isso parece um sonho...
EVA — Eu sempre gostei de você, João.
JOÃO — Eu também... Mas você implicava tanto comigo.
EVA — Era você que implicava comigo...
JOÃO (rindo) — Éramos os dois que implicávamos um com o outro...
EVA — Eu gosto de você, desde o tempo do meu primeiro marido...
JOÃO — Não diga! Então porque casou com o segundo, se eu estava aqui?
EVA — Você era tão frio, tão arisco...
JOÃO — Pois o meu amor é mais antigo. Eu gosto de você desde o tempo em que você
era solteira. Lembra-se quando o Vovô Avelar nos mandava colher mangas no
pomar?
EVA — Se me lembro!
JOÃO — Pois bem... Um dia na chácara, eu tive uma louca vontade de beijá-la. Você
estava linda! Trazia um vestido vermelho e ria com lindos dentes!
EVA (tristemente) — Com os dentes que eu já não tenho...
JOÃO — Você carregava uma cesta. Passou por mim tão perto... Eu ia beijá-la na nuca.
Você voltou a cabeça... Afastei-me. Mas nunca mais esqueci do seu pescoço roliço...
EVA — Hoje tão cheio de rugas!
JOÃO — Depois... Você casou com o Antônio. Não casei nunca! Você enviuvou. Tive
uma nova esperança... Você casou de novo. Desiludi-me para sempre... (ouve-se um
violino fora) Lembra-se dessa musica que o senhor Léo está tocando?
EVA — Se me lembro! Era a musica predileta do Vovô Avelar...
JOÃO — Quanta coisa me faz recordar! Quanta coisa!
EVA — Um passado inteiro!
JOÃO — O passado inteiro!

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – O Coração não envelhece

EVA — Recordemos... Fechando os olhos...


JOÃO — Eva!
EVA — João! (beijam-se e saem enlaçados)

CENA ÚLTIMA
GI, LÉO, EVA E DEPOIS JOÃO

LÉO (entrando) — Já terminaram o idílio! Eu fui tocar violino para provocá-los! Não
ha como a musica para esses momentos!
GÍ (entrando) — Como te sentes meu maridinho?
LÉO — Admiravelmente, Parece até que volvi aos meus 20 anos!
GÍ — Falas sempre na tua velhice...
LÉO — É o meu maior tormento! Sentir-me tão velho e sentir-te tão nova!
GÍ — Tens a mocidade de um espírito cintilante! Ser velho não é ter 60 anos! Ser
velho... é descrer! Ser velho... é não saber sorrir.... Ser velho é desanimar! Juro-te que
eu nunca quis a um homem como te quero agora a ti!
LÉO (exaltado) — Repete, GÍ! Repete sempre!
GÍ — Amo-te, Léo, raciocinadamente!
LÉO — E os meus cabelos brancos?
GÍ (acarinhando-o) — Amo-te como se tu tivesses 20 anos!
JOÃO (entrando e observando, chamando Eva que entra também e observa) — Agora,
quem vai tocar violino, sou eu!
PANO

FIM

Paulo de Magalhães. O Coração não envelhece- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011

Você também pode gostar