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A RAPOSA E AS UVAS
Guilherme Figueiredo
Peça em 3 atos
1972
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PERSONAGENS
Guilherme Figueiredo. A Raposa e as Uvas - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas
PRIMEIRO ATO
Guilherme Figueiredo. A Raposa e as Uvas - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas
escravo. É o direito que todos tem de ouvir Xantós dizer que a injustiça é justa, que o
sofrimento é alegria, e que este mundo foi organizado de modo que ele – possa beber bom
vinho, ter uma bela casa, amar uma bela mulher. Já terminaste?
MELITA – Um pouco mais e ainda estarás mais bela para o teu filósofo.
CLÉIA – O meu filósofo... Os filósofos são sempre criaturas cheias de más palavras...
MELITA – Tu não amas... Se estivesse na praça outro dia, terias rido dele como os discípulos de
Cisipo. E no entanto ele te ama, é rico, te dá presentes...
CLÉIA – Atira-os em meus pés como gorjetas. (Um tempo) Escuta: aquele capitão dos guardas,
que chegou de Atenas, ainda está na cidade? (Melita termina o penteado.)
MELITA – É por isso que te enfeitas? Teu marido chega hoje Cléia...
CLÉIA – Entrará por aquela porta, e dirá: Cléia meu amor trouxe-te um presente. E depois: Bem,
vou ver meus discípulos.
XANTÓS (Entrando) – Cléia meu amor, trouxe-te um presente!
CLÉIA – Ah, já chegaste? (sinal a Melita para que se retire. Melita sai à D.)
XANTÓS – Beija-me, Cléia. (Beijo convencional) É o presente mais curioso e mais estranho que
já trouxe.
CLÉIA – Deixa-o em cima da mesa.
XANTÓS – Não posso... É muito grande. Queres vê-lo? (Antes que Cléia responda, Xantós bate
palmas. Entra esopo, vestido num saco que lhe cai até o joelhos. Cléia o vê pelo espelho,
enquanto se mira.)
CLÉIA (Entre espantada e divertida) – Que é isso?
XANTÓS – Teu presente.
CLÉIA – Isto? (Olha Esopo) Isto? É um escravo?
XANTÓS – É um escravo. Chama-se Esopo.
CLÉIA (rindo a valer) – Mas como é feio!
XANTÓS – É o escravo mais feio da Grécia...
CLÉIA – E tiveste a coragem de me comprar isto? Xantós, é um insulto! – Como tiveste a
coragem de comprar...?
XANTÓS – Eu não comprei.
ESOPO – Ele não comprou. Eu vim de graça.
CLÉIA – E ele fala?
XANTÓS – De graça, Cléia! Imagina! No Pireu, comprei um negro Etíope – para o serviço
pesado, e o mercador de escravos me deu esse de quebra! E no entanto nem avalias o tesouro
que ele é!
CLÉIA – Ponha daqui para fora o seu tesouro!
XANTÓS – Cléia, tu vais ver!
CLÉIA – Ponha daqui para fora essa imundice humana!
ESOPO – Uma raposa jamais tinha visto o leão. Um dia encontrou-se face a face com ele, e
como era a primeira vez que isto acontecia, sentiu tal pavor que quase morreu. Mas,
encontrando-se pela segunda vez teve medo, porém menor. Da terceira vez que viu o leão
ousou aproximar-se dele para falar com ele. Esta fábula ensina que os nossos olhos se tornam
indiferentes ao feio, assim como se habituam à beleza do corpo da mulher amada.
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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
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XANTÓS (Depois de ouvir, boquiaberto, a história, volta-se para Cléia.) – Que tal?
CLÉIA – É engraçado! (A Esopo) Tu te consideras um leão?
ESOPO – Um tigre e uma raposa discutiam para ver quem era mais belo. O tigre vangloriava-se
incessantemente da vaidade de cores do seu pelo. A raposa então disse: Sou mais bela que tu,
porque tenho cores variadas, - não no corpo mas no espírito.
XANTÓS (como antes) Que tal? É formidável!
CLÉIA – Ele foi educado em algum jardim zoológico?
ESOPO – O pavão zombava da vergonha, e lhe criticava a pobreza de cores de suas penas. Eu
me visto de ouro e púrpura; tu nada trazes de belo em tuas asas. A cegonha retrucou: Eu vôo
para cantar perto dos astros e alcanço a altura do céu; tu só andas no chão lamacento.
XANTÓS (a Cléia) – Vês? É um colega. Um filósofo.
ESOPO – Eu te pecos, não me chames de filósofo. Respeitemos as palavras. Eu sou apenas um
contador de histórias.
CLÉIA (a Xantós) – E ele te dá lições!
XANTÓS – Ele me diverte. Diz a Melita que mostre ao Etíope onde ele deve ficar. (Cléia bate
palmas. Entra Melita, mas, ao dar com Escopo, não pode reprimir um grito de espanto e
horror.)
XANTÓS (Repreendendo) – Melita!
ESOPO – Deixe que ela se assuste senhor... Já acostumei a ver o espanto em todos os rostos que
me olham. Quando me ofereceram a ti, lembra-se do que te disse? Que ainda que eu não
servisse para nada, ao menos poderia aproveitar-me, se tivesse filhos, como personagem das
ameaças. Ou ficam quietos, ou chamo Esopo para assustar vocês!
CLÉIA – Ele é engraçado!
ESOPO – Sou engraçado, sim, mulher. Mas enquanto faço rir os outros, não calculas como fico
sério eu mesmo!
MELITA – De que?
ESOPO – Da minha cara feia e das coisas que eu faço. Nem uma nem outra – provocam o meu
riso. Não merecem essa demonstração de inteligência.
XANTÓS – É por isso que fiquei contigo. Porque és inteligente.
ESOPO – Tu o notaste? (É a vez de Cléia rir.)
MELITA – Mas, Xantós, ele é tão feio! Que os deuses me perdoem!
ESOPO – Eles te perdoarão. Um homem pobre tinha a estátua de um deus, a quem rezava dia e
noite para que lhe desse riqueza. Como o deus não o atendeu, o homem agarrou-o por uma
perna e rebentou-lhe de encontro a parede. A cabeça estava cheia de moedas de ouro – e o
homem enriqueceu. Os deuses perdoam sempre os homem; para isto nós os inventamos. Se os
deuses não existisse, pensa bem, quem havia de nos perdoar?
CLÉIA – É belo o que tu dizes. Quem havia de te perdoar, Xantós?
XANTÓS (A Melita) – Há um escravo Etíope um fora, que também me pertence. Leva-o para
dentro. (Melita retira-se pela porta a F. Xantós dirige-se a Cléia.) Vês como ele é inteligente?
Durante a viagem descobriu um tesouro para mim.
CLÉIA – Descobristes um tesouro e o entregastes a Xantós. Por quê?
ESOPO – Era muito pesado. Se eu ficasse com ele, teria de carregá-lo. Dando-o a teu marido,
obriguei-o a carregar o fardo, como qualquer escravo. Eu desprezo as riquezas. Os délficos,
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sabes? Atiram do alto de um precipício os que entram no templo de Apolo para furtar os
objetos de ouro. Aí está uma punição que nunca receberei. (Melita retira-se pela porta F.
seguida de um enorme negro etíope.)
MELITA (Apontando o negro) É isto?
XANTÓS – Boa compra, heim? (A Esopo, que recua à passagem do negro) Não gostas dele
Esopo.
ESOPO – Prefiro os meus animais aos teus. (Me lita retira-se com o etíope pela porta à D.)
XANTÓS (A Cléia) O etíope espancou Esopo durante a viagem.
CLÉIA – Espancou-o? Por quê?
XANTÓS – Eu mandei, não foi?
ESOPO – Foi. E ele obedeceu com uma inteligência surpreendente.
CLÉIA – Por que foste espancado?
ESOPO – Eu queria ser livre.
CLÉIA – Tentaste fugir?
ESOPO – Não. Tentei obter que Xantós me libertasse.
CLÉIA – Ele te mandou bater? (A Xantós) É indigno de ti!
ESOPO – Não senhora não. É bem digno dele.
XANTÓS – Faço-te espancar de novo!
ESOPO – Não, senhor, não por favor, não... Ainda tenho o corpo coberto de feridas, por causa da
última vez... Por favor, não... não...
XANTÓS – Tem medo da dor? Devias até tornar-te estóico!
ESOPO – É humilhante para o espírito ter o corpo castigado.
CLÉIA – (A Xantós) Por que não o libertas? Ele não serve para muita coisa.
XANTÓS – É o que tu pensas! Conta para ela Esopo, como foi a nossa viagem. Conta a história
da cesta de pão.
ESOPO – Quando vínhamos, Xantós mandou que todos levantassem um fardo. Todos
procuraram os fardos maiores, que eram de tecidos, vasos e estátuas. Eu escolhi o maior, uma
enorme cesta de pão. Todos riram de mim, até o etíope. Mas no primeiro dia tiveram que
comer pão; no segundo também; no terceiro também. Em pouco tempo eu estava carregando a
cesta vazia enquanto os outros gemiam embaixo dos seus fardos.
XANTÓS (A Cléia) – Que tal? Não é inteligente? No meio da viagem descobriu um tesouro.
CLÉIA – Como descobriste?
ESOPO – Na estrada havia um monumento que Xantós disse que era indecifrável. Perguntei: Tu
me libertas se eu decifrar? Como Xantós dissesse que sim, eu li o que estava escrito: Quatro
passos um tesouro. Xantós me perguntou: Como hei de saber se tu a decifraste? Se eu mostrar,
disse eu, tu me dá a metade do que acharmos? Xantós concordou. Quatro passos a diante fiz
um buraco, e dentro dele achei um cofre cheio de moedas de ouro. Então Xantós mandou me
espancar.
XANTÓS – Que necessidade tens de um tesouro? E de seres livres? Nenhum prazer te consolará
de ser rico, nenhuma riqueza te comprará alegria. É melhor que eu seja rico e que tu sejas meu
escravo.
CLÉIA – Tu devias soltá-lo. Ele nem serve de adorno à nossa casa.
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GETEB – A Raposa e as Uvas
AGNOSTOS – Bela casa! Falaste comigo? Vim guardar as colheitas. Quando terminarem, terei
que partir.
CLÉIA (Ansiosa) – Isto durará uns dois meses, não? (Ela terminou de atar de novo as sandálias
de Agnostos. Ele se levanta)
AGNOSTOS – Bela casa...
CLÉIA (Baixo) – Não me respondeste...
AGNOSTOS – Dois meses. (entra Esopo, com um prato que coloca sobre a mesa. Está coberto
com um pano. Xantos e Agnostos se dirigem para a mesa, o primeiro faz ao segundo um sinal
para sentarem-se.)
XANTÓS (Descobrindo o prato) – Ah, língua! (Começa a comer com as mãos , e faz um sinal
parta Melita sirva Agnostos. Este também começa a comer vorazmente, dando grunhidos de
satisfação.) Fizeste bem em trazer língua, Esopo. É realmente uma das melhores coisas do
mundo. (Sinal para que sirvam o vinho. Esopo serve, Xantós bebe.) Vês, estrangeiro, de
qualquer modo é bom possuir riquezas. Não gostas de saborear esta língua e este vinho.
AGNOSTOS (A boca entupindo comendo) – Hum.
XANTÓS – Outro prato Esopo. (Esopo sai à E. e volta imediatamente com outro prato coberto.
Serve, Xantós de boca cheia) Que é isto? Ah, língua de fumeiro! É bom língua de fumeiro,
heim, amigo?
AGNOSTOS – Hum. (Xantós serve-se de vinho)
XANTÓS (Bebendo vinho, e dando sinais de alegria alcoólica) – Concorda-se menos comigo, ó
estóico, que apesar de desprezares o mundo e seus bens não desprezas o bom vinho de Samos
e a boa língua que os pastores da Arcadia preparam!
AGNOSTOS – Hum. (Sinal de Xantós para que Melita sirva o vinho. Ela obedece.)
XANTÓS – Mulher, podias tomar a lira, e cantar um pouco com a tua bela voz. Isto ainda
honraria mais o nosso hóspede.
CLÉIA – Prefiro olhar o repasto, se me permites. Por que não pede a Esopo que conte uma
istória?
XANTÓS – Esopo, traz outro prato. (Esopo sai à E.) Canta mulher. (Um sinal de Cléia e Melita
lhe traz uma lira.)
CLÉIA (Tangendo a lira, num acompanhamento simples, enquanto entra Esopo e para para
escutar)
É sobre o colo de Vênus
Que tua boca emudece
É sobre o ventre de Vênus
Que teu ventre se estremece
É preso nos pés de Vênus
Que sempre teu pé se aquece
Braços à volta de Vênus
Assim teu corpo se esquece
Sabei, efebos e atletas,
Que me rondais desde de cedo
Que Vênus que tanto amais
Ensinou-me o seu segredo.
XANTÓS – Ela canta bem, não? (Serve-se de vinho)
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GETEB – A Raposa e as Uvas
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SEGUNDO ATO
(Mesmo cenário. Luz na final. Ao abrir-se o pano estão em cena Xantós e Esopo. Xantós está
sentado à mesa, despreparado. Chora e bate os pulsos na mesa.)
XANTÓS (Chorando, no auge do desespero) – Tu vês, Esopo... Ela foi embora... Ah, ah.
Deixou-me, a mim, a mim! Ah, ah, ah... Foi-se embora... Que é que eu devo fazer? Ah, ah,
ah!...
ESOPO – Era uma vez um rato que se tornou amigo de uma rã...
XANTÓS (Interrompendo- o) – Basta das tuas malditas histórias! Minha mulher me abandona e
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tu achas que este é o momento de contar histórias de animais? Ah, ah, ah...
ESOPO – Pronto não se conta nada! Então tu amas tua mulher a esse ponto?
XANTÓS (No meio do pranto) – Amo sim... Mas não é isto que me preocupa... Se eu tivesse
abandonado a minha mulher, ninguém diria nada... Mas quando é a mulher que abandona o
marido, todos riem dele... Ah, ah, ah... Eu sou um filósofo, Esopo: ninguém deve rir-se de
mim... Que devo fazer? De um modo geral, as mulheres não gostam dos filósofos.
XANTÓS – Esopo, Samos inteira vai rir-se de mim... Ah, ah...
ESOPO – Samos inteira se ri de mim e eu não me aflijo.
XANTÓS – Esopo, que é que eu devo fazer?
ESOPO – Se eu te disser, tu me libertas?
XANTÓS – Tu farás voltar a minha mulher?
ESOPO – Faço.
XANTÓS – Eu te libertarei. Que devo fazer?
ESOPO – Dá-me dinheiro. Dinheiro! Mais dinheiro. Com isto apenas mulher alguma volta para
casa.
XANTÓS – Pronto.
ESOPO – Dinheiro, Xantós. Dá-me esta bolsa toda. É pouco.
XANTÓS – Pouco? Queres me arruinar?
ESOPO – Dá-me muito dinheiro, Xantós. Todo o dinheiro que tens contigo.
XANTÓS – Queres que além da minha mulher eu perca minha fortuna? Tens certeza que
precisas mesmo de tanto dinheiro?
ESOPO – Queres ou não queres que tua mulher volte?
XANTÓS – Ela não podia voltar... por menos? Não pretendes fugir com o meu dinheiro?
ESOPO – Dá-me tudo. (Ele dá toda a bolsa)
XANTÓS – Estás certo que não se poderia fazer isto por menos?
ESOPO – Ainda tens mais dinheiro contigo? Dentro de pouco tempo terás de volta tua mulher.
(Xantós bate palmas, entra Melita)
MELITA – Tu me chamaste, Xantós?
XANTÓS – Melita, eu dei dinheiro a Esopo, para que faça Cléia voltar para casa. Crês que ele
não fugirá com meu dinheiro? Melita, não seria bom que o seguisses? Não seria bom se
avisasses os guardas que meu escravo me enganou e fugiu? Onde é que eu estava com a
cabeça que...
MELITA – Deste dinheiro a Esopo?
XANTÓS – Dei e agora vejo que fiz mal. Crês que ele volte?
MELITA – Não sei.
XANTÓS (Em prantos) Ah, perdi minha mulher, meu dinheiro e meu escravo. Fui enganado: ah,
Melita que é que eu devo fazer? Ah, ah, ah...
MELITA – E se ele não voltar, Xantós?
XANTÓS – Chamarei os guardas. Eles o procurarão por toda parte. Quando o encontrarem,
ordenarei que o torturem como nunca um escravo foi torturado até hoje! Ah, ah, ah...
MELITA – Gostas mesmo de tua mulher?
XANTÓS – Não é apenas a minha mulher! Agora é minha mulher, meu dinheiro e meu escravo!
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GETEB – A Raposa e as Uvas
MELITA – Esquece um pouco a tua cólera. Olha para mim. Responda gostas de tua mulher?
XANTÓS – Claro que gosto. Se não gostasse não estaria nesse estado. Meu dinheiro!... Ah, ah,
ah...
MELITA – Nunca pretasse atenção em mim, Xantós... E, no entanto, sou eu quem faz o penteado
de Cléia, de que tanto gostas... Sou eu quem escolhe os vestidos dela, e lhe ajeita as dobras do
corpo, para que fique mais bela...
XANTÓS – Que queres dizer com isto?
MELITA – Sou eu quem lhe ensina segredos de amor... Cléia não sabia que uma mulher deve ser
tocada com se fosse uma lira... São mistérios que a gente aprende nos versos de dafo e nos
jardins de Corinto...
XANTÓS – É por isso que eu gosto dela. Ela aprendeu tão bem. E agora...
MELITA – Eu sei melhor do que ela... e tu nunca percebeste... Às vezes quando sirvo o vinho
por cima dos teus ombros, penso que o meu perfume vai te voltar a cabeça, e teus olhos vão
adivinhar os meus seios que quase bate a tua nuca...
XANTÓS – Tu me amas, Melita? Pobre Melita...
MELITA – Nunca digas pobre a uma mulher. De todos os sofrimentos a piedade é o que mais
fere.
XANTÓS – Então tu me amas? E estava aqui, e eu nunca tinha observado...
MELITA – A carícia de que mais gostas, a de percorrer os dedos em tua testa, enlaçá-los teus
cabelos, percorrê-los pelos teus ombros, fui eu que ensinou...
XANTÓS – É curioso como um filósofo compreende as coisas do céu e das estrelas, e não vê o
que passa a três palmos de distância... Minha mulher, Melita, e meu escravo... Ah, ah, ah...
MELITA – De que serve uma mulher que não te aprecia? De que serve um dinheiro que não
gozas? De que serve um escravo que te ironiza?
XANTÓS – Melita, é preciso chamar os guardas, dizer-lhes que meu escravo me furtou e fugiu...
MELITA – Quem sabe não teria fugido com tua mulher?
XANTÓS – O que? Impossível!
MELITA – Quantas coisas impossíveis filósofo, tu já viste acontecer?
XANTÓS – Tens razão! É isto! Fugiram! Enganaram-me os dois! Chamem os guardas!
MELITA – Deixa que se vão... Que perdes com isso? Uma mulher que em vez de te amar prefere
um monstro...
XANTÓS – E meu dinheiro, Melita?
MELITA – É um preço barato para te livrares de ambos. Se eu tomar tua cabeça em minhas
mãos, verás que te esqueças de tudo...
XANTÓS (Explodindo) – Acaso eu posso esquecer que sou um marido enganado? Posso
esquecer que minha mulher fugiu com um reles escravo, que preferiu um homem horrendo a
mim, a mim? E o meu dinheiro? E o ridículo de tudo isto? Toda a população de Samos vai rir
do filósofo que mais admirava! E os meus discípulos? Passarão a ouvir as lições de Crisipo!
Todos dirão quando eu passar: Xantós não perdeste chifres, logo os tens! Não Melita, eles
precisam ser castigados! Chama os guardas, diz ao etíope que prepare o chicote.
MELITA – É só o que queres que eu faça? Não queres mais nada de mim?
XANTÓS – É impossível! Não posso acreditar, não posso! Ela prefere um escravo a mim? Pois
eu mostrarei que prefiro uma escrava a ela!
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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas
MELITA – Xantós (Melita estende os braços a Xantós)( Esopo entra com um saco de fardos,
que atira no chão.)
ESOPO – Pronto!
MELITA – Voltaste?
XANTÓS – E minha mulher?
ESOPO – Não vi tua mulher. Mas comprei estas coisas!
XANTÓS – Com meu dinheiro? Com meu dinheiro!
ESOPO – Para o teu casamento!
MELITA – Sabias que Xantós vai casar-se? É melhor do que eu pensava...
XANTÓS – Por que gastaste meu dinheiro nessas tolices?
ESOPO – Olha, Xantós! Não são tolices! Veja! Tecidos finos de catargo! Colares! Braceletes!
Estatuetas de tanagra! Sandálias leves, de couro de corça! Fios dourados para a cintura!
XANTÓS – Por quê?
MELITA (Interrompe) – Foi bom que fizeste isso! Como são lindos!
XANTÓS – Por que fizeste isto?
ESOPO – A cidade toda sabe que vais casar.
XANTÓS – Disseste na cidade que eu ia casar?
ESOPO – Em cada loja que eu fazia uma compra, vinha sempre a mesma pergunta: Para que são
estes ricos tecidos, Esopo? E esses braceletes? E esses perfumes? E eu respondia: são para o
meu amo, que vai se casar!
XANTÓS – É o cúmulo! Vou mandar espancar-te até que...
MELITA – Não o espanques... Ele percebeu o que havia...
XANTÓS – Como queres que eu não o espanque?! Pois ele me pede dinheiro, prometendo que
faria minha mulher voltar, e em vez disto sai pela cidade a comprar coisas inúteis!
MELITA – Não são coisas inúteis, Xantós. Nós vamos precisar delas.
XANTÓS – Será castigado como nunca foste! Por que não procuraste minha mulher, como
prometeste?
ESOPO – Não era preciso.
MELITA – Claro que não era preciso. Tu és inteligente, Esopo. Farei tudo para que Xantós te
liberte.
ESOPO – Ele prometeu-me. Ele cumprirá a promessa.
XANTÓS – Prometi se fizesse minha mulher voltar...
ESOPO – Tu verás.
MELITA – Agora Cléia não precisa mais voltar...
CLÉIA (Entrando) – Disseram-me que te vais casar? Toda cidade diz que preparas o enxoval de
casamento! (Vê-as no chão) Então é verdade?
XANTÓS – Tu voltaste, oh, tu voltaste... Por que chora, escrava?
ESOPO – É de alegria porque tua mulher voltou. Não é verdade Melita? Que bom coração tu
tens, como te apegas à tua dona. Aí está tua mulher Xantós. Bastou anunciar que irias casar,
para que ela voltasse correndo! Isto não te alegras?
XANTÓS – Alegra-me sim! Ah, felizmente voltaste, Cléia.
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GETEB – A Raposa e as Uvas
ESOPO (entrando) – Xantós! Veja! Duas gralhas no céu! Vem depressa, Xantós, vem ver!
Xantos, por júpiter, venha ver! Xantos! Lá duas gralhas, quase no horizonte! Vem ver,
Xantós! A minha liberdade, louvado sejam os deuses! Olha, Xantós!
XANTÓS – Não, vejo nada.
ESOPO – Lá junto do horizonte...
XANTÓS – Vejo apenas uma gralha voando. Vem ver Cléia. Não é uma só?
ESOPO – Tu demoraste tanto, que uma delas já desapareceu...
XANTÓS (A Cléia) – Vês duas gralhas no céu?
CLÉIA – Não.
XANTÓS – Os deuses não querem que eu te liberte, bem, vou ver meus discípulos. Beihja-me
Cléia.
CLÉIA – Estás chorando?
ESOPO – Não.
CLÉIA – Tens lágrimas nos olhos.
ESOPO – É de tanto olhar o horizonte. Esqueci-me que não devia olhá-lo. As pessoas como eu
deve andar de olhos baixos.
CLÉIA – Por que imaginas que eu voltei?
ESOPO – Porque... porque ama o teu marido.
CLÉIA – Simplesmente? Olha-me bem, Esopo.
ESOPO – Já te disse que devo andar de olhos baixos.
CLÉIA – Olha-me.
ESOPO – Não Cléia. Não é decente. Eu sou feio. Eu sou horrendo.
CLÉIA – Olha-me bem homem horrendo. Tu não vês que és belo refletido na luz dos meus
olhos?
ESOPO – Deus abençoe teus olhos, Cléia, mas não procures fazer com que eu os entenda.
CLÉIA – Entendes, sim. Tu és feio mas não é imbecil.
ESOPO – Sim, Cléia, eu sou imbecil.
CLÉIA – Não és. E meu nome, sabes bem que quer dizer glória.
ESOPO – Não quero a glória. Quero a liberdade.
CLÉIA – Xantós não te dará nunca a liberdade. Nunca! Vamos, vinga-te dele. Toma-me em teus
braços. Ama-me.
ESOPO – Não posso. Sou teu escravo.
CLÉIA – A tua alma tem preconceitos de casta? Não és escravo para mim.
ESOPO – És a mulher do meu dono.
CLÉIA – Sou casada com um homem que te espanca, que te desprezas, que te tortura, que te
humilha. Toma-me. Vamos, imbecil, vinga-te dele.
ESOPO – Não, Cléia. Eu tenho uma vingança maior? A vingança de não querer a raposa,
olhando as uvas no alto da parreira, disse que elas estavam verdes, porque não podia alcançá-
las. Imagina agora as uvas, maduras e doces ao alcance da raposa, oferecendo-se – e imagina
que a raposa as recusassem e elas então ficassem verdes de ódio, verdes pelo desprezo, verdes
do impudor da apetitosa madures não colhida... Isto é vingança! É assim que eu me vingo de
Xantós. Eu não te quero. Eu, a bela, tu a glória, a cobiçada esposa do meu dono – eu não te
quero.
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GETEB – A Raposa e as Uvas
CLÉIA – Tolo! Depois eu convenceria Xantós e ele te libertaria. Não queres a liberdade?
ESOPO – Não assim, Cléia. A liberdade é limpa, só devemos tocá-la com as mãos limpas.
CLÉIA – Então preferes ser escravo?
ESOPO – Sim.
CLÉIA – Quanto melhor fores para ele, mais útil lhe será, e mais ele te reterá como escravo. Só
no desfazemos das coisas inúteis.
ESOPO – Então eu serei útil para Xantós, e inútil para Cléia.
CLÉIA – Recusas.
ESOPO – Recuso.
CLÉIA – Não, Esopo, não recuses. Eu te suplico. Eu quero reparar com um minuto do meu corpo
todas as injustiças que tens sofrido. Tem-me. Beija-me. Tu mereces um grão de prazer da vida
que é tão cruel fazendo-te escravo, feio e inteligente. Toma-me Esopo...
ESOPO – Estas mãos tu vês, tem calos de trabalhos e perderam o tato para o amor; este corpo
tem cicatrizes de chicote, esta minha carne é uma só equimose; tanto a vida e os homens a
esmagaram a pontapés. Que te prazer encontra em te abraçares a uma chaga, a uma carne viva
e sangrenta, e beijá-la com teus lábios, e escondê-la entre tuas coxas? Quem sabe? Quem sabe
se removida a decência, afastados os escrúpulos, e esquecido que eu sou um homem que conta
histórias de bichos para melhorar os homens: quem sabe eu não te possuiria? Quem sabe se a
minha carne não tivesse aprendido a sofrer debaixo do chicote, enquanto a lambe, diz,
aquieta-te, imbecil, nada de desejos, nada de dor! Quem sabe ainda minha carne teria ainda
sensibilidade para provar a tua, como dois animais que se encontra num escuro da floresta, e
se amem, e cada um segue o seu caminho?
CLÉIA – Então? Por que não o fazes?
ESOPO – Porque há dentro de mim uma coisa que o chicote não conseguiu arrancar, uma coisa
sutil, imponderável, que aumenta todos os castigos e põe o irremediável diante de todos os
prazeres.
CLÉIA – Que é?
ESOPO – O remorso, distante querida, querida impossível, o remorso que nos faz bons mas não
torna bom o mundo à nossa volta... É isto, é isto Cléia, só isto foge, foge de mim, beleza de
aurora, sopro da brisa marinha, luz do sol sobre mármore de templo, água fresca à beira do
caminho, foge de mim, foge, foge, vida, para que eu seja eu só – eu mesmo.
CLÉIA (Afagando-o) – Pobre Esopo... Nada te afasta da beleza. Ela está aqui, toma-a. (Ele a
afaga no rosto, nos cabelos, como ela fosse um ídolo ou uma criança, retira bruscamente a
mão)
ESOPO – Não.
CLÉIA – Nada mais?
ESOPO – Nada mais.
CLÉIA – Tu queres que Xantós vai te espancar?
ESOPO – Ele não perdoa quando alguém lhe recusa a esposa?
CLÉIA – Eu não perdôo. Vou dizer-lhe...
ESOPO – Que eu ousei, que fiz propostas, que me repeliste e exiges o desagravo a tua honra.
CLÉIA – És inteligente. Sabes exatamente o que farei.
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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
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ESOPO – É simples, as mulheres são assim. Agora eu passei a ser as uvas, e tu a raposa. Estou
verde, vinga-te.
CLÉIA – Vingo-me sim, porque és tolo. Tu és um escravo, tu és feio, tens diante de ti uma
oportunidade para o prazer e a rejeitas, logo merece castigo.
ESOPO – Gosto que faças assim. Por um momento, realmente, eu falei como não deverias falar.
Mereço o castigo.
XANTÓS (Entrando) – Esopo, Esopo! Ah, estás aí! Salva-me, Esopo! Tu te lembras de ontem,
quando me embriaguei com aquele desconhecido? Te lembras quando eu disse que seria capaz
de beber o mar inteiro? Lembraste do que escrevi que se não fizesse a minha casa seria dele?
Pois ele exige que eu cumpra o que prometi. Mostrou a todos o meu escrito. Todo o povo de
Samos está reunido na praça praia, à espera que eu beba o mar! E riem, Esopo riem de mim,
riem as gargalhadas.
ESOPO – Não sabes suportar o riso? Todos os dias riem da minha cara...
XANTÓS – Que é que eu vou fazer Esopo? Minha casa, meu jardim, tudo... Que é que eu devo
fazer?
ESOPO – Beba o mar, Xantós.
XANTÓS – O momento não é para brincadeiras! Digas o que devo fazer, senão
ESOPO – Tu me espancas? Não sei o que deve fazer! E agora?
CLÉIA – Espanca-o sim, Xantós.
ESOPO – E se eu disser o que fazer, tu me libertas?
XANTÓS – Juro.
CLÉIA – Espanca-o Xantós. Tortura-o. sabes o que ele fazia aqui? Estava me dizendo galanteios,
fazendo-me convites, e afirmava que, se eu me entregasse, estaria vingado de ti.
XANTÓS – Tu?
ESOPO – É a verdade filósofo. Arranca da tua sabedoria a única inspiração que os deuses põem
na tua cabeça: a cólera.
CLÉIA – Xantós, ele insultou tua esposa!
ESOPO – Espanca-me. Espanca-me principalmente na cabeça, para que eu me torne um idiota e
não ache nunca mais uma solução para as tuas dificuldades. Vamos! Manda-me bater! E
depois vai beber o mar, senão perde tudo que tem!
CLÉIA – Era essa a arma que ele tinha contra ti, Xantós! Sabia que ias precisar dele, e veio
cobrar o preço a mim, AA tua mulher!
XANTÓS – E nossa casa, Cléia?
ESOPO – Irás morar ao relento com o teu filósofo. É bom para ele! Talvez consiga imitar
Diogenes. Por que não vais morar no tonel que bebeste ontem?
XANTÓS – Minha casa...
CLÉIA – Que vais fazer, Xantós? Será que da tua cabeça não nasce sozinha uma ideia?
ESOPO – Pensas que a cabeça dele é Júpiter, de onde nasceu minerva?
CLÉIA – Xantós, procura uma solução, mostra que não precisas dele, põe-no a ferros, parte-lhe
os ossos!
ESOPO – Que solução, criatura? Eu sou um filósofo, não entendo das coisas práticas da vida. Tu
que és culpada de me ter deixado ter acontecido isto...
CLÉIA – Eu? Por quê?
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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
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XANTÓS – Por que não me deixou beber a mesa? Por que me deixaste receber o desconhecido?
Por que honraste lavando-lhe os pés? Esopo, a minha casa...
ESOPO – Beba o mar, Xantós!
XANTÓS – O que disseste a minha mulher? Foi uma das tuas brincadeiras, não foi? Foi uma
fábula eu sei...
CLÉIA – Xantós!
XANTÓS – Ah, foi sim... Eu conheço bem Esopo... Ele é assim brincalhão, mas não iria fazer
uma coisa dessas...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós...
XANTÓS – Tu sabes a admiração que eu te dedico, e sabes o quanto vale ser admirado por um
filósofo... Tu és um poeta grego, maior que Píndaro, maior que Homero...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós.
XANTÓS – ... a um poeta são permitidas certas liberdades verbais, certas imagens...
CLÉIA – Ele aqui não é um poeta. É um escravo.
XANTÓS – Que é que tu entendes de poesia? Poesia é para homens como nós heim, Esopo? Nós
sabemos o valor de um verso, de uma palavra eloquente... As tuas fábulas por exemplo...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós.
CLÉIA – Esse escravo te traiu! Exijo que tu o castigues!
XANTÓS – Está levando as coisas ao exagero, criatura de Júpiter! Traiu coisa nenhuma!
CLÉIA – Sórdido!
XANTÓS – Cala-te mulher, senão tu é que será espancada! Esopo, eu te suplico, que é que eu
devo fazer para não perder a minha casa? Esopo, nós sempre fomos tão amigos, existe uma tal
compreensão de nossas almas, és o meu melhor amigo...
ESOPO – Por todos os raios de Júpiter, Xantós! Sou o maior poeta grego, sou incapaz de seduzir
tua mulher, sou teu melhor amigo, acabarás achando que eu não sou tão feio assim...
XANTÓS – E não é mesmo tal! Com a nossa convivência, eu fui olhando melhor, olhando teus
traços, analisando-os observei o teu nariz clássico, grego, greguíssimo, a linha do teus lábios,
o desenho espiritual das tuas sobrancelhas, a graça do teu porte, e cheguei a conclusão de que
tu és belo. E mais a tua beleza é rara, é dessas belezas que só pessoas de gosto requintado
podem saborear, como certos contornos das estátuas de Fidias, certa harmonia de Partenon,
um certo quê das obras de Praxitenes – é isto do Apolo Praxitenes.
ESOPO – Bebe o mar, Xantós! O mar inteiro e isto não castigará a tua audácia! Olha-me bem!
Eu, um Apolo, eu!
XANTÓS – Talvez eu tenha exagerado um pouco mais...
ESOPO – Eu sou feio, ouviste? Feio o que se pode chamar de feio, feio de chorar quando faço a
barba diante do espelho, eu sou horrendo, sou monstruoso, sou filho da hidra, da Quimera, do
Minotauro, de tudo quanto a bela Grécia pode criar de feio...
XANTÓS – A minha casa, Esopo...
ESOPO – Pois bem a minha fidelidade não impede que certas pessoas possam ter piedade,
simpatia e até amor, por mim. Sabes por quê? Não sabes filósofo; é porque elas são tão feias
por dentro como eu sou por fora! Bebe o mar, Xantós, para afogar a feiura que há dentro de ti!
XANTÓS – Eu te liberto, se me disseres o que devo fazer para não perder a minha casa!
ESOPO – E o que me darás, se eu te disser o que fazer para não perder a tua mulher?
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CLÉIA – Não me ofendas mais, Esopo! Quando te darás conta de que me humilha deixando que
esse monstro me desrespeite?
ESOPO – Se não me espancares, Xantós, é porque não acreditaste não crer no que contou de
mim tua mulher, serás um homem desonrado. Escolhe. Que queres? A casa ou a honra?
XANTÓS – Eu te juro que não acredito nela... Tu sabes como são as mulheres... Vai ver que ela
que te andou dizendo coisas...
ESOPO – O que? Para alguma coisa, és filósofo afinal...
CLÉIA – Tu me insultas marido! Todos me insultam!
XANTÓS – Esopo, não queres a liberdade?
ESOPO – Xantós, não queres a honra?
XANTÓS – Escuta, Esopo meu grande amigo...
ESOPO – Não me chegues a me chamar de belo. Não me injuries.
XANTÓS – Escuta... Admitimos que a tenha cortejado... És homem afinal, eu é que devia ser
mais prudente... Cléia me contou tudo, tu não foras mais acabou-se, vamos dar tudo por
encerrado... A minha casa, Esopo!
ESOPO – E se eu te disser que ela, ela é que tentou me seduzir? Ela, mesma?
CLÉIA – Insolente!
ESOPO – Ela!
XANTÓS – Não é possível?
ESOPO – Por que não é possível?
XANTÓS – Porque és feio.
ESOPO – Então eu sou belo bastante para defender a tua casa, e feio demais para dormir com tua
mulher?
XABTÓS – Fizeste, isso mulher?
CLÉIA – Se tivesse feito?
XANTÓS – Não, não... ora, seria, uma loucura, um momento de devaneio, ou de pura
brincadeira... Não, é Esopo? Não é querida? Está tudo acabado, não se fala mais nisso
pronto... Esopo a minha casa. Que é que eu devo fazer? Eu te liberto, Esopo!
ESOPO – Eu não quero a minha liberdade agora. Seria sujo demais. Vou dizer o que farás para
salvar tua casa! Vou dizer grátis.
XANTÓS – Então?
CLÉIA – Xantós, não aceites...
XANTÓS – Cala-te. Então?
ESOPO – Vai até junto da praia. Enfrenta o povo. Dize-lhe que prometeste beber o mar, e
cumprirás a promessa. Bebe o mar, Xantós.
XANTÓS – Beber o mar, Esopo?
ESOPO – Prometeste beber o mar. Reafirma a tua palavra. O mar, apenas o mar. Não as águas
que correm dos rios para o mar. Diz então. Separem as águas dos rios das águas do mar, e eu
beberei toda a água que o mar tiver!
CLÉIA – Xantós , não vai mandar espancá-lo?
XANTÓS – Ah, coitado Cléia! Por que espancar?
CLÉIA – Não vais? Porco! Não ficarei mais aqui! Fica com o teu escravo Xantós. Adeus.
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XANTÓS (Ao etíope) – Espanque este homem. Separem as águas dos rios das águas do mar, e eu
beberei toda a água que o mar iver... Que idéia! Com que caras eles vão ficar! Ah, ah, ah...
ESOPO (Adianta-se, curva-se para esperar a chicotada do etíope que avança) – Bebe o mar,
Xantós... Bebe o mar...
O pano cai antes que etíope desfira o golpe.
****FIM DO 2º ATO****
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TERCEIRO ATO
(Mesmo cenário. Estão em cena Melita e etíope, que permanece parado, de braços cruzados, no
meio da sala.)
MELITA – Tu não me compreendes, etíope mas eu te compreendo. Tu me compreende? Tu
mudas de dono e não discutes. Obedeces. Eu também faço assim, sabes? Com uma
indiferença: Eu quero ser livre, rica e possuir será que não é assim? Dentro de ti não há uma
vontade de ser livre, de saltar fora deste círculo de mármore de uma cidade que desconhece e
que odeias? Ou que bem te consola a vingança de amarrares Esopo num poste e lhe cubra de
chicotadas? É curioso: acaba-se gostando de provocar a dor. Isto lhe dá a sensação de poder.
Pois bem o poder não é isto. O poder é amar. Tu já amastes, Etíope? Deveria ser engraçado
como tu amas... Sabes como se toma nos braços de uma mulher? Sabes envolvê-la pela
cintura, com um só braço deixando o outro livre para as carícias? Não, tu és um selvagem...
Serias belo como um cavalo forte durante o amor, mas não saberia esperar a fêmea
desfolhasse de encontro ao teu peito como uma rosa exausta. Tu não compreendes. Teu tato
deve ser pesado como uma pedra. Teus músculos não sabem amoldar-se a um corpo feminino
como se fosse um grande lençol de carne. Tua boca conhece outros beijos além de morder
outra boca? Deves ser violento e fecundo como uma semente introduzida na terra. Pois bem,
beija-me! Beija-me!
CLÉIA (Entrando à F. ofegante) – Xantós já chegou? Oferecias ao Etíope?
MELITA – Que tens com isso? Voltaste? Quando diz vou-me embora deve-se ir para sempre.
CLÉIA – Voltei. Não tenho de prestar contas dos meus atos. Onde está Xantós?
MELITA – Como vê não está?
CLÉIA – Ainda não voltou da praia?
MELITA – Ele estava na praia?
CLÉIA – Mostrava ao povo de Samos o truque para não beber o mar.
MELITA – Não perderás a casa, nem a fortuna, nem os escravos?
CLÉIA – Não, Melita. Continuará a servir o filósofo a quem amas. Tu o amas não?
MELITA – Por favor não me perguntes... isto.
CLÉIA – Tola... Por que não o seduz? É melhor do que seduzir um negro.
MELITA – Que interesse tem que eu seduza teu marido?
CLÉIA – Tu sabes que o povo quer a liberdade de Esopo?
MELITA – O povo... Cléia tu quer ir embora com Esopo?
CLÉIA – Se tu seduzires meu marido, Melita, eu estarei livre... e Esopo estará livre!
Compreendes?
MELITA – Compreendo...
VOZ DE XANTÓS – É absurdo! Não faço, não faço (entra com Agnostos)
XANTÓS – Não faço! Ah Cléia, voltaste? Que bom! Imagina querem que liberte Esopo!
AGNOSTOS (A Melita) Chama o escravo Esopo.
CLÉIA – Que custa atenderes o povo? Se não o fizeres, ninguém mais te respeitará nesta cidade.
XANTÓS – Que interesse tens nisso?
CLÉIA – Xantós, faz o que opovo quer? E repudia-me. Não perguntes para onde eu vou.
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ESOPO – Toma, Cléia. Liberta-me ou guarda-me (Cléia leva o papiro aos lábios e beija, e
devolve a Esopo)
AGNOSTOS – Quando queres partir?
ESOPO – Já.
AGNOSTOS – Vai buscar o que é teu.
ESOPO – Não tenho nada de meu. As, sim, um alforje para guardar o pão.
XANTÓS – Capitão, se conseguíssemos um jeito de fazê-lo ficar... eu tenho muito dinheiro,
capitão, muito dinheiro! Quanto queres para dizer ao povo que...
CLÉIA – Cala-te Xantós!
ESOPO – Adeus, Xantós.
CLÉIA – Para onde vais?
ESOPO – Vou ver... Ver tido. Ver como olhos livre. Muito longe na Lídia, dizem que tem um
homem Creso, que é o homem mais rico do mundo. Os seus palácios saode ouro, suas roupas
são tecidos com pedras orientais. Quero vê-lo e rir da riqueza dele. Mais longe ainda, na
margem do Nilo, os egípcios construíram túmulos enormes para honrar a memória de seus
reis. Quero ver isto e rir, ver a ambição do homem sob todas as suas formas e rir de sua
monstruosidade como riem do meu rosto. Adeus, Xantós.
XANTÓS – Estás certo de que preferes ir?
ESOPO – Adeus, Cléia. Que os deuses protejam a tua beleza. Ama o teu esposo.
CLÉIA – Adeus, Esopo. Que os deuses te façam feliz.
ESOPO – Adeus, Melita. Que os deuses te libertem.
MELITA – Adeus, Esopo.
ESOPO – Adeus, Capitão.
AGNOSTOS – Adeus, Esopo. (Entra etíope)
ESOPO – Adeus, Etíope. Tu me podias ter batido mais, tal é a tua força. E no entanto ainda estou
vivo. Eu te perdôo.
XANTÓS – Capitão, janta conosco.
CLÉIA – Janta conosco, Capitão.
XANTÓS – Que temos para jantar?
MELITA – Língua.
XANTÓS – Língua? Ah, língua! Que há de melhor do que a língua? A língua é que nos une a
todos,. Sem a língua não poderíamos dizer. A língua é a chave das ciências, o órgão da
verdade e da razão.
CLÉIA – Tu queres jantar?
AGNOSTOS – Hum.
XANTÓS – Graças à língua é que se constroem cidades, graças à língua dizemos o nosso amor.
Com a língua se ensina, se persuade, se instrui... Não gostas de língua?
AGNOSTOS – É o que há de pior no mundo. É a fonte de todas as intrigas, o início de todas as
discussões... Quem já nos disse isso?
XANTÓS – Eu. Eu é que ensino tudo na praça, para meus discípulos.
AGNOSTOS – É a verdade... Esta é uma das tuas lições, Xantós, tu és um grande filósofo. Tu
passarás à imortalidade.
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todos compreenderam a lição. Não deves deixar que ninguém fique pensando: E daí?
XANTÓS – Não era assim que ele fazia?
CLÉIA – Quem?
XANTÓS – Esopo. Muitas vezes eu lhe perguntei para ele: E daí?
CLÉIA – Tu és exceção.
XANTÓS – Nunca poderei contar as coisas dessa maneira. Se ao menos ele estivesse aqui, para
me ensinar... Eu não devia libertá-lo. Vês o quanto perdi? Além disso quando esgotarmos as
fábulas que contou, e de que nos lembramos como é que vou achar outras? Não há meio de eu
inventar uma...
MELITA – Senhora. Trouxeram Esopo preso?
CLÉIA – Preso?
XANTÓS – Para onde levaram?
MELITA – Trouxeram-no para cá. Entregaram-no ao capitão dos guardas.
XANTÓS – Para cá. Por quê?
MELITA – Não sei. Foram os sacerdotes de Delgos que o prenderam, e o entregaram ao capitão.
XANTÓS – Que foi que ele fez para ser preso?
MELITA – Não sei.
CLÉIA – Ele precisa de nós, Xantós.
XANTÓS – Ótimo! Agora poderá contar-nos outras fábulas para eu usar na praça. (Entra Esopo
com as mãos acorrentadas)
ESOPO – Aqui me tens, Xantós. Parece que não podemos nos livrar um do outro.
XANTÓS – É bom que tenha voltado, Esopo, preciso de tuas fábulas e tu podias...
AGNOSTOS – Ele foi preso porque furtou, Xantós.
XANTÓS – Furtou?
ESOPO – Nunca ninguém te prendeu por furtares minhas fábulas... Quando cheguei ao templo,
pediram que eu contasse uma história. Eu contei. Então os homens me prenderam como
ladrão e me acusam de ter roubado o templo de Apolo. Tu sabes os délficos adoram Apolo...
CLÉIA – Roubaste alguma coisa?
ESOPO – Não tu sabes que somente quero o que é meu.
AGNOSTOS – Disseram que Esopo roubou a taça de ouro do templo de Apolo.
XANTÓS – Eles te viram no templo?
ESOPO – Não. Me prenderam, me trouxeram até aqui, e me entregaram ao capitão.
XANTÓS – Por que te trouxeram aqui?
ESOPO – Para que você mesmo verificasse no meu alforje, se aí está a taça de ouro.
AGNOSTOS (Dá o alforje a Xantós) – Vê.
ESOPO – Sabes muito bem que não furto. Se eu amasse o ouro, não te daria o tesouro que achei.
Se eu furtasse, não terias agora a tua mulher.
XANTÓS – Ladrão! Por que fizeste isto? É um crime quase paga com a morte.
ESOPO – Não fiz. Não sei como esta taça veio até aí.
XANTÓS – Está na ordem natural das coisas que taça não anda sozinha.
CLÉIA – Mas por que te trouxeram até aqui?
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ESOPO – Disseram-me que eu era escravo de Xantós. Como escravo, só meu dono pode me
punir.
XANTÓS – Mas tu és livre!
ESOPO – Os délficos não sabem que eu sou livre.
AGNOSTOS – Ee é livre, deve dizer isso aos délficos. Nada tens com esse furto.
ESOPO – Eu não furtei. Alguém colocou a taça no meu alforje.
CLÉIA – Mas por quê? Ficaram com raiva de você?
ESOPO – Pediram que eu contasse uma história para os sacerdotes. Quando acabei de contar,
eles me insultaram.
XANTÓS – Não posso compreender porque razão haviam de ficar zangados com uma das tuas
histórias de bichos. São as coisas mais inocentes do mundo!
ESOPO – Engana-se, Xantós. São terríveis.
CLÉIA – Que história contaste? A do leão e do sapo? A do corvo e da raposa?
ESOPO – Uma que inventei para os délficos.
XANTÓS – E eles compreenderam? Tens razão, eles compreendem. São inteligentíssimos os
sacerdotes! Qual era a história?
ESOPO – Os délficos são devotos de Apolo, a quem dedicaram um templo de mármore. Ficam
horas a fio rezando nesses templos, de tal modo que já nem fazem mais o plantio do trigo.
Quando chega o inverno, passam fome, porque não tem pão, e saem mendigando. A cada um
que encontra, dizem: Estrangeiro, sou sacerdote de Apolo, rezo o ano inteiro para que o deus
proteja nossas cidades. Agora tenho fome, deves dar-me uma moeda. Assim vivem, e por isso,
quando me pediram uma fábula, eu lhes gritei: Ouvi, ó délficos, esta história que inventei e
que vos dedico: A cigarra cantava todo o verão enquanto o escaravelho, armazenava em casa
todo o esterco que encontrava. Quando o inverno chegou, a cigarra faminta dirigiu-se a casa
do escaravelho e pediu o que comer. O escaravelho perguntou: Por que não guardavas esterco
durante o verão? A cigarra respondeu: Eu não tinha tempo para guardar esterco: durante o
verão eu cantava. Cantavas? Retrucou o escaravelho. Se cantavas no verão, dança agora no
inverno.
XANTÓS – E daí?
ESOPO – Daí, Xantós, eles disseram que eu achava mais sábio juntar merda do que rezar a
Apolo.
XANTÓS – Mas é um crime ofender assim a um deus.
ESOPO – Então tu compreendes. Uma fábula não é uma história contada, é uma verdade. E uma
verdade é a única razão para vivermos ou morrermos.
CLÉIA – Mas tu vais morrer...
ESOPO – Alguém colocou a taça no meu alforje. É um crime contra a propriedade e contra os
deuses. Conhecemos o castigo para esse crime?
AGNOSTOS – É o que os délficos querem saber. Qual o castigo que deve ter. porque, segundo a
lei, se és escravo e livre, deves ser atirado do alto da rocha Miampéia. Se és escravo, cabe a
teu dono escolher o castigo. Trouxeram-te aqui porque sabem que és escravo de Xantós. A
taça está aí, foi encontrada no teu alforje. Eles esperam no jardim.
CLÉIA (A Agnostos) – Não lhes disseste que Xantós o libertou?
AGNOSTOS – Não. Se tivesse dito jogariam Esopo do alto do precipício.
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CLÉIA – Pede-lhes um minuto mais. (A Esopo) Então vais morrer? Não, não... que é que se pode
fazer?
ESOPO – Nada.
CLÉIA – Tu lhe mostraste a carta de alforia?
ESOPO – Não.
CLÉIA – Ah, felizmente!
ESOPO – Por que felizmente?
CLÉIA – Isto te salva, Esopo! Não foi por isso que escondeste a carta?
ESOPO – Não. Escondi-a porque queria te ver, antes de morrer. E, supondo-me ainda escravo,
eles me trariam à presença de Xantós... A tua presença.
CLÉIA – Xantós! Tu pode salvá-lo! Diz aos délficos que ele é teu escravo! Onde está a carta de
alforria? Vamos queimá-la...
XANTÓS – É uma excelente ideia Esopo. Ficarás com nós novamente.
ESOPO – Como escravo.
XANTÓS – Ora, apenas para simular as coisas, até que isto seja esquecido. Na verdade,
podemos ser sócios.
ESOPO – Sócios?
XANTÓS – Tu me comporás fábulas e eu contarei aos meus discípulos. Não calculas o sucesso
que fazem as tuas histórias! Em breve estarás rico!
ESOPO – Minhas histórias foram feitas para serem contadas de graça.
XANTÓS – Pois, tu as contarás de graça. O meu nome lhes emprestará um caráter de sistema
filosófico! Escuta: seres livres, depois. Tu me darás as tuas fábulas. Que queres mais? Olha:
eu sei que Cléia te ama. Ficarás com ela, pronto! Eu a repudiarei , ela será sua... Que tal?
ESOPO – Bebe o mar, Xantós!
XANTÓS – Mas se não aceita, os délficos te matam.
CLÉIA – Aceita, Esopo...
ESOPO – Também entras na sociedade de teu marido, Cléia? Eu entro com as fábulas e Xantós
com a esposa...
CLÉIA – Não tolo! Eu entro com o meu amor, tu entrarás com a vida... Vai Xantós, dizer aos
délficos que Esopo te pertence e que só tu tens o direito de castigá-lo.
ESOPO – E depois, ele terá que me castigar, porque de qualquer modo para os délficos fui eu
quem furtou a taça do templo.
XANTÓS – Eu te darei um pequeno castigo, só para contentar os délficos. E pronto. (bate o
gongo. O etíope aparece.) Eu te levarei, para mostrar aos délficos que foste punido,
devolverei a taça... onde está a carta de alforria?
ESOPO – Está aqui.
XANTÓS – Entrega-a.
ESOPO – Não.
XANTÓS – Desconfias de mim? Tens medo que eu não devolva? Fica com ela. Vai tu mesmo
dizer que és meu escravo. Eu confirmarei a tua palavra.
ESOPO – Eu não sou escravo.
MELITA – A vida, Esopo... A vida e a mulher que amas...
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ESOPO – Onde está o precipício que reservais para os livres? Onde? Onde?
(Sai. Cléia acompanha-o enquanto o rumor da multidão atinge ao auge. Xantos dá alguns
passos em direção ao pórtico; Melita barra-lhe o caminho e toma a sua cabeça de encontro ao
peito.
FIM
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