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RUPTURA E CONTINUIDADE: A FOLKCOMUNICAÇÃO COMO

ELEMENTO DOS ESTUDOS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA

Eduardo Amaral Gurgel1

RESUMO

Este artigo tem como objetivo fazer uma breve análise sobre a concepção similar entre a
cultura popular e a obra de Luiz Beltrão, especificamente relacionada com a Teoria da
Folkcomunicação. Intenciona-se delinear uma epistemologia sintética dos dois temas.
O presente estudo utilizará a metodologia qualitativa com base documental e
bibliográfica. Conclui-se que, apesar das divergências entre correntes teóricas díspares,
há similitudes que apontam para convergência entre a folkcomunicação de Luiz Beltrão
e os Estudos Culturais, tanto ingleses como na abordagem latino-americana.

Palavras-chaves: Luiz Beltrão; Folkcomunicação; Estudos Culturais; América Latina;


Convergência.

INTRODUÇÃO

A partir da contribuição da Teoria da Folkcomunicação de Luiz Beltrão, busca-se


desdobramentos teóricos e metodológicos da confluência entre os fluxos da cultura
popular e da comunicação de massa.
Apesar de diferenças epistemológicas, teóricas e metodológicas, o diálogo entre a
Folkcomunicação e os Estudos Culturais segue e autores divergentes apresentam
posições prós e contras.
Para a compreensão da problemática com a folkcomunicação é necessário apontar a
colaboração da teoria crítica da sociedade que influenciou decisivamente o arcabouço
teórico construído por Luiz Beltrão.

1
Jornalista graduado pela FAI - Faculdades Adamantinenses Integradas. Pós-graduado em Comunicação
Empresarial pela Unitoledo Araçatuba. Mestre e Doutor em Comunicação Social pelo Programa de Pós-
Graduação da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: xagurgel@yahoo.com.br.
Apesar de assimilar outras teorias, é na Teoria Crítica com fulcro no pensamento
gramsciano que a Folkcomunicação solidifica suas bases. Destarte, a maioria das
críticas se faz a partir da utilização do pressuposto teórico do modelo funcionalista do
fluxo comunicacional em duas etapas, esquecendo-se da apropriação que Beltrão faz da
tese de Edison Carneiro embasada na teoria hegemônica gramsciana. É justamente
baseado na teoria de Antonio Gramsci que os conceitos de Luiz Beltrão sobre a
folkcomunicação mais se aproximam dos Estudos Culturais.
Como referencial dos estudos culturais trabalha sua base com os cultural studies, teoria
surgida entre os anos 50 e 60 na Inglaterra, em torno do Centre of Contemporary
Cultural Studies de Birmingham com seus principais expoentes: Richard Hoggart,
Raymond Williams, E. P. Thompson e Stuart Hall.
Já na América Latina os Estudos Culturais serão retratados pelos pesquisadores Néstor
García Canclini, Jesus Martín-Barbero e José Marques de Melo.
A partir do exposto, o estudo então busca apontar possibilidades e limitações da relação
Estudos Culturais e Folkcomunicação em Beltrão.
Ressalta-se que, por sua característica e especificidade do objeto, a folkcomunicação
emprega uma diversidade de métodos de acordo com a situação de pesquisa, o que se
constitui em um desafio metodológico para os pesquisadores do campo.
Hibridismo teórico, superposição metodológica, pluralismo conceitual ou ecletismo,
quaisquer desses conceitos são inerentes à Folkcomunicação.
Por fim, apesar das diferenças conceituais, as aproximações teóricas com os Estudos
Culturais fazem parte da construção e sedimentação da Teoria da Folkcomunicação.

OS ESTUDOS CULTURAIS

Os Estudos culturais ou originalmente “cultural studies” surgem na Inglaterra entre o


final dos anos 50 e início dos anos 60. Tem como alicerce três textos dos pesquisadores
Herbert Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson. O primeiro
texto The uses of literacy (As Utilizações da Cultura), de 1957, se refere à pesquisa feita
por Hoggart sobre a influência da cultura difundida pelos meios de comunicação em
meio à classe operária. O autor trata de materiais culturais, antes desprezados, da cultura
popular e dos meios de comunicação de massa, por meio de pesquisa qualitativa. No
segundo texto, Culture and society (Cultura e Sociedade) de 1958, Raymond Williams
descreve a cultura como uma categoria que liga a análise literária à investigação social.
Fechando a trilogia o texto de 1963 de E. P. Thompson The making of the english
workingclass (Formação da Classe Operaria Inglesa) traz uma parte da história social
britânica sob um prisma interno da tradição marxista.
Com base em suas pesquisas e o apontamento de alteração dos valores tradicionais da
classe operária da Inglaterra do pós-guerra, Richard Hoggart funda em 1964 o Centre
for Contemporary Cultural Studies (CCCS) ligado ao English Department da
Universidade de Birmingham, um centro de pesquisa de pós-graduação desta mesma
instituição. O centro então elege como função precípua a observação das relações entre
a cultura contemporânea e a sociedade, ou seja, suas formas culturais, instituições e
práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais.
A atenção dos founding fathers, os pais fundadores do Centro volta-se para a interação
do indivíduo com a nova realidade apontada pela difusão dos meios de comunicação de
massa, principalmente referente aos bens culturais. Retrata a observação dos
pesquisadores que a diversificação cultural no caso não se restringe à camada
dominante, porém, é inerente a todos os grupos sociais. Neste pensamento, até mesmo a
classe operária é retratada como geradora de cultura. Tendo a diversidade cultural como
responsável por formas de apropriação e consumo da produção massiva, os estudos
culturais querem entender como se processa a apropriação do discurso difundido pela
mídia. Embora o marxismo esteja no contexto fundacional dos Estudos Culturais, os
pesquisadores discordavam da posição ortodoxa com base na metáfora espacial. Nesta
teoria, o que aconteceria na superestrutura (cultura) seria uma resposta reflexiva a uma
determinação da estrutura, ou seja, da base econômica.

Os cultural studies e o marxismo nunca se encaixaram na perfeição em


momento algum. Desde o início [...], já pairava no ar a sempre pertinente
questão das grandes insuficiências, teóricas e políticas, dos silêncios
retumbantes, das grandes evasões do marxismo – as coisas de que Marx não
falava nem parecia compreender mas que eram o nosso objeto privilegiado de
estudo: cultura, ideologia, o simbólico. (HALL, 1999, p. 68-69)

Diante da discordância com o marxismo ortodoxo, os Estudos Culturais adotam a teoria


da dinâmica cultural baseada na obra de Antonio Gramsci que vê a cultural como
integrante de todos os níveis socioeconômicos. Neste conceito, a dinâmica cultural
passa a atuar também por meio da comunicação e a recepção, neste caso vista como
consumo, torna-se um local de construção de significado e não de submissão total à
estrutura ou base econômica. Mas, o principal conceito gramsciano adotado pelos
Estudos Culturais, é o da Teoria Hegemônica onde um grupo social exerce domínio
sobre o outro, sem, contudo, ser imposto pela força, mas obtido através de consenso.

Pode-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de
‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos chamados comumente de
‘privados’) e o da ‘sociedade política ou Estado’, que correspondem à função de
‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de
‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado ou governo
‘jurídico’. (GRAMSCI, 1995, p.10-11)

Com isto, Gramsci além de dizer que as ideias da sociedade decorriam da classe
dominante, imputava aos intelectuais o exercício das funções da hegemonia social e do
governo político, garantindo assim o consenso político e a coerção. A hegemonia pela
intelectualidade em Gramsci é concebida pelo conceito do “intelectual orgânico”, ou
seja, aquele que diretamente ligado a uma classe ou grupo social, atua em nome dessa
classe. Porém, Gramsci faz distinção entre dois tipos de intelectuais: o instituído
socialmente, representante de grupos sociais e o popular que, embora não atue para
impor suas ideias, sabe enfrentar as adversidades. É justamente do intelectual popular
que se ocupam os Estudos Culturais.
Os conceitos de hegemonia e de intelectual orgânico serão amplamente utilizados nos
Estudos Culturais britânicos desde sua fundação até os dias atuais.
Para além dos Estudos Culturais britânicos, há também o enfoque de culturalistas latino-
americanos que forjaram uma concepção de cultura popular e folclore similar à ideia de
Luiz Beltrão em sua Teoria da Folkcomunicação. Porquanto, várias pesquisas em
Folkcomunicação fundam seu referencial teórico nas obras de culturalistas latinos como
Jesus Martín-Barbero e Néstor García Canclini. O livro Dos Meios às Mediações:
Comunicação, Cultura e Hegemonia de Martín-Barbero é a primeira contribuição para o
debate sobre a função dos meios de comunicação de massa nas sociedades latino-
americanas modernas.

Basicamente, Martín-Barbero propõe-se a analisar as diversas manifestações da


cultura popular na AL hoje, esboçando uma compreensão das manifestações
históricas da cultura popular. Sua noção de comunicação vai bem além da
simples concepção de mídia, realizando uma análise da cultura popular, em que
mediação aparece como um conceito central. (TUFTE, 1996, p.40)

Ao analisar como a cultura é negociada e se transforma em objetos de transações em


uma variedade de contextos, Martín-Barbero aponta o conceito de mediação.
Expressões da cultura popular são vistas sob várias maneiras dentro do rádio,
televisão, cinema, filme, teatro, circo, imprensa. Essas expressões estão em
permanente interação com os contextos culturais nos quais elas existem, sob
forma de mediações na vida cotidiana. A recepção dessas mediações é
complexa, evidenciada na constante interação entre os produtos da mídia e os
espectadores ou ouvintes, bem como na interação social entre pessoas, tornando
assim a mediação um processo infinito. (TUFTE, 1996, p.41)

Martín-Barbero também revela a problemática central dos estudos culturais relativos à


realidade da América Latina quando aborda a questão da mestiçagem.

Uma vez que tomemos como ponto inicial de observação não o processo linear
de progresso social crescente, mas “mestiçagens”, no sentido de continuidades
na descontinuidade e reconciliações entre ritmos de vida que são mutuamente
excludentes, então nós podemos começar a compreender as complexas formas
culturais e significados que passaram a existir na América Latina: a mistura de
índios nativos na cultura camponesa, o rural no urbano, a cultura folclórica nas
culturas populares e o popular na cultura de massa. (MARTÍN-BARBERO,
1987, p.88)

O autor conceitua a mestiçagem como dentro de uma realidade cultural complexa que
deve ser levada em conta quando se analisam práticas e expressões culturais.
Além de Martín-Barbero, o antropólogo mexicano Néstor Garcia Canclini também se
destaca como um dos mais significativos analistas culturais da América Latina. Por seu
turno, Canclini analisou em sua obra as transformações culturais na América Latina e a
consequente construção da modernidade. O título de sua obra mais importante, Culturas
Híbridas, refere-se ao conceito que Canclini tem sobre a cultura latino-americana onde o
autor aponta novas realidades culturais sob as quais as novas massas vivem. O livro
expõe uma análise de Canclini sobre os estudos culturais da atualidade na América
Latina. Há contudo, a aproximação do conceito de Culturas Híbridas de Canclini com os
postulados de teóricos britânicos como aponta Thomas Tufte.

O conceito de Canclini de culturas híbridas é paralelo a reflexões de alguns


estudiosos britânicos dos estudos culturais. Por exemplo, a análise de Paul
Gilroy sobre a comunidade britânica, onde ele faz distinções entre
Afrocentrismo e Eurocentrismo, analisando o que ele chama de ‘o problema do
hibridismo’. (TUFTE, 1996, p.36)
A hibridização cultural então retrata processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas sociais se combinam para gerar novas estruturas. Na América Latina a
definição de culturas híbridas é semelhante à dos Estudos Culturais Britânicos que
consideram cultura como espaço de produção, circulação e consumo de significação.
Contudo, para tal similaridade, há que se levar em conta a especificidades dentro da
própria realidade sociocultural latino-americana. A análise do processo conflitivo na
América Latina demonstra culturas periféricas dentro da massa cultural. Destarte, o
conceito de culturas híbridas de Canclini é amplamente utilizado como aporte teórico de
pesquisas no campo comunicacional entre outros.
Esta introdução aos Estudos Culturais permitirá que se contextualizem doravante
similitudes entre os postulados da Escola de Birmingham e os estudos culturais latino-
americanos e a Folkcomunicação.

A FOLKCOMUNICAÇÃO

Com o aporte teórico e metodológico do Instituto de Ciências da Informação –


ICINFOM- por meio do primeiro número da Revista Comunicações e Problemas, Luiz
Beltrão publica, em março de 1965, um artigo sobre o ex-voto como veículo
jornalístico. Tal publicação é a primeira manifestação em revista científica do que mais
tarde se configuraria como folkcomunicação. Já nesta ocasião, acompanhava o
pesquisador a predição de uma comunicação horizontal que coexistia com a
comunicação tradicional, denominada vertical por privilegiar o ato comunicacional de
baixo para cima.

No sistema de folkcomunicação, embora a existência e utilização, em certos


casos, de modalidades e canais indiretos e industrializados (como emissões
desportivas pela TV, canções gravadas em disco ou mensagens impressas em
folhetos ou volantes), as manifestações são sobretudo resultado de uma
atividade artesanal do agente-comunicador, enquanto seu processo de difusão se
desenvolve horizontalmente, tendo-se em conta que os usuários característicos
recebem as mensagens através de um intermediário próprio em um dos
múltiplos estágios de sua difusão. A recepção sem este intermediário só ocorre
quando o destinatário domina seu código e sua técnica, tendo capacidade e
possibilidade de usá-lo, por sua vez, em resposta ou na emissão de mensagens
originais. (BELTRÃO, 1980, p. 27).

Em 1967, o pesquisador então defende sua tese de doutorado na Universidade de


Brasília sob o título: Folkcomunicação, um estudo dos agentes e dos meios populares de
informação de fatos e expressão de ideias, publicada em 1971 pela editora
Melhoramentos. Outra obra paradigmática que compõe o pensamento comunicacional
de Luiz Beltrão é Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados, também
transformada em livro pela editora Cortez no ano de 1980. O primeiro estudo com base
bibliográfica e estudo de campo visa delinear as diretrizes da folkcomunicação. Na obra
seguinte, além de esclarecer os principais pontos da teoria da folkcomunicação, Beltrão
expõe nela as expressões populares manifestadas pela cultura e o inconformismo dos
grupos chamados marginalizados que se revoltam por meio de canais próprios de
comunicação. Não obstante, o autor relata que desde 1959 vinha se debruçando sobre os
problemas que o levaria à pesquisa e consequente conformação de sua tese de
folkcomunicação.

Como se informavam as populações rudes e tardes do interior de nosso país


continental? Por que meios, por quais veículos manifestavam o seu pensamento,
a sua opinião? Que espécie de jornalismo, que forma – ou formas – atenderia à
sua necessidade vital de comunicação? Teria essa espécie de intercâmbio de
informações e ideias algo em comum, com o jornalismo, que passei a classificar
de ortodoxo‟? E não seria uma ameaça à unidade nacional, aos programas
desenvolvimentistas, aos nossos ideais políticos e à mesma sobrevivência do
homem brasileiro, como tipo social definido, o alheamento em que nós,
jornalistas enigmática, que é a comunicação sub-reptícia de alguns milhões de
cidadãos alienados do pensamento das elites dirigentes? (BELTRÃO, 2004, p.
41)

Destarte, responde às emblemáticas questões formulando a teoria da Folkcomunicação


como: “[...] o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões,
ideias, atitudes da massa, por intermédio de agentes e meios ligados direta ou
indiretamente ao folclore” (BELTRÃO, 2004, p. 47). Ressalta a importância da
intermediação dos processos de recepção das mensagens midiáticas. A esses agentes de
comunicação social no sistema da comunicação popular Beltrão denomina Agentes da
Folkcomunicação. Ao defender sua tese, Luiz Beltrão sistematizou suas reflexões sobre
os nexos entre o jornalismo e o folclore, aqui anotados pela ótica de um de seus
discípulos, o pesquisador José Marques de Melo.

Além das etapas de difusão midiática (jornal e televisão) e da decodificação


grupal (lideranças eventuais), ele identifica uma complementaridade de sistemas
comunicacionais. Numa ponta, o sistema de comunicação massiva; na outra, os
grupos primários, receptores das mensagens midiáticas. Interpondo-se entre os
dois, Beltrão reconhece um sistema “mediador” que caracterizou como
folkmidiático. (MARQUES DE MELO, 2000, p. 230)
Para a conformação das bases da folkcomunicação como uma nova disciplina no âmbito
das Ciências Sociais, Marques de Melo ainda retrata o sistema pelo qual se legitima a
tese de Beltrão.

Trata-se dos processos de comunicação popular, preservados pelas comunidades


rústicas do Brasil rural e dos subúrbios metropolitanos (festas, folguedos,
repentes, literatura de cordel), que operam como recodificadores das mensagens
da grande mídia. Eles não apenas reciclam a linguagem, mas intervêm no
conteúdo das mensagens, reinterpretando-as segundo os padrões de
comportamento vigentes nesses agrupamentos periféricos. (MARQUES DE
MELO, 2000, p. 230)

De tal modo, a Folkcomunicação se consolidou como uma teoria da comunicação


genuinamente brasileira fundamentada em questões éticas e epistemológicas com
contributos teóricos e paradigmáticos para a Escola Latino Americana de Comunicação.

A TEORIA CRÍTICA NA FOLKCOMUNICAÇÃO

Como exemplo típico do pensador da Escola Latino Americana de Comunicação –


ELACOM – Luiz Beltrão procede sincréticamente - como diria Arthur Ramos - ou
hibridamente - como prefere Canclini – destarte, assimila conceitos funcionalistas
quando estuda os fluxos comunicacionais, mas sua motivação para conceber a Teoria da
Folkcomunicação ancora-se no pensamento crítico, ou seja, no conceito de “dinâmica”
do folclore, que ele assimilou de Edison Carneiro - um gramsciano nem sempre
explícito.

Luiz Beltrão, contudo, busca igualmente em Edison Carneiro a concretização de


sua tese: Achava-se de acordo com a tese de EDISON CARNEIRO, segundo a
qual “sob a pressão da vida social, o povo atualiza, reinterpreta e readapta
constantemente seus modos de sentir, pensar e agir em relação aos fatos da
sociedade e aos dados culturais do tempo”, fazendo-se através do folclore que é
dinâmico, porque “não obstante partilhar, em boa percentagem, da tradição, e
caracterizar-se pela resistência à moda (...) é sempre, ao mesmo tempo que uma
acomodação, um comentário e uma reivindicação. (Beltrão apud Carneiro,
1965, p. 2).

A visão de Edison Carneiro coaduna com o conceito de dinâmica cultural de Gramsci,


onde a recepção (consumo) se torna um lugar de construção de significado, não
figurando como totalmente submissa à infraestrutura. Tal postulado também se refletirá
na Teoria da Folkcomunicação quando Beltrão compartilha a visão de Carneiro para
explicar a atualização e ressignificação das manifestações populares. A exemplo do
primeiro caso, também essas manifestações não são estáticas e, por seu caráter
dinâmico, se transformam ao longo do tempo.
Mas também ocupa-se do conceito de hegemonia do teórico marxista italiano Antonio
Gramsci para quem, segundo Santos (1992, p.22) “a classe que detém a hegemonia
política numa sociedade já dominava esta sociedade do ponto de vista cultural. A
conquista e manutenção da hegemonia política implicam na hegemonia cultural já
assegurada”.
Os teóricos que compartilham da visão gramsciana acreditam que os países
imperialistas garantiram a hegemonia através do imperialismo cultural, divulgados pelos
meios de comunicação de massa. A saída para escapar ao controle hegemônico ancora-
se nos pressupostos teóricos da Folkcomunicação.

A única possibilidade de escapar à visão de mundo projetada pelos meios de


comunicação se encontra nas manifestações culturais oriundas das camadas
mais pobres da população ou na utilização de meios alternativos. A cultura
popular (música, literatura de cordel, escultura, pintura de murais, festas, etc.),
além de ser produzida pela própria classe marginalizada, ainda incluiria em seu
conteúdo mensagens críticas ao sistema. Já os meios alternativos possibilitariam
a veiculação de informulações que não seriam divulgadas nos meios oficiais
(contra-informação), por serem contrárias à ordem vigente. (SANTOS, 1992, p.
23)

Destarte, a folkcomunicação ganha real importância pela sua natureza de instância


mediadora entre a cultura de massa e a cultura popular. Ela representa uma estratégia
contra hegemônica das classes subalternas.
Dantes, queria Edison Carneiro dimensionar como as classes populares “resistem” ao
impacto da mídia globalizada e logram preservar seus valores culturais.
Hoje, Luiz Beltrão responde: com a Folkcomunicação.

CONCEPÇÕES SIMILARES ENTRE A FOLKCOMUNICAÇÃO E OS


ESTUDOS CULTURAIS

Temas ligados à comunicação e à cultura, próprios dos estudos culturais britânicos e


latino-americanos, como: multiculturalismo; identidades culturais; hibridismo cultural;
exclusão e resistência cultural; mediações culturais; matrizes culturais; hegemonia
cultural e práticas culturais também são inerentes à Teoria da Folkcomunicação de Luiz
Beltrão. Os estudos de folkcomunicação se aproximam dos estudos culturais britânicos
de Birmingham, principalmente, por meio de conceitos análogos assimilados dos
estudos sobre hegemonia e intelectuais orgânicos, de Antonio Gramsci. Richard
Hoggart no livro The uses of literacy, ao estudar a influência dos meios de comunicação
de massa entre trabalhadores da periferia na Inglaterra começa a valorizar elementos da
cultura popular ou iletrada entendendo-a como espaço de aprendizagem e formação do
senso crítico. Hoggart busca na prática cotidiana da periferia outras formas de vivências
culturais que não as elitistas. O autor recorre à noção de classe, ou seja, um meio
operário relativamente homogêneo, para retratar conceitos importantes como identidade
e pertencimento que também são comuns a outros campos de estudo. É também a
relação entre as elites e a massa e suas diferenças comunicacionais que levam Luiz
Beltrão a se posicionar com a Folkcomunicação e a tecer críticas ao sistema.

A nossa elite, inclusive a intelectual, tem o folk-way das classes trabalhadoras


das cidades e do campo apenas como objeto de curiosidade, de análise mais ou
menos romântica e literária. (...) O que impossibilita a comunicação e a
comunhão entre Governo e povo, elite e massa. (BELTRÃO, 2001, p. 62)

Os conceitos e paradigmas da Folkcomunicação e dos Estudos Culturais, como


divulgados nos capítulos acima, dão conta de múltiplas similitudes entre as correntes.
Na descrição do objeto de estudo da teoria de Luiz Beltrão vê-se claramente traços dos
estudos dos culturalistas.

A folkcomunicação não é, pois, o estudo da cultura popular ou do folclore, é


bom que se destaque com clareza. A folkcomunicação é o estudo dos
procedimentos comunicacionais pelos quais as manifestações da cultura popular
ou do folclore se expandem, se sociabilizam, convivem com outras cadeias
comunicacionais, sofrem modificações por influência da comunicação
massificada e industrializada ou se modificam quando apropriadas por tais
complexos. A folkcomunicação, portanto, é um campo extremamente
complexo, interdisciplinar - necessariamente - que engloba em seu fazer saberes
vários, às vezes até contraditórios, para atingir seus objetivos e dar conta de seu
objeto de estudo. (HOHLFELDT, 2003)

O pesquisador Marques de Melo aponta outra definição do objeto de estudo da


Folkcomunicação que coaduna com os princípios norteadores dos estudos culturais.

[...] analisar os fenômenos da recodificação popular de mensagens da cultura


massiva, mas também rastreando os processos inversos, ou seja, a incorporação
de bens da cultura popular pela indústria cultural os meios de comunicação e os
aparatos do lazer massivo, principalmente o turismo. (MARQUES DE MELO,
2007, p.22)

Há confluências entre os Estudos Culturais e a Folkcomunicação também na Escola


Latino-Americana de Comunicação por meio das obras de Jesús Martin-Barbero, Nestor
Garcia Canclini, e José Marques de Melo, que trabalham com conceitos de mediações,
hibridismos e miscigenações culturais e o convívio de múltiplos e variados níveis de
manifestações e práticas culturais.
No livro Dos Meios às Mediações: Comunicação, Cultura e Hegemonia, Martin-
Barbero retrata as influências da teoria crítica da Escola de Frankfurt sobre o
pensamento comunicacional latino-americano. Para além da ideologia e da hegemonia,
o autor propõe a análise do sentido e da legitimidade das práticas e modos de produção
cultural não hegemônica, ou seja, que fazem da população o sujeito da ação. (Martín-
Barbero, 2008, p.28-29) diz que “não podemos então pensar hoje o popular atuante à
margem do processo histórico de constituição do massivo: o acesso das massas à sua
visibilidade e presença social, e da massificação em que historicamente esse processo de
materializa”.
Outro pesquisador latino-americano que se debruça sobre os Estudos Culturais com o
conceito de “Frentes Culturais” e compartilha do mesmo pensamento é Jorge Gonzáles
quando diz que “isto significa em primeiro lugar, que toda cultura se produz em íntima
relação com as estruturas sociais, por isto mesmo a cultura está em toda parte e atua em
todos os níveis sociais”.
Neste contexto, Luiz Beltrão vislumbrou a Folkcomunicação como uma forma popular
de comunicação presente em todos os ambientes.

Pois é tempo de não continuarmos a apreciar nessas manifestações folclóricas


apenas os seus aspectos artísticos, a sua finalidade diversional, mas
procurarmos entendê-las como a linguagem do povo, a expressão do seu pensar
e do seu sentir tantas e tantas vezes discordante e mesmo oposta ao pensar e ao
sentir das classes oficiais e dirigentes. (BELTRÃO, 2004, p. 118).

Em sua obra Martín-Barbero também se ocupa da literatura de cordel e da cultura de


almanaque, objetos de estudo da Folkcomunicação.

Há uma literatura que, ausente por inteiro das bibliotecas e livrarias de seu
tempo, foi contudo o que tornou possível para as classes populares o trânsito do
oral ao escrito, e na qual se produz a transformação do folclórico em popular.
Refiro-me àquela literatura que se tem chamado na Espanha de cordel e na
França de colportage. Literaturas que inauguraram uma outra função para a
linguagem: a daqueles que, sem saber escrever, sabem contudo ler. Escritura
portanto paradoxal, escritura com estrutura oral. (MARTÍN-BARBERO, 2008,
p.149).

Martín-Barbero explica que muitos não sabem escrever, mas sabem ler; por isso, o
cordel é escrito em forma de linguagem oral e que, a literatura oral é um meio que busca
os leitores na rua. Assim o autor conforma a literatura oral também como mediação,
aproximando-se da Folkcomunicação ao sugerir um estudo do folclore como matriz
histórica da mediação de massa.
Convergimos então com o pensamento de José Marques de Melo quando afirma que

A Folkcomunicação adquire cada vez mais importância pela sua natureza de


instância mediadora entre a cultura de massa e a cultura popular,
protagonizando fluxos bidirecionais e sedimentando processos de hibridação
simbólica. Ela representa inegavelmente uma estratégia contra-hegemônica das
classes subalternas. (MARQUES DE MELO, 2008, p. 25)

Destarte, o pesquisador aponta uma confluência entre a Folkcomunicação com os


Estudos Culturais Latino-americanos e conclui que “em certo sentido, Luiz Beltrão
antecipava observações empíricas que embasariam a teoria das “mediações culturais”, o
cerne da contribuição de Jesús Martín-Barbero e dos culturalistas ao pensamento
comunicacional latino-americano” (MARQUES DE MELO, 2004, p.17)
Quanto à colaboração do pesquisador Néstor García Canclini, principalmente em
relação à sua obra “Culturas Híbridas”, supracitada, há também aproximação com a
folkcomunicação baseada nos hibridismos culturais. Canclini não vê com pessimismo as
mudanças causadas pela globalização econômica. Vê como positivo a transformação
das culturas por conta do estreitamento das relações entre os países, em culturas
híbridas. A aproximação com a Folkcomunicação é latente quando o pesquisador se põe
em defesa dos processos híbridos sofridos pela cultura popular, valorizando assim a
dinâmica do folclore.

Do lado popular, é necessário preocupar-se menos com o que se extingue do


que com o que se transforma. Nunca houve tantos artesãos, nem músicos
populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtos mantêm
funções tradicionais (dar trabalho aos indígenas e camponeses) e desenvolvem
outras modernas: atraem turistas e consumidores urbanos que encontram nos
bens folclóricos signos de distinção, referências personalizadas que os bens
industriais não oferecem. (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 22)
Retratando a espetacularização, denominada como “encenação do popular”, García
Canclini aponta que

Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas
estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos
constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o
antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia,
os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia.
(GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 23)

Por fim, tanto os processos de “hibridização cultural” coligidos por García Canclini,
como a passagem dos “meios às mediações” de Martín-Barbero, corroboram com os
estudos de recepção na América Latina. Inclusas aqui pesquisas da folkcomunicação.
Assim, os Estudos Culturais tanto britânico como latino-americanos mantém uma certa
aproximação com a Teoria da Folkcomunicação de Luiz Beltrão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que haja objeções em associar os Estudos Culturais e a Folkcomunicação por


diferenças epistemológicas, teóricas e metodológicas, o objeto de estudo da teoria de
Luiz Beltrão perpassa por conceitos culturalistas.
Apesar de divergências, deste “diálogo” entre a folkcomunicação com os estudos
culturais britânicos e latino-americanos, emanam conceitos como o de mediação e de
hibridismo que são o aporte para pesquisas de folkcomunicação.
O ponto de convergência entre autores latino-americanos e os Estudos Culturais
britânicos se deu através da discussão sobre o uso do aporte gramsciano em torno da
hegemonia e é também neste ponto que a Folkcomunicação mais se aproxima dos
conceitos culturalistas.
A base da teoria hegemônica de Gramsci adotada no início dos estudos que culminaram
com a fundação da Escola de Birmingham é o preceito que Luiz Beltrão apreende de
Edison Carneiro para forjar a Teoria da Folkcomunicação.
Também os pesquisadores latino-americanos como Néstor García Canclini e Jesus
Martín-Barbero trabalharam sob a ótica gramsciana os seus conceitos que são
assimilados em estudos de recepção na América Latina, até mesmo em pesquisas da
Folkcomunicação.
O diálogo entre a Folkcomunicação e os Estudos Culturais recorre aos paradigmas da
Escola Latino-Americana de Comunicação e aos postulados da Escola de Birmingham
para contribuir na construção do aparato teórico iniciado por Luiz Beltrão.
Contudo há vozes destoantes na academia que são contrárias à essa aproximação.
Destarte, carece de ampliar o debate com a devida revisão crítica dos conceitos que
permita a ampliação teórica que sustenta a Folkcomunicação.
É necessário recuperar e fortalecer este diálogo com essas perspectivas teóricas para
dinamizar e atualizar a Teoria da Folkcomunicação já que Luiz Beltrão também se
baseou na dinâmica da cultura.

REFERÊNCIAS

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BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo:


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