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GETEB – A Raposa e as Uvas

Depto de Letras, Artes e Cultura

A RAPOSA E AS UVAS
Guilherme Figueiredo

Peça em 3 atos

1972

**********************************
PERSONAGENS

Xantós, filósofo de Samos


Cléia, sua esposa
Melita, escrava
Esopo, escravo frígio
Agnostos, capitão ateniense
O Etíope, escravo

Guilherme Figueiredo. A Raposa e as Uvas - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em
Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas

PRIMEIRO ATO

(Casa de Xantós, em Samos. Entrada à D. E. e F. Um gongo. Uma mesa. – Cadeiras. Um


clismos. Pelo pórtico ao fundo, vê-se o jardim. Estão em cena Cléia esposa de Xantós, e Melita,
escrava. Melita penteia os cabelos de – Cléia.)
MELITA (Penteando os cabelos de Cléia.) – Então Rodopis contou que Crisipo reuniu os
discípulos na praça, apontou pra o teu marido e exclamou: - Tens o que não perdeste. Xantós
respondeu: É certo. Crisipo continuou: Não perdeste chifres. Xantós concordou: Sim. Crisipo
finalizou: Tens o que não perdeste não perdeste chifres, logo os tens. (Cléia ri.)
CLÉIA – É engenhoso a quem eles chamam de sofisma. Meu marido vai à praça para ser
insultado pelos outros filósofos?
MELITA – Não; Xantós é extraordinariamente inteligente... No meio do riso geral, disse a
Crisipo: Crisipo, tua mulher te engana, e no entanto não – tens chifres: o que perdeste foi a
vergonha! E aí os discípulos de Crisipo e os Xantós atiraram-se uns contra os outros.
CLÉIA – Brigaram? (assentimento de Melita) Como é que Rodópis soube disto?
MELITA – Ela estava na praça.
CLÉIA – Vocês escravas, sabem mais do que eu do que se passa em Samos do que nós, -
mulheres livres...
MELITA – As mulheres livres ficam em casa. De certo modo são mais escravas do que nós.
CLÉIA – É verdade. Gostarias de ser livre?
MELITA – Não Cléia. Tenho conforto aqui, e todos me consideram. É bom ser escrava de um
homem ilustre como teu marido. Eu poderia ter sido comprada por algum mercador de
escravos, ou um soldado, e no entanto tive a sorte de vir a pertencer a Xantós.
CLÉIA – Acha isto um consolo?
MELITA – Uma honra. Um filósofo, Cléia!
CLÉIA – Eu preferia que ele fosse menos filósofo e mais marido. Para mim os filósofos são
pessoas que se encarregam de aumentar o número de substantivos abstratos.
MELITA – Xantós inventa muitos?
CLÉIA – Nem ao menos isso ele faz é um filósofo que não aumenta o vocabulário das
controversas. Já terminastes?
MELITA – Quase. É bom pentear os teus cabelos: meus dedos adquirem a luz que eles tem.
Xantós beija os teus cabelos? (muxoxo de Cléia.)E u admiro o teu marido.
CLÉIA – Por que não diz logo que o amas? Gostarias bastante que ele me repudiasses te tornasse
livre e casasse contigo...
MELITA – Não digas isto... Além do mais, Xantós te ama...
CLÉIA A sua maneira. Faço parte dos bens dele, como tu, as outras escravas esta casa....
MELITA – Sempre que viaja te traz presentes.
CLÉIA – Não é o amor que leva os homens a dar presentes às esposas: é a vaidade; ou o
remorso.
MELITA – Xantós é um homem ilustre.
CLÉIA – É o filósofo da propriedade: Os homens são desiguais: a cada um toca uma dádiva ou
um castigo. É isto democracia grega... É o direito que o povo tem de escolher o seu tirano; é o
direito que o tirano tem de determinar; deixo-te pobre, faço-te rico; deixo-te livre, faço-te

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escravo. É o direito que todos tem de ouvir Xantós dizer que a injustiça é justa, que o
sofrimento é alegria, e que este mundo foi organizado de modo que ele – possa beber bom
vinho, ter uma bela casa, amar uma bela mulher. Já terminaste?
MELITA – Um pouco mais e ainda estarás mais bela para o teu filósofo.
CLÉIA – O meu filósofo... Os filósofos são sempre criaturas cheias de más palavras...
MELITA – Tu não amas... Se estivesse na praça outro dia, terias rido dele como os discípulos de
Cisipo. E no entanto ele te ama, é rico, te dá presentes...
CLÉIA – Atira-os em meus pés como gorjetas. (Um tempo) Escuta: aquele capitão dos guardas,
que chegou de Atenas, ainda está na cidade? (Melita termina o penteado.)
MELITA – É por isso que te enfeitas? Teu marido chega hoje Cléia...
CLÉIA – Entrará por aquela porta, e dirá: Cléia meu amor trouxe-te um presente. E depois: Bem,
vou ver meus discípulos.
XANTÓS (Entrando) – Cléia meu amor, trouxe-te um presente!
CLÉIA – Ah, já chegaste? (sinal a Melita para que se retire. Melita sai à D.)
XANTÓS – Beija-me, Cléia. (Beijo convencional) É o presente mais curioso e mais estranho que
já trouxe.
CLÉIA – Deixa-o em cima da mesa.
XANTÓS – Não posso... É muito grande. Queres vê-lo? (Antes que Cléia responda, Xantós bate
palmas. Entra esopo, vestido num saco que lhe cai até o joelhos. Cléia o vê pelo espelho,
enquanto se mira.)
CLÉIA (Entre espantada e divertida) – Que é isso?
XANTÓS – Teu presente.
CLÉIA – Isto? (Olha Esopo) Isto? É um escravo?
XANTÓS – É um escravo. Chama-se Esopo.
CLÉIA (rindo a valer) – Mas como é feio!
XANTÓS – É o escravo mais feio da Grécia...
CLÉIA – E tiveste a coragem de me comprar isto? Xantós, é um insulto! – Como tiveste a
coragem de comprar...?
XANTÓS – Eu não comprei.
ESOPO – Ele não comprou. Eu vim de graça.
CLÉIA – E ele fala?
XANTÓS – De graça, Cléia! Imagina! No Pireu, comprei um negro Etíope – para o serviço
pesado, e o mercador de escravos me deu esse de quebra! E no entanto nem avalias o tesouro
que ele é!
CLÉIA – Ponha daqui para fora o seu tesouro!
XANTÓS – Cléia, tu vais ver!
CLÉIA – Ponha daqui para fora essa imundice humana!
ESOPO – Uma raposa jamais tinha visto o leão. Um dia encontrou-se face a face com ele, e
como era a primeira vez que isto acontecia, sentiu tal pavor que quase morreu. Mas,
encontrando-se pela segunda vez teve medo, porém menor. Da terceira vez que viu o leão
ousou aproximar-se dele para falar com ele. Esta fábula ensina que os nossos olhos se tornam
indiferentes ao feio, assim como se habituam à beleza do corpo da mulher amada.

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XANTÓS (Depois de ouvir, boquiaberto, a história, volta-se para Cléia.) – Que tal?
CLÉIA – É engraçado! (A Esopo) Tu te consideras um leão?
ESOPO – Um tigre e uma raposa discutiam para ver quem era mais belo. O tigre vangloriava-se
incessantemente da vaidade de cores do seu pelo. A raposa então disse: Sou mais bela que tu,
porque tenho cores variadas, - não no corpo mas no espírito.
XANTÓS (como antes) Que tal? É formidável!
CLÉIA – Ele foi educado em algum jardim zoológico?
ESOPO – O pavão zombava da vergonha, e lhe criticava a pobreza de cores de suas penas. Eu
me visto de ouro e púrpura; tu nada trazes de belo em tuas asas. A cegonha retrucou: Eu vôo
para cantar perto dos astros e alcanço a altura do céu; tu só andas no chão lamacento.
XANTÓS (a Cléia) – Vês? É um colega. Um filósofo.
ESOPO – Eu te pecos, não me chames de filósofo. Respeitemos as palavras. Eu sou apenas um
contador de histórias.
CLÉIA (a Xantós) – E ele te dá lições!
XANTÓS – Ele me diverte. Diz a Melita que mostre ao Etíope onde ele deve ficar. (Cléia bate
palmas. Entra Melita, mas, ao dar com Escopo, não pode reprimir um grito de espanto e
horror.)
XANTÓS (Repreendendo) – Melita!
ESOPO – Deixe que ela se assuste senhor... Já acostumei a ver o espanto em todos os rostos que
me olham. Quando me ofereceram a ti, lembra-se do que te disse? Que ainda que eu não
servisse para nada, ao menos poderia aproveitar-me, se tivesse filhos, como personagem das
ameaças. Ou ficam quietos, ou chamo Esopo para assustar vocês!
CLÉIA – Ele é engraçado!
ESOPO – Sou engraçado, sim, mulher. Mas enquanto faço rir os outros, não calculas como fico
sério eu mesmo!
MELITA – De que?
ESOPO – Da minha cara feia e das coisas que eu faço. Nem uma nem outra – provocam o meu
riso. Não merecem essa demonstração de inteligência.
XANTÓS – É por isso que fiquei contigo. Porque és inteligente.
ESOPO – Tu o notaste? (É a vez de Cléia rir.)
MELITA – Mas, Xantós, ele é tão feio! Que os deuses me perdoem!
ESOPO – Eles te perdoarão. Um homem pobre tinha a estátua de um deus, a quem rezava dia e
noite para que lhe desse riqueza. Como o deus não o atendeu, o homem agarrou-o por uma
perna e rebentou-lhe de encontro a parede. A cabeça estava cheia de moedas de ouro – e o
homem enriqueceu. Os deuses perdoam sempre os homem; para isto nós os inventamos. Se os
deuses não existisse, pensa bem, quem havia de nos perdoar?
CLÉIA – É belo o que tu dizes. Quem havia de te perdoar, Xantós?
XANTÓS (A Melita) – Há um escravo Etíope um fora, que também me pertence. Leva-o para
dentro. (Melita retira-se pela porta a F. Xantós dirige-se a Cléia.) Vês como ele é inteligente?
Durante a viagem descobriu um tesouro para mim.
CLÉIA – Descobristes um tesouro e o entregastes a Xantós. Por quê?
ESOPO – Era muito pesado. Se eu ficasse com ele, teria de carregá-lo. Dando-o a teu marido,
obriguei-o a carregar o fardo, como qualquer escravo. Eu desprezo as riquezas. Os délficos,

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sabes? Atiram do alto de um precipício os que entram no templo de Apolo para furtar os
objetos de ouro. Aí está uma punição que nunca receberei. (Melita retira-se pela porta F.
seguida de um enorme negro etíope.)
MELITA (Apontando o negro) É isto?
XANTÓS – Boa compra, heim? (A Esopo, que recua à passagem do negro) Não gostas dele
Esopo.
ESOPO – Prefiro os meus animais aos teus. (Me lita retira-se com o etíope pela porta à D.)
XANTÓS (A Cléia) O etíope espancou Esopo durante a viagem.
CLÉIA – Espancou-o? Por quê?
XANTÓS – Eu mandei, não foi?
ESOPO – Foi. E ele obedeceu com uma inteligência surpreendente.
CLÉIA – Por que foste espancado?
ESOPO – Eu queria ser livre.
CLÉIA – Tentaste fugir?
ESOPO – Não. Tentei obter que Xantós me libertasse.
CLÉIA – Ele te mandou bater? (A Xantós) É indigno de ti!
ESOPO – Não senhora não. É bem digno dele.
XANTÓS – Faço-te espancar de novo!
ESOPO – Não, senhor, não por favor, não... Ainda tenho o corpo coberto de feridas, por causa da
última vez... Por favor, não... não...
XANTÓS – Tem medo da dor? Devias até tornar-te estóico!
ESOPO – É humilhante para o espírito ter o corpo castigado.
CLÉIA – (A Xantós) Por que não o libertas? Ele não serve para muita coisa.
XANTÓS – É o que tu pensas! Conta para ela Esopo, como foi a nossa viagem. Conta a história
da cesta de pão.
ESOPO – Quando vínhamos, Xantós mandou que todos levantassem um fardo. Todos
procuraram os fardos maiores, que eram de tecidos, vasos e estátuas. Eu escolhi o maior, uma
enorme cesta de pão. Todos riram de mim, até o etíope. Mas no primeiro dia tiveram que
comer pão; no segundo também; no terceiro também. Em pouco tempo eu estava carregando a
cesta vazia enquanto os outros gemiam embaixo dos seus fardos.
XANTÓS (A Cléia) – Que tal? Não é inteligente? No meio da viagem descobriu um tesouro.
CLÉIA – Como descobriste?
ESOPO – Na estrada havia um monumento que Xantós disse que era indecifrável. Perguntei: Tu
me libertas se eu decifrar? Como Xantós dissesse que sim, eu li o que estava escrito: Quatro
passos um tesouro. Xantós me perguntou: Como hei de saber se tu a decifraste? Se eu mostrar,
disse eu, tu me dá a metade do que acharmos? Xantós concordou. Quatro passos a diante fiz
um buraco, e dentro dele achei um cofre cheio de moedas de ouro. Então Xantós mandou me
espancar.
XANTÓS – Que necessidade tens de um tesouro? E de seres livres? Nenhum prazer te consolará
de ser rico, nenhuma riqueza te comprará alegria. É melhor que eu seja rico e que tu sejas meu
escravo.
CLÉIA – Tu devias soltá-lo. Ele nem serve de adorno à nossa casa.

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XANTÓS – Tu também te colocas ao lado dele?


ESOPO – Também te colocas a meu lado? Não deves fazê-lo. Eu sou útil, senhora. Eu descubro
tesouros, eu conto histórias, eu sei como desembaraça complicações. O homem que tenha
tudo isto na Mao é capaz de desprezar tanta riqueza? Eu sou feio, eu não agrado as mulheres;
os meus donos não precisam ter temores. Não posso fugir, todos me reconheceriam.
(Melancólico) E no entanto, eu gostaria de ser livre. Não tenho visto no mundo senão um
reflexo da vida através de minhas lágrimas. Por isso sou sempre triste e sagaz.
CLÉIA – Manda-o embora, Xantós...
XANTÓS – Que prazer encontra em discipar os meus bens? Mandar embora um escravo? Que
poderá ele fazer sozinho no mundo? não Esopo, ainda não estás maduro para a liberdade. Só
quando aprenderes comigo a ser forte, rico, poderoso, então poderás enfrentar a vida se te
perderes. Vou ver meus discípulos. (Sai à F.)
CLÉIA – Então queres ser livre?
ESOPO – É um direito à esperança, o dos escravos.
CLÉIA – Para que queres ser livre?
ESOPO – Deve haver no mundo um lugar onde haja um recato, onde se beber água com a concha
da mão, sem que ninguém venha dizer se é hora de beber água ou ter sede. Um lugar onde os
frutos estejam ao alcance de todos, e onde os rouxinóis não fujam quando um homem se
aproxima. Já reparaste como os animais fogem da presença dos homens? Quanto mais eu
conheço os homens, mais amo os animais. Queria poder contar-lhe as minhas histórias, na
língua deles, dizer-lhe: Sabes o lobo devorador de cordeiros, existem uns animais, os animais
também se matam uns aos outros e no entanto não comem cadáveres: cobrem-nos de terra,
para os vermes. Não matam para alimentar-se, matam pelo prazer de matar.
CLÉIA (Divertindo-se) – Como aprenderias a linguagem dos animais?
ESOPO – Já não aprendi a dos homens? Eles se falam, e no entanto nunca se entendem. Os
animais, não: com um simples grito dizem: quero amar. Tenho fome. Aí vem um inimigo.
Estou ferido! Imagina quanta sutileza de som é preciso para exprimir tudo isso, com um
simples cheiro, um grasnado, um urro um latido, um pio! Imagina se tivéssemos um tão
apurado ouvido que ao pronunciarmos a palavra amor – pudéssemos saborear todos os sons
ignorados, os sons que desperdiçamos com nossos ouvidos duros e maus! Ah, ser livre e ouvir
a voz da liberdade que canta em todos os sons!
CLÉIA – Queres mesmo ser livre, Esopo? Aproveita agora: foge.
ESOPO – Não posso. Olha para mim. A liberdade é não haver perigo de ser caçado. Olha o meu
rosto. Todos sabem aquele é Esopo, escravo de Xantós. A liberdade não é um ato clandestino;
é preciso que todos saibam que a gente é livre. Saibam e respeitem.
CLÉIA – Foge! Eu direi a Xantós que te mandei embora.
ESOPO – Ele te castigará. Para que haja liberdade, é preciso que ninguém seja castigado por
causa dela. Se eu sentir um só remorso na minha liberdade, não serei livre.
CLÉIA – Como és ingênuo!
ESOPO – Xantós é mais ingênuo que eu, criou um mundo de desejos satisfeitos, e pensa que este
mundo existe. Eu sou parecido contigo; não me conformo.
CLÉIA – Como sabes que eu não me conformo?
ESOPO – Vê-se nos teus olhos. Às vezes brilham como se houvesse dentro de ti uma madrugada
de desejos, a luz murcha-se como um pôr-do-sol.

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CLÉIA – Proibo-te de olhar meus olhos.


ESOPO – Tens razão. Não é justo que meu rosto se reflita em suas pupilas. (ele baixa os olhos)
CLÉIA (Reconciliando-se num clismos) – Conta-me uma história.
ESOPO – Um lobo, vendo um cão gordo preso por uma coleira, perguntou-lhe quem te
alimentou deste modo? Meu dono, o caçador respondeu o cão. Que os deuses me livrem do
mesmo destino, exclamou o lobo
CLÉIA (Rindo) – Já contaste esta fábula a Xantós?
ESOPO – Contei. Quando terminei, ele disse: E daí?
CLÉIA – Agora conta uma para mim.
ESOPO – Uma raposa esfomeada, vendo um cacho de uvas no alto de uma parreira, quis
alcançá-la, mas não o conseguiu. Então afastou-se, dizendo: Estão verdes.
CLÉIA – Agora eu pergunto com Xantós: E daí?
ESOPO – Não tu não me farás essa pergunta. Não precisa dela.
XANTÓS (Entrando contentíssimo) Cléia. Ah, estás aí! E tu também Esopo. Fiz uma descobert,
agora na praça! Uma descoberta maravilhosa! É alguma coisa de espantar! (confidencial) Um
homem raro, raríssimo!
CLÉIA – Mais uma das tuas descobertas!
XANTÓS – Mais raro do que Esopo! Um homem que desdenha todos os bens do mundo, todos
os prazeres, todos os sofrimentos! (Vai até a porta à F.) Entra Agnostos. É um atleta brutal,
vestido de capitão dos guardas de Atenas, com uma grande espada e um escudo. Minha
mulher. Meu escravo Esopo. (A Esopo e Cléia). Olhem bem este homem criaturas. Olha,
Esopo, ele pensa mais do que tu...
CLÉIA – Tu és capitão dos guardas chegados de Atenas?
AGNOSTOS (Apenas um grunhido) – Hum.
XANTÓS – Eu estava lá, com meus discípulos e vi este homem. Quis honrá-lo. Estrangeiro,
queres vinho? Ele respondeu...
AGNOSTOS (Interrompendo e respondendo, como acima, abanando negativamente a cabeça) –
Hum.
XANTÓS – Queres ver as disputas nos estádios? Ele respondeu...
AGNOSTOS (Como acima) – Hum.
XANTÓS – Queres ir aos banhos. Queres ir ao templo de minerva? Queres ver as cortesãs nas
ruas de Vênus? A tudo ele respondia que não. Que queres afinal e ele respondeu...
AGNOSTOS – Nada não nada.
XANTÓS – Que tal? Não é admirável? É o primeiro que encontro. Sempre ensinei aos meus
discípulos que os homens querem coisas, querem amor, querem riquezas, querem viver mais,
querem alegria. E no entanto encontro este exemplar excepcional; um homem que nada quer.
E vejam: não se sente infeliz nem desesperado. Está sereno, calmo como um deus! Podia
querer tanta coisa, porque é forte, jovem, belo...
CLÉIA – Belo...
XANTÓS – E nada quer. Que dizes disso Esopo?
ESOPO (A Agnotos) – Gostas de viver?
AGNOSTOS – Não.

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ESOPO – Se te furassem os olhos, ficarias desesperado?


AGNOSTOS – Não.
ESOPO – Se te ensurdecessem, tu enlouquecerias?
AGNOSTOS – Não.
ESOPO – Se te espancassem, até que teu corpo ficasse em carne viva, tu sofrerias?
AGNOSTOS – Não.
ESOPO (A Xantós) – Xantós, este homem é apenas um homem que ama, e não é amado. Só
quando isso acontece é que um capitão de guardas fica assim – tão indiferente. Se isto não
fosse verdade, este homem estaria fazendo tudo para ser um general.
CLÉIA (A Agnostos, com certa ansiedade) – Então, tu amas?
XANTÓS (Intervindo) – Ora, amigo as mulheres! Será que acaso elas te dão aborrecimento?
Cléia ele é um capitão! Os militares não tem complicações com as mulheres... Não é verdade
amigo? As mulheres aí está uma coisa biológica... É belo reconheçamos, um par de coxas lisas
e unidas, umas nádegas que balançam como barcas ancoradas no Pireu... Mas é só. Não é
verdade amigo?
AGNOSTOS – Hum.
CLÉIA – Tu não devias falar assim, tendo a mulher que tem...
XANTÓS – Tolice... Faz trazer o vinho, muito vinho! (Cléia bate palmas. Entra Melita.)
CLÉIA – Vinhos e taças. (Melita sai à E. volta com o vinho, uma ânfora e taças, serve Xantós e
Agnostos.)
XANTÓS – Sim. Tu, tu és minha mulher. Mas eu falo dentro da minha filosofia. Alta costura,
forno e fogão, o ideal para o lar. Isto se compra. Assim também, quando se vai ao Corinto, e
se quer um prazer... Bárbaras impas do Norte, de olhos profundos de turquesa e pelos cor de
ouro sobre a pele; etíopes cujo beijo negro tem um sabor de fruta selvagem; árabes gordas,
maternais, nas quais o homem pousa como um inseto numa grande flor; gregas sábias, sadias,
que vertem versos de Safo em teus ouvidos enquanto amam, e que acariciam a cítara como ela
também fosse um instrumento de amor... Isto são as mulheres. (Ele bebe)
CLÉIA – Não devias falar assim diante de tua mulher, Xantós.
XANTÓS – Ora, aí está... É um momento de confidências... E tu Esopo, que dizes das mulheres?
(Ele se serve de vinho e bebe.)
ESOPO – Para mim são de duas espécies: as que nos fazem sofrer e as que sofrem por nós. Das
que sofrem por nós só encontrei uma.
XANTÓS (rindo-se furiosamente) – Esopo, fizeste sofrer uma mulher? Conta, conta... Quem
foi?
ESOPO – Minha mãe.
XANTÓS – Ah, espertalhão! Então sofres por todas as outras, heim? Ouve bem, cléia, ouve bem,
Melita... Ele sofre... Afinal num aspecto és um homem mais cheio de desejos do que eu, e
menos estóico do que este capitão. Queres as mulheres e elas não te querem... Que achas de
Melita?
MELITA (indignada) – Senhor!
XANTÓS – Aí estaria a união perfeita: a beleza e o espírito, um ideal espartano.
ESOPO – Eu não aspiro a tanto.
XANTÓS – A que aspira então?

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ESOPO – Tu sabes. A liberdade. Apenas a liberdade.


XANTÓS – Que poderias tu fazer da liberdade sem o amor?
XANTÓS – Tolice... O amor como tu entendes, não é liberdade alguma, é sujeição. Não é
verdade amigo?
AGNOSTOS (bebendo) – Hum.
ESOPO – É formidável a precisão deste capitão quando argumenta.
XANTÓS – Este homem é um filósofo! É um sábio!
ESOPO – Achas que um capitão dos guardas pode ser um sábio?
XANTÓS – Não me contradigas! (tirando um saco de moedas da cintura) Toma, Esopo! Corre
ao mercado! Compra lá tudo que houver de melhor para um banquete. (A Agnostos) Quero
honrar-te, pelo teu valor e pela tua sabedoria, confrade!
ESOPO – É curioso como os ricos gastam com quem não merece o dinheiro – que não merecem
ganhar...
XANTÓS – Corre, Esopo! O que houver de melhor! (Esopo sai à F.)
MELITA (Ao cruzar por Cléia) – É ele?
CLÉIA – É ele. (Melita sai à E.)
XANTÓS (A Agnostos) – Sente-se, amigo. (Agnostos se senta) Mulher, honra-o. Lava-lhe os pés.
(Cléia vai buscar uma ânfora de água e uma bacia de bronze) Amigo, estás em Samos em
casa de um filósofo. Meu nome é Xantós, e tenho muitos discípulos entre os estudantes de
Sanos. Minha mulher é Cléia esta é Melita, minha escrava. O que foi buscar as iguarias é
Esopo, que diz ter nascido em Frigia, e é contador de histórias. (Melita serve o vinho) traz as
taças para Agnostos e Xantós. (Entra Cléia com a bacia e a ânfora, deposita-as no chão,
ajoelha derrama a água na bacia; depois tira uma das sandálias de Agnostos, e começa a lavar-
lhes os pés, enquanto ele bebe o vinho.)
CLÉIA (Alto) – Estiveste na guerra?
AGNOSTOS (poucas palavras, bebendo o vinho) Em Creta. Bom vinho, Xantós.
XANTÓS – Estás em Samos, amigo. A terra do mais doce vinho que se conhece.
AGNOSTOS – Bela esposa, Xantós. (Cléia sorri para ele.)
XANTÓS – Esta é também uma terra de belas mulheres. (Sinal a Melita para servir o vinho.
Melita serve o vinho a Agnostos.)
AGNOSTOS – Bela escrava Xantós.
XANTÓS – Se não fosse desprendida das coisas do mundo, eu te faria presente dela. (ele se
serve de vinho)
CLÉIA – Dar minha escrava Xantós?
MELITA – Oh, senhor!
XANTÓS (A Agnostos) Vês? Elas temem. Se bem que vivem bem aqui. Nem minha mulher quer
perder a escrava, nem a escrava quer perder o bem estar que tem nessa casa. (As duas
mulheres.) Aprendam com ele, criatura a desprezar as coisas terrenas.
AGNOSTOS (circulando o olhar) Bela casa.
XANTÓS – Gostas? Ictino que fez o Partenon de Atenas, foi quem construiu para mim. (Serve-
se de vinho.)
CLÉIA (Baixo, a Agnostos) – Ficarás muito tempo em Samos?

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AGNOSTOS – Bela casa! Falaste comigo? Vim guardar as colheitas. Quando terminarem, terei
que partir.
CLÉIA (Ansiosa) – Isto durará uns dois meses, não? (Ela terminou de atar de novo as sandálias
de Agnostos. Ele se levanta)
AGNOSTOS – Bela casa...
CLÉIA (Baixo) – Não me respondeste...
AGNOSTOS – Dois meses. (entra Esopo, com um prato que coloca sobre a mesa. Está coberto
com um pano. Xantos e Agnostos se dirigem para a mesa, o primeiro faz ao segundo um sinal
para sentarem-se.)
XANTÓS (Descobrindo o prato) – Ah, língua! (Começa a comer com as mãos , e faz um sinal
parta Melita sirva Agnostos. Este também começa a comer vorazmente, dando grunhidos de
satisfação.) Fizeste bem em trazer língua, Esopo. É realmente uma das melhores coisas do
mundo. (Sinal para que sirvam o vinho. Esopo serve, Xantós bebe.) Vês, estrangeiro, de
qualquer modo é bom possuir riquezas. Não gostas de saborear esta língua e este vinho.
AGNOSTOS (A boca entupindo comendo) – Hum.
XANTÓS – Outro prato Esopo. (Esopo sai à E. e volta imediatamente com outro prato coberto.
Serve, Xantós de boca cheia) Que é isto? Ah, língua de fumeiro! É bom língua de fumeiro,
heim, amigo?
AGNOSTOS – Hum. (Xantós serve-se de vinho)
XANTÓS (Bebendo vinho, e dando sinais de alegria alcoólica) – Concorda-se menos comigo, ó
estóico, que apesar de desprezares o mundo e seus bens não desprezas o bom vinho de Samos
e a boa língua que os pastores da Arcadia preparam!
AGNOSTOS – Hum. (Sinal de Xantós para que Melita sirva o vinho. Ela obedece.)
XANTÓS – Mulher, podias tomar a lira, e cantar um pouco com a tua bela voz. Isto ainda
honraria mais o nosso hóspede.
CLÉIA – Prefiro olhar o repasto, se me permites. Por que não pede a Esopo que conte uma
istória?
XANTÓS – Esopo, traz outro prato. (Esopo sai à E.) Canta mulher. (Um sinal de Cléia e Melita
lhe traz uma lira.)
CLÉIA (Tangendo a lira, num acompanhamento simples, enquanto entra Esopo e para para
escutar)
É sobre o colo de Vênus
Que tua boca emudece
É sobre o ventre de Vênus
Que teu ventre se estremece
É preso nos pés de Vênus
Que sempre teu pé se aquece
Braços à volta de Vênus
Assim teu corpo se esquece
Sabei, efebos e atletas,
Que me rondais desde de cedo
Que Vênus que tanto amais
Ensinou-me o seu segredo.
XANTÓS – Ela canta bem, não? (Serve-se de vinho)

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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
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AGNOSTOS (respondendo com a boca cheia) Hum.


XANTÓS (A Esopo) Serve outro prato. (Serve) Que trazes aí?
ESOPO – Língua.
XANTÓS – Mais língua? Não te disse que trouxesse o que há de melhor para o meu hóspede?
Por que só trazes língua? Queres expor-me ao ridículo?
ESOPO – Que há de melhor do que a língua? A língua é o que nos une todos, quando falamos.
Sem a língua nada poderíamos dizer. A língua é a chave das ciências, o órgão da verdade e da
razão. Graças a língua dizemos o nosso amor. Com a língua se ensina, se persuade, se instrui,
se reza, se explica, se canta, se descreve, se elogia, se mostra, se afirma. É com a língua que
dizemos sim. É a língua que ordena os exércitos à vitória, é a língua que desdobra os versos
de Homero. A língua cria um mundo de Esquilo, a palavra de Demóstenes. Toda a Grécia,
Xantós, das colunas do Partenon às sotátuas de Pidias, dos deuses do Olimpo à glória sobre
Troia, da ode do poeta ao ensinamento do filósofo, toda a Grécia foi feita com a língua, a
língua de belos gregos claros falando para a eternidade.
XANTÓS (Levantando-se, entusiasmado, já meio ébrio) – Bravo, Esopo. Realmente, tu nos
trouxeste o que há de melhor. (Toma outro saco da cintura e atira-o ao escravo) Vai agora ao
mercado, e traze-nos o que houver de pior, pois quero ver a sua sabedoria! (Esopo retira-se à
F. com o saco, Xantós fala a Agnostos.) Entao, não é útil e bom possuir um escravo assim?
AGNOSTOS (A boca cheia) – Hum.
XANTÓS – Mulher bebe tu também, que hoje estamos felizes! Bebe! (Sinal a Melita para que
sirva o vinho a Cléia. Melita obedece) bebe! Eu meu caro confrade que sou precisamente ao
contrário de ti, gosto de usar as riquezas sejam elas um escravo, sejam estes vinhos que
bebemos. Mais vinho! (Melita obedece) Hoje eu seria capaz de beber um tonel de vinho!
Farias isto comigo filósofo?
AGNOSTOS – Hum. (Entra Esopo com prato coberto.)
XANTÓS – Agora que já sabemos o que há de melhor na terra, vejamos o que há de pior na
opinião deste horrendo escravo! Língua, ainda? Mais língua? Não disseste que língua era o
que havia de melhor? Queres ser espancado?
ESOPO – A língua senhor, é o que há de pior no mundo. É a fonte de todas as intrigas, o início
de todos os processos, a mãe de todas as discussões. É a língua que usam os maus poetas que
nos fatigam na praça, é a língua que usam os filósofos que não sabem pensar. É a língua que
mente, que esconde, que tergiverse, que blasfema, que insulta, que se acovarda, que se
mendiga, que impreca, que bajula, que destrói, que calunia, que vende, que seduz, é com a
língua que dizemos morre e canalha e corja. É com a língua que dizemos não. Com a língua
Aquiles mostrou sua cólera, com a língua a Grécia vai tumultuar os pobres cérebros humanos
para toda a eternidade. Aí está, Xantós, porque a língua é a pior de todas as coisas!
XANTÓS – Bravo, Esopo! Bravo! Tu vês, confrade, então não é bom ser rico e possuir inclusive
um escravo como este? Vinho, Melita, vinho! (Melita sai à sua E. e volta com outra ânfora e
serve) Sinto-me numa tal alegria, que seria capaz de beber todo o vinho que existe na face da
terra. Meu caro filósofo, aqui está em tua frente um homem que é capaz de beber o mar
inteiro! Não crês que eu seja capaz de beber o mar inteiro?
AGNOSTOS (Sinal negativo) – Hum.
CLÉIA – Xantós, estás ébrio.
XANTÓS – Cala-te mulher! (A Agnostos) Não crês que eu seja capaz de beber todo o mar? Diga
a ele Esopo eu não sou capaz de beber o mar? Queres a sobremesa. (Gesto para Esopo servir

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o vinho) Então pensas que não sou capaz de beber o mar?


AGNOSTOS (Como acima) – Hum.
XANTÓS – Eu aposto contigo! Aposto o que quiseres! A minha casa, o meu dinheiro, os meus
escravos, tudo! Aceita? Vamos, aceita.
AGNOSTOS (Afirmativo) – Hum.
XANTÓS – Deem-me uma folha, deem-me com que escrever. Duvidas da palavra de Xantós!
Esopo, dê-me com que escrever!
CLÉIA – Estás ébrio, Xantós!
XANTÓS – Cala-te! (Esopo traz uma folha de papiro e um pincel) Aqui está... Quando queres
que eu beba o mar?
AGNOSTOS (Com indiferença) – Hum, hum.
XANTÓS (No uso da embriagues, escrevendo) – Xantós, o filósofo, se compromete a ir amanhã
à praia de Samos beber o mar; e se não o fizer, entregará seus bens, sua casa, seus escravos ao
seu amigo... (Suspendendo o pincel) Como é teu nome?
AGNOSTOS – Agnostos.
XANTÓS (escrevendo) – Agnostos. (entregando o pairo) Toma. (Certo de recusa de Agnostos.
Xantós força a receber) Toma! (Agnostos aceita) Tu vais ver confrade, vais ver! Onde está a
sobremesa? Quem fez essa sobremesa?
CLÉIA – Fui, eu Xantós.
XANTÓS – É a sobremesa mais detestável que já provei em toda a minha vida! Quem faz um
prato desses deve ser queimada na fogueira!
CLÉIA – Xantós!
XANTÓS – Na fogueira! (no auge do delírio) Que me tragam achas de lenha que eu vou queimar
minha mulher!
AGNOSTOS (Iluminando com a ideia, e pela primeira vez falando discursivamente) Queres
queimar tua mulher? Espera, e eu vou trazer a minha. Assim nós faremos uma fogueira só, e
queimaremos as duas! (Põe o rosto entre as mãos e começa a chorar copiosamente)
CLÉIA (Levantando-se e falando veemente a Xantós) – Não te suporto mais, filósofo imundo!
Adeus! (Sai energicamente pela porta à F.)
ESOPO – É a melhor fábula que já conheci até hoje!

**** FIM 1º ATO****

SEGUNDO ATO

(Mesmo cenário. Luz na final. Ao abrir-se o pano estão em cena Xantós e Esopo. Xantós está
sentado à mesa, despreparado. Chora e bate os pulsos na mesa.)
XANTÓS (Chorando, no auge do desespero) – Tu vês, Esopo... Ela foi embora... Ah, ah.
Deixou-me, a mim, a mim! Ah, ah, ah... Foi-se embora... Que é que eu devo fazer? Ah, ah,
ah!...
ESOPO – Era uma vez um rato que se tornou amigo de uma rã...
XANTÓS (Interrompendo- o) – Basta das tuas malditas histórias! Minha mulher me abandona e

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tu achas que este é o momento de contar histórias de animais? Ah, ah, ah...
ESOPO – Pronto não se conta nada! Então tu amas tua mulher a esse ponto?
XANTÓS (No meio do pranto) – Amo sim... Mas não é isto que me preocupa... Se eu tivesse
abandonado a minha mulher, ninguém diria nada... Mas quando é a mulher que abandona o
marido, todos riem dele... Ah, ah, ah... Eu sou um filósofo, Esopo: ninguém deve rir-se de
mim... Que devo fazer? De um modo geral, as mulheres não gostam dos filósofos.
XANTÓS – Esopo, Samos inteira vai rir-se de mim... Ah, ah...
ESOPO – Samos inteira se ri de mim e eu não me aflijo.
XANTÓS – Esopo, que é que eu devo fazer?
ESOPO – Se eu te disser, tu me libertas?
XANTÓS – Tu farás voltar a minha mulher?
ESOPO – Faço.
XANTÓS – Eu te libertarei. Que devo fazer?
ESOPO – Dá-me dinheiro. Dinheiro! Mais dinheiro. Com isto apenas mulher alguma volta para
casa.
XANTÓS – Pronto.
ESOPO – Dinheiro, Xantós. Dá-me esta bolsa toda. É pouco.
XANTÓS – Pouco? Queres me arruinar?
ESOPO – Dá-me muito dinheiro, Xantós. Todo o dinheiro que tens contigo.
XANTÓS – Queres que além da minha mulher eu perca minha fortuna? Tens certeza que
precisas mesmo de tanto dinheiro?
ESOPO – Queres ou não queres que tua mulher volte?
XANTÓS – Ela não podia voltar... por menos? Não pretendes fugir com o meu dinheiro?
ESOPO – Dá-me tudo. (Ele dá toda a bolsa)
XANTÓS – Estás certo que não se poderia fazer isto por menos?
ESOPO – Ainda tens mais dinheiro contigo? Dentro de pouco tempo terás de volta tua mulher.
(Xantós bate palmas, entra Melita)
MELITA – Tu me chamaste, Xantós?
XANTÓS – Melita, eu dei dinheiro a Esopo, para que faça Cléia voltar para casa. Crês que ele
não fugirá com meu dinheiro? Melita, não seria bom que o seguisses? Não seria bom se
avisasses os guardas que meu escravo me enganou e fugiu? Onde é que eu estava com a
cabeça que...
MELITA – Deste dinheiro a Esopo?
XANTÓS – Dei e agora vejo que fiz mal. Crês que ele volte?
MELITA – Não sei.
XANTÓS (Em prantos) Ah, perdi minha mulher, meu dinheiro e meu escravo. Fui enganado: ah,
Melita que é que eu devo fazer? Ah, ah, ah...
MELITA – E se ele não voltar, Xantós?
XANTÓS – Chamarei os guardas. Eles o procurarão por toda parte. Quando o encontrarem,
ordenarei que o torturem como nunca um escravo foi torturado até hoje! Ah, ah, ah...
MELITA – Gostas mesmo de tua mulher?
XANTÓS – Não é apenas a minha mulher! Agora é minha mulher, meu dinheiro e meu escravo!

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MELITA – Esquece um pouco a tua cólera. Olha para mim. Responda gostas de tua mulher?
XANTÓS – Claro que gosto. Se não gostasse não estaria nesse estado. Meu dinheiro!... Ah, ah,
ah...
MELITA – Nunca pretasse atenção em mim, Xantós... E, no entanto, sou eu quem faz o penteado
de Cléia, de que tanto gostas... Sou eu quem escolhe os vestidos dela, e lhe ajeita as dobras do
corpo, para que fique mais bela...
XANTÓS – Que queres dizer com isto?
MELITA – Sou eu quem lhe ensina segredos de amor... Cléia não sabia que uma mulher deve ser
tocada com se fosse uma lira... São mistérios que a gente aprende nos versos de dafo e nos
jardins de Corinto...
XANTÓS – É por isso que eu gosto dela. Ela aprendeu tão bem. E agora...
MELITA – Eu sei melhor do que ela... e tu nunca percebeste... Às vezes quando sirvo o vinho
por cima dos teus ombros, penso que o meu perfume vai te voltar a cabeça, e teus olhos vão
adivinhar os meus seios que quase bate a tua nuca...
XANTÓS – Tu me amas, Melita? Pobre Melita...
MELITA – Nunca digas pobre a uma mulher. De todos os sofrimentos a piedade é o que mais
fere.
XANTÓS – Então tu me amas? E estava aqui, e eu nunca tinha observado...
MELITA – A carícia de que mais gostas, a de percorrer os dedos em tua testa, enlaçá-los teus
cabelos, percorrê-los pelos teus ombros, fui eu que ensinou...
XANTÓS – É curioso como um filósofo compreende as coisas do céu e das estrelas, e não vê o
que passa a três palmos de distância... Minha mulher, Melita, e meu escravo... Ah, ah, ah...
MELITA – De que serve uma mulher que não te aprecia? De que serve um dinheiro que não
gozas? De que serve um escravo que te ironiza?
XANTÓS – Melita, é preciso chamar os guardas, dizer-lhes que meu escravo me furtou e fugiu...
MELITA – Quem sabe não teria fugido com tua mulher?
XANTÓS – O que? Impossível!
MELITA – Quantas coisas impossíveis filósofo, tu já viste acontecer?
XANTÓS – Tens razão! É isto! Fugiram! Enganaram-me os dois! Chamem os guardas!
MELITA – Deixa que se vão... Que perdes com isso? Uma mulher que em vez de te amar prefere
um monstro...
XANTÓS – E meu dinheiro, Melita?
MELITA – É um preço barato para te livrares de ambos. Se eu tomar tua cabeça em minhas
mãos, verás que te esqueças de tudo...
XANTÓS (Explodindo) – Acaso eu posso esquecer que sou um marido enganado? Posso
esquecer que minha mulher fugiu com um reles escravo, que preferiu um homem horrendo a
mim, a mim? E o meu dinheiro? E o ridículo de tudo isto? Toda a população de Samos vai rir
do filósofo que mais admirava! E os meus discípulos? Passarão a ouvir as lições de Crisipo!
Todos dirão quando eu passar: Xantós não perdeste chifres, logo os tens! Não Melita, eles
precisam ser castigados! Chama os guardas, diz ao etíope que prepare o chicote.
MELITA – É só o que queres que eu faça? Não queres mais nada de mim?
XANTÓS – É impossível! Não posso acreditar, não posso! Ela prefere um escravo a mim? Pois
eu mostrarei que prefiro uma escrava a ela!

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MELITA – Xantós (Melita estende os braços a Xantós)( Esopo entra com um saco de fardos,
que atira no chão.)
ESOPO – Pronto!
MELITA – Voltaste?
XANTÓS – E minha mulher?
ESOPO – Não vi tua mulher. Mas comprei estas coisas!
XANTÓS – Com meu dinheiro? Com meu dinheiro!
ESOPO – Para o teu casamento!
MELITA – Sabias que Xantós vai casar-se? É melhor do que eu pensava...
XANTÓS – Por que gastaste meu dinheiro nessas tolices?
ESOPO – Olha, Xantós! Não são tolices! Veja! Tecidos finos de catargo! Colares! Braceletes!
Estatuetas de tanagra! Sandálias leves, de couro de corça! Fios dourados para a cintura!
XANTÓS – Por quê?
MELITA (Interrompe) – Foi bom que fizeste isso! Como são lindos!
XANTÓS – Por que fizeste isto?
ESOPO – A cidade toda sabe que vais casar.
XANTÓS – Disseste na cidade que eu ia casar?
ESOPO – Em cada loja que eu fazia uma compra, vinha sempre a mesma pergunta: Para que são
estes ricos tecidos, Esopo? E esses braceletes? E esses perfumes? E eu respondia: são para o
meu amo, que vai se casar!
XANTÓS – É o cúmulo! Vou mandar espancar-te até que...
MELITA – Não o espanques... Ele percebeu o que havia...
XANTÓS – Como queres que eu não o espanque?! Pois ele me pede dinheiro, prometendo que
faria minha mulher voltar, e em vez disto sai pela cidade a comprar coisas inúteis!
MELITA – Não são coisas inúteis, Xantós. Nós vamos precisar delas.
XANTÓS – Será castigado como nunca foste! Por que não procuraste minha mulher, como
prometeste?
ESOPO – Não era preciso.
MELITA – Claro que não era preciso. Tu és inteligente, Esopo. Farei tudo para que Xantós te
liberte.
ESOPO – Ele prometeu-me. Ele cumprirá a promessa.
XANTÓS – Prometi se fizesse minha mulher voltar...
ESOPO – Tu verás.
MELITA – Agora Cléia não precisa mais voltar...
CLÉIA (Entrando) – Disseram-me que te vais casar? Toda cidade diz que preparas o enxoval de
casamento! (Vê-as no chão) Então é verdade?
XANTÓS – Tu voltaste, oh, tu voltaste... Por que chora, escrava?
ESOPO – É de alegria porque tua mulher voltou. Não é verdade Melita? Que bom coração tu
tens, como te apegas à tua dona. Aí está tua mulher Xantós. Bastou anunciar que irias casar,
para que ela voltasse correndo! Isto não te alegras?
XANTÓS – Alegra-me sim! Ah, felizmente voltaste, Cléia.

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ESOPO – Dá-me a liberdade.


MELITA – Pedes agora a tua liberdade, quando eu poderia ter conseguido a minha. Se não
tivesse voltado, teu marido tomaria a mim como esposa! Fica com a mulher que tu pagas! Fica
com a esposa que se enfeita para agradar ao capitão dos guardas!
CLÉIA – Melita! Não creias no que ela diz por despeito! Retira-te!
ESOPO – Pobre Melita! Não soubeste escolher um bom meio para alcançar a liberdade...
MELITA (Que vai se retirando, chorando) – Pensas acaso que és nobre escravo horrendo.
ESOPO – Xantós, a minha liberdade!
XANTÓS – Depois falaremos nisto.
ESOPO – Xantós, cumpre a tua promessa.
CLÉIA – Nós te estimamos Esopo. Por que queres ir embora?
ESOPO – Porque eu também me estimo. Minha liberdade, Xantós
XANTÓS – Cléia tem razão.
ESOPO – Tu prometeste, Xantós.
XANTÓS – Tu não crês em augúrios, mas eu creio. Só serás livre se isso for de bem augúrio para
mim. Vai até aquela porta. Se vires no céu duas gralhas voando, isto quererá dizer que os
deuses desejam que eu te liberte. E eu te libertarei. Mas se eles não aparecerem é sinal de que
os deuses não querem que eu te liberte agora. Vai até a porta.
ESOPO – Por que fazes com que um ato de justiça venha a depender do acaso? Devias desde
logo cumprir a tua palavra – ainda que os deuses estivessem contra ela.
XANTÓS – Se os deuses estiverem a teu favor, eu te libertarei. (Para Cléia) É bom ver-te de
novo aqui, sentir que está presente, olhar-te quando quiser... Beijar-te...
CLÉIA – Esses presentes são meus?
XANTÓS – Sim, são teus. Beija-me, Cléia. (Ouvem risos) Eles riem.
CLÉIA – Riem.
XANTÓS – Riem porque ele é feio.
CLÉIA – Riem porque ele lhe s contou alguma história.
XANTÓS – Não. Riem, porque estão contentes. Os homens riem por isso. A história dele, a
feiura dele não passam de pretextos. Quando estamos contentes, o pretexto inspira o riso.
CLÉIA – Não gostas dele, Xantós. Vê-se que não gosta dele.
XANTÓS – Não sei porque mas não se pode gostar de quem tem razão.
CLÉIA – Se Esopo tem razão, por que não o mandas embora?
XANTÓS – Ele ainda não está maduro para a liberdade.
CLÉIA – Achas que anda melhor com cadeias nos pés?
XANTÓS – Cléia, tu o aprecias não?
CLÉIA – De certo modo. (risos fora) Vês? Ele sabe fazer rir. É por isso que eu gosto dele.
XANTÓS – E eu não te faço rir?
CLÉIA – De outra maneira. Quando rio de Esopo, rio do que ele diz. Quando rio de ti, rio do que
não disseste. Ou melhor: rio do que disseste, mas é diferente compreendes?
XANTÓS – Não, não compreendo.
CLÉIA (ri) – Aí está por que eu rio.

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ESOPO (entrando) – Xantós! Veja! Duas gralhas no céu! Vem depressa, Xantós, vem ver!
Xantos, por júpiter, venha ver! Xantos! Lá duas gralhas, quase no horizonte! Vem ver,
Xantós! A minha liberdade, louvado sejam os deuses! Olha, Xantós!
XANTÓS – Não, vejo nada.
ESOPO – Lá junto do horizonte...
XANTÓS – Vejo apenas uma gralha voando. Vem ver Cléia. Não é uma só?
ESOPO – Tu demoraste tanto, que uma delas já desapareceu...
XANTÓS (A Cléia) – Vês duas gralhas no céu?
CLÉIA – Não.
XANTÓS – Os deuses não querem que eu te liberte, bem, vou ver meus discípulos. Beihja-me
Cléia.
CLÉIA – Estás chorando?
ESOPO – Não.
CLÉIA – Tens lágrimas nos olhos.
ESOPO – É de tanto olhar o horizonte. Esqueci-me que não devia olhá-lo. As pessoas como eu
deve andar de olhos baixos.
CLÉIA – Por que imaginas que eu voltei?
ESOPO – Porque... porque ama o teu marido.
CLÉIA – Simplesmente? Olha-me bem, Esopo.
ESOPO – Já te disse que devo andar de olhos baixos.
CLÉIA – Olha-me.
ESOPO – Não Cléia. Não é decente. Eu sou feio. Eu sou horrendo.
CLÉIA – Olha-me bem homem horrendo. Tu não vês que és belo refletido na luz dos meus
olhos?
ESOPO – Deus abençoe teus olhos, Cléia, mas não procures fazer com que eu os entenda.
CLÉIA – Entendes, sim. Tu és feio mas não é imbecil.
ESOPO – Sim, Cléia, eu sou imbecil.
CLÉIA – Não és. E meu nome, sabes bem que quer dizer glória.
ESOPO – Não quero a glória. Quero a liberdade.
CLÉIA – Xantós não te dará nunca a liberdade. Nunca! Vamos, vinga-te dele. Toma-me em teus
braços. Ama-me.
ESOPO – Não posso. Sou teu escravo.
CLÉIA – A tua alma tem preconceitos de casta? Não és escravo para mim.
ESOPO – És a mulher do meu dono.
CLÉIA – Sou casada com um homem que te espanca, que te desprezas, que te tortura, que te
humilha. Toma-me. Vamos, imbecil, vinga-te dele.
ESOPO – Não, Cléia. Eu tenho uma vingança maior? A vingança de não querer a raposa,
olhando as uvas no alto da parreira, disse que elas estavam verdes, porque não podia alcançá-
las. Imagina agora as uvas, maduras e doces ao alcance da raposa, oferecendo-se – e imagina
que a raposa as recusassem e elas então ficassem verdes de ódio, verdes pelo desprezo, verdes
do impudor da apetitosa madures não colhida... Isto é vingança! É assim que eu me vingo de
Xantós. Eu não te quero. Eu, a bela, tu a glória, a cobiçada esposa do meu dono – eu não te
quero.

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CLÉIA – Tolo! Depois eu convenceria Xantós e ele te libertaria. Não queres a liberdade?
ESOPO – Não assim, Cléia. A liberdade é limpa, só devemos tocá-la com as mãos limpas.
CLÉIA – Então preferes ser escravo?
ESOPO – Sim.
CLÉIA – Quanto melhor fores para ele, mais útil lhe será, e mais ele te reterá como escravo. Só
no desfazemos das coisas inúteis.
ESOPO – Então eu serei útil para Xantós, e inútil para Cléia.
CLÉIA – Recusas.
ESOPO – Recuso.
CLÉIA – Não, Esopo, não recuses. Eu te suplico. Eu quero reparar com um minuto do meu corpo
todas as injustiças que tens sofrido. Tem-me. Beija-me. Tu mereces um grão de prazer da vida
que é tão cruel fazendo-te escravo, feio e inteligente. Toma-me Esopo...
ESOPO – Estas mãos tu vês, tem calos de trabalhos e perderam o tato para o amor; este corpo
tem cicatrizes de chicote, esta minha carne é uma só equimose; tanto a vida e os homens a
esmagaram a pontapés. Que te prazer encontra em te abraçares a uma chaga, a uma carne viva
e sangrenta, e beijá-la com teus lábios, e escondê-la entre tuas coxas? Quem sabe? Quem sabe
se removida a decência, afastados os escrúpulos, e esquecido que eu sou um homem que conta
histórias de bichos para melhorar os homens: quem sabe eu não te possuiria? Quem sabe se a
minha carne não tivesse aprendido a sofrer debaixo do chicote, enquanto a lambe, diz,
aquieta-te, imbecil, nada de desejos, nada de dor! Quem sabe ainda minha carne teria ainda
sensibilidade para provar a tua, como dois animais que se encontra num escuro da floresta, e
se amem, e cada um segue o seu caminho?
CLÉIA – Então? Por que não o fazes?
ESOPO – Porque há dentro de mim uma coisa que o chicote não conseguiu arrancar, uma coisa
sutil, imponderável, que aumenta todos os castigos e põe o irremediável diante de todos os
prazeres.
CLÉIA – Que é?
ESOPO – O remorso, distante querida, querida impossível, o remorso que nos faz bons mas não
torna bom o mundo à nossa volta... É isto, é isto Cléia, só isto foge, foge de mim, beleza de
aurora, sopro da brisa marinha, luz do sol sobre mármore de templo, água fresca à beira do
caminho, foge de mim, foge, foge, vida, para que eu seja eu só – eu mesmo.
CLÉIA (Afagando-o) – Pobre Esopo... Nada te afasta da beleza. Ela está aqui, toma-a. (Ele a
afaga no rosto, nos cabelos, como ela fosse um ídolo ou uma criança, retira bruscamente a
mão)
ESOPO – Não.
CLÉIA – Nada mais?
ESOPO – Nada mais.
CLÉIA – Tu queres que Xantós vai te espancar?
ESOPO – Ele não perdoa quando alguém lhe recusa a esposa?
CLÉIA – Eu não perdôo. Vou dizer-lhe...
ESOPO – Que eu ousei, que fiz propostas, que me repeliste e exiges o desagravo a tua honra.
CLÉIA – És inteligente. Sabes exatamente o que farei.

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ESOPO – É simples, as mulheres são assim. Agora eu passei a ser as uvas, e tu a raposa. Estou
verde, vinga-te.
CLÉIA – Vingo-me sim, porque és tolo. Tu és um escravo, tu és feio, tens diante de ti uma
oportunidade para o prazer e a rejeitas, logo merece castigo.
ESOPO – Gosto que faças assim. Por um momento, realmente, eu falei como não deverias falar.
Mereço o castigo.
XANTÓS (Entrando) – Esopo, Esopo! Ah, estás aí! Salva-me, Esopo! Tu te lembras de ontem,
quando me embriaguei com aquele desconhecido? Te lembras quando eu disse que seria capaz
de beber o mar inteiro? Lembraste do que escrevi que se não fizesse a minha casa seria dele?
Pois ele exige que eu cumpra o que prometi. Mostrou a todos o meu escrito. Todo o povo de
Samos está reunido na praça praia, à espera que eu beba o mar! E riem, Esopo riem de mim,
riem as gargalhadas.
ESOPO – Não sabes suportar o riso? Todos os dias riem da minha cara...
XANTÓS – Que é que eu vou fazer Esopo? Minha casa, meu jardim, tudo... Que é que eu devo
fazer?
ESOPO – Beba o mar, Xantós.
XANTÓS – O momento não é para brincadeiras! Digas o que devo fazer, senão
ESOPO – Tu me espancas? Não sei o que deve fazer! E agora?
CLÉIA – Espanca-o sim, Xantós.
ESOPO – E se eu disser o que fazer, tu me libertas?
XANTÓS – Juro.
CLÉIA – Espanca-o Xantós. Tortura-o. sabes o que ele fazia aqui? Estava me dizendo galanteios,
fazendo-me convites, e afirmava que, se eu me entregasse, estaria vingado de ti.
XANTÓS – Tu?
ESOPO – É a verdade filósofo. Arranca da tua sabedoria a única inspiração que os deuses põem
na tua cabeça: a cólera.
CLÉIA – Xantós, ele insultou tua esposa!
ESOPO – Espanca-me. Espanca-me principalmente na cabeça, para que eu me torne um idiota e
não ache nunca mais uma solução para as tuas dificuldades. Vamos! Manda-me bater! E
depois vai beber o mar, senão perde tudo que tem!
CLÉIA – Era essa a arma que ele tinha contra ti, Xantós! Sabia que ias precisar dele, e veio
cobrar o preço a mim, AA tua mulher!
XANTÓS – E nossa casa, Cléia?
ESOPO – Irás morar ao relento com o teu filósofo. É bom para ele! Talvez consiga imitar
Diogenes. Por que não vais morar no tonel que bebeste ontem?
XANTÓS – Minha casa...
CLÉIA – Que vais fazer, Xantós? Será que da tua cabeça não nasce sozinha uma ideia?
ESOPO – Pensas que a cabeça dele é Júpiter, de onde nasceu minerva?
CLÉIA – Xantós, procura uma solução, mostra que não precisas dele, põe-no a ferros, parte-lhe
os ossos!
ESOPO – Que solução, criatura? Eu sou um filósofo, não entendo das coisas práticas da vida. Tu
que és culpada de me ter deixado ter acontecido isto...
CLÉIA – Eu? Por quê?

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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas

XANTÓS – Por que não me deixou beber a mesa? Por que me deixaste receber o desconhecido?
Por que honraste lavando-lhe os pés? Esopo, a minha casa...
ESOPO – Beba o mar, Xantós!
XANTÓS – O que disseste a minha mulher? Foi uma das tuas brincadeiras, não foi? Foi uma
fábula eu sei...
CLÉIA – Xantós!
XANTÓS – Ah, foi sim... Eu conheço bem Esopo... Ele é assim brincalhão, mas não iria fazer
uma coisa dessas...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós...
XANTÓS – Tu sabes a admiração que eu te dedico, e sabes o quanto vale ser admirado por um
filósofo... Tu és um poeta grego, maior que Píndaro, maior que Homero...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós.
XANTÓS – ... a um poeta são permitidas certas liberdades verbais, certas imagens...
CLÉIA – Ele aqui não é um poeta. É um escravo.
XANTÓS – Que é que tu entendes de poesia? Poesia é para homens como nós heim, Esopo? Nós
sabemos o valor de um verso, de uma palavra eloquente... As tuas fábulas por exemplo...
ESOPO – Bebe o mar, Xantós.
CLÉIA – Esse escravo te traiu! Exijo que tu o castigues!
XANTÓS – Está levando as coisas ao exagero, criatura de Júpiter! Traiu coisa nenhuma!
CLÉIA – Sórdido!
XANTÓS – Cala-te mulher, senão tu é que será espancada! Esopo, eu te suplico, que é que eu
devo fazer para não perder a minha casa? Esopo, nós sempre fomos tão amigos, existe uma tal
compreensão de nossas almas, és o meu melhor amigo...
ESOPO – Por todos os raios de Júpiter, Xantós! Sou o maior poeta grego, sou incapaz de seduzir
tua mulher, sou teu melhor amigo, acabarás achando que eu não sou tão feio assim...
XANTÓS – E não é mesmo tal! Com a nossa convivência, eu fui olhando melhor, olhando teus
traços, analisando-os observei o teu nariz clássico, grego, greguíssimo, a linha do teus lábios,
o desenho espiritual das tuas sobrancelhas, a graça do teu porte, e cheguei a conclusão de que
tu és belo. E mais a tua beleza é rara, é dessas belezas que só pessoas de gosto requintado
podem saborear, como certos contornos das estátuas de Fidias, certa harmonia de Partenon,
um certo quê das obras de Praxitenes – é isto do Apolo Praxitenes.
ESOPO – Bebe o mar, Xantós! O mar inteiro e isto não castigará a tua audácia! Olha-me bem!
Eu, um Apolo, eu!
XANTÓS – Talvez eu tenha exagerado um pouco mais...
ESOPO – Eu sou feio, ouviste? Feio o que se pode chamar de feio, feio de chorar quando faço a
barba diante do espelho, eu sou horrendo, sou monstruoso, sou filho da hidra, da Quimera, do
Minotauro, de tudo quanto a bela Grécia pode criar de feio...
XANTÓS – A minha casa, Esopo...
ESOPO – Pois bem a minha fidelidade não impede que certas pessoas possam ter piedade,
simpatia e até amor, por mim. Sabes por quê? Não sabes filósofo; é porque elas são tão feias
por dentro como eu sou por fora! Bebe o mar, Xantós, para afogar a feiura que há dentro de ti!
XANTÓS – Eu te liberto, se me disseres o que devo fazer para não perder a minha casa!
ESOPO – E o que me darás, se eu te disser o que fazer para não perder a tua mulher?

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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas

CLÉIA – Não me ofendas mais, Esopo! Quando te darás conta de que me humilha deixando que
esse monstro me desrespeite?
ESOPO – Se não me espancares, Xantós, é porque não acreditaste não crer no que contou de
mim tua mulher, serás um homem desonrado. Escolhe. Que queres? A casa ou a honra?
XANTÓS – Eu te juro que não acredito nela... Tu sabes como são as mulheres... Vai ver que ela
que te andou dizendo coisas...
ESOPO – O que? Para alguma coisa, és filósofo afinal...
CLÉIA – Tu me insultas marido! Todos me insultam!
XANTÓS – Esopo, não queres a liberdade?
ESOPO – Xantós, não queres a honra?
XANTÓS – Escuta, Esopo meu grande amigo...
ESOPO – Não me chegues a me chamar de belo. Não me injuries.
XANTÓS – Escuta... Admitimos que a tenha cortejado... És homem afinal, eu é que devia ser
mais prudente... Cléia me contou tudo, tu não foras mais acabou-se, vamos dar tudo por
encerrado... A minha casa, Esopo!
ESOPO – E se eu te disser que ela, ela é que tentou me seduzir? Ela, mesma?
CLÉIA – Insolente!
ESOPO – Ela!
XANTÓS – Não é possível?
ESOPO – Por que não é possível?
XANTÓS – Porque és feio.
ESOPO – Então eu sou belo bastante para defender a tua casa, e feio demais para dormir com tua
mulher?
XABTÓS – Fizeste, isso mulher?
CLÉIA – Se tivesse feito?
XANTÓS – Não, não... ora, seria, uma loucura, um momento de devaneio, ou de pura
brincadeira... Não, é Esopo? Não é querida? Está tudo acabado, não se fala mais nisso
pronto... Esopo a minha casa. Que é que eu devo fazer? Eu te liberto, Esopo!
ESOPO – Eu não quero a minha liberdade agora. Seria sujo demais. Vou dizer o que farás para
salvar tua casa! Vou dizer grátis.
XANTÓS – Então?
CLÉIA – Xantós, não aceites...
XANTÓS – Cala-te. Então?
ESOPO – Vai até junto da praia. Enfrenta o povo. Dize-lhe que prometeste beber o mar, e
cumprirás a promessa. Bebe o mar, Xantós.
XANTÓS – Beber o mar, Esopo?
ESOPO – Prometeste beber o mar. Reafirma a tua palavra. O mar, apenas o mar. Não as águas
que correm dos rios para o mar. Diz então. Separem as águas dos rios das águas do mar, e eu
beberei toda a água que o mar tiver!
CLÉIA – Xantós , não vai mandar espancá-lo?
XANTÓS – Ah, coitado Cléia! Por que espancar?
CLÉIA – Não vais? Porco! Não ficarei mais aqui! Fica com o teu escravo Xantós. Adeus.

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XANTÓS (Ao etíope) – Espanque este homem. Separem as águas dos rios das águas do mar, e eu
beberei toda a água que o mar iver... Que idéia! Com que caras eles vão ficar! Ah, ah, ah...
ESOPO (Adianta-se, curva-se para esperar a chicotada do etíope que avança) – Bebe o mar,
Xantós... Bebe o mar...
O pano cai antes que etíope desfira o golpe.

****FIM DO 2º ATO****

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TERCEIRO ATO

(Mesmo cenário. Estão em cena Melita e etíope, que permanece parado, de braços cruzados, no
meio da sala.)
MELITA – Tu não me compreendes, etíope mas eu te compreendo. Tu me compreende? Tu
mudas de dono e não discutes. Obedeces. Eu também faço assim, sabes? Com uma
indiferença: Eu quero ser livre, rica e possuir será que não é assim? Dentro de ti não há uma
vontade de ser livre, de saltar fora deste círculo de mármore de uma cidade que desconhece e
que odeias? Ou que bem te consola a vingança de amarrares Esopo num poste e lhe cubra de
chicotadas? É curioso: acaba-se gostando de provocar a dor. Isto lhe dá a sensação de poder.
Pois bem o poder não é isto. O poder é amar. Tu já amastes, Etíope? Deveria ser engraçado
como tu amas... Sabes como se toma nos braços de uma mulher? Sabes envolvê-la pela
cintura, com um só braço deixando o outro livre para as carícias? Não, tu és um selvagem...
Serias belo como um cavalo forte durante o amor, mas não saberia esperar a fêmea
desfolhasse de encontro ao teu peito como uma rosa exausta. Tu não compreendes. Teu tato
deve ser pesado como uma pedra. Teus músculos não sabem amoldar-se a um corpo feminino
como se fosse um grande lençol de carne. Tua boca conhece outros beijos além de morder
outra boca? Deves ser violento e fecundo como uma semente introduzida na terra. Pois bem,
beija-me! Beija-me!
CLÉIA (Entrando à F. ofegante) – Xantós já chegou? Oferecias ao Etíope?
MELITA – Que tens com isso? Voltaste? Quando diz vou-me embora deve-se ir para sempre.
CLÉIA – Voltei. Não tenho de prestar contas dos meus atos. Onde está Xantós?
MELITA – Como vê não está?
CLÉIA – Ainda não voltou da praia?
MELITA – Ele estava na praia?
CLÉIA – Mostrava ao povo de Samos o truque para não beber o mar.
MELITA – Não perderás a casa, nem a fortuna, nem os escravos?
CLÉIA – Não, Melita. Continuará a servir o filósofo a quem amas. Tu o amas não?
MELITA – Por favor não me perguntes... isto.
CLÉIA – Tola... Por que não o seduz? É melhor do que seduzir um negro.
MELITA – Que interesse tem que eu seduza teu marido?
CLÉIA – Tu sabes que o povo quer a liberdade de Esopo?
MELITA – O povo... Cléia tu quer ir embora com Esopo?
CLÉIA – Se tu seduzires meu marido, Melita, eu estarei livre... e Esopo estará livre!
Compreendes?
MELITA – Compreendo...
VOZ DE XANTÓS – É absurdo! Não faço, não faço (entra com Agnostos)
XANTÓS – Não faço! Ah Cléia, voltaste? Que bom! Imagina querem que liberte Esopo!
AGNOSTOS (A Melita) Chama o escravo Esopo.
CLÉIA – Que custa atenderes o povo? Se não o fizeres, ninguém mais te respeitará nesta cidade.
XANTÓS – Que interesse tens nisso?
CLÉIA – Xantós, faz o que opovo quer? E repudia-me. Não perguntes para onde eu vou.

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XANTÓS – Então recuperei somente a casa?


AGNOSTOS – E a fortuna.
XANTÓS – Mas perco minha mulher e o meu escravo?
AGNOSTOS – Quanto a tua mulher o problema pertence a ela. Quanto ao escravo vim aqui para
fazer-te cumprir o desejo do povo.
XANTÓS – Que povo é esse que quer que eu perca o que é meu? Por acaso tomou o poder? Já
está dividindo os bens dos ricos?
AGNOSTOS – Não, que para isso existem guardas como eu. O que o povo quer é que libertes
Esopo. Apenas Esopo.
XANTÓS – Mas ele é meu. (Entra Esopo.) Meu entendes?
CLÉIA – O povo exige que Xantós te liberte, Esopo!
ESOPO – O povo? Por que o povo?
CLÉIA – O povo percebeu que tu é que ensinaste a Xantós como sair da promessa de beber o
mar. Cisipo gritou: isto é ideia do escravo Esopo! Xantos seria incapaz de achar uma saída tão
argurta!
ESOPO – E então?
CLÉIA – Então o povo começou a gritar: Que libertem Esopo!
ESOPO – Então estou livre?
XANTÓS – Não. Tu me pertences.
CLÉIA – Liberta-o, Xantós!
XANTÓS – Queres partir cm ele não?
MELITA – Liberta-o, Xantós. Manda-a embora também! Ela é digna de ti! Deixa que ela se vá
com o escrao...
CLÉIA – E a escrava Melita tomará conta do seu senhor!
XANTÓS – Não. Tu és meu escravo...
MELITA – Eu também sou tua escrava. E serei tua escrava a vida inteira.
CLÉIA – Melita tomará o meu lugar. Melhor do que eu.
XANTÓS – Não!
ESOPO – Enquanto o leão dormia um pobre rato passava sobre o seu corpo. Acordando
subitamente, a fera agarrou o animalzinho e ia devorá-lo quando este lhe disse: Solta-me que
um dia saberei mostrar a minha gratidão. O leão sorriu da pretensão do rato, mas decidiu
libertá-lo. Algum tempo depois, o leão caiu prisioneiro numa armadilha. O rato ouviu os
gemidos da fera, dirigiu-se para o lugar de onde vinham os ruídos, roeu as cordas e o leão se
libertou.
XANTÓS – E daí?
ESOPO – Esta fábula mostra a recompensa da gratidão.
CLÉIA – Deve ser grato, sim, Xantós, porque ele salvou tua casa e tuas riquezas.
XANTÓS – Grato? Ele é que deve ser grato. Dou-lhe comida, dou-lhe teto, dou-lhe uma vida
que nenhum escravo tem em toda Grécia...
ESOPO – Foi assim que me retribuiste por eu ter dito como devias proceder para não entregar os
teus bens ao capitão...
AGNOSTOS – Se ele não tivesse ensinado, eu teria ganho tua casa, tua fortuna e teus escravos,

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Esopo seria meu. Eu o libertaria.


MELITA – Liberta-o, Xantós. Não precisa dele... nem dela. Ficarei ao teu lado como eles nunca
ficaram.
XANTÓS – Tu me pertences também, tu és minha! Quando eu te quiser com fome, não precisa
que consintas! Porque és minha escrava!
AGNOSTOS – Perdi a partida graças a sagacidade de Esopo. O povo quer agora que o soltes.
Vamos obedeces ao povo.
XANTÓS – O povo bem sabe que lei alguma me obriga a libertar meus escravos.
CLÉIA – Xantós, será detestado na cidade inteira.
ESOPO – Eu sei o interesse que tens na liberdade de Esopo...
CLÉIA – Não o escondo. Queres que o diga?
ESOPO – Não digas, Cléia. Seria muito cruel.
CLÉIA – Antes de Esopo aparecer eu imaginava encontrar um homem como tu capitão. Um
homem belo, claro, forte. Mas deste homem feio escutei o que nem meu marido nem tu
soubeste dizer. Xantos, deixe-me ir com este homem.
XANTÓS – E por isso não o liberto. Se ele ficar a meu lado, eu sei que também ficarás.
CLÉIA – Não há nenhuma dignidade no que diz. Como suportaria a minha presença sabendo que
desejo teu escravo?
XANTÓS – Prefiro assim.
ESOPO – É uma homenagem que me prestas, filósofo. Sabes que eu jamais tocaria em tua
mulher.
CLÉIA – Tu não me queres?
MELITA – Diz que sim Esopo.
ESOPO – Não, Cléia!
CLÉIA – Não queres que eu vá contigo?
MELITA – Diz que sim! Ganhaste a partida!
ESOPO – Não Cléia.
CLÉIA – Não queres então?
ESOPO – Apenas a minha liberdade!
XANTÓS – Se eu te liberto, Cléia... tu ficas?
ESOPO – É a obrigação de tua mulher. Ela ficará.
CLÉIA – Só se me ordenares que eu fique.
ESOPO – Eu não dou ordens. Posso dar-te um conselho, se quiseres. Eu não amo os bens, nem
as riquezas nem o amor. Nada te poderia dar o que esperas da vida. Nem mesmo a minha
liberdade eu te daria, se me suplicasse. É preciso que ela seja limpa e que eu goze como se
goza a mais querida das amantes.
CLÉIA – Um só gesto teu Esopo, e eu irei contigo se fores livre, ou ficarei como escrava se
continuares escravo.
XANTÓS – Então? Não queres ser a minha mulher?
CLÉIA – Liberta-o, Xantós. Eu ficarei.
XANTÓS (Pega um papiro e o pincel e escreve) – Aí tens. Está livre.

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GETEB – A Raposa e as Uvas

ESOPO – Toma, Cléia. Liberta-me ou guarda-me (Cléia leva o papiro aos lábios e beija, e
devolve a Esopo)
AGNOSTOS – Quando queres partir?
ESOPO – Já.
AGNOSTOS – Vai buscar o que é teu.
ESOPO – Não tenho nada de meu. As, sim, um alforje para guardar o pão.
XANTÓS – Capitão, se conseguíssemos um jeito de fazê-lo ficar... eu tenho muito dinheiro,
capitão, muito dinheiro! Quanto queres para dizer ao povo que...
CLÉIA – Cala-te Xantós!
ESOPO – Adeus, Xantós.
CLÉIA – Para onde vais?
ESOPO – Vou ver... Ver tido. Ver como olhos livre. Muito longe na Lídia, dizem que tem um
homem Creso, que é o homem mais rico do mundo. Os seus palácios saode ouro, suas roupas
são tecidos com pedras orientais. Quero vê-lo e rir da riqueza dele. Mais longe ainda, na
margem do Nilo, os egípcios construíram túmulos enormes para honrar a memória de seus
reis. Quero ver isto e rir, ver a ambição do homem sob todas as suas formas e rir de sua
monstruosidade como riem do meu rosto. Adeus, Xantós.
XANTÓS – Estás certo de que preferes ir?
ESOPO – Adeus, Cléia. Que os deuses protejam a tua beleza. Ama o teu esposo.
CLÉIA – Adeus, Esopo. Que os deuses te façam feliz.
ESOPO – Adeus, Melita. Que os deuses te libertem.
MELITA – Adeus, Esopo.
ESOPO – Adeus, Capitão.
AGNOSTOS – Adeus, Esopo. (Entra etíope)
ESOPO – Adeus, Etíope. Tu me podias ter batido mais, tal é a tua força. E no entanto ainda estou
vivo. Eu te perdôo.
XANTÓS – Capitão, janta conosco.
CLÉIA – Janta conosco, Capitão.
XANTÓS – Que temos para jantar?
MELITA – Língua.
XANTÓS – Língua? Ah, língua! Que há de melhor do que a língua? A língua é que nos une a
todos,. Sem a língua não poderíamos dizer. A língua é a chave das ciências, o órgão da
verdade e da razão.
CLÉIA – Tu queres jantar?
AGNOSTOS – Hum.
XANTÓS – Graças à língua é que se constroem cidades, graças à língua dizemos o nosso amor.
Com a língua se ensina, se persuade, se instrui... Não gostas de língua?
AGNOSTOS – É o que há de pior no mundo. É a fonte de todas as intrigas, o início de todas as
discussões... Quem já nos disse isso?
XANTÓS – Eu. Eu é que ensino tudo na praça, para meus discípulos.
AGNOSTOS – É a verdade... Esta é uma das tuas lições, Xantós, tu és um grande filósofo. Tu
passarás à imortalidade.

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GETEB – A Raposa e as Uvas

XANTÓS – Tu crês? Eu sabia! Lava-lhe os pés, mulher. Honra-o.


XANTÓS (Como quem recorda uma lição para Cléia.) – Era uma vez umas rãs
Que estavam aborrecidas...
CLÉIA – Não, não, Xantós. Não digas Era uma vez. Era uma vez se usa para as histórias de
crianças.
XANTÓS – Então o que é que eu digo?
CLÉIA – Entra logo no assunto. Fala logo das personagens. As personagens são o que importa...
Diga logo: As rãs etc.
XANTÓS – É absurdo começar uma história sem preâmbulo. Todo discurso se divide em
preâmbulo, exposição e peroração. É a lição dos tratados.
CLÉIA – Esquece os tratados. Conta o fato, apenas o fato. Nada de literatura. Era assim que ele
fazia.
XANTÓS – É curioso como estas histórias completamente inocentes, fora de toda lógica, sem
obedecer a qualquer das regras da narrativa, fazem um enorme sucesso... É o que não posso
entender.
CLÉIA – Não te importes com isto. O povo presta mais atenção às tuas lições na praça desde que
começaste a usar a maneira de Esopo. Repita a história das rãs.
XANTÓS – Era uma vez... Não: As rãs estavam aborrecidas com a anarquia em que viviam, e
por isso mandaram uma delegação a Júpiter, para pedir-lhes que lhes desce um rei.
CLÉIA – Uma pausa nesse ponto. Para que os ouvintes captem bem a situação: Rãs aborrecidas,
delegação a Júpiter, pedido de um rei. Adiante.
XANTÓS – Júpiter atirou um pedaço de pau dentro do barco. As rãs, esquentadíssimas,
mergulharam.
CLÉIA – Nesta passagem um pouco de agitação: As rãs, assustadíssimas, mergulharam. A frase
seguinte deve ser serena, como a indicar o que as rãs vão pensar.
XANTÓS – Como o pedaço de pau se mexia, as rãs voltaram à superfície e sentiram um tal
pavor por aquele rei, que acabaram saltando em cima dele.
CLÉIA – Nova pausa. Vai haver uma transição psicológica, é preciso, portanto, que os ouvidos
se capacitem do drama. Rei inerte, rãs saltando-lhes em cima dele. Vamos.
XANTÓS 0 Decepcionadas por terem um tal rei, as rãs voltaram à presença de Júpiter, e lhe
pediram que substituísse o monarca, pois o que tinham não fazia nada.
CLÉIA – Agora, o fecho, a frase definitiva: deve ser dita com precisão e energia. Vamos.
XANTÓS – Júpiter, irritado, mandou-lhes uma hidra, que devorou todas as rãs.
CLÉIA – Um pouco mais de horror ao dizer hidra. Trata-se um monstro. O tom de sua voz deve
inspirar susto. Diga hidra.
XANTÓS – Hidra... mandou-lhes uma hidra que devorou todas as rãs.
CLÉIA – Uma pausa antes da moralidade. Os ouvintes, nessa pausa, devem compreender que
não está opinando uma história particular, acontecida às rãs, mas alguma coisa de geral, que
diz respeito a eles. Devem desde logo entender que, embora não sendo rãs é preferível que
tenham um governante mole, a um governante monstro. A pequena pausa deve fazer aí é uma
homenagem de inteligência à plateia: ela própria deve tirar as conclusões do exemplo das rãs.
XANTÓS – Moralidade...
CLÉIA – A moralidade precisa ser reditada com certas displicências, como se admitissem que

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GETEB – A Raposa e as Uvas

todos compreenderam a lição. Não deves deixar que ninguém fique pensando: E daí?
XANTÓS – Não era assim que ele fazia?
CLÉIA – Quem?
XANTÓS – Esopo. Muitas vezes eu lhe perguntei para ele: E daí?
CLÉIA – Tu és exceção.
XANTÓS – Nunca poderei contar as coisas dessa maneira. Se ao menos ele estivesse aqui, para
me ensinar... Eu não devia libertá-lo. Vês o quanto perdi? Além disso quando esgotarmos as
fábulas que contou, e de que nos lembramos como é que vou achar outras? Não há meio de eu
inventar uma...
MELITA – Senhora. Trouxeram Esopo preso?
CLÉIA – Preso?
XANTÓS – Para onde levaram?
MELITA – Trouxeram-no para cá. Entregaram-no ao capitão dos guardas.
XANTÓS – Para cá. Por quê?
MELITA – Não sei. Foram os sacerdotes de Delgos que o prenderam, e o entregaram ao capitão.
XANTÓS – Que foi que ele fez para ser preso?
MELITA – Não sei.
CLÉIA – Ele precisa de nós, Xantós.
XANTÓS – Ótimo! Agora poderá contar-nos outras fábulas para eu usar na praça. (Entra Esopo
com as mãos acorrentadas)
ESOPO – Aqui me tens, Xantós. Parece que não podemos nos livrar um do outro.
XANTÓS – É bom que tenha voltado, Esopo, preciso de tuas fábulas e tu podias...
AGNOSTOS – Ele foi preso porque furtou, Xantós.
XANTÓS – Furtou?
ESOPO – Nunca ninguém te prendeu por furtares minhas fábulas... Quando cheguei ao templo,
pediram que eu contasse uma história. Eu contei. Então os homens me prenderam como
ladrão e me acusam de ter roubado o templo de Apolo. Tu sabes os délficos adoram Apolo...
CLÉIA – Roubaste alguma coisa?
ESOPO – Não tu sabes que somente quero o que é meu.
AGNOSTOS – Disseram que Esopo roubou a taça de ouro do templo de Apolo.
XANTÓS – Eles te viram no templo?
ESOPO – Não. Me prenderam, me trouxeram até aqui, e me entregaram ao capitão.
XANTÓS – Por que te trouxeram aqui?
ESOPO – Para que você mesmo verificasse no meu alforje, se aí está a taça de ouro.
AGNOSTOS (Dá o alforje a Xantós) – Vê.
ESOPO – Sabes muito bem que não furto. Se eu amasse o ouro, não te daria o tesouro que achei.
Se eu furtasse, não terias agora a tua mulher.
XANTÓS – Ladrão! Por que fizeste isto? É um crime quase paga com a morte.
ESOPO – Não fiz. Não sei como esta taça veio até aí.
XANTÓS – Está na ordem natural das coisas que taça não anda sozinha.
CLÉIA – Mas por que te trouxeram até aqui?

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ESOPO – Disseram-me que eu era escravo de Xantós. Como escravo, só meu dono pode me
punir.
XANTÓS – Mas tu és livre!
ESOPO – Os délficos não sabem que eu sou livre.
AGNOSTOS – Ee é livre, deve dizer isso aos délficos. Nada tens com esse furto.
ESOPO – Eu não furtei. Alguém colocou a taça no meu alforje.
CLÉIA – Mas por quê? Ficaram com raiva de você?
ESOPO – Pediram que eu contasse uma história para os sacerdotes. Quando acabei de contar,
eles me insultaram.
XANTÓS – Não posso compreender porque razão haviam de ficar zangados com uma das tuas
histórias de bichos. São as coisas mais inocentes do mundo!
ESOPO – Engana-se, Xantós. São terríveis.
CLÉIA – Que história contaste? A do leão e do sapo? A do corvo e da raposa?
ESOPO – Uma que inventei para os délficos.
XANTÓS – E eles compreenderam? Tens razão, eles compreendem. São inteligentíssimos os
sacerdotes! Qual era a história?
ESOPO – Os délficos são devotos de Apolo, a quem dedicaram um templo de mármore. Ficam
horas a fio rezando nesses templos, de tal modo que já nem fazem mais o plantio do trigo.
Quando chega o inverno, passam fome, porque não tem pão, e saem mendigando. A cada um
que encontra, dizem: Estrangeiro, sou sacerdote de Apolo, rezo o ano inteiro para que o deus
proteja nossas cidades. Agora tenho fome, deves dar-me uma moeda. Assim vivem, e por isso,
quando me pediram uma fábula, eu lhes gritei: Ouvi, ó délficos, esta história que inventei e
que vos dedico: A cigarra cantava todo o verão enquanto o escaravelho, armazenava em casa
todo o esterco que encontrava. Quando o inverno chegou, a cigarra faminta dirigiu-se a casa
do escaravelho e pediu o que comer. O escaravelho perguntou: Por que não guardavas esterco
durante o verão? A cigarra respondeu: Eu não tinha tempo para guardar esterco: durante o
verão eu cantava. Cantavas? Retrucou o escaravelho. Se cantavas no verão, dança agora no
inverno.
XANTÓS – E daí?
ESOPO – Daí, Xantós, eles disseram que eu achava mais sábio juntar merda do que rezar a
Apolo.
XANTÓS – Mas é um crime ofender assim a um deus.
ESOPO – Então tu compreendes. Uma fábula não é uma história contada, é uma verdade. E uma
verdade é a única razão para vivermos ou morrermos.
CLÉIA – Mas tu vais morrer...
ESOPO – Alguém colocou a taça no meu alforje. É um crime contra a propriedade e contra os
deuses. Conhecemos o castigo para esse crime?
AGNOSTOS – É o que os délficos querem saber. Qual o castigo que deve ter. porque, segundo a
lei, se és escravo e livre, deves ser atirado do alto da rocha Miampéia. Se és escravo, cabe a
teu dono escolher o castigo. Trouxeram-te aqui porque sabem que és escravo de Xantós. A
taça está aí, foi encontrada no teu alforje. Eles esperam no jardim.
CLÉIA (A Agnostos) – Não lhes disseste que Xantós o libertou?
AGNOSTOS – Não. Se tivesse dito jogariam Esopo do alto do precipício.

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Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011
GETEB – A Raposa e as Uvas

CLÉIA – Pede-lhes um minuto mais. (A Esopo) Então vais morrer? Não, não... que é que se pode
fazer?
ESOPO – Nada.
CLÉIA – Tu lhe mostraste a carta de alforia?
ESOPO – Não.
CLÉIA – Ah, felizmente!
ESOPO – Por que felizmente?
CLÉIA – Isto te salva, Esopo! Não foi por isso que escondeste a carta?
ESOPO – Não. Escondi-a porque queria te ver, antes de morrer. E, supondo-me ainda escravo,
eles me trariam à presença de Xantós... A tua presença.
CLÉIA – Xantós! Tu pode salvá-lo! Diz aos délficos que ele é teu escravo! Onde está a carta de
alforria? Vamos queimá-la...
XANTÓS – É uma excelente ideia Esopo. Ficarás com nós novamente.
ESOPO – Como escravo.
XANTÓS – Ora, apenas para simular as coisas, até que isto seja esquecido. Na verdade,
podemos ser sócios.
ESOPO – Sócios?
XANTÓS – Tu me comporás fábulas e eu contarei aos meus discípulos. Não calculas o sucesso
que fazem as tuas histórias! Em breve estarás rico!
ESOPO – Minhas histórias foram feitas para serem contadas de graça.
XANTÓS – Pois, tu as contarás de graça. O meu nome lhes emprestará um caráter de sistema
filosófico! Escuta: seres livres, depois. Tu me darás as tuas fábulas. Que queres mais? Olha:
eu sei que Cléia te ama. Ficarás com ela, pronto! Eu a repudiarei , ela será sua... Que tal?
ESOPO – Bebe o mar, Xantós!
XANTÓS – Mas se não aceita, os délficos te matam.
CLÉIA – Aceita, Esopo...
ESOPO – Também entras na sociedade de teu marido, Cléia? Eu entro com as fábulas e Xantós
com a esposa...
CLÉIA – Não tolo! Eu entro com o meu amor, tu entrarás com a vida... Vai Xantós, dizer aos
délficos que Esopo te pertence e que só tu tens o direito de castigá-lo.
ESOPO – E depois, ele terá que me castigar, porque de qualquer modo para os délficos fui eu
quem furtou a taça do templo.
XANTÓS – Eu te darei um pequeno castigo, só para contentar os délficos. E pronto. (bate o
gongo. O etíope aparece.) Eu te levarei, para mostrar aos délficos que foste punido,
devolverei a taça... onde está a carta de alforria?
ESOPO – Está aqui.
XANTÓS – Entrega-a.
ESOPO – Não.
XANTÓS – Desconfias de mim? Tens medo que eu não devolva? Fica com ela. Vai tu mesmo
dizer que és meu escravo. Eu confirmarei a tua palavra.
ESOPO – Eu não sou escravo.
MELITA – A vida, Esopo... A vida e a mulher que amas...

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ESOPO – Terei que dizer que sou escravo?


XANTÓS – E estarás salvo.
ESOPO – E eles acreditarão?
XANTÓS – Confirmarei a tua palavra, jádisse.
ESOPO – Se acreditarem numa mentira dessa, por que não acreditam na verdade que é mais
fácil?
XANTÓS – Que verdade?
ESOPO – A de que não furtei a taça de Apolo. A de que não sou teu escravo.
XANTÓS – Mas, se eles próprios colocaram a taça no seu alforje, como queres impor a verdade?
CLÉIA – Então vinga-te. Mente-lhes. Dize-lhe que és escravo. Eles suportam a mentira.
ESOPO – Há então um castigo para os homens livres que furtam – e há um castigo menor para
os escravos que furtam?
XANTÓS – No seu caso sim.
ESOPO – Pois bem, eu escolho o caminho dos livres.
XANTÓS – Idiota.
MELITA (A porta, enquanto ouve a voz do povo) Os homens da cidade vem para cá.
CLÉIA (Depois da última palavra de Melita) – Fui eu quem colocou a taça dentro do teu alforje,
Esopo. Eu estava lá... Eu vi o povo enfurecido contra ti... Vi que ias partir para longe... Então
enquanto discutias, entrevi no templo, escondi a taça em teu alforje, contei a um sacerdote que
tinhas furtado e...
ESOPO – Tu mentes, meu amor, tu mentes.
CLÉIA – Eu queria vingar-te de ti... e recuperar-te... Agora, não! Agora devem levar-me ao
precipício. (O ruído do povo aumenta)
ESOPO – Tu mentes! Queres salvar-me e mentes...
MELITA – Vês, Xantós, foi tua mulher...
ESOPO – Cala-te! Como nos desencontramos na vida... Eu pensei que fosse má, e tu és boa, tu
és inocente... eu sim sou o culpado
CLÉIA – Tolo, tolo, é a vida que tens de salvar!
ESOPO – Ainda não me castigasse, ainda não me tivesse castigado, filósofo aprende: O castigo
dos livres. É esse o que eu quero!
CLÉIA – E morrerás... Deixa-te dizer-te, homem feio tu és belo...
ESOPO – Adeus Cléia... Eu sou livre... Ninguém mais tocará em meu corpo, nem o chicote do
Etíope, nem os teus dedos, Cléia. Nem o ódio, nem o amor... Por meus próprios pés, chegarei
ao precipício...
AGNOSTOS – O povo espera a resposta?
XANTÓS – A minha resposta?
ESOPO (Toma a taça) – A minha! Tomai vossa taça! Ouvi homens délficos esta fábula que
Esopo inventou para todos vós: uma raposa vendo um cacho de uvas no alto de uma parreira,
quis alcançá-la... e não conseguindo, então disse: estão verdes. Eu, olhem-me bem, também
estou verde para o amor, verde para a glória, verde para a vida... E com os lábios ainda
úmidos, do sumo da liberdade, eu vos gritarei: Eu sou livre!
CLÉIA (Estendendo-lhe a mão) – Eu sou livre!

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ESOPO – Onde está o precipício que reservais para os livres? Onde? Onde?
(Sai. Cléia acompanha-o enquanto o rumor da multidão atinge ao auge. Xantos dá alguns
passos em direção ao pórtico; Melita barra-lhe o caminho e toma a sua cabeça de encontro ao
peito.

FIM

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