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GETEB – Saudade

Depto de Letras, Artes e Cultura

SAUDADE
Paulo de Magalhães

**********************************

Comédia em 3 atos

PERSONAGENS (CREADORES)

EMA Adelina Abranches


VERA Aura Abranches
NÁIDA Leonor d'Eça
CRIADA Lidia Santos
ENIO A. Sacramento
OTO Luiz Felipe
IVO Otávio Brandão

Esta peça está traduzida:


— Para o espanhol, por Angel Curotto.
PRIMEIRO ATO
Paulo de Magalhães. Saudade- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – Saudade

(Sala de estar em casa rica. Quatro horas da tarde.)

CENA I
CRIADA E VERA

CRIADA (ao telefone) — Sim, senhor. Darei o seu recado. Como? Fique descansado.
Violetas, como? Cristalizadas? Muito bem. Violetas cristalizadas, vindas hoje
diretamente do Luxemburgo... Sim, senhor. Compreendi perfeitamente (Faz sinal de
impaciência) Uf! Sim, senhor. Não precisa repetir. Entendi muito bem. Não
esquecerei. Sim, do Luxemburgo. Sim, senhor. Está bem! (Desliga) Arre! Que
homem "páo"! Coitada da patroa...
VERA (Mulher de 40 anos faceiros... Veste bem, é bonita ainda e os cabelos grisalhos
que lhe enfeitam as têmporas dão-lhe certo ar de espiritualidade. Entrando) —
Quem telefonou?
CRIADA (significativa) — O doutor Enio...
VERA — Outra vez?
CRIADA — E pela terceira vez repetiu que virá hoje aqui trazer umas violetas
cristalizadas vindas diretamente do Luxemburgo. Recomendou que explicasse bem
claro à patroa que as violetas eram cristalizadas e que chegaram hoje do
Luxemburgo.
VERA — Estou ciente. (Noutro tom) Logo que dona Ema chegue, mande-a entrar para
aqui.
CRIADA — Sim, senhora, (sai. Telefone tilinta).
VERA (atendendo) — Alô. Sim. É ela mesma. O doutor Enio? (À parte) Que maçada!...
(Alto) Já sei, doutor... Já sei... Violetas cristalizadas... Sim. Vindas diretamente do
Luxemburgo. Muito bem. Pode trazê-las... Mas não telefone de novo, pelo amor de
Deus! Uf! (desliga).
CENA II VÉRA E EMA
EMA (velhota frescalhona. 53 anos ágeis) — Boa tarde, Vera.
VERA — Como estás, Ema?
EMA — Desculpa se não atendi logo ao teu chamado. Mas tive que assistir à reunião do
"Centro das Mulheres Fortes" e daí a demora...
VÉRA — "Centro das Mulheres Fortes"? Não conheço.
EMA — É uma organização moderna e maravilhosa.
VERA — E qual a sua finalidade?
EMA — Preparar as mulheres para a vida pratica, em geral, e, em particular, para o
casamento.
VÉRA — Por que processos?
EMA — O "Centro das Mulheres Fortes" prepara as suas filiadas para o matrimônio
usando de processos moderníssimos e de grande alcance. Por exemplo: na classe das
candidatas ao casamento ensinam-se apenas três disciplinas: Vocalização, box e
corrida a pé.
VÉRA — Vocalização, box e corrida a pé? Para preparo das mulheres casadoiras? Não
compreendo...
EMA — É muito lógico... São as três coisas mais úteis para uma mulher que se casa. No

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curso de vocalização a candidata à esposa aprende a fortalecer de tal modo as próprias


cordas vocais que, nas discussões domesticas, a sua voz dominará sempre pelo volume,
pela estridência e pela nitidez com que proferir os desaforos...
VÉRA (rindo) — É engenhosa a ideia...
EMA — O box é de utilidade evidente. A esposa que sabe box e que pôde aplicar um
bom "swing" nos queixos do marido, merece muito amor, consideração e maiores
cuidados...
VÉRA — Cuidados, principalmente... E a corrida a pé, para que serve?
EMA — É também imprescindível para uma esposa moderna, porque se, por acaso, o
marido não se atemorizar com os gritos vocalizados da esposa e for suficientemente
forte para resistir aos seus socos bem dados, resta o último remédio decisivo: a
corrida a pé!
VÉRA (rindo) — Você é engraçadíssima, minha amiga! (noutro tom) — Mas, você que
já casou duas vezes, que já enviuvou duas vezes, ainda tem pretensões...
EMA — Claro... Estou forte e, perfeitamente, prestável.
VÉRA — Não duvido, mas...
EMA — Já sei. Vais dizer que eu já fiz 53 anos e que uma mulher desta idade não deve
pensar mais em casamento...
VÉRA — Sinceramente, Ema, eu tenho a respeito do problema certas reservas que me
parecem ponderáveis...
EMA — As tuas reservas são improcedentes. Eu, por exemplo, que casei duas vezes,
que já enviuvei duas vezes, como disseste, continuo na melhor disposição de animo
em relação ao matrimonio.
VÉRA — Quer dizer que se aparecer alguém, ainda agora, que queira casar, você casa...
EMA — E porque não? É claro que eu não vou aceitar um rapazola que me chame de
"mamãe" e até de "vovó" quando se irritar comigo, mas um homem da minha idade
ou mais velho, que me proponha casamento e seja coisa que valha a pena, com muito
prazer aceitarei...
VÉRA — Aceitará, é claro, depois de terminar o curso de vocalização, box e corrida a
pé...
EMA — Mas, minha amiga, eu sou professora do curso e professora emérita.
VÉRA (depois de ligeira pausa durante a qual passeou refletindo) — Pois, Ema, eu
chamei você hoje aqui, justamente, para aconselhar-me...
EMA — Queres entrar para o "Centro das Mulheres Fortes"?
VÉRA — Não é bem isso...
EMA — Não é bem isso? Queres dizer, então, que é quase isso?
VÉRA — Sim. Você é a minha melhor amiga, a minha confidente de muitos anos, e eu
preciso que a sua experiência e a sua bondade digam-me algumas palavras sobre o
meu problema.
EMA — Já sei. Pensas em casar de novo.
VÉRA — Pelo menos recebi duas propostas em tal sentido.
EMA — Logo duas? Não... tu precisas entrar para o nosso Centro.
VÉRA — Tu conheces o dr. Enio Marques?
EMA — Se o conheço! É o cavalheiro mais cacete da America do Sul!
VÉRA — Porque da America do Sul?
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EMA — Porque eu já tive a pouca sorte de encontrá-lo mão apenas aqui no Brasil, mas
também na Argentina, Uruguai, Chile e Bolívia e ele, em todos esses legares quase
me enlouqueceu com as suas maçadas...
VÉRA — Pois o Dr. Enio é um dos candidatos.
EMA — O outro é melhor.
VÉRA — Como assim? Eu ainda não disse de quem se trata...
EMA — Não é preciso. Por pior que seja, ha de ser melhor que o dr. Enio...
VÉRA — O outro é...
EMA — Já sei: é o Oto Guimarães.
VÉRA — Como sabe?
EMA — Ora, Vera. Não te esqueças que eu sou "treinada"... Há muito tempo que eu
venho "matando" essa charada... O Oto bebe os ares por ti...
VÉRA — Realmente. É o Oto.
EMA — Em tens a coragem, para não dizer o desplante, de hesitar entre os dois? Minha
amiga — não pôde haver duas opiniões a respeito: o Oto é um candidato ótimo e o
dr. Enio... nem chega a poder ser candidato!
VÉRA — Mas o meu problema é mais complexo...
EMA — Complexo nada! Fazes um curso rápido: vocalização, box e corrida a pé.
Depois, casa-te.
VÉRA — Mas, Ema, eu tenho uma preocupação séria no caso.
EMA — Qual é?
VÉRA — Você sabe que eu tenho 40 anos feitos. E o Oto tem apenas 27 anos...
EMA — És uma criança...
EMA — Não compreendo.
VÉRA — E no entanto você, agora mesmo, dizia que se encontrasse um homem da sua
idade e não um rapazola...
EMA — Mas, Véra, eu tenho 53 anos! Tu tens apenas 40. Ha uma diferença de 13 anos.
VÉRA — Justamente a diferença que existe <entre a minha idade e a do Oto — 13
anos...
EMA — O teu caso não chega a ser um problema. É um preconceito sem base nenhuma.
Eu, no teu caso, casava com o Oto... Sim, porque não vais dizer-me que preferes o dr.
Enio apenas porque ele tem quase 80 anos... O dr. Enio não serve nem para mim,
minha amiga.
VÉRA — Eu não quero preferir ninguém. Ema.
EMA — E pretendes, então, continuar viúva, assim, em plena florescência da vida... Tu
és uma mulher perfeitamente amável, Véra, no sentido mais amoroso da palavra...
VÉRA — Você olha para mim com olhos amigos, Ema...
EMA — Não queira elogios à queima-roupa. Sabes muito bem que estás em ótima
forma... para o casamento.
VÉRA — Para o casamento, talvez... mas para o amor...
EMA — Para o amor? Mas, minha amiga, a frase feita é definitivamente verdadeira: o
coração não envelhece.
VERA — Mas aqui não se trata do meu coração... Trata-se do coração dos outros... O
amor vive de imprevistos caprichosos. E você tem de concordar que uma mulher na

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minha idade não pôde possuir os encantos caprichosos e imprevistos de uma moça de
20 anos...
EMA — E porque não? O amor não vive da frescura física, do viço juvenil das pessoas.
Vive das almas. E mulheres como m têm a alma ideal para o amor.
VÉRA — A tua teoria é consoladora para mim, para nós... Mas será praticamente
verdadeira?
EMA — É claro que eu não vou aqui definir o amor, nem pretendo estabelecer regras
fixas para os amorosos, mas...
VÉRA — Os amorosos são como os enfermos. Já se disse que não existem doenças:
existem doentes. Eu penso que não existe também, propriamente, amor, existem
amorosos...
EMA — Pôde ser. Mas não vejo em que tal opinião complique o teu problema.
VÉRA — Vais compreender o meu embaraço, para não dizei a minha ansiedade,
quando eu abrir o meu coração. O meu caso, em relação aos dois homens que
disputam a minha mão de esposa, começou quase como brincadeira...
EMA — Essas coisas começam sempre de brincadeira... Mas quando a gente vai ver, o
caso é sério, muito sério.,. Tenho muita prática....
VÉRA — Viúva ha 8 anos, eu, francamente, nunca pensei em tornar a casar. Vivia feliz
a minha vida, despreocupada, entregue a agradáveis cogitações, uma vez que a minha
renda facilitava sempre os meus desejos...
EMA — É. Mas o amor faz falta à gente... Falo com experiência própria. Digam lá o
que quiserem, mas a vida de uma mulher sem um homem... é um "buraco"!
VÉRA — O dr. Enio ha muito me fala de casamento, mas é claro, nunca tomei a sério
as suas propostas...
EMA — Uma proposta de casamento na boca daquele homem tem sabor de cajá-manga:
arrepia primeiro e depois... espeta a boca da gente.
VÉRA — Divertia-me com a devoção amorosa do dr. Enio quando conheci o Oto...
EMA — Agora é que a historia começa a ficar séria...
VÉRA -— "Flertamos" numa festa, depois num teatro, depois num cinema...
EMA — O cinema é que é o diabo para esses casos. O cinema é o maior alcoviteiro do
século. Santo Antonio em comparação ao cinema é fraquinho como um pinto. O
cinema é escuro. A escuridão convida ao crime... O cinema tem musica... A musica
derrete o coração mais duro... O cinema tem cada historia a desenvolver-se na tela,
com beijos asfixiantes e "chamadas" sentimentais, que são verdadeiras provocações...
VÉRA — Realmente foi num cinema que o romance começou a ficar complicado.
EMA — Eu não disse? Minha amiga: o meu segundo casamento foi arranjado
exclusivamente pelo cinema. A fita era da Greta Garbo... Não preciso dizer mais
nada...
VÉRA — Senti, confesso, uma grande atração por esse rapaz tão simpático, tão sincero,
tão galã moderno...
EMA — E depois?
VÉRA — Para experimentá-lo resisti, fiz-me desentendida, dei atenção aos galanteios
soporíferos do dr. Enio...
EMA — Que paciência!
VÉRA — Fiz tudo, enfim, para avaliar da sinceridade do interesse de Oto por mim...
Mas a brincadeira saiu-me cara...
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EMA — Estás apaixonada por ele...


VÉRA — Sim. Mais do que podes supor. Oto é o meu sonho mais lindo neste outono da
minha vida
EMA — Outono coisa nenhuma... Tu ainda tens muitas folhas verdes... na alma. Eu que
tenho mais treze anos, ainda não me julgo com folhas amarelas ou secas!
VÉRA — E agora, depois de alguns meses de um idílio requintado e espiritual, feito de
reticências...
EMA — Como eu gosto das reticências!...
VÉRA — O Oto pediu-me em casamento. A sua proposta, no primeiro momento,
tornou-me feliz como uma deusa... Mas, veio depois a reflexão...
EMA — A reflexão, no amor faz o papel da peninha da anedota: só serve para
atrapalhar...
VÉRA — E eu reparei, só então, que era uma mulher de 40 anos e que o Oto era um
rapaz de 27 anos. Eu, a árvore que começa a fenecer, ele, o arbusto viçoso que se
transforma em árvore...
EMA — A comparação é piegas e não prova nada no caso... Se queres a minha opinião
sincera e experimentada, não repares nos detalhes: casa! A gente não deve
desperdiçar, sob nenhum pretexto, os momentos de amor que a vida nos oferece...
Casa!
VÉRA — Mas ha outro empecilho, minha amiga. Mais sério, talvez, mais difícil de
remover.
EMA — E qual é?
VÉRA — Minha filha.
EMA — Tua filha?
VÉRA — Minha filha termina o seu curso em S. Paulo e deve chegar breve a esta casa.
EMA — Que idade tem ela agora?
VÉRA — Dezoito anos. E eu não sei como Nádia receberá a noticia de que eu pretendo
casar com um rapaz que quase poderia ser também meu filho.
EMA — Mãe aos 13 anos de idade, só no Sião... Não exageres as coisas, nem digas
tolices. A filha de 18 anos não tem nada com a vida da sua mãe que ainda se sente
moça e deseja casar de novo... seja lá com quem for. Não tenho filhos, mas se os
tivesse, nunca havia de cogitar no que eles poderiam pensar sobre os meus problemas
sentimentais.
VÉRA — Falas assim, justamente por não teres filhos...

CENA III
OS MESMOS E ENIO

ENIO (Velhote elegante, 80 anos. De barbicha bem cuidada, muito calvo, monóculo
entalado no olho, afetado e mesureiro. Traz uma caixa de bombons enrolada c
enfeitada. Para à porta sorridente) — Permitem-me?
EMA (para VÉRA) — Olha o... cajá-manga!
ENIO (avançando e beijando a mão de VÉRA) — Cheguei um pouco atrasado...
EMA — Não... o senhor nunca chega atrasado... (Para VÉRA) Que pena que ele não
morra logo, não é?
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ENIO — Aqui estão as violetas cristalizadas...


VÉRA — Sim, sim. Que vieram diretamente do Luxemburgo... Obrigada.
ENIO — São maravilhosas. Eu já estive no Luxemburgo. É um jardim. Flores por toda a
parte. Eu adoro o Luxemburgo.
EMA — Sim? Porque, então, não vai fixar residência lá... ou mais longe?
ENIO — Como?
EMA — Sim. Seria muito interessante: o senhor no Luxemburgo, e nós... aqui.
ENIO (suspirando) — Se uma certa dama que eu conheço...
VÉRA (para EMA) — Isto é comigo...
ENI — Ouvisse as minhas suplicas, talvez eu fosse viver no Luxemburgo. Devia ser
maravilhoso. Eu, ela, os jardins, as rosas...
EMA — Parece que a única coisa que estraga a paisagem neste quadro é a sua figura...
VÉRA — Não seja cruel.
ENIO (rindo) — Eu não me zango. Dona Ema vive a fazer "blagues" comigo... Eu até
acho muita graça...
EMA — Não diga!

CENA IV
OS MESMOS E IVO

IVO (Velhote ágil e bem vestido. Escandaloso e exuberante. Usa "pince-nez" de aros
modernos e bigodinho petulante. Á porta) — Ora viva a bela sociedade!
EMA (para VÉRA) — Só faltava este...
IVO (avançando e abraçando VÉRA) — Como está a minha formosa e encantadora
irmãzinha? Estava com saudades tuas.
VÉRA — Tu só apareces aqui por acaso, Ivo.
IVO — E a minha filha e admirável Ema, como vai? (Quer abraçá-la).
EMA (evitando o abraço) — Muito bem, sem os seus abraços...
IVO — Esta "cavalheira" é sempre muito "páo"!
EMA — Já lhe proibi dez vezes de chamar-me "cavalheira"...
IVO — Como eu tenho muito respeito às suas proibições, chamo-a sempre de
cavalheira...
VÉRA — Vamos, vamos... Deixem-se de rusgas... (Para ENIO) — Estes dois vivem
sempre assim, desde que se conhecem...
IVO — Diga melhor: desde que eu tive a pouca sorte de conhecer esta...
EMA — Se me chamar outra vez de "cavalheira"... (avança).
IVO — Esta amável dama... isto ha 60 anos, mais ou menos...
EMA — Eu tenho 53 anos e você sabe muito bem disto...
IVO — Que coisa curiosa...
EMA — Curiosa o que?
IVO — Não. Eu estou pensando na espantosa aritmética das mulheres. Eu nunca vi
fazer contas tão erradas como as mulheres, depois que passam dos 25 anos, é claro...
EMA — Quer insinuar...
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ENIO — Não. Eu não quero insinuar coisa alguma. Eu quero é fazer as contas
direitinho. Porque é que eu hei de ter 57 anos e você que é mais velha do que eu um
ano ha de ter apenas 53?
EMA — Você quer é irritar-me como sempre.
IVO — O senhor não acha, dr. Enio, que 57 com 1 dá 58?
ENIO — Perfeitamente.
IVO (chasqueando) — É, mas para a Ema, 57 com 1 dá 53... (ri). Só se for pela
fonética...
VÉRA — Acabemos com estas pilhérias sem graça. Ivo. A idade não tem nenhuma
importância na vida das pessoas inteligentes...
ENIO — Apoiadíssimo!
IVO — O senhor é suspeito para "dar palpites" neste assunto...
ENIO — Ora esta! Porque?
IVO — Porque, justamente, o senhor é o mais velho da roda...
ENIO — Perdão. Eu tenho 52 anos, mas, francamente, ninguém me dá mais de 41...
(passeia afetado).
IVO — Como foi que o senhor disse, dr. Enio? O senhor tem 52 anos?
ENIO — Sim, senhor.
IVO — E eu que pensava que só as mulheres erravam nas contas! Então o senhor tem
52 anos?
ENIO (com dignidade) — Cumpridos há quinze dias...
VÉRA — É uma falta de educação, Ivo, discutir as idades das pessoas.
IVO — Perdão. Falta de educação é fazer alguém pouco caso dos nossos conhecimentos
aritméticos...
ENIO — As suas graçolas são impertinentes, senhor Ivo...
IVO — Eu não faço graçolas, dr. Enio. Eu sou apenas um devoto da verdade numérica.
Vamos aos dados. Eu já li que o senhor foi voluntário da guerra do Paraguai, não?
ENIO (perturbado) — Não. Não é verdade... (Sorridente) E mesmo que o fosse, o
amigo deve compreender que o momento não é próprio para evocações históricas...
IVO — Não se trata da historia. Trata-se de números. Admitindo que o senhor tivesse
sido um herói menino prodígio, na guerra do Paraguai, e já no último ano da guerra,
ainda assim o senhor não poderia ter a idade que insinua... Parece...
ENI (rindo forçadamente) — O senhor Ivo é sempre muito espirituoso, não acham?
(Bate-lhe nas costas e ri mais forte) Eu acho! Muito espirituoso o senhor Ivo...
IVO — Meu amigo. Eu posso não ser espirituoso, mas faço contas com uma facilidade
de pasmar... (Para Vera) Ora, este veterano a querer ser mais moço do que eu!
VÉRA — Está bem. Fica decidido que tu és um grande matemático, mas mudemos de
assunto, que este, visivelmente, não agrada aqui...
IVO — Muito bem. Pois, então, chegou a hora de dar-te a boa nova, minha querida
irmãzinha. Como sabes, eu sempre vivi a boa vida. O dinheiro que o nosso pai nos
deixou, em partes iguais, foi sempre gasto em partes muito desiguais. Tu vivias da
renda, sem tocar no capital. Eu vivia do capital, sem poder tocar na renda, porque os
credores tomavam conta dela para pagarem-se dos juros das minhas dívidas. Como
vês, o processo era engenhoso e simples. Mas... aconteceu uma coisa esquisita
comigo agora. O meu dinheiro acabou. Curioso, não acham?

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VÉRA — Acabou?
IVO — Acabou. Ontem, o meu procurador avisou-me que eu só tinha uma solução
honesta para poder sair do hotel em que vivia; deixar todas as malas e haveres em
pagamento da conta do último mês.
VÉRA — Isso é brincadeira, Ivo!
IVO — Brincadeira foi o que o destino fez comigo, deixando-me assim sem um niquel...
Pensei, primeiro, em ir para a casa aqui da boa amiga Ema...
EMA (irritada) — Vá pra casa do diabo!
IVO — Mas como temi que na casa da minha querida amiga me faltassem com o devido
respeito...
EMA — Como? Quem ia desrespeitá-lo em minha casa.
IVO — Você, é claro... que vive a sonhar com um terceiro casamento.
VÉRA — Ivo, deixemos de pilhérias. Tu estás falando sério?
IVO — Tão sério que hoje já vou dormir aqui e com um pijama teu, porque, minha
irmã, em matéria de roupas, estou reduzido a este elegantíssimo "veston" (Para
ENIO, rindo) Boa bola, não, meu jovem veterano da guerra do Paraguai?
ENIO (rindo sem graça) — Muito engraçado...
IVO — Como sabes, minha querida irmãzinha, eu sou um hóspede agradável. Não sou
exigente nem implicante.
EMA — Você é o mais agradável dos hóspedes, quando se vai embora...
IVO — Obrigado, minha encantadora ferazinha... Mas, como ia dizendo, não sou
exigente. Desde que me arranjes um bom quarto, bem arejado, com água corrente,
banheiro ao lado, telefone e rádio, tapetes macios e bons "mapples"; desde que
providencies para que eu tenha todas as noites um pijama de seda limpo e todas as
manhãs camisas do mesmo tecido; ternos variados de cores claras; bom "whisky" e
vinhos finos; "paté de feiegras", caviar, pão de forma com geléia, creme de leite e
ovos com presunto, como pequeno almoço...
EVA — Cretino...
IVO — Muito amável... Charutos havana, cigarros ingleses, um automóvel, dois cavalos
para exercícios de equitação... e pouco mais. Como vês, Vera, não sou exigente.
Contento-me com pouco. Aliás, que remédio! — sou um pobre arruinado que apela
para a caridade fraterna...
VÉRA — Está bem, Ivo. Havemos de arranjar as coisas da melhor maneira...
EMA — E tu vais consentir que este... mandrião venha instalar-se aqui?
VÉRA — De certo. É meu irmão e a verdade é que sempre fomos bons amigos, não,
Ivo?
IVO — Não dês ouvidos a esta serpente. E você fique sabendo, Ema, que se a minha
irmã não me acolhesse, eu ia dormir em sua casa, entendeu?
EMA — Você pensa que a minha casa é albergue noturno?
IVO (para ENIO) — É muito simpática, não? Escute uma coisa, dr. Enio. Porque é que
o senhor não tem uma ideia genial?
ENIO — E qual seria?
IVO — Porque o senhor não se casa com a Ema? Seria um par admirável! (ri).
EMA — Que gracinha, meu Deus! (para VÉRA) Este teu irmão é a própria chalaça
rediviva... Idiota...

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VÉRA (para EMA) — Logo hoje é que eles se lembraram de vir aqui! O Oto não deve
tardar. E eu preciso falar com ele a sós...
EMA (para VÉRA) — Eu tenho uma maneira de facilitar as coisas... Vamos arranjar uns
aperitivos para esses dois, lá fora, na varanda.
VÉRA — Seguramente, vocês estão com sede. Vamos arranjar uns aperitivos para
vocês. Que "cock-taill" prefere, dr. Enio?
ENIO — Qualquer... que seja preparado pelas suas adoráveis mãozinhas!
IVO — "Cock-tail" para o dr. Enio? Eu dou a receita: misture um pouco de Urodonal...
ENIO (surpreso e indignado) — Urodonal?
IVO — Sim... é ótimo para acido úrico... (noutro tom) Depois ponha uma pequena dose
de Iodureto de sódio, bom para reumatismo...
ENIO — O senhor começa a ser impertinente...
IVO — Óleo de fígado de bacalhau e umas gotinhas de limão para dar bom gosto. (ri).
VÉRA — Vamos, Ema...
IVO (reparando na calva de ENIO e apontando-a) — E não se esqueça de pôr também
um pouco de Pilogênio... (ri).
VÉRA (rindo) — Vamos, Ema, que o Ivo não se emenda nunca... (sai com EMA).
(Ha pausa. ENIO passeia irritado, deitando olhares rancorosos para IVO que ri à
socapa).
IVO — Mas agora, fora de brincadeira, como vai esse seu reumatismozinho?
ENIO — Eu não sofro de reumatismo. Nunca sofri!
IVO — Não? Então dê-me uma prova da sua agilidade...
ENIO — Dou-lhe todas as provas que quiser...
IVO — Pois então faça uma coisa muito simples: sente e levante com rapidez, quatro
vezes seguidas nesta cadeira. (Aponta).
ENIO — Pois não. (Senta-se com relativa rapidez e ergue-se com alguma dificuldade)
Pronto.
IVO — Repita o gesto mais três vezes.
ENIO — Sim... (Senta-se com visível esforço e custa a levantar-se).
IVO — Outra vez!
ENIO (Senta-se penosamente) — Ai! (Põe as mãos nas cadeiras).
IVO — Levante-se rápido!
ENIO (Esforçando-se para erguer-se mas recaindo na cadeira) — Ui! Assim também é
demais!
IVO — Já vê que eu tive razão de perguntar pelo seu reumatismozinho...
ENIO — Compreende que também eu...
IVO — Compreendo perfeitamente e acho muito natural que um jovem veterano da
campanha do Paraguai sofra de reumatismo e outras dificuldades locomotoras.
ENIO — Meu amigo. Eu desejo fazer-lhe um pedido muito interessado.
IVO — Fale, dr. Enio.
ENIO — Tenho pelo senhor a mais sincera simpatia e é em nome dela que vou solicitar-
lhe um grande obsequio: não continue a fazer "blagues" com a minha idade e muito
principalmente em presença das damas... Compreende... eu ainda tenho as minhas
ilusões e sinto-me ainda prestável...
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IVO — Mas, meu caro amigo, eu nunca tive a intenção de ofendê-lo... Pilherio apenas
com o senhor como faço com a Ema a quem estimo sinceramente, aliás. É meu
modo de ser.
ENIO — Pois bem. Apelo para o seu cavalheirismo neste caso. Cesse as suas
brincadeiras a meu respeito e pôde contar com a minha sincera gratidão...
IVO — Não prometo integralmente cumprir um pacto formal de não-agressão. Mas, em
todo caso, prometo ser mais comedido...
ENIO — Muito obrigado, meu amigo! Muito obrigado!
IVO — É bom não agradecer muito...
ENIO — E agora que estamos de acordo, meu caro amigo, eu preciso fazer-lhe uma
revelação que explicará, mais claramente, o meu pedido. (Olha para os lados
misteriosamente). Estou loucamente apaixonado.
IVO — Como disse? Não ouvi bem...
ENIO — Estou amando, meu amigo... e amando com a maior elevação, para realizar o
sonho maior da minha vida que é o casamento. '
IVO — O senhor quer casar? Com que roupa?
ENIO — Não pilherie. Tenho firme propósito de casar-me. Depende apenas da
escolhida.
IVO — E quem é a vitima?
ENIO — Posso declarar-lhe o seu nome porque as minhas intenções são as mais nobres;
trata-se de sua irmã Vera.
IVO (surpreso) — Como? Coitada de minha irmã...
ENIO — Como?
IVO — Quero dizer... pois é... Mas, então, a vitima é a Vera? Ela já sabe disso?
ENIO — Já sabe. Há muito lho declarei.
IVO — E o que disse ela?
ENIO — Que eu desse tempo ao tempo.
IVO — Mais tempo ainda? Ela disse isto?
ENIO — Disse.
IVO — Por favor, ande para lá.
ENIO (obedecendo) — Pois não.
IVO (observando) — Ande para cá. (Pausa). Dê uma volta sobre si mesmo.
ENIO (que obedeceu) — O que ha? Porque faz este exame?
IVO — Eu quero ver até que ponto chega a loucura das mulheres...

CENA VI
OS MESMOS, EMA, VÉRA, DEPOIS OTO

VÉRA (entrando com EMA) — Os aperitivos estão servidos na varanda. Ema,


acompanha o dr. Enio e o Ivo.
EMA — Pois não. Passem, por favor.
VÉRA — Não abuses dos "cock-tails" nem das "blagues", hein, Ivo?...
IVO — Tu não vens?
VÉRA — Vou a seguir. Tenho de dar uma telefonema aqui.
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IVO — Más falas... Eu sozinho com a Ema, depois de dois aperitivos, sou capaz de
fazer uma loucura...
EMA — E levar uma boa surra a seguir...
VÉRA — Dr. Enio: tome conta destes dois. Não deixe que se engalfinhem... (ri) Eu não
demoro.
IVO (irônico) — Fizeste o "cock-tail" que eu recomendei para o dr. Enio? (ri) Eu acabei
de saber de coisas, minha irmã, verdadeiramente do outro mundo! Vamos. (Para
EMA) Passe, Cleópatra.
EMA — Pois não, Tartufo... (sai)
ENIO — Até já... não demore, dona Véra... Um "cock-tail" sem a senhora...
IVO (completando) — É um "cock-tail" sem álcool... (ri).
ENIO (saindo irritado) — Até já. (sai).
IVO — Eu nunca pensei que tu tivesses tanta coragem! (ri) Que estômago! (sai).
VÉRA (Vai ao telefone e disca rapidamente) — Alô. Sim. É a casa do dr. Oto
Guimarães? Ele não está? Obrigada. (Desliga) É estranho. (Fica indecisa; passeia,
pára à janela).
OTO (Entrando. Rapaz de 27 anos. Elegante, muito simpático, desembaraçado e
alegre). — Boa tarde.
VÉRA (voltando-se) — Ó! É você?
OTO — Não. Sou quase eu... Sim... porque quando eu não estou perto de você, não
estou completo: falta-me um órgão muito importante que fica localizado aqui em
baixo do bolsinho para o lenço... (sorri).
VÉRA — Galanteador...
OTO — Não lhe peço desculpas de chegar atrasado porque a culpa foi apenas sua.
VÉRA — Como assim?
OTO — Muito facilmente. Querendo chegar aqui bonito como um galã de cinema e
elegante como um "lord" inglês, perdi um tempo enorme no alfaiate e no barbeiro...
VÉRA — Sabe quem está aqui? A Ema.
OTO — Sim? Já sei que veio para ser consultada... A dona Ema é a pitonisa de você... E
o que disse o oráculo? Pode saber-se?
VÉRA — A Ema é demasiadamente minha amiga, para dar um parecer que me
desgostasse...
OTO — Quer dizer então...
VÉRA — Eu não quero dizer nada... (Faz uma pausa e afasta-se).
OTO — Sinto muito... mas você hoje fala de qualquer maneira... (rindo) Por bem ou por
mal... Ha seis meses que espero uma decisão... Não posso mais... Hoje termina o
prazo do meu "últimatum". (Indo a VÉRA) Diga: sim ou não?
VÉRA — A resposta é complicada...
OTO — Ainda bem... Eu adoro as complicações. Principalmente quando elas têm lugar
com você...
VÉRA — Oto. Vou ser sincera com você. Vou falar com tal cristalina serenidade que
você vai até pensar que eu estudei filosofia...
OTO — A filosofia das mulheres não é estudada: é intuitiva.
VÉRA — Realmente. Eu vou deixar falar por mim o próprio instinto. Começarei, com
uma lealdade talvez pouco feminina, por dizer que gosto sinceramente de você...
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OTO — Então não precisa dizer mais nada. Esta frase: "eu gosto de você", vale por todo
um compendio de filosofia sentimental. A coisa resume-se agora nisso que é
simplíssimo: "Você gosta de mim"? — "Eu gosto de você". Resultado: casamento,
lar, filhos, felicidade. (Avançando) Dá-me um beijo e pronto. Está tudo perfeito e
acabado...
VÉRA (sorridente) — Se tudo fosse assim tão fácil, talvez a vida não tivesse tantos
encantos e tantas amarguras...
OTO — Já começou a filosofar?
VÉRA — Que idade você tem?
OTO — Vinte e sete anos exuberantes c felizes, principalmente depois do seu — "eu
gosto de você"...
VÉRA — Pois eu tenho 40 anos serenos e raciocinados...
OTO — Não compreendo... Você disse que ia filosofar e, de repente, desanda a fazer
qualificações de carteira eleitoral: "Fulano, 27 anos exuberantes e felizes; Beltrano 40
anos, raciocinados e serenos..." Que história é essa?
VÉRA — Nada de "blagues", Oto. Você falou em qualificação de carteira eleitoral...
Pois é justamente do que eu estou tratando. Quero ver se posso tirar a minha carteira
eleitoral do amor... para eleger o meu candidato.
OTO — A expressão é engraçada e original... Carteira eleitoral do amor... é bem
achado! (ri).
VÉRA — Falo sério. Você já percebeu que o ponto nevrálgico das minhas cogitações
está exatamente nesta aritmética apavorante que nos separa com um desagradável
numero 13. Sim. Sou mais velha do que você 13 anos.
OTO — E o que tem isso? Eu nunca cogitei de fazer contas quando se trata do amor...
VÉRA (indo a OTO e olhando-o bem nos olhos) Mas... será mesmo amor o que você
sente por mim? Não será um entusiasmo passageiro de um rapaz exuberante por uma
mulher que talvez seja um pouco diferente, um pouco mais interessante, sob certos
aspectos, que a maioria das mulheres que você conhece? Não será um capricho que
talvez encubra um desejo muito natural num homem da sua idade?...
OTO — Você se engana, Véra. Eu gosto de você, sem pensar mais nada. Nunca reparei
que você era mais velha 13 anos do que eu... E se houvesse em tal reparado, não
enxergaria nenhum inconveniente nesta diferença de idade. Sou um homem, Véra.
Um homem consciente e autônomo, de sensibilidade apurada por uma vida prática,
intensa e veloz. Eu gosto de você. Sinceramente. Sem cogitar de detalhes, sem descer
a averiguações.
VÉRA — Tenho medo, Oto. Muito medo...
OTO — Medo? De que? Por que?
VÉRA — Tenho medo da sua mocidade e da minha... madureza. Passado o entusiasmo
dos primeiros tempos, você começará a reparar que eu tenho 40 anos e que você tem
apenas 27... E quando eu perceber tal coisa, hei de sofrer tanto e tão amargamente
que, parece-me, será melhor...
OTO (beijando-a na boca) — Aqui tens a minha resposta definitiva... tolinha... Você
fala como uma garota de 18 anos...
VÉRA — Não. Raciocino como uma mulher de 40... Vê bem, Oto, o que vai fazer, o
que vai obrigar-me a fazer. Para você, tudo é muito simples. Casa comigo, satisfaz o
seu desejo e depois, si cansar, vai procurar outra... Para mim, porém, tudo será
diferente... muito diferente... No dia em que perceber que você mudou, que você está
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mudando em relação a mim... Não sei... não sei...


OTO — Francamente, Véra, as suas palavras deixam-me estupefato... Você está
agitando um problema inteiramente novo para mim.
VÉRA — E no entanto, eu não tenho pensado em outra coisa desde que o nosso "flirt"
começou... (Há uma pausa. OTO acende um cigarro, passeia, reflete; enquanto
VÉRA está pensativa).
OTO — Tomei uma resolução.
VÉRA — Uma resolução?
OTO — Fica resolvido... que a minha resolução anterior é ótima! Você quer casar
comigo? Já?
VÉRA — Negar que este sé o meu desejo mais ardente, seria mentir a você e a mim
própria, mas...
OTO — O "mas" foi feito apenas para os covardes...
VÉRA — Diga antes: para os prudentes...
OTO — A prudência é manifestação de fraqueza... É medo enfeitado de decência
calculista...
VÉRA — Você tenta o paradoxo porque não pôde argumentar com lógica...
OTO (Segurando-a pelos ombros, ternamente) — A lógica não existe para o amor...
Eu quero casar com você!
VÉRA — A sua insistência carinhosa, começa a abalar-me, Oto... Tenho medo, tenho
medo de não saber resistir à sua lábia tão enternecedora...
OTO — Bravo! Quer dizer que nos casamos breve...
VÉRA — Pois bem. Façamos uma combinação inteligente. Em principio, aceito o seu
pedido de casamento... mas vamos marcar um prazo de experimentação...
OTO — De experimentação?
VÉRA — Ficaremos noivos, apenas entre nós, pelo prazo de dois anos. Se ao fim desse
tempo as suas ideias não mudarem a meu respeito, então, anunciaremos o noivado e
casaremos.
OTO — Mas dois anos de noivado é muito. Porque a verdade é que nós já noivamos, de
fato, ha quase um ano... Concordo com a sua ideia, mas com uma emenda
importante: onde se diz dois anos, diga-se seis meses...
VÉRA — É muito pouco tempo... Eu preciso experimentar a sua sinceridade amorosa...
(noutro tom) Pois bem, — nem o meu projeto, nem a sua emenda; ficaremos noivos,
em segredo, durante um ano... Serve?
OTO (apertando-lhe a mão com brejeirice) — Está feito. Aprovo o seu projeto sem
restrições.
VÉRA — Ainda bem. Ninguém saberá deste nosso compromisso, salvo a Ema.
Continuaremos, como até aqui, a "flirtar" dissimuladamente...
OTO — Dean te tios outros, é claro... Sim, porque você não vai chegar ao exagero de
impedir que um noivo possa, ao menos, beijar a noiva... com certa vivacidade...
VÉRA (carinhosa) — Maroto! Veja bem o que vai fazer...
CENA VII
OS MESMOS E NÁIDA

NÁIDA (Moça de 18 anos. Alegre, vivaz, ruidosa como uma "flapper" de cinema, entra,
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para à porta, abre os braços expansivamente). E ninguém toca o hino? (ri) Eu


estou aqui!...
VÉRA (voltando-se) — Minha filha! (abraçando-a) Mas, que história é essa?
NÁIDA — Já sei que vai reclamar porque eu chego à casa uma semana antes do que era
esperada... Mas se está muito zangada, ha um remédio: eu volto para São Paulo,
espero mais uma semana e chego aqui à data exata!
VÉA — Não é isto, minha filha. Quero saber como você veio...
NÁIDA — De avião. É mais rápido e melhor!
VÉRA — De avião?
NÁIDA — Claro. Pois então você pensa que uma moça deste século, tendo tido uma
oportunidade de voar, prefereria, burguesmente, vir de trem ou de auto? ^
VÉRA — Você conhece aqui o sr. Oto Guimarães, minha filha?
NÁIDA (apertando a mão de OTO) — Muito prazer. Já o conhecia de retrato. O sr. é
industrial, não?
VÉRA — É. É o diretor da Fabrica de Tecidos Tamôio.
NÁIDA — Pois, senhor diretor, tenho uma reclamação a fazer-lhe.
OTO — Reclamação?
NÁIDA — Sim, senhor. Os produtos da Fabrica Tamôio estão decaindo a olhos vistos...
Sou freguesa dos seus tecidos ha muito tempo e noto que agora eles já não têm a
mesma qualidade e a mesma resistência de antes...
VÉRA — Náida... não seja impertinente...
OTO — Pelo contrario, Véra... A sua filha é bem capaz de ter razão...
NÁIDA — Claro que tenho. E até estou prestando um sério serviço à Fabrica Tamôio
com esta advertência... O senhor não acha?
OTO (rindo) — Perfeitamente, senhorita. E eu vou amanhã mesmo averiguar das razões
da sua queixa...
NÁIDA (troçando) — Está vendo, mamãe? Eu sou o tipo da técnica em tecidos (riu.) E
a Ema, que fim levou? e o tio Ivo?
VÉRA — Estão ambos aqui em casa, hoje. E também está o dr. Enio...
NÁIDA — Não diga! O dr. Enio ainda não "entregou os pontos"?
VÉRA — Que expressão, Náida!...
NÁIDA — Não tem nada de mais... É desportiva e eloquente: entregou os pontos, quer
dizer: morreu!
OTO (rindo) — Ótima!

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CENA VIII
OS MESMOS E IVO

IVO (entrando) — Véra... (Vendo NÁIDA) Náida! Que prazer em vela! (abraçando-a)
Mas estás uma moça!... Meu Deus, como nós envelhecemos!
VÉRA (olhando significativamente para OTO) — Realmente, ela está... uma mulher...
NÁIDA — E uma mulher moderna, de ideias adiantadas e ambições desmedidas. (Ri)
Mas... "de modus in rebus"... Bem. Vou abraçar a Ema. (Tomando o braço de IVO)
Vamos, tio Ivo.
IVO (significativo) — Véra, minha irmã: — estás aqui, está Vovó!... (Sai com NÁIDA).
VÉRA (que ficou fundamente chocada com a pilhéria de IVO. olha para OTO
significativamente, suspira, remonta, encara-o) Você ouviu? Estou aqui... estou
Vovó! (Como um eco, amargamente) Vovó!... Vovó...

PANO RÁPIDO

FIM DO PRIMEIRO ATO

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SEGUNDO ATO
(O mesmo do primeiro ato. Três meses depois. Tarde clara de primavera.)

CENA I
IVO e CRIADA

IVO (sentado, fuma um charuto e lê um livro) — Que horas são?


CRIADA (que espana os móveis) — Quatro e meia. Ouvi agora mesmo o relógio bater.
IVO — E eu ainda não almocei!
CRIADA — O senhor acordou às três e meia...
IVO — Realmente... Estive na reunião do Club 21 de maio até muito tarde...
CRIADA (maliciosa) — A reunião deve ter sido muito importante, porque o senhor
chegou em casa às oito horas da manhã...
IVO (percebendo) — Foi... Foi importantíssima...
CRIADA — E o seu Club tem senhoras também?
IVO — Como?
CRIADA (risonha) — Sim, porque eu vi que o senhor chegou num automóvel com duas
senhoras que à despedida disseram: "Adeus, "cheri"... (ri) "Cheri" é francês, não é?
IVO (encabulado) — É... Aquela senhora é a representante da França junto ao nosso
Club... (Noutro tom) Vá arranjar-me um aperitivo.
CRIADA — Sim, senhor. Adeus... "cheri"... (sai)

CENA II
IVO E EMA

EMA (entrando) — Preciso falar com você.


IVO — Primeiro dá-se bom dia. Depois...
EMA — Bom dia às 4 e meia horas da tarde, seu sem-vergonha?!
IVO — Vê lá se você também quer tomar conta da minha vida. E só o que falta —
(Sorrindo) Até a Criada já me pergunta se "cheri" é francês...
EMA — Cínico. É o cumulo que você tenha o despudor de fazer-se acompanhar até à
porta de casa por "cavalheiras" internacionais ...
IVO — Eu não podia esperar que a família toda estivesse em observação àquela hora tão
matinal...
EMA — Oito horas da manhã é uma hora muito razoável para que estejam despertas as
pessoas decentes...
IVO — Parece-me que não ha um horário para as pessoas decentes e outro para as que
não o são... Aliás, essas coisas de decência são muito relativas...
EMA — Principalmente para os amorais como você...
IVO — E o que é ser moral? E o que é ser amoral? Vocês, os que se supõem ser muito
honestos, definem a moral a seu modo... E nós, os que nos reconhecemos,
sinceramente, muito desonestos, temos, pelo menos, a honestidade de não cogitar de
coisas tão transcendentes... (ri)

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EMA — Bonita maneira de se confessar, sem-vergonha...


IVO — Ou de ser mais decente... O escândalo, minha amiga, é sempre relativo e
proporcional!...
EMA — Claro! Relativo e proporcional ao descaramento de cada um!
IVO — O escândalo é a contradição entre o fato e a época. Uma coisa que hoje é
escandalosa, amanhã poderá parecer perfeitamente normal. Depende do tempo e do
ponto de vista de cada um...
EMA — *Basta de filosofia barata! O que eu acho é que você não pôde continuai a dar
espetáculos como o de hoje. Todos se escandalizaram aqui e quem mais reparou no
seu gesto pouco respeitoso...
IVO — Já sei... Foi você... Que falta de solidariedade, meu Deus!
EMA — Não. A mim pouco se me dá que você exiba todas as "internacionais" que
queira... Tenho o meu juízo formado a seu respeito. Mas trata-se de alguém que você
precisa respeitar: — Náida!
IVO (pondo-se sério) — Náida? Que diabo! Ela também viu a minha chegada?
EMA — Viu e fez uma cara indescritível...
IVO — Realmente... Eu não havia pensado nisso... E\ você tem razão. Eu, de agora em
diante, vou ter mais cuidado...
EMA — Ela é uma moça e fica vexada ante as suas atitudes escandalosas.
IVO — Está bem. Não precisa falar mais. (Noutro tom, chocareiro) Eu pensei que você
estava "estilando" por conta própria...
EMA — Por conta própria?
IVO — Sim. (malicioso) Eu pensei que era ciúme!...
EMA — Ciúme? Ciúme de que, de quem?
IVO (brejeiro) — Deste seu galã...
EMA (medindo-o de alto a baixo, rancorosamente, como quem quer dizer palavras
fortes que não ocorrem) — Ora... ora... É melhor eu não dizer nada!
IVO — Não se exalte porque senão eu acredito mesmo que falei verdade...
EMA (apoplética) — Ora... Você... Você não se enxerga?

CENA II
OS MESMOS E VÉRA

VÉRA (entrando) — Vocês estão, de novo, discutindo?


EMA (irritada) — Este teu irmão é o maior imbecil que o sol cobre...
IVO — Sabe porque ela está irritada assim? Porque eu disse uma verdade visível a olho
nu...
VÉUA — Uma verdade na ma boca? É raro... (sorri) qual foi?
IVO — A Ema passou-me uma lição de moral e eu respondi que ela estava com
ciúmes...
VÉRA — Ciúmes de quem?
IVO — Deste teu formoso irmão!
EMA — Vês? Não é para a gente esmurrar um cretino desses?
VÉRA (rindo) — Vocês acabam casando...
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EMA — Ora... ora... Tu também queres irritar-me?


IVO — Como vê, o seu "beguin" por mim começa a ser coisa visível, e... escandalosa.
(Tomando "pose" de farsante, para EMA) Minha senhora: é preciso moderar os seus
ímpetos amorosos! Tenha fé no seu amor e espere!
EMA (enfurecida) — Eu... eu... esmago este idiota...
VÉRA — Então... Vocês precisam fazer um acordo para não brigarem tanto. Desde que
eu me conheço, vocês vivem às turras...
IVO — Eu, por mim, sou a favor do desarmamento... Assino um pacto de não-agressão,
quando a Ema quiser...
EMA — E eu só ficarei contente no dia em que puder arranhar-lhe a cara e pô-lo
"nocaute" por um mês...
IVO — Está bem. Retiro-me para não ser vitima de um desacato... (ri) Até já, Primo
Camera... (sai.)
EMA — Este teu irmão é insuportável. Acabarei por não poder vir mais aqui.
VÉRA — Deixa de tolice. No fundo, vocês se estimam... (noutro tom) Ema, preciso
falar com você a respeito de Náida.
EMA — A respeito de Náida?
VÉRA — Sim. Ha três meses que minha filha chegou a esta casa e ha três meses que eu
venho observando a sua maneira de ser, com a maior atenção.
EMA — E que concluiu das tuas observações?
VÉRA — Que Náida, apesar dos seus 18 anos, tem uma mentalidade de mulher feita.
EMA — E isto foi surpresa? As mulheres de hoje, Véra, são de espantosa precocidade.
Tudo concorre para que uma moça aos 14 anos tenha uma avançada noção da vida...
VÉRA — Realmente. Mas a verdade é que a minha filha, que eu esperava como uma
menina, chegou aqui como uma mulher cheia de vida, discernindo com autonomia
sobre os problemas mais graves, tendo ideias próprias e ambições bem esclarecidas.
EMA — E tu encontras algum inconveniente nisso?
VÉRA — Sim. Deante da personalidade definida de Náida, eu sinto que me assaltam, de
novo, aquelas duvidas...
EMA — Reíeres-te ao teu casamento?
VÉRA — Sim. Tenho a impressão de que devo consultar Náida sobre o assunto.
EMA — Parece-me um pouco exagerado consultá-la sobre assunto tão pessoal.
VÉRA — Não, Ema. Receio que Náida, agora ou mais tarde, venha criticar a minha
resolução quando eu precisar, talvez, do seu carinho e apoio como um consolo de
uma provável desilusão...
EMA — Continuas pessimista. |
VÉRA — Às vezes penso que é uma deslealdade minha, não participar à Náida a
verdade da situação, e tenho, então, desejos de dizer que estou noiva de Oto.
EMA — No teu caso eu já teria dito tudo. Não vejo nenhum crime no teu casamento...
VÉRA — Eu não vou repetir agora tudo o que te disse, Ema... Mas a verdade é que não
me sinto com valor para abordar francamente o problema com minha filha... Temo
que ela, com aquela desenvoltura que a caracteriza, possa dizer-me todas as palavras
que eu tanto temo a respeito de um casamento tão desigual...
EMA — Decididamente, os tempos estão mudados. Antigamente eram as filhas que
tinham medo das mães. Hoje...
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VÉRA — Não se trata de medo, propriamente...


EMA — Só te digo uma coisa, Véra: estás errada.

CENA IV
AS MESMAS, NÁIDA, ENIO DEPOIS IVO

NÁIDA (entrando, puxa ENIO pela mão) — Mamãe, mamãe! O dr. Enio é o ripo do
"boa-bola"!
ENIO (que acompanha com dificuldade a ligeireza de Náida) — Não seja marota,
Náida...
NÁIDA (rindo) — Imagine o que ele acaba de me confessar no jardim...
IVO (entrando com "cock-tail" para ENIO) — Como está o jovem veterano?
NÁIDA (rindo muito) — Imagine, tio Ivo, o que me confidenciou o varonil dr. Enio?
IVO — Já sei. Ele confessou que já festejou a maioridade...
NÁIDA — Quase... quase... Disse-me que pretende casar! (rindo) Imaginem! O dr.
Enio... casar!
ENIO — Menina, não seja inconveniente...
IVO — E ele te disse o nome da vitima, Náida?
NÁIDA — Não. Mas, palavra que eu queria conhecê-la. Coitada!
VÉRA — Não seja impertinente, Náida. O dr. Enio não gosta dessas brincadeiras.
IVO (para ENIO) Está vendo? Não fui eu que fiz a "trancinha" ...
EMA — E que inconveniente ha em que o dr. Enio queira casar, Náida?...
NÁIDA (rindo) — Eu acho que o casamento deve ter um limite de idade... (ri).
VÉRA (trocando um olhar de inteligência com EMA) — E se a idade da noiva for
proporcional à do dr. Enio?
NÁIDA — Mas haverá uma mulher da idade do dr. Enio que ainda pense em casar? (ri).
IVO (para EMA) — Isto é com você... (ri gostosamente).
EMA — Eu não tenho a idade do dr. Enio.
IVO — Bom. Isto também é verdade. Você deve ter uns meses menos do que ele...
VÉRA — Escute, Náida, e se a noiva escolhida pelo dr. Enio for muito mais moça do
que ele? Que pensa você a respeito?
NÁIDA — Acho uma loucura,
VÉRA — Loucura de quem?
NÁIDA — De ambos. O mais moço, um dia, reparará na velhice do outro e se
arrependerá amargamente...
VÉRA — E o mais velho?
NÁIDA — Para o mais velho, a coisa será pior ainda...
VÉRA (que olha vivamente para EMA) — Por que?
NÁIDA — Porque no dia em que perceber o amargor e o arrependimento do mais moço,
ha de sofrer a tortura maior da sua vida... A tortura de sentir-se imprestável, sem
remédio; a tortura de sentir que a carne começa a encarquilhar-se, numa flacidez
inestética, e que, no entanto, o coração continua a bater, nervosamente, com o mesmo
amoroso entusiasmo dos vinte anos!
VÉRA — Você deve ter razão, minha filha. (Só para EMA) — Você ouviu o que ela
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disse?
EMA (só para VÉRA) — Ouvi e não concordo. (Há uma pausa de mau estar).
VÉRA (suspira fundamente, olha para EMA, passeia).
NÁIDA — Mas o que é isto? Parece que está passando um enterro. Todos estão com
ares fúnebres...
IVO — Você foi falar em corda em casa de enforcado, Náida...
NÁIDA — Como assim?
IVO — Reflita o seu ponto de vista.
NÁIDA — Que "rata", meu Deus! Eu sempre sou muito estouvada! Desculpem-me. Eu
não pensei...
IVO (com ironia) — O seu pedido de desculpas piora ainda mais a situação. É a
confirmação da sua sinceridade...
NÁIDA (querendo concertar) — Bem, mas... eu falei em tese...
ENIO — Uma tese muito desagradável, Náida...
IVO — Falou o decano. Muito bem, jovem veterano; a tese é, realmente, antipática...
Ser velho é sempre muito "páo"! (rindo) A Ema que o diga!
NÁIDA — Bem. Mas, com a minha "rata" e tudo, ainda ha lugar aqui para uma
exceção: a minha formosa mamãezinha não pode ser, de nenhum modo, incluída na
lista...
IVO — Vamos mudar de assunto?
VÉRA — Não... Agora que Náida abriu uma exceção para mim, eu quero que ela
termine o seu pensamento.
NÁIDA — Decerto. Você, mamãe, está uma mocetona ainda...
EMA — Quer dizer que ela ainda pode ter aspirações amorosas?
NÁIDA (depois de curta reflexão) — Em que pese as reservas com que eu receberia um
padrasto... penso que a mamãe tem todo o direito a pensar no amor...
VÉRA (contente) — Falas sinceramente, Náida?
NÁIDA — Decerto. É claro que a minha doce mãezinha, com a inteligência e
perspicácia que todos lhe reconhecemos, ha de saber escolher...
VÉRA (sobressaltando-se) — Esclareça melhor o seu pensamento, minha filha...
NÁIDA — É claro que a mamãe ha de ter sempre o bom-senso de escolher um homem
para seu marido.
IVO — Mesmo porque uma mulher não serviria...
NÁIDA — Vocês me entendem. Quero dizer que a mamãe, sem ser uma velha, não
poderia nunca escolher um rapazola para seu marido, um rapazola que não infundisse
respeito nem a ela... nem a mim.
VÉRA (anuviando o rosto) — Quer dizer que deveria escolher um homem mais velho
do que eu?
NÁIDA — Claro. Ou, pelo menos, da mesma idade...
VÉRA (que olha, significativamente, para EMA) — Eu também sempre pensei assim...
IVO (para ENIO) — Meu caro veterano: depois desta conversa toda, só vejo uma
solução para o seu caso.
ENIO — E qual é ela?
IVO (apontando EMA) — Casar-se com a Ema!
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ENIO (furioso) — Irra! Que o senhor é impertinente!


IVO (rindo) — E o senhor é mal agradecido: pois se eu The dou a melhor solução para o
seu problema sentimental...
NÁIDA — Bem. Para esquecer todas as minhas "gaffes" vou preparar um cock-tail" do
outro mundo, para vocês.
IVO — Mas não ponha vinhos velhos... De velhice basta as nossas, não é, meu jovem
veterano?
ENIO — Francamente, o senhor não cansa!
NÁIDA — Vamos ao "cock-tail"?
IVO (para ENIO) — Vamos, dr. Enio. Quero fazer um brinde muito significativo.
NÁIDA — Ao dr. Enio?
IVO — Não. Ao dr. Fausto...
NÁIDA (dando o braço a IVO e ENIO) Vamos. (Saem os três).
EMA (depois de olhar para VÉRA) — E se fossemos também ao aperitivo?
VÉRA (preocupada e nervosa) Não. (Noutro tom) Você ouviu o que disse a minha
filha? Eu não me enganava...
EMA — Estás dando demasiada importância a algumas frases de bom humor de Náida a
propósito do problema matrimonial...
VÉRA — Sim, mas a verdade é que ela, dentro daquelas palavras estouvadas, encerrou
o seu modo de pensar a respeito do problema. Náida respondeu, sem que eu
perguntasse, a uma série de perguntas que eu pretendia fazer-lhe ha muito...
EMA — Pelo jeito ficaste abalada...
VÉRA — Confesso que sim. Principalmente porque Náida, sem o saber, repetiu todos
os conceitos que eu emitira antes a respeito do assunto.
EMA — Queres dizer que a opinião da garota é capaz de modificar os teus projetos?
VÉRA — Não sei, não sei. Mas sinto-me numa situação angustiante, Ema. Não sei se
obedeço ao coração ou ao cérebro. Se cumpro os ditames do meu raciocínio ou os
impulsos da minha alma.
EMA — Eu sou, francamente, pelo coração! (Suspira).
VÉRA (passeia, nervosa) — Nada é mais trágico para uma mulher, que envelhecer!
EMA (suspirando) — A quem o dizes!...
VÉRA — E esse Oto que não desiste... Quero resistir, quero impor a vontade do meu
raciocínio ao impulso da minha exaltação sentimental. Pretendo dizer-Ihe todas as
palavras que o bom-senso me dita. Aventuro articular frases de ponderação. Mas, ele
fala-me de amor; ele repete sempre, com aquela voz quente e macia, as mesmas juras
e os mesmos conceitos carinhosos. E eu fico como que entontecida, numa vertigem
tão suave e tão doce, que perco a energia, malbarato os argumentos, enrodilho-me em
palavras sem nexo, como uma menina, como uma amorosa de primeiro amor!
EMA — E apesar disto tudo, ainda hesitas?

CENA V
AS MESMAS E IVO

IVO (entra rindo, olhando para dentro) — Definitivamente, o mundo está todo errado!
Imaginem que enquanto o dr. Enio defende, acaloradamente, o seu ponto de vista
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contra o divorcio, dizendo-o instituição dissolvente da santa organização familiar, a


Náida, a jovem e doce Náida, educada em colégio de freiras, bate-se, ferozmente,
pelo divorcio integral, como necessidade imediata para o equilíbrio e decência da
sociedade! Anda tudo trocado!
VÉRA (contrafeita) — Vou repousar um pouco. (Sai).
IVO (reparando na atitude acabrunhada de VÉRA) — Escute aqui, Ema: o que é que ha
nesta casa?
EMA — Que eu saiba, nada...
IVO — Não minta. Aqui ha coisa e coisa grave. A Véra anda preocupada, pensativa,
estranha. Eu, desde que chegou a Náida, tenho notado que minha irmã não é a
mesma. Você deve saber. Você é a sua confidente...
EMA — Eu não sei nada, mas, mesmo que soubesse alguma coisa, nunca iria revelá-la a
um sacorôto como você...
IVO — Pois bem. Eu mesmo descobrirei o mistério... Quando armo em "sherlock", sou
terrível! (Passeia) Emasinha!
EMA — Que quer?
IVO — Seja camarada...
EMA — Camarada?
IVO — Sim. Conte-me o que ha. Estou muito curioso. Os homens velhos são
curiosos como as mulheres...
EMA — Velhas?
IVO — Não. Curiosos como as mulheres de todas as idades...
EMA -— Mesmo que eu contasse alguma coisa a você, você não compreenderia... Os
homens são sempre muito estúpidos para assuntos de certa transcendência
sentimental!
IVO — Neste caso há realmente, alguma coisa com a Véra? E de caráter sentimental?
EMA (perturbando-se) — Não... eu quis dizer...
IVO — Não. Agora eu apanhei você!
EMA — Apanhou coisa alguma! Viva! (Sai).
IVO — Eu não disse que era um "sherlock" terrível?...

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CENA VI
IVO E OTO

OTO (entrando, com vivacidade) — Salve o campeão da "blague" e da irreverência.


IVO (voltando-se) — Olá, meu caro Oto! (Fica sério e pensativo ).
OTO — Mas, como? Então eu chamo-o de campeão da "blague" e você fica assim
macambúzio?
IVO — Estou preocupado com um problema complexo.
OTO — Nova "blague"?
IVO — Não. Você talvez possa ajudar-me a esclarecer o caso...
OTO — Mas, ha, então, um "caso" a esclarecer?
IVO — Você que frequenta tão à meude a nossa casa, deve conhecer bem a minha irmã
Véra...
OTO (perturbando-se) — Realmente... tenho bastante convivência com ela...
IVO — Pois meu caro amigo: acabo de surpreender umas certas atimdes esquisitas de
Véra. Anda suspirosa e preocupada. E, meu amigo, aquilo é de fácil diagnostico...
OTO — O que supõe ser?
IVO — Paixonite aguda, meu caro! Suspiros, longas meditações, olhares perdidos, ar de
sonâmbulo, tom declamado de quem diz sonetos, passo incerto de urubu malandro,
não precisa pôr mais na carta — é "beguin" "brabo"! Ou, como se diz em brasileiro
— é xodó! E do bom!
OTO — Pôde ser que você não tenha observado bem...
IVO — Quer dizer que você não sabe nada?...
OTO — Eu não!
IVO -— Curioso... E eu pensava que você sabia.'.. Enfim...

CENA VII
OS MESMOS E ENIO

ENIO (entrando com vivacidade) — Senhor Ivo... (Vendo OTO e dando mostra de
contrariedade) — Perdão... Eu pensei que estava só...
OTO — Boa tarde, dr. Enio.
ENIO (de mau modo) Boa tarde. (Querendo retirar-se) — Com licença...
IVO — Mas como? O dr. Enio não queria dizer-me alguma coisa?
ENIO — Queria... mas agora não vale mais a pena...
OTO — Se quer falar alguma coisa grave, eu me retiro...
ENIO (ríspido) — Não se incomode...
IVO — Dr. Enio: eu tenho a impressão que o senhor não simpatiza muito aqui com o
nosso amigo Oto Guimarães...
OTO — Eu também tenho esta impressão. E no entanto a guapa pessoa do dr. Enio
merece-me a mais sincera simpatia...
IVO (para ENIO) — Vamos esclarecer isto, agora, meu jovem veterano?
ENIO — Permita que me retire... (Vai sair) ...

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IVO (obstando) — Mas não ha motivo sério para uma tal descortesia, dr. Enio.
ENIO (indignado) — O senhor não sabe da minha vida e muito das razões que eu possa
ter contra o senhor Oto Guimarães...
IVO (chocareiro) — Acaso ele também já perguntou a sua idade exata? Ou duvidou da
sua ardente juventude? (ri).
ENIO — O senhor Oto Guimarães tem sido de rara deslealdade para comigo!
OTO — Deslealdade? Peço que esclareça melhor as suas palavras...
ENIO (avançando para OTO, com indignação) — O senhor sabe muito bem a que
classe de deslealdade eu me refiro!
IVO (Interpondo-se) — Calma! O senhor não está dando cargas na guerra do Paraguai!
OTO (dominando-se e pretendendo disfarçar) — Em que pese à minha boa vontade,
não consigo atinar...
ENIO — Não seja hipócrita!
OTO — Repare que o senhor começa a exceder-se. E repare também que eu não poderei
nunca tomar atitude condizente com a sua agressividade.
ENIO — E porque não?
OTO — Porque o senhor tem idade para ser meu pai, pelo menos!
IVO — Bonito! Você acaba de dirigir o maior insulto possível ao dr. Enio!
ENIO — Pois com idade para ser seu pai ou mesmo avô, fique sabendo que não o temo,
em nenhum terreno!
IVO — Ó, o heroísmo dos veteranos do Paraguai! (Noutro tom) Bem, bem, mas parece-
me que não ha motivo para tanto...
ENIO — Não ha? É porque o senhor não sabe do que se trata!
OTO (significativo) — E eu espero do seu cavalheirismo que não declare agora os
verdadeiros motivos da sua má vontade a meu respeito...
IVO — Perdão... mas eu gostaria de saber...
ENIO — E vae saber!
OTO (avançando para ENIO e "abotoando-o" pelo casaco) — Ridículo velhote: se
você disser uma só palavra a respeito do assunto, eu me esquecerei que você é um
macróbio para... (Ameaça com o punho cerrado).
IVO (separando-os) — Francamente, o lugar não é muito próprio para essas cenas de
violência...
ENIO — O senhor m'as pagará todas!
OTO — Não lhe fica bem, nesta idade, a fanfarronice dos qui-xotes de bobagem!
ENIO — Eu só não faço aqui um grande escândalo, por causa dela!
IVO (dando uma forte pancada na testa) — Por causa dela? A! Agora "matei" a
charada! Eu sou sempre um "sherlock" muito ingénuo! Mas, então... Ó!...
ENIO (faz menção de sair) — Com licença.
IVO — Eu o acompanho até à porta. Não fique exaltado, dr. Enio... Porque de fato só
houve um insulto sério...
ENIO — E qual foi?
IVO — Chamá-lo Oto de macróbio... Francamente, isto é uma injustiça... Mas poderia
tê-lo chamado de micróbio, que era muito pior!
ENIO (irritado) — Com licença... (Sai).

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IVO (para OTO) — Vou com ele, senão ele cai da escada... (sai).

CENA VIII
OTO E NÁIDA

OTO (Passeia, acende um cigarro e senta-se, pensativo) — Ora o velhote! (Náida


aparece à porta. Vendo OTO só, tem um sobressalto. Fica indecisa. Faz menção de
sair. Para. Volta. Encaminha-se, pé ante pé, até a cadeira onde está OTO. Sem ser
notada, para às suas costas. De chofre, tapa-lhe os olhos com as mãos. OTO,
tateando-lhe as mãos) — Já sei quem é. É Véra!
NÁIDA (destapando-lhe os olhos) — Enganou-se! Sou eu! (ri). Você estava tão sério e
preocupado...
OTO — Não... fumava apenas...
NÁIDA — Mentiroso! Você estava absorto em graves pensamentos. Posso conhece-los?
OTO — Deixe-se de curiosidades perigosas, menina...
NÁIDA — Menina... Que mania tem você de chamar-me "menina", assim com esse
pouco caso e essa superioridade irritante...
OTO — E você não é acaso, uma menina?
NÁIDA — Eu sou uma moça... uma mulher de personalidade definida!
OTO (rindo) Só esta me faria rir! Está bem, (brejeiro) minha senhora!
NÁIDA — Não procure fazer "blagues" sem graça. Os meus 18 anos valem, talvez,
pelos seus 27 e com vantagens... Eu tenho a serena convicção de que a minha
personalidade tem contornos perfeitos e definitivos...
OTO (rindo) — Pretensão e agua benta...
NÁIDA (amuando-se) — Antipático! (Volta-lhe as costas).
OTO (indo à NÁIDA e segurando-a pelos ombros) — Náida, não se zangue. Eu quero-
lhe um grande bem e sou sincero admirador das suas excecionais qualidades de
espirito e de coração.
NÁIDA (olhando-o ternamente) — E então, porque trata-me assim com esse pouco caso
paternal que tanto me irrita?
OTO — Mas é muito natural, Náida. Eu sou um homem e você, em que pese a sua
revolta, é uma mocinha apenas...
NÁIDA — Sempre a tomar esses ares solenes... E só por que tem mais nove anos do
que eu! (Fazendo uma careta) Vovô! Hum!...
OTO — Vovô, propriamente, não direi, mas /ha sempre uma diferença ponderável.
NÁIDA — E o que tem isto? (Chegando-se a ele de modo que o seu rosto fica quase
roçando o rosto de OTO) — Diga, o que tem isto?
OTO (perturbando-se à aproximação tão intima) — Bem... não tem nada... Mas...
(Afastando-se vivamente) — A sua mãe, onde está?
NÁIDA — Não sei nem me interessa... Não quero que desconverse, entendeu?
OTO — Mas, se não estamos, propriamente, conversando...
NÁIDA — Parece-me que você está um pouco perturbado ..
OTO — Eu... (procurando disfarçar) — Por que?
NÁIDA (olhando-o bem nos olhos) — Por nada...
OTO (com mal estar visível) — Bem. Eu vou ao encontro de Véra... (Vai sair).
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NÁIDA (impedindo) — Não, senhor! Você não sao daqui, agora, sob nenhum pretexto!
OTO — Ora essa! Por que?
NÁIDA — Porque eu não quero!
OTO (sorrindo, contrafeito) — Mas, que autoridade é esta?
NÁIDA (chegando-se a OTO, meigamente) — Se você tiver coragem, saia!... Mas eu
precisava muito dizer-lhe coisas complicadíssimas...
OTO — Eu detesto as complicações...
NÁIDA (querendo atacar o assunto, mas faltando-lhe ânimo, passeia, mexe nos
móveis) — Pois é... O respeitável varão está curioso? Pois repare que a história a ser
contada provém da inteligência infantil de uma menina muito tola...
OTO — Afinal, de que se trata?
NÁIDA — Talvez não valha a pena contar... Não tem importância...
OTO — Já agora, conte de qualquer maneira.
NÁIDA — Trata-se de um sonho.
OTO — Um sonho?
NÁIDA — Sim. Um sonho que eu tive esta noite. Um sonho talvez engraçado, talvez
ridículo, talvez infantil...
OTO — Os sonhos não são isso ou aquilo... São sonhos. Nada mais...
NÁIDA — Pois eu sonhei...
OTO — Desembuche logo o tal sonho, Náida... Eu estou impaciente ...
NÁIDA — Ó, a curiosidade masculina! Pois bem... (tomando resolução) — O meu
sonho foi simples: Sonhei que casava com você! (Olha vivamente para OTO).
OTO (perturbadíssimo) — Como? Que sonho esquisito...
NÁIDA — Não sei porque. Você disse agora mesmo que não ha sonho isso ou aquilo:
há sonhos e nada mais...
OTO (dissimulando) — Muito bem. Agora que você já contou o seu sonho... vou ao
encontro de Véra...
NÁIDA — Curioso... Você ficou muito atrapalhado com a história do meu sonho. Será
que o meu casamento com você, mesmo em sonho, parece-lhe um absurdo?
OTO — Eu não disse nada...
NÁIDA — Antes dissesse... Porque, afinal de contas, podia bem ser que eu estivesse
sonhando acordada...
OTO — Náida: peço-lhe, gentilmente, que deixe-me ir em busca de sua mãe...
NÁIDA (chegando-se) — Mas, Oto, você toma uns ares estranhos... Porque não me
encara mais? Olhe-me de frente... (encarando-o) assim.
OTO (perturbadíssimo) — Menina! Menina! Não me envolva nas suas imprudências
infantis... (afastou-se).
NÁIDA — Então... confessa?
OTO (vivamente) — Confessa o que?
NÁIDA (levando o lenço aos olhos) — Sou muito infeliz!
OTO — Não chore, Náida! Farei tudo para que você não chore!...
NÁIDA (tirando o lenço dos olhos, com malícia) — Tudo? (Agarrando a cabeça de
OTO) Tudo?
OTO (beijando-a apaixonadamente) Náida!
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NÁIDA (enlaçando-o) — Oto!


OTO (desvencilhando-se) — Mas... isto é uma loucura!
NÁIDA — Loucura, porque?
OTO — Você não compreenderia... (Senta-se e fica sucumbido) — Que tremenda
provação, meu Deus!
NÁIDA (sem compreender) — Provação? Que estranha expressão a sua!
OTO (levanta-se, respira forte, passeia nervosamente) — Você não pode perceber.
NÁIDA — Eu não pensei nunca que a minha sinceridade provocasse tamanha reação
em você... Peço desculpas... (Vai sair) Nunca mais tornarei a falar nos meus...
sonhos...
OTO (obstando que ela saia) — Fique, Náida, e conte-me como tudo isso aconteceu? ,
NÁIDA — Só contarei, se você confessar antes que também "aconteceu"... com você...
OTO — Poderei ainda negar a evidencia dos fatos?
NÁIDA — Cheguei aqui ha três meses. Você estava aqui e...
OTO — E...
NÁIDA — Há três meses que eu gosto de você!
OTO — Estranha coincidência...
NAIDA — Como você me faz feliz com estas palavras!
OTO — Está bem. Peço-lhe apenas um favor: guarde segredo de tudo isso até que eu
lhe avise...
NÁIDA — Prometido.
OTO — Agora... vá lá para dentro!
NÁIDA (enleiando-o) — Meu amor! (Beija-o).

CENA IX
OS MESMOS E VÉRA

VÉRA (entrando e vendo OTO e NÁIDA enlaçados) — Meu Deus!


OTO (vendo VÉRA e desvencilhando-se) — Véra!
NÁIDA (depois de curta hesitação) — Minha mãesinha, como eu sou feliz! Sabe? Eu e
o Oto... nos amamos!
OTO (cabisbaixo) — Mas... eu...
VÉRA (dominando-se) — Vocês se amam? (sorrindo) É muito natural... São dois
jovens! (Olha para OTO).
NÁIDA — Você abençoa o nosso amor, mamãe querida?
VÉRA — E porque não? (sorri) Você não vê como eu estou contente, minha filha?
NÁIDA (beijando-a) — Como você é boa, minha mãe!
VÉRA — Vá dar a notícia à Ema, minha filha!
NÁIDA — Vou correndo. Como ela vae ficar surpresa! (sai).

CENA X
VÉRA, OTO, DEPOIS EMA

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OTO — Véra... Eu...


VÉRA — Não diga nada... Não pôde haver explicações em casos como este... A gente
não pôde explicar nunca os caprichos do destino...
OTO — Reconheço que agi como um infame... Mas saberei redimir o meu erro, Véra.
Embarcarei para longe daqui e não levarei a cabo uma traição tamanha!
VÉRA (com suprema superioridade) — Você ficará e casará com minha filha com a
maior brevidade!
OTO — Não poderei insistir nesta deslealdade...
VÉRA (enérgica) — É a mãe da sua noiva que lh'o ordena, Oto! Você vae casar e já!
OTO — Mas será horrível...
VÉRA — Minha filha não pôde sofrer uma tamanha desilusão logo ao principio de sua
vida! E eu não consentirei nunca que Náida vá pagar pelos erros que não cometeu.
Você casará com ela e a fará feliz, estou bem certa...
OTO — Mas... e você?
VÉRA —- Não se trata de mim agora: trata-se da felicidade de minha filha! Eu só lhe
peço um favor... não conte nunca à Náida o nosso passado! Ele ficará sepultado nos
nossos corações para sempre! No seu, como uma aventura. No meu, como uma
saudade!
OTO — Obedecerei. (Sai, cabisbaixo).
EMA (que ouviu a última frase de VÉRA) — Véra! (VÉRA abraça-se a EMA e soluça
dolorosamente. — Pano rápido).

FIM DO SEGUNDO ATO

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TERCEIRO ATO
(O mesmo dos atos anteriores. — A ação deste ato decorre um ano e dois meses depois
da do segundo ato. — São cinco horas da tarde.)

CENA I
CRIADA, ENIO, DEPOIS IVO

CRIADA (atravessa a cena, sai e reentra a seguir) — Passe, dr. Enio.


ENIO (entrando) — Como vai você?
CRIADA — Bem, obrigada, dr. Enio. E o senhor como foi de viagem?
ENIO — Otimamente! As viagens remoçam, as viagens vasculham a cabeça da gente,
renovam as ideias, dão novo gosto de viver! E por aqui, tudo bem?
CRIADA — Felizmente, sr. doutor! (sai).
IVO (entrando) — Ora viva o vigoroso Judeu Errante!!! (Aperta-lhe a mão).
ENIO — Como está o senhor Ivo?
IVO — E, então, esta viajada?
ENIO — Magnífica! Passei um ano lá por fora e pude observar que apesar de tudo,
ainda é o Brasil o país-paraíso!
IVO — Não diga!
ENIO — Sim, senhor! Vive-se hoje em nossa terra, sob todos os aspectos, de modo
infinitamente melhor e mais fácil que em qualquer outro país! E, em nenhuma outra
parte o custo da vida é tão barato como no Brasil! Sim, senhor!
IVO — Não é essa a impressão que aqui se tem...
ENIO — Pois que viagem como eu viajei e verão...
IVO (malicioso) — E esse dinâmico coração, como se portou lá fora? Paixões, às
dúzias, não?
ENIO — Qual, meu amigo! Pôde ser que o primeiro amor seja passageiro, aos 20 anos,
mas o "último" amor, já na nossa idade...
IVO — Nossa, virgula, que eu tenho 25 anos menos...
ENIO (suspira) — E a nossa dona Véra, como está?
IVO — Bem. Razoavelmente bem. Depois do casamento da filha cem o Oto Guimarães,
ha, precisamente, um ano e um mês...
ENIO — Já estão casados ha 13 meses?
IVO — Sim. Um mês depois daquela tarde em que o senhor se desentendeu, aqui, com o
Oto, a Náida casou com ele. Casou e embarcou logo para o Norte, onde o Oto tem
negócios importantes referentes à Fabrica Tamôio.
ENIO — Quer dizer que depois do casamento, a sua irmã nunca mais viu a filha nem...
o genro?
IVO — Nunca mais.
ENIO — E fala neles?
IVO — Raramente. Minha irmã anda sempre preocupada e triste. Em geral mantém-se
no quarto, fala pouco e demonstra uma estranha irritabilidade quando se lhe fala dos
acontecimentos em que foram parte ela, a Náida e o Oto.
ENIO (depois de pausa) — O meu amigo que está bem ao par de tudo, — sim, dos
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meus sentimentos em relação a sua irmã, — não acha que agora será o momento
oportuno de falar-me?
IVO — Falar-lhe sobre que assunto?
ENIO — É claro que eu não mudei em nada neste ano que passou...
IVO — Sim... salvo na idade que aumentou de 13 meses...
ENIO — Quer dizer... continuo com as mesmas intenções a respeito da dona Véra...
Pretendo mesmo falar-lhe a respeito da minha antiga proposta...
IVO — Não faça tal! O senhor sabe o que é dinamite?
ENIO — Sei... mas...
IVO — O senhor sabe o que é algodão-pólvora? E sabe o que é nitroglicerina?
ENIO — Sei... mas não atino...
IVO — Pois fique sabendo que misturando todos esses tremendos explosivos e riscando
um fósforo depois... acontecerá um desastre muito menor que se o senhor falar em
casamento agora à minha irmã!
ENIO — Mas eu não vejo em que a minha sincera proposta de torna-la feliz possa
provocar assim tamanha reação...
IVO — Não vê (ri) Pois, então, faça-lhe a proposta... e depois espere pela explosão...
ENIO —. Não. Desta vez estou decidido. Aconteça o que acontecer, vou falar-lhe
claramente. Não posso mais suportar a angustia que me martiriza o peito!
IVO — Faça o que quiser... Eu já cumpri com o meu dever de amigo. O senhor vae
ficar em pedaços. . (ri). ENIO — De qualquer modo...

CENA II
OS MESMOS E EMA

EMA (entrando e vendo o dr. ENIO, jaz cara de contrariedade) — O senhor por aqui
de novo?
ENIO — Sim. E com um grande prazer de rever a minha simpática adversaria...
EMA — Adversaria, eu? Ora, meu senhor, eu não costumo ser adversaria de pessoas da
sua força...

CENA III
OS MESMOS E VÉRA

VÉRA (entra, com ar displicente, mas severo) — Como está. doutor Enio? Quando
chegou?
ENIO (mesureiro) — Cheguei ontem e ontem mesmo não vim beijar-lhe a mão porque o
navio atracou às onze horas da noite.
EMA (irônica) — Sim? Mas onze horas da noite ainda seria muito cedo pelo prazer que
o senhor nos daria com a sua visita... (Para IVO) Ha tanto naufrágio, meu Deus! E no
entanto, o navio dele chegou otimamente ao porto!
IVO — Pilhérias do destino...
ENIO — Fiz uma viagem maravilhosa e consegui uma espécie de renovamento integral.
Sinto-me outro inteiramente.
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EMA — E porque se demorou tão pouco?


ENIO — Não foi assim tão pouco, dona Ema. Fiquei lá fora um ano!
EMA — Só?... Que pena!
ENIO — Mas as saudades não consentiram que eu me demorasse mais.
EMA — A saudade é, algumas vezes, muito inconveniente. .
ENIO — E a dona Véra, como está?
VÉRA — Vivo...
ENIO — Tem noticias de sua filha?
VÉRA (transformando a fisionomia, mas refazendo-se a seguir) — Está bem, obrigada.
(Senta-se e fica como que alheia à conversa. — Ha uma ligeira pausa de mau estar
provocado pela pergunta de ENIO).
IVO — E se oferecêssemos um dos nossos clássicos "cock-tails" ao jovem itinerante?
Ema: você que é perita misturadora de venenos...
EMA — Isto é veneno? Engraçado...
IVO — De venenos "bebíveis", é claro...
EMA — Está bem. Eu já sabia que a "vitima" da sua eterna sede seria eu... Vou
preparar os aperitivos.
IVO — Não ponha sublimado corrosivo nem vitríolo, hein?
EMA — Vontade não me falta! (sai).
ENIO (para Ivo) — Poderei pedir-lhe um favor?
IVO — Pois não.
ENIO — Deixe-me a sós com dona Véra.
IVO — Eu saio. Mas cuidado... Lembre-se do meu aviso... (sai).
ENIO (depois de olhar para VÉRA, de passear indeciso, de pigarrear) — Dona Véra.
Preciso falar-lhe.
VÉRA (como que despertando da sua abstração) — Como diz?
ENIO — Digo que preciso falar-lhe.
VÉRA — Pois fale.
ENIO — Quando eu parti para a Europa, ou melhor, meses antes de partir, eu falei-lhe
de certos projetos que alimentava... lembra-se?
VÉRA — Projetos? Eu tenho ouvido tantos projetos de tanta gente...
ENIO — Bem. Mas nos projetos a que me refiro, a senhora era parte integrante...
VÉRA — Começo a recordar-me vagamente...
ENIO — Pois muito bem. Hoje, como ontem, eu desejo repetir-lhe as mesmas palavras
de sempre.
VÉRA — Fale mais claro. Diga logo o que pretende.
ENIO (resoluto) — Dona Véra... as minhas intenções a seu respeito continuam as
mesmas. Tenho-lhe um grande afeto e desejo fazer-lhe um pedido muito sério...
VÉRA — Um pedido de casamento?
ENIO — Perfeitamente. Ofereço-lhe o meu nome a minha devoção.
VÉRA (irônica) — É muito amável... (Noutro tom). Dr. Enio: não sei se o senhor
percebeu, em tempo, que eu sempre o tratei com visível deferência...
ENIO — Deferência que muito me cativou e, — porque não dizer? — encheu-me de
esperanças...
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VÉRA — Neste ponto é que houve o equivoco...


ENIO — Equivoco?
VÉRA — Os homens são muito pouco perspicazes nos casos sentimentais. Eles
confundem sempre simpatia, com afeição; boa vontade, com interesse afetivo...
Tratei-o sempre com polidez e sorri sempre às suas gentilezas, visivelmente
intencionais, porque notava que o senhor era, antes de tudo, sincero.
ENIO — Sinceridade que não se modificou...
VÉRA — Apenas, o senhor, com imprudência muito masculina, não soube colocar-se
devidamente, em face do objeto da sua conquista...
ENIO — Não compreendo...
VÉRA — Os homens não deviam nunca dizer palavras de amor às mulheres, sem
conhecer-lhes antes as preferencias. Ha muitos caminhos para se chegar ao coração
de uma mulher, e, está na habilidade de quem pretende encaminhar-se, o saber
escolher o roteiro mais eficaz... O senhor, dr. Enio, começou sendo afoito e acabou
sendo imprudente. A sua atitude em relação a minha pessoa tornou-se demasiado
eloquente e deu-me demonstração segura dos seus Íntimos sentimentos, das suas
tendências impulsivas; numa palavra — do seu caráter. Pude observar, desde logo,
que era egoísta e ciumento, irritadiço e genioso, prepotente, violento.
ENIO — Admitindo, para discutir, que as suas observações fossem certas, ainda assim
eu poderia modificar-me inteiramente pela força sincera do meu amor...
VÉRA — É muito problemática sempre tão radical transformação num homem de certa
maduresa...
ENIO — Quer dizer que nos rapazes tais modificações são prováveis?
VÉRA — Eu não quero dizer mais do que disse...
ENIO — Percebo. Quis referir-se de modo amável e hábil, à minha idade... à diferença
das nossas idades...
VÉRA — Não cogitei desse detalhe...
ENIO (irritando-se) — A sua lábia, muito feminina; a sua habilíssima dialética; a sua
argumentação caprichosa, encerram e ocultam uma verdade só!
VÉRA (enervando-se) — E qual é essa verdade?
ENIO — É melhor não declara-la, tão evidente, aliás, ela se torna...
VÉRA (avançando) — Exijo que a declare, imediatamente!
ENIO — Pois bem. Ouça: a senhora não aceita o meu pedido, a senhora não aceitará o
pedido de ninguém para casar-se consigo, porque continua a amar com a mesma
veemência o homem que é agora o marido de sua filha!
VÉRA (depois do gesto de estupefação) — Eu já esperava .. De homens da sua
mentalidade, só juízos como esse pôde esperar uma mulher como eu! (Exaltando-se)
Ridículo velhote! (Avança) Pretendi ser gentil com você, escondendo dentro de
razões amáveis o verdadeiro motivo da minha lógica recusa ao seu pedido imbecil...
Eu não aceito o seu pedido porque ele provem de um cretino sem remédio, de um
idiota sem salvação, de um homem mal educado e tão ridículo ao ponto de não
perceber a piedade que inspira às pessoas que o suportam por delicadeza social!
ENIO (desnorteado) — Perdão... mas eu desejo explicar-me melhor...
VÉRA (imperativamente) — Retire-se desta casa imediatamente!

CENA IV
Paulo de Magalhães. Saudade- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – Saudade

OS MESMOS, IVO e EMA

IVO (entrando e vendo a atitude de VERA) — Eu não lhe disse, dr. Enio?? Foi riscar o
fósforo na dinamite... (ri).
VÉRA (ante a indecisão de ENIO) — Não ouviu a minha ordem? Retire-se!
EMA (indo à porta e repetindo o gesto de VÉRA) — Retire-se!
IVO (tomando do braço de ENIO) — Não insista, que a explosão é fatal! (Sai levando
ENIO).
EMA (indo à VÉRA, em atitude joco-séria e estendendo-lhe a mão) — Toque! Acabas
de fazer um gesto de verdadeira profilaxia! Eu chegava até a sonhar com uma atitude
dessas! (Reparando na maneira concentrada e preocupada de VÉRA) Mas... o que
tens? Porque estás assim tão apreensiva? Que te disse esse manipanço?
VÉRA — Tolices... Maldades... (Passeia agitada).
EMA — Mas noto que estás muito exaltada! Aliás, não é de hoje esta postura tua... De
tempos a esta parte, vives enervada, Véra. Tu sabes que sou tua amiga de verdade!
VÉRA — Minha boa Ema. És a única coisa que me resta ainda... Se não fosse a tua
bondosa assistência, a tua permanente ternura a meu lado, não sei... não sei...
EMA — Sofres ainda os efeitos da tua tremenda tragédia intima...
VÉRA — E que amarga tragédia! Quando a gente pôde gritar a sua exaltação e o seu
ódio como eu fiz agora com esse imbecilíssimo dr. Enio, ainda o sofrimento é menor,
é mais suportável... Mas quando se é obrigada a sopitar no intimo do peito os gritos
de desespero e de revolta que vêm do fundo d'alma... Ó! é horrível! horrível!
EMA (carinhosa) — Diz tudo o que quiseres, Véra. Abre o teu coração, grita a tua dor,
expande o teu desespero, confidencia-me a tua desilusão... Ninguém poderia
compreender-te melhor que eu... Fala, minha amiga...
VÉRA — Tudo passou, Ema. Nem dor, nem desespero, nem desilusão... O golpe foi,
realmente, forte demais. Inesperado e violento, ele deixou-me como que num estado
de sonambulismo. Foi como se eu caminhasse por uma imensa estrada trevosa e
negra, e, de repente, um clarão espantoso, brilhante como o sol, cintilasse na
escuridão, ferindo-me a retina muito de perto, cegando-me irremissivelmente! Mas...
isto foi apenas no primeiro instante. Veio a reflexão, voltou a serenidade... O tempo
passou e eu fui vivendo, quase que mecanicamente, sem ódios, sem rancores, sem
ressentimentos... As palavras grosseiras do dr. Enio, provocaram os meus nervos
cansados, irritaram-me a sensibilidade e daí a exaltação .. Mas, já passou... Sinto que
vou retomar a minha serenidade habitual...
EMA (acariciando-a) — Véra, minha querida! Tu estás passando por tremenda
provação e eu tenho admirado, em silêncio, o estoicismo com que enfrentaste e
enfrentas os acontecimentos... Mas não falas agora a verdade... Tu procuras aparentar
uma serenidade que não tens, uma calma que não podes ter...
VÉRA — Não. Durante este ano e pouco que passou, eu nunca falei nada sobre o
assunto, nem com você, nem com ninguém. E hoje posso afirmar que as minhas
palavras são sinceras. Aceitei tudo como um imperativo categórico do destino e...
conformei-me.
EMA — Pretendes acaso convencer-me de que estás integralmente resignada?
VÉRA — Sim. Integralmente. Um único sentimento domina-me agora...
EMA — E qual é ele?
VÉRA — A saudade.
Paulo de Magalhães. Saudade- Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – Saudade

EMA — A saudade?
VÉRA — Sim. Sinto uma saudade imensa dos meus vinte anos! Saudade do passado;
saudade do amor! Saudade das palavras que os homens apaixonados diziam à minha
beleza e à minha mocidade! Saudade de uma mulher que tinha o coração tal qual tem
hoje, mas tinha também um corpo de escultura e um rosto de "madona"! Saudade de
tudo... Saudade cruciante de mim mesma! (Fica estática, olhos parados, numa
evocação).
EMA (depois de pausa) — Saudade? Nada mais?
VÉRA (automaticamente) Saudade! Nada mais.
EMA — Bem... Agora é preciso acalmar-te, minha amiga. Vou arranjar-te um pouco de
agua de flor de laranjeira... Já volto. (VÉRA caminha pela sala, suspira fundo, senta-
se e fica pensativa) Qual, minha amiga... Nós precisamos casar... (Sai).

CENA V
VÉRA E OTO

OTO (entra, com roupas de viagem) — Véra... Dona Véra!


VÉRA (voltando-se e vendo-o com profunda comoção) — O senhor? Você?... O
senhor... Oto!...
OTO (perturbado) — Sim. Cheguei ha pouco... Mas... Náida ainda não está aqui?
VÉRA — Náida? Não. Chegaram hoje?
OTO — Sim. Chegamos hoje do Norte. No cais avisei a Náida que ia passar um
telegrama urgente e que viria logo para aqui... Estranho que ela ainda não tenha
chegado...
VÉRA — Decerto não se demorará... E como está minha filha?
OTO — Muito bem. Deu-se bem no Norte... (Há uma pausa incomoda durante a qual
ambos evitam encarar-se).
VÉRA — E o senhor passa bem?
OTO — Muito bem... obrigado. E dona Ema? E o senhor Ivo? Estão bem?
VÉRA — Sim... estão...
OTO — É estranha a demora de Náida...
VÉRA — Não tardará... certamente. (Noutro tom) — E ela vive contente, no Norte?
OTO — Tenho procurado fazê-la feliz... Parece-me que ela é feliz...
VÉRA — Ainda bem!...

CENA VI
OS MESMOS E NÁIDA

NÁIDA (entrando, de roupas de viagem, em grande alvoroço) — Mamãe! Mamãe!


(Abraça-se a VÉRA).
VÉRA (abraçando-a, comovidíssima) — Minha filha querida! Minha filha! (Beija-a,
afasta-a de si para mira-la, abraça-a de novo. num transporte de ternura e de
alegria sincera) — Mas que surpresa, Náida! Porque não avisaram?
NÁIDA — Justamente porque se avisássemos, não seria surpresa!... (Abraça VÉRA)
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GETEB – Saudade

Você está linda, mamãe! E cada vez mais moça! (Para OTO) Não achas, Oto?
OTO (perturbado) — Realmente... A dona Véra...
NÁIDA — Mas o que é isto? Estás complicado na maneira de falar à mamãe. Dona
Véra? Tu sempre o trataste por você...
OTO — Sim... mas agora... francamente, não sei como deva chama-la...
VÉRA (olhando pela primeira vez, significativamente) — Chame-me... mamãe!
NÁIDA — Muito bem. Chame-a Mamãe... Apesar de que ela não tem idade para tanto...
Mas é uso chamar-se assim às sogras, quando elas são boas, é claro!
VÉRA — Em, minha filha, como estás?
NÁIDA — Ótima! Vivo bem...
VÉRA — És feliz, então?
NÁIDA — Felicíssima, minha mãe! Eu não quero ofender a modéstia do senhor meu
marido, mas Oto tem sido tão bom, tão bom para mim, que eu, francamente, até
tenho medo de falar...
VÉRA — Ainda bem, minha filha. Tu mesma não podes imaginar quanto me alegras
com estas informações...
NÁIDA (indo a OTO e abraçando-o) — Meu maridinho querido! Tu mereces todos os
elogios! (Para VÉRA, com brejeirice) E merece também que a sua linda sogrinha lhe
dê um grande beijo pelo muito bom que ele tem sido com a filhinha dela... Vamos!
Dê um beijo no Oto, mamãe!
VÉRA (depois de imperceptível indecisão) — Porque não? (Beija OTO na testa) Devo
agradecimentos sinceros ao meu novo filho... porque ele cumpriu o único pedido que
lhe fiz à partida: tornar feliz minha filha!
NÁIDA — E agora, a surpresa das surpresas! Deixei aí, na sala ao lado, em mãos da sua
CRIADA, a grande surpresa da nossa chegada! A mamãe vae ficar estupefará! Verá!
(Sai).
VÉRA (apertando a mão de OTO, significativamente) — Obrigada, Oto! Eu estou
vendo que você fez de minha filha, uma mulher feliz! Muito obrigada!
NÁIDA (reentrando com uma criança de dois meses de idade nos braços, envolta em
manta branca) —; Eis aqui a surpresa das surpresas! (Para o bebê) Diga boa tarde à
tua linda vovó!
VÉRA (avançando, transfigurada pela emoção) — Teu filho, Náida! (Toma o bebê nos
braços).
NÁIDA — Teu netinho, mamãe!
VÉRA — Meu netinho! (Comovida até às lagrimas) Meu netinho!
NÁIDA — Oto, como o pai!
VÉRA — E chama-se Oto? Muito bem... (Olhando enternecidamente para o bebê)
Como é lindo! NÁIDA — Lindo como a avó!
VÉRA — (para NÁIDA) — E tu, marota, sem me avisares nada!
NÁIDA — Claro! O Oto queria avisar quando ele nasceu. Eu não consenti e disse:
iremos ao Rio logo que ele esteja em estado de poder viajar e faremos à mamã a
maior surpresa da sua vida!
VÉRA — A maior e a mais linda surpresa da minha vida! (Beijando o bebê) Meu neto!
Meu neto! Olha para a sua vovozinha, meu amor! (Passeando com a criança) Ele
parece que me entende. Reparem como ele me olha com os seus olhinhos tão

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Teatro Brasileiro / UFSJ – Setembro/2011
GETEB – Saudade

negros!...
NÁDIA — Bem, bem, fique com ele, enquanto eu vou aquecer lhe um pouco de leite.
VÉRA — Vá. E vá abraçar também a Ema...
NÁIDA (puxando pela mão de OTO) — Venha ajudar-me a encher o "biberon" do
menino. (Sai com OTO! — (Começa a escurecer. É quase noite).

CENA VII
VÉRA E EMA

VÉRA (acende a lâmpada de um "abal-jour", senta-se à luz, com o bebê ao colo). —


Hein? Parece que está com sono, meu peralta? Que amor!... Como fecha os
olhinhos!... (Olhando ternamente) Meu Deus! Como abre a boquinha! Que soneira,
meu Deus! (embala o bebê) Fecha os olhinhos, fecha!... (Cantarola uma canção de
crianças).
EMA (entrando alvoroçada) — Deixa-me ver, deixa-me ver!
VÉRA (com ternura incomparável na voz, os olhos brilhantes de felicidade — com
orgulho estranho na inflexão) — Cuidado! Cuidado! Não acordes o meu netinho!
(EMA inclina-se, cuidadosamente, sobre o bebê, olhando-o deslumbrada. — VÉRA
recomeça a canção de embalar crianças e canta, canta sempre suavemente).

PANO LENTO

FIM

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