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AS FONTES E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO

INTERNACIONAL ECONÓMICO

Miguel Moura e Silva

[Publicado em in MIRANDA, Jorge; CORDEIRO, António Menezes;


FERREIRA, Eduardo Paz; NOGUEIRA, José Duarte, (orgs.) Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Paulo de Pitta e Cunha, Vol. II, Coimbra:
Almedina, 2010, p. 579.]

Introdução

Em trabalho recentemente publicado, definimos o Direito Internacional


Económico como compreendendo as regras de Direito Internacional Público que têm
por objecto a criação, protecção, circulação e redistribuição de riqueza a nível
internacional.1 Posta esta definição é fácil concluir que a matéria das fontes poderá
beneficiar, desde logo, de uma breve recapitulação do tratamento dado no âmbito da
cadeira de Direito Internacional Público I e pelos respectivos manuais.2
Seguidamente, apontaremos algumas questões particulares do Direito Internacional
Económico, em especial quanto a certas características que lhe são próprias (como
alguns princípios gerais e as cláusulas gerais padronizadas) e outras que, sendo
comuns a outros ramos do Direito Internacional, ainda assim têm merecido particular
atenção da doutrina a respeito da nossa disciplina, como é o caso do papel da chamada
“soft law”. Por último, examinaremos um domínio que não se insere formalmente nas
fontes do Direito Internacional Económico mas que se reveste hoje em dia de grande
importância prática: a utilização do espaço de liberdade contratual para a criação de
regimes de auto-regulamentação (em particular a lex mercatoria e os euro-mercados).

1. As fontes de Direito Internacional Económico

1
Miguel MOURA E SILVA, “O desenvolvimento do conceito de Direito Internacional Económico, in
2
Estudos
Ver IanJurídicos
BROWNLIE,e Económicos
Principles
emofHomenagem
Public International
ao Prof. Doutor
Law, 5ªAntónio
ed., Oxford
de Sousa
Univ.Franco,
Press, Londres,
Coimbra
1998, pp. 1 a 30 (adiante BROWNLIE, Principles...); Robert JENNINGS e Arthur WATT (orgs.),
Oppenheim’s International Law, 9ª ed., Vol. I, Longman, Londres, 1992, pp. 22 a 52 (adiante
Oppenheim’s...; Patrick DAILLIER, Alain PELLET, Droit International Public, 6ª ed., L.G.D.J., Paris,
1999, pp. 124 a 395. Entre nós, ver André GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS,

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1.1. Aspectos gerais

O estudo das fontes do Direito Internacional inicia-se, tradicionalmente, pelo


artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, o qual prescreve:

1. O Tribunal, cuja função é decidir em conformidade com o direito internacional as


controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:
a) As convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam
regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;
b) O costume internacional, como prova de uma prática geral aceite como
direito;
c) Os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas;
d) Com ressalva das disposições do artigo 59.º, as decisões judiciais e a doutrina
dos publicistas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar
para a determinação das regras de direito”.
2. A presente disposição não prejudicará a faculdade do Tribunal de decidir uma
questão ex aequo et bono, se as partes assim convierem.

Independentemente das críticas que se possam apontar ao uso desta disposição


como um elenco de fontes de Direito Internacional, ela constitui um bom ponto de
partida.3
Em primeiro lugar, podemos identificar como fontes as convenções
internacionais (cobrindo tanto os tratados como os acordos internacionais, cuja
tipologia deriva mais da arrumação interna dos poderes de vinculação dos Estados). É
importante relembrar desde já que as fontes convencionais tendem a criar obrigações
entre os Estados que a elas se vinculem e não normas jurídicas oponíveis a todos os
Estados e outros sujeitos de Direito Internacional.4
Seguidamente encontramos as regras consuetudinárias, correspondendo a um
uso ou prática geral e constante, com maior ou menor duração, mas sempre

Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 151 a 295; Jorge
MIRANDA, Direito Internacional Público I, Lisboa, 1995, pp. 55 a 164.
3
Ver DAILLIER e PELLET, op. cit., pp. 112 a 114.
4
O que não impede que por vezes se coloque o problema das chamadas obrigações erga omnes e
mesmo de obrigações omnium; ver PROSPER WEIL, “Vers une normativité relative en droit
international?”, RGDIP, 1982, p. 5. Quanto ao conceito de obrigações erga omnes ver Maurizio
RAGAZZI, The Concept of International Obligations Erga Omnes, Oxford Univ. Press, Londres,
2000; entre nós ver Patrícia Galvão TELES, “Obligations erga omnes in International Law”, Revista
Jurídica da AAFDL, n.º 20, nova série, 1996, p. 73.

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acompanhado da respectiva convicção jurídica de obrigatoriedade ou opinio iuris.
Apesar do carácter espontâneo da sua formação, é aceite a possibilidade de um Estado
não ficar vinculado por tais regras, desde que ele apresente uma objecção persistente à
formação das mesmas. Quer isto dizer que um Estado não se pode desvincular
unilateralmente de uma regra consuetudinária em existência (ainda que esta possa ser
modificada ou substituída por uma nova norma consuetudinária ou convencional,
excepção feita às que tenham natureza de ius cogens).5 Mas já pode obstar à sua
formação de modo a obrigá-lo, manifestando-se aqui um elemento voluntarista do
costume.
Em terceiro lugar surgem os princípios gerais de direito internacional, mais
correctamente reconduzíveis a normas originadas por processos convencionais ou
consuetudinários, mas que se destacam pela sua função estruturante da ordem jurídica
internacional.6 O peso destes “princípios” depende, em grande medida, do grau de
judicialização dessa ordem e dos subsistemas que a compõem, já que é sobretudo na
actividade judicial que se põe em evidência a necessidade de recorrer ao processo de
fundamentação de decisões concretas em princípios normativos inscritos
geneticamente na matriz de ordem internacional onde se desenrolam as relações
internacionais.7 Aliás, um dos aspectos mais controversos do regime dos
investimentos internacionais diz precisamente respeito à remissão operada em alguns
contratos de investimento para os “princípios gerais de Direito” e para os “princípios
gerais de direito internacional” enquanto lei aplicável a título subsidiário ou mesmo
principal, questões que serão analisadas adiante, a propósito da teoria da
internacionalização dos contratos de investimento.
A este elenco é necessário acrescentar sobretudo a figura dos actos unilaterais
das organizações internacionais, ainda que estes tenham essencialmente uma eficácia
interna, i.e., limitada aos seus membros quer nas relações destes entre si, quer entre

5
V., por todos, BROWNLIE, Principles..., p. 10.
6
Ver Jorge MIRANDA, op. cit., pp. 141 e ss. Ver BROWNLIE, Principles ..., p. 15 a 19, distinguindo
os princípios gerais de direito dos princípios gerais de direito internacional. Quanto a estes últimos
refere o Autor que “In many cases those principles are to be traced to state practice. However, they are
primarily abstractions from a mass of rules and have been so long and generally accepted as to be no
longer directly connected with state practice”.
7
O papel destes princípios é particularmente visível no Direito Comunitário, onde o activismo judicial
do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e a falta de consagração positiva nos Tratados de
algumas regras essenciais têm resultado numa jurisprudência particularmente ousada. Veja-se o caso da
consagração da responsabilidade dos Estados por violação do direito comunitário, Miguel MOURA E
SILVA, “Erros meus, má fortuna.... - A responsabilidade dos Estados-membros por violação do direito

3
eles e a própria organização, bem como a esta última, e ainda os actos unilaterais dos
Estados.
O artigo 38.º do Estatuto do Tribunal de Justiça refere ainda, enquanto meios
auxiliares para a determinação de regras de direito, “as decisões judiciais e a doutrina
dos publicistas mais qualificados das diferentes nações”. Se quanto à doutrina dos
publicistas diversos factores tendem a remetê-la para as margens do sistema de fontes,
o mesmo não se pode dizer das decisões judiciais.8 Quanto ao próprio Tribunal
Internacional de Justiça, poucas têm sido as decisões com particular relevância para o
Direito Internacional Económico.9 Mais importantes têm sido as decisões de tribunais
arbitrais, em particular no domínio da protecção de investimentos, destacando-se o
recurso à chamada arbitragem mista; esta última constitui uma categoria intermédia
entre a arbitragem comercial internacional e a arbitragem entre Estados, sendo o
exemplo mais claro o sistema do Centro Internacional para a Resolução de Diferendos
sobre Investimentos (ICSID na sigla inglesa), criado pela Convenção de Washington
de 1965, sob a égide do Banco Mundial. Por fim refira-se a importância de que se
revestem as decisões proferidas no âmbito do mecanismo de resolução de litígios
elaborado no âmbito do GATT, e que adquiriu um carácter quasi-judicial com a
entrada em vigor do Acordo OMC. Esta recente evolução no seio da OMC levou
mesmo a que se tornasse expresso um limite inerente à natureza dos mecanismos de
resolução de litígios, afirmando-se que as recomendações e decisões do Órgão de
Resolução de Litígios não podem aumentar ou diminuir os direitos e obrigações

comunitário à luz dos recentes desenvolvimentos jurisprudenciais”, Revista Jurídica da AAFDL, nº 21,
Junho 1997, Nova Série, pp. 329 a 386.
8
Apesar de durante muito tempo as sub-comunidades epistemológicas que se ocupavam dos diferentes
sub-ramos do DIREITO INTERNACIONAL ECONÓMICO terem permanecido relativamente restritas
(veja-se o quase predomínio durante décadas de um punhado de grandes autores no domínio do GATT
– John Jackson, Robert Hudec ou Ernst-Ulrich Petersmann -, ou a quase monopolização do estudo do
sistema do FMI pelo falecido Joseph Gold, e o grande peso de F.A. Mann, também já desaparecido, no
direito internacional monetário), assiste-se actualmente a um impressionante aumento da produção
doutrinal, apoiada pela criação recente de publicações especializadas, como o Journal of International
Economic Law, publicado pela Oxford University Press, entre muitas outras. A este fenómeno não será
certamente indiferente a constituição da OMC e a progressiva judicialização do respectivo mecanismo
de resolução de litígios.
9
V., no entanto, Karel C. WELLENS, Economic Conflicts and Disputes Before the World Court
(1922-1995) – A Functional Analysis, Kluwer, Haia, 1996. Georg SCHWARZENBERGER, “The
Principles and Standards of International Economic Law”, RCADI, 1966, vol. 117, p. 1 (adiante,
SCHWARZENBERGER, “Principles and Standards...”), a p. 16 fornece uma ampla lista de acórdãos
do Tribunal Permanente de Justiça Internacional e do Tribunal Internacional de Justiça relativos a
questões de DIREITO INTERNACIONAL ECONÓMICO. Deste último tribunal salienta-se ainda o
acórdão ELSI, respeitante à protecção de investimentos, que opôs os E.U.A. à Itália; ICJ Rep., 1989.

4
previstos nos acordos abrangidos (n.º 2 do artigo 3.º do Memorando de Entendimento
sobre Resolução de Litígios).
Um último complexo de normas que teremos de examinar assume igualmente
natureza controversa, situando-se algures entre normas de carácter moral que regem a
conduta dos Estados e verdadeiros princípios estruturantes da ordem jurídica
internacional. Referimo-nos à chamada cortesia internacional ou “comity”, de grande
relevância na determinação dos (auto- ou hetero-) limites ao exercício de competência
por parte dos Estados, quanto a situações que têm elementos de conexão com outras
ordens jurídicas.
Como teremos oportunidade de comprovar adiante, as principais fontes de
Direito Internacional Económico são os textos de origem convencional, assumindo as
regras consuetudinárias um papel mais residual.10 Desde a fase final da II.ª Grande
Guerra tem-se verificado uma tendência para a gradual substituição de redes de
acordos bilaterais por acordos multilaterais (com excepção da protecção e promoção
de investimentos e da eliminação da dupla tributação onde aquelas redes continuam a
assumir um papel preponderante), bem como para a progressiva institucionalização
das relações económicas internacionais em organizações internacionais económicas
(aquilo que algumas teorias das relações internacionais chamam “formação de
regimes”).

1.2. “Soft Law”: caracterização e principais efeitos

Este último desenvolvimento reflecte-se por sua vez na grande importância de


que se revestem os actos unilaterais das principais organizações internacionais,
mesmo quando desprovidos de força obrigatória (a par dos actos unilaterais dos
Estados, com particular relevância no Direito Internacional Económico). Foi
precisamente a propósito do Direito Internacional Económico (mas não só, pense-se,
por exemplo no Direito Internacional do Ambiente) que a doutrina adoptou a
terminologia de “soft law” ou direito proclamatório ou exortatório para designar “o
conjunto de normas incertas em função quer do seu conteúdo, quer da sua inclusão
numa fonte insusceptível de criar obrigações jurídicas (actos concertados não

10
Ver John JACKSON, “International Economic Law”; Stephen ZAMORA, “Is There Customary
International Economic Law?”, German Yearbook of International law, vol. 32, 1989, p. 9.

5
convencionais e recomendações das organizações internacionais)”.11 Esta noção
indica-nos a existência de dois tipos diferentes de situações designadas em termos
gerais como “soft law”.
Em primeiro lugar, temos as normas que, sendo formalmente aptas a criar
obrigações para os Estados (por constarem de um tratado, por exemplo), não se
prestam à regulação directa da conduta dos Estados, seja porque se configuram
essencialmente como normas programáticas, seja porque estão privadas de um
mecanismo eficaz que garanta o seu cumprimento. O seu carácter programático não
lhes retira, ainda assim, a qualidade formal de normas jurídicas, se bem que reduza
substancialmente a sua eficácia numa ordem jurídica como a que é constituída pelo
Direito Internacional. Um exemplo clássico deste tipo de normas é-nos dado pela
Parte IV do GATT, a qual contém, em parte, um conjunto de regras de carácter
essencialmente programático, sem que seja possível delas inferir regras susceptíveis
de aferir a legalidade do comportamento dos membros da OMC.
Seguidamente temos o caso de regras contidas em textos insusceptíveis, por si
próprios, de constituir fonte de obrigações para os Estados. Nesta categoria
encontramos quer actos que se assemelham a convenções internacionais devido ao seu
carácter consensual e que alguns autores designam de “actos concertados não
convencionais” para enfatizar o seu carácter não vinculativo,12 quer, por outro lado,
resoluções de órgãos de organizações internacionais, também por natureza não
obrigatórios.13
É nesta última situação, a de actos insusceptíveis de produzir efeitos
obrigatórios, que a realidade designada de “soft law” se torna mais controversa.
Independentemente do debate doutrinal quanto à correcção de chamarmos a estas
regras de cumprimento voluntário “direito”,14 o que é particularmente importante é ter
presente que a necessidade de assegurar estabilidade e previsibilidade ao

11
DAILLIER e PELLET, op. cit., p. 386. Ver ainda I. SEIDL-HOHENVELDERN, “International
Economic ‘Soft Law’”, RCADI, vol. 163, 1979, p. 165; Frieder ROESSLER, “Law, De Facto
Agreements and Declarations in International Economic Relations”, German Yearbook of International
Law, 1978, p. 27; Christine CHINKIN, “The Challenge of Soft Law”, ICLQ, vol. 38, 1989, p. 850;
12
Assim, DAILLIER e PELLET, op. cit., p. 382, englobando aqui os chamados gentlemen’s
agreements ou non-binding agreements da doutrina anglo-saxónica, como correspondendo a
“instrumentos resultantes de uma negociação entre pessoas habilitadas a vincular o Estado e chamadas
a enquadrar as relações deste, sem todavia ter um efeito obrigatório”.
13
DAILLIER e PELLET, op. cit., pp. 374 e ss.
14
Para uma negação veemente, ver PROSPER WEIL, op. cit., p. 8, nota 6. Este Autor considera que o
conceito de “soft law” deve ser reservado às regras programáticas, “car les obligations pré-juridiques
ne sont ni de la soft law ni de la hard law: elles ne sont tout simplement pas law du tout”.

6
enquadramento em que se processam as relações internacionais (em particular as de
carácter económico, já que estas dependem hoje em dia de um processo
descentralizado de decisão pelos mecanismos do mercado) pode ser satisfeita por
outras vias que não as do direito internacional clássico. Assim, a figura destes acordos
de facto, que geram expectativas mas não as protegem juridicamente (ainda que as
possam fazer acompanhar de mecanismos de supervisão de natureza igualmente
voluntária) desempenha um papel fundamental em diversas áreas do Direito
Internacional Económico.15 Preenchendo estas regras parte da tarefa reguladora
fulcral da Ordem Económica Internacional,16 só uma visão extremamente redutora e
formalista as poderia excluir do estudo do Direito Internacional Económico. Claro
está que a sua peculiar natureza tem evidentes repercussões no tipo de funções que a
chamada “soft law” pode desempenhar no conjunto de regras da Ordem Económica
Internacional.17

1.3. “Soft Law”: A questão das resoluções de organizações internacionais

O problema dos efeitos da “soft law” tem sido estudado sobretudo no âmbito
dos actos de organizações internacionais, em especial quanto a certas resoluções da
Assembleia Geral das Nações Unidas.18 Apesar dos esforços de alguns autores,
parece hoje em dia ser relativamente pacífico que tais resoluções não podem adquirir
efeito obrigatório apenas pela denominação escolhida ou sequer pela utilização de

15
O mesmo sucede na ordem jurídica comunitária e mesmo nos ordenamentos nacionais, onde é cada
vez mais frequente o recurso a estas formas de regras de conduta que, não sendo obrigatórias, ainda
assim são acompanhadas de procedimentos de verificação do cumprimento das suas principais
directrizes. V., quanto à Comunidade Europeia, Francis SNYDER, “Soft Law and Institutional Practice
in the European Community”, in MARTIN (org.), The Construction of Europe – Essays in Honour of
Emile Noel, Kluwer, Deventer, 1994, p. 197. Entre nós, ver António MARQUES DOS SANTOS,
Direito Internacional Privado. Introdução, vol. 1, AAFDL, Lisboa, 2001, p. 41, para quem o soft-law
“caracteriza-se essencialmente pelas suas fontes, entre as quais se contam as resoluções, as
recomendações, os pareceres, os princípios, as directivas (guidelines, directives), os guias profissionais,
os códigos de conduta (também chamados códigos de bom comportamento) ou os códigos de
deontologia, instrumentos todos eles destituídos em si mesmos de força vinculante, mas dotados de
grande poder de persuasão em relação aos respectivos destinatários”.
16
Ver Miguel MOURA E SILVA, op. cit., pp. 340 e ss..
17
Sobre as limitações deste tipo de actos, ver ROESSLER, op. cit., pp. 54 e ss.; SEIDL-
HOHENVELDERN, op. cit., p. 225.
18
Ver, em particular, J. CASTAÑEDA, “La valeur juridique des résolutions des Nations Unies”,
RCADI, 1970-I, vol. 129, p. 211; Hubert THIERRY, “Les résolutions des organes internationaux dans
la jurisprudence de la Cour International de Justice”, RCADI, 1980-II, vol. 167, p. 385; M. VIRALLY,
“La valeur juridique des recommandations des organisations internationales”, A.F.D.I., 1956, p. 69; B.
SLOAN, “The Binding Force of a Recommendation of the General Assembly of the United Nations”,
B.Yb.I.L., 1948, p. 1.

7
linguagem típica de um acordo internacional, já que elas constituem meras
recomendações, por força da Carta das Nações Unidas.19 Qualquer desvirtuamento
desta função corresponderia a pôr em causa o próprio princípio da competência de
atribuição, válido também para a organização interna de competências.
Isso não significa que essas resoluções sejam desprovidas de quaisquer efeitos
jurídicos, ainda que a sua principal força seja de índole política. Desde logo, esses
actos não obrigatórios podem reflectir a opinio iuris (pelo menos dos Estados que
votaram favoravelmente) quanto a uma determinada prática, contribuindo assim para
a prova da existência de uma regra consuetudinária.20 Uma vez que a norma
consuetudinária vale por si, independentemente dos instrumentos utilizados para a
prova dos seus elementos constitutivos, a resolução que se limita a declarar uma regra
dessa natureza não adquire com isso qualquer efeito obrigatório próprio. Não sendo
possível utilizá-las para demonstrar a convicção jurídica da obrigatoriedade das
práticas por elas previstas, ainda assim essas resoluções podem servir como um
elemento favorável ao desenvolvimento de novas regras.21 Como se verá, o principal
problema colocado ao intérprete é justamente destrinçar os casos meramente
declarativos de regras preexistentes das situações onde uma regra é proclamada de
lege ferenda, questão especialmente pertinente na análise das resoluções da
Assembleia Geral no domínio da chamada Nova Ordem Económica Internacional.22
Mesmo quando uma regra se encontra ainda em formação, as resoluções que
se inserem nesse processo evolutivo podem produzir alguns efeitos, pelo menos
quanto aos Estados que as votaram favoravelmente.23 Assim, para alguns autores, a

19
Para uma descrição e refutação das diferentes teses que têm sido defendidas no sentido de reconhecer
carácter vinculativo às resoluções da Assembleia Geral, ver SEIDL-HOHENVELDERN, International
Economic Law, pp. 34 a 39.
20
BROWNLIE, Principles ..., pp. 14 e 15.
21
Id.
22
É aqui necessário ter em conta diversos elementos relativos a cada resolução, tais como, as condições
de adopção da resolução, o processo de votação e seus resultados, a designação e termos utilizados, a
existência de “reservas” e o sistema de controlo da sua execução, ver IDA, op. cit., pp. 337, que fala a
este respeito de uma força obrigatória de facto.
23
Sobre os diferentes tipos de efeitos, ver SEIDL-HOHENVELDERN, “International Economic ‘Soft
Law’ ”, pp. 195 e ss., que fala a este respeito de (1) um efeito de vinculação dos órgãos da organização
internacional em causa; (2) um efeito justificativo (“justifying effect”) decorrente da aceitação activa de
“soft law”; (3) um efeito de “standstill”, que obrigaria o Estado a conformar-se com a “soft law” que
aceitou, a menos que ocorra uma alteração fundamental de circunstâncias capaz de fundamentar a
desvinculação mesmo relativamente às normas de um tratado; (4) um efeito de “apagamento” (“fading
effect”) ou de atenuação da vinculatividade de uma norma existente, particularmente quanto às normas
de origem consuetudinária já que desta forma se pode minar a opinio iuris que as fundamentam; (5) por
último, um efeito de conformação do discurso e da prática internacional dos Estados, numa espécie de
“infiltração semântica” capaz de moldar as novas normas em formação. Nem todos estes efeitos são
aceites pacificamente pela doutrina.

8
nova regra pode ganhar uma eficácia limitada na medida em que se produza um efeito
justificativo do comportamento dos Estados que a votaram favoravelmente e que
passem a aplicar a nova regra nas relações entre si.24 Essas regras podem ainda
influenciar a interpretação dada a convenções internacionais, ainda que a sua
inserção no artigo 31.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados possa
levantar algumas dificuldades. Assim, num diferendo entre os Estados Unidos e o
Japão, os primeiros invocaram as Directrizes da OCDE sobre multinacionais de modo
a interpretar uma disposição do Tratado de amizade, navegação e comércio que os
ligava e que conferia às empresas de cada parte o direito a empregar no território da
outra parte “o pessoal executivo ... da sua escolha” no sentido de tal não impedir a
aplicação das disposições norte-americanas relativas à proibição de discriminação
com base na raça, sexo ou nacionalidade.25
Outra forma de dar eficácia às regras contidas em recomendações consiste na
sua introdução na ordem jurídica interna.26 Claro está que também aqui a sua
vinculatividade dependerá da lei desse Estado e encontrará limites à sua aplicação em
função do alcance da competência territorial e pessoal do mesmo. Em todo o caso,
este expediente não permite a invocação de uma regra constante de uma resolução
contra um objector persistente, continuando as relações entre esses Estados a reger-se
pelas regras em vigor.
O receio quanto aos efeitos das resoluções, seja enquanto elemento que
confirma a existência de uma regra consuetudinária, seja enquanto elemento da
formação de uma nova regra ou mesmo enquanto justificação do comportamento de
outros Estados, leva a que os Estados que eventualmente serão prejudicados por essas
novas regras se oponham através do voto ou recorram a declarações de voto para
explicar o sentido da sua aceitação ou de uma eventual abstenção.27 Como já vimos,

24
DAILLIER e PELLET, op. cit., p. 377: “La conséquence essentielle de l’adoption d’une
recommandation sera donc d’autoriser les États qui la respectent à écarter l’application d’une norme
antérieure pour autant qu’ils ne portent pas atteinte aux droits acquis des autres États. Les États qui la
récusent pourront continuer à appliquer la norme antérieure”; v. também, IDA, op. cit., pp. 336 e ss.;
SEIDL-HOHENVELDERN, “International Economic ‘Soft Law’ ”, pp. 195 e 196. Outro autores
rejeitam mesmo este efeito, v. PROSPER WEIL, op. cit., p. 11, afirmando a p. 12, “Pas davantage
n’est-il justifié de considérer que des résolutions non normatives pourraient, à force d’être répétées, se
muer grâce à une espèce d’effet incantatoire en droit positif: pas plus qu’avec trois fois rien on ne fait
quelque chose, l’accumulation de non-droit ou de pré-droit ne suffit à elle seule à créer du droit”.
25
SEIDL-HOHENVELDERN, “International Economic ‘Soft Law’ ”, pp. 201-202.
26
Ver SEIDL-HOHENVELDERN, “International Economic ‘Soft Law’ ”, pp. 198 e ss.
27
Mesmo no caso das resoluções adoptadas por consenso, i.e., sem oposição das delegações habilitadas
a votar, um Estado pode juntar uma declaração de voto que as priva deste tipo de eficácia ao esclarecer
o sentido da sua aceitação. Ver SEIDL-HOHENVELDERN, International Economic Law, pp. 37 e 38,

9
uma norma consuetudinária é inoponível aos Estados que a ela tenham objectado de
forma persistente, o mesmo sendo válido para o chamado efeito justificativo da “soft
law”.28 Tais declarações ou votos contra podem ainda traduzir a ausência de uma
convicção jurídica da sua obrigatoriedade ou mesmo negar o carácter generalizado da
prática subjacente.

2. Os princípios do Direito Internacional Económico; O princípio da


liberdade de comércio29

SCHWARZENBERGER identifica três princípios jurídicos que revestem


essencialmente carácter económico: a liberdade de comércio; a liberdade de
comunicações aéreas, espaciais e terrestres30 e a liberdade dos mares. Estes diversos
princípios têm um carácter consensual, com excepção do princípio da liberdade dos
mares que integra o Direito Internacional Geral, sendo todavia o seu exercício
condicionado pelo direito convencional, como é o caso da célebre Convenção de
Montego Bay. De entre as liberdades em matéria de comunicações destaca-se a
liberdade de trânsito, essencial para o comércio de mercadorias e expressamente
consagrada no artigo V do GATT.31
O carácter altamente especializado das múltiplas convenções que consagram
as liberdades em matéria de comunicações justifica que elas sejam colocadas fora do
âmbito deste trabalho, pelo que nos centraremos na análise da liberdade de comércio.
No acórdão Oscar Chinn, o Tribunal Permanente de Justiça Internacional
definiu a liberdade de comércio, no contexto da Acta Geral de Berlim de 1885,
relativa à Bacia do Congo, como consistindo no “direito – em princípio sem restrições
– de exercer qualquer actividade comercial, quer se refira ao comércio propriamente

citando o caso da declaração da República Federal da Alemanha a propósito da resolução sobre a Nova
Ordem Económica Internacional.
28
Ver SEIDL-HOHENVELDERN, “International Economic ‘Soft Law’ ”, p. 196.
29
Neste ponto seguiremos de perto SCHWARZENBERGER, “Principles and Standards...”.
30
Este Autor inclui neste princípio a liberdade de navegação interior; a liberdade de acesso ao mar; a
liberdade de acesso aos portos marítimos; a liberdade de comunicações inter-marítimas (e.g. canais
artificiais como o do Panamá ou o Canal do Suez); a liberdade de trânsito e a liberdade do ar e do
espaço exterior.
31
O direito de trânsito tende hoje em dia a criar novos problemas face à necessidade de protecção do
ambiente. V. SEIDL-HOHENVELDERN, International Economic Law..., pp. 107-108 quanto à
situação da travessia dos Alpes na Áustria (membro da União Europeia desde 1 de Janeiro de 1995) e
na Suiça.

10
dito, ou seja à compra e venda de mercadorias, quer seja exercida dentro do território
ou, no caso da importação e exportação, com outros países”.32
O carácter consensual do princípio da liberdade de comércio, mesmo
entendido na sua acepção ampla, faz com que se deva evitar qualquer correspondência
entre este princípio e o ideal de comércio livre defendido pelos economistas de
formação neoclássica. Independentemente dos benefícios do comércio livre e do
princípio da vantagem comparada, estes necessitam, para a sua concretização com
carácter estável, de um enquadramento jurídico favorável. Daí que RÖPCKE afirme
que “enquanto os manuais sobre o comércio internacional demonstram que este
assenta na lei dos custos comparados, o seu fundamento é, em última análise, o
imperativo categórico ‘pacta sunt servanda’ ”.33
Assim, apesar da tentativa dos jusnaturalistas de encontrar fundamento para a
liberdade de comércio no Direito Natural,34 como afirma SCHWARZENBERGER, “a
liberdade de comércio foi, e é ainda, apenas o objecto da política comercial, um
princípio opcional a transformar em tratado em qualquer modalidade aceitável para
cada uma das partes contratantes”.35 Na sua base encontrar-se-á, pois, uma norma
convencional ou mesmo um acto unilateral de um Estado (neste último caso com
menor estabilidade dada a possibilidade de retirar esse acto de acordo com o Direito
Internacional). Por outras palavras, não existe um direito ao comércio com outro
Estado determinado e os Estados mantêm inteira liberdade quanto a permitir ou não o
comércio com outros.

3. As técnicas de padronização ou “standards” do Direito Internacional


Económico

A par dos princípios funcionais do Direito Internacional Económico atrás


analisados, encontramos um conjunto de cláusulas padronizadas ou “standards” do
Direito Internacional Económico, que alguns autores classificam como normas

32
TPJI, 1934, Series A/B, nº 63, p. 84, cit. por SCHWARZENBERGER, op. cit., p. 48. Este caso é
paradigmático das dificuldades inerentes à operacionalização de um princípio de igualdade formal no
exercício da liberdade de comércio quando surgem posições de monopólio de facto, no caso
patrocinadas pelo Governo belga que incentivou uma empresa belga a praticar preços predatórios de
forma a eliminar os concorrentes de outras nacionalidades. Ver id., p. 51.
33
RÖPCKE, “Economic Order...”, p. 212.
34
V. Joseph CATRY, “La liberté du commerce international d’aprés Vitoria, Suarez et les
Scolastiques”, RGDIP, 1932, p. 193.
35
SCHWARZENBERGER, op cit., p. 49.

11
fundamentais se bem que não universais.36 Estes “standards” são extraídos da prática
internacional, tendo, em alguns casos, longos séculos de história.37 Para Georg
SCHWARZENBERGER, os “standards” do Direito Internacional Económico
permitem relativizar a aplicação dos respectivos princípios, constituindo “regras
subsidiárias que fornecem um tertium comparationis”. A sua função principal
consiste em “definir e limitar o alcance dos princípios opcionais do Direito
Internacional Económico”.38 Examinaremos de seguida os principais “standards”,
deixando de lado outros que hoje têm essencialmente um interesse histórico.39 A
análise que se segue procura descrever as características desses “standards” em
abstracto. O seu efectivo conteúdo depende, na maior parte das vezes, dos termos em
que eles são formulados convencionalmente.40

3.1. O “standard” mínimo41

A tese segundo a qual existe um tratamento mínimo devido aos estrangeiros


que se encontrem sujeitos à soberania de um Estado que não o da sua nacionalidade
tem levantado uma longa polémica, opondo os que reclamam uma tutela efectiva pelo
Direito Internacional desses direitos mínimos aos que pretendem estender aos
estrangeiros, quando muito, um tratamento idêntico ao reservado aos nacionais.42 O
problema diz respeito aos entraves que podem ser colocados no interior de um Estado
ao exercício dos respectivos poderes soberanos pela existência de uma obrigação de
tratamento mínimo devido aos estrangeiros, correspondendo a um grau de protecção
determinado pelo Direito Internacional e não pelo direito interno.43 A interferência
com a soberania do Estado de acolhimento é agravada pela faculdade de o Estado de

36
V. John JACKSON, “International Economic Law”, p. 27.
37
V. VerLoren VAN THEMAAT, The Changing Structure of International Economic Law, Martinus
Nijhoff, Haia, 1981, pp. 19 e ss. (adiante VAN THEMAAT, The Changing Structure...).
38
SCHWARZENBERGER, “The Principles and Standards...”, pp. 45-46.
39
Como é o caso do “open door standard” que cria igualdade de oportunidades relativamente a um
território que não está sujeito à soberania das partes contratantes, particularmente utilizado durante o
colonialismo novecentista (e.g., na China).
40
Pense-se, por exemplo, na formulação da cláusula de nação mais favorecida no artigo I do GATT e
nas excepções a que está sujeito o seu regime.
41
V. BROWNLIE, Principles..., pp. 527 e ss., comparando este tratamento mínimo com o princípio do
tratamento nacional.
42
V., entre nós, FAUSTO DE QUADROS, A protecção da propriedade privada pelo Direito
Internacional Público, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 126 a 148 (adiante, FAUSTO QUADROS, A
protecção...).

12
nacionalidade poder exercer o direito de protecção diplomática dos seus nacionais,
assumindo a ofensa destes como uma lesão dos seus interesses enquanto soberano.44
A exemplo do que sucede noutros capítulos do Direito Internacional
Económico, o ponto de partida para qualquer análise é o direito de cada Estado de
regular as pessoas e bens que estejam sob a sua jurisdição. Esse direito é um
corolário dos princípios da igualdade soberana e da independência do Estado no seu
domínio territorial.45 Dito isto, convém assinalar que há excepções àquele direito
fundadas, essencialmente, em regras consuetudinárias, como sucede a propósito das
missões diplomáticas, ou criadas por tratado, como resulta em matéria de protecção
dos direitos de propriedade intelectual do acordo TRIPS.
Entre nós FAUSTO DE QUADROS, como a generalidade dos autores
ocidentais, conclui que “é o costume internacional geral que impõe hoje a existência
de um grau mínimo de Direito Internacional de protecção dos estrangeiros”, ainda que
reconheça não existir consenso “sobre o âmbito desse grau mínimo”.46
Assim para o Professor de Lisboa, “o grau mínimo internacional deve
englobar apenas os direitos que o Direito Internacional reconhece em absoluto ao
estrangeiro. Reconhecer em absoluto, quer dizer, aqui, reconhecer independentemente
da vontade do Estado de acolhimento e da nacionalidade do estrangeiro”. O Autor
reconduz, seguidamente, esse grau mínimo aos “direitos que constituem Direito
Internacional imperativo, isto é, ius cogens”, pois “por aí conseguir-se-á também que
o grau mínimo seja uniforme para todos os Estados, independentemente da vontade
do Estado de acolhimento, o que terá a vantagem suplementar de respeitar a igualdade
de tratamento entre os estrangeiros em qualquer Estado em que eles se encontrem”.
Julgamos que não é necessário equiparar esse grau mínimo ao ius cogens, já
que, no que respeita, por exemplo, ao direito à indemnização por expropriação é
discutível que o mesmo recolha o necessário julgamento de imperatividade. Basta que
se trate de uma norma consuetudinária geral, passível de ser substituída por uma nova
norma, para que não seja permitida a desvinculação unilateral do Estado de
acolhimento.

43
Isto sem prejuízo de o direito interno poder prever um tratamento mais favorável do que o resultante
do grau mínimo de protecção. Ainda assim o soberano territorial ver-se-á tolhido pela impossibilidade
de reduzir essa protecção abaixo do mínimo imposto pelo Direito Internacional.
44
Sobre o princípio da protecção diplomática, ver FAUSTO QUADROS, A protecção..., pp. 387 e ss.
45
BROWNLIE, Principles..., p. 525.
46
FAUSTO QUADROS, A protecção..., p. 132.

13
Como veremos, a questão do tratamento mínimo no plano económico diz
respeito à existência de obrigações de fonte consuetudinária quanto a actos do Estado
de acolhimento que privam ou limitam significativamente a titularidade ou o gozo de
direitos de propriedade de estrangeiros sobre activos, reais ou intangíveis, situados
sob a jurisdição daquele Estado. Esta matéria, que constitui o cerne da protecção de
investimentos, reveste-se hoje em dia de menor interesse dada a proliferação de
tratados bilaterais de protecção de investimentos que garantem um regime
particularmente favorável aos interesses dos investidores estrangeiros e dos
respectivos Estados.

3.2. A reciprocidade47

Outro regime opcional das trocas internacionais consiste em definir o


tratamento devido em termos de um equilíbrio ou mesmo igualdade de concessões e
vantagens. É importante distinguir aqui entre a reciprocidade de direitos e obrigações
que pode caracterizar uma convenção internacional da reciprocidade como medida
dos direitos conferidos por essa mesma convenção.
Assim, a reciprocidade de direitos e obrigações constitui outro corolário do
princípio da igualdade soberana e deve caracterizar qualquer convenção internacional.
A excepção de incumprimento nos tratados bilaterais traduz essa exigência de
cumprimento recíproco das obrigações deles decorrentes para as partes. A este nível, a
reciprocidade enquanto tradução de um princípio de equilíbrio de direitos e de
obrigações e de vantagens mútuas para as partes assume um papel diferente nos
tratados multilaterais, em particular no âmbito do sistema GATT/OMC onde ele
desempenha uma função política essencial de legitimação dos próprios
compromissos.48 Um bom exemplo disso é a complexidade dos resultados do Acordo
de Marraquexe onde se procurou atingir um equilíbrio entre os diferentes interesses
predominantes em cada parte contratante, compensando as cedências dos países
industrializados no domínio dos têxteis e agricultura com a aceitação pelos países em
vias de desenvolvimento de um acordo francamente favorável ao interesse dos
principais países industrializados (o TRIPS).

47
V. M. VIRALLY, “Le principe de réciprocité dans le droit international contemporain”, RCADI,
tomo 122, 1967 – III, p. 1; DÉCAUX, La reciprocité en droit international, 1980.

14
Já a reciprocidade como medida de direitos visa subordinar a concessão pelo
Estado A de um determinado tratamento aos nacionais do Estado B, por exemplo a
dispensa de certas autorizações exigidas a estrangeiros ou o afastamento de limites ao
exercício de certas actividades por estrangeiros, à obtenção de tratamento idêntico ou
equivalente por parte dos seus nacionais ao abrigo da lei do Estado B. Veja-se, a título
de exemplo, a Directiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de
Março de 2000, relativa ao acesso à actividade das instituições de crédito e ao seu
exercício estabelece no seu artigo 24.º, n.º 3, quanto às Sucursais de instituições de
crédito com sede social fora da Comunidade que “a Comunidade pode, mediante
acordos concluídos nos termos do Tratado com um ou vários países terceiros,
estabelecer a aplicação de disposições que, com base no princípio da reciprocidade,
concedam às sucursais de uma instituição de crédito com sede social fora da área da
Comunidade o mesmo tratamento sobre o conjunto do território da Comunidade”
Esta distinção não se confunde com a diferenciação entre reciprocidade em
sentido formal e reciprocidade substantiva.49 Esta última classificação dicotómica
permite justificar a renúncia a uma reciprocidade formal em nome de um princípio de
igualdade material, como sucede no âmbito do GATT no n.º 8 do artigo XXXVI, nos
termos do qual “As partes contratantes desenvolvidas não esperam reciprocidade
pelos compromissos tomados por elas nas negociações comerciais quanto à redução
ou remoção de direitos aduaneiros e de outros obstáculos ao comércio das partes
contratantes menos desenvolvidas”. Isto apesar de a reciprocidade e as vantagens
mútuas constituírem os princípios orientadores das negociações pautais previstas no
artigo XXVIII-bis do mesmo acordo, sendo igualmente referidos no respectivo
preâmbulo bem como no preâmbulo do Acordo OMC.50

3.3. A discriminação internacional: o tratamento preferencial

Um dos principais instrumentos de política comercial, particularmente


relevante em termos históricos no caso das potências europeias do Antigo Regime,
consiste em atribuir um tratamento preferencial aos produtos de outro Estado,

48
Sobre as funções do princípio da reciprocidade v. Ernst-Ulrich PETERSMANN, The GATT/WTO
Dispute Settlement System, Haia, Kluwer, 1997, pp. 36 e ss.
49
V. Geert WILS, “The Concept of Reciprocity in EEC Law: An Exploration into these Realms”,
C.M.L.Rev., vol. 28, 1991, p. 245.

15
normalmente com reciprocidade (e.g. Tratado de Methuen entre Portugal e a
Inglaterra). Esse tratamento preferencial tendia a assumir a forma de uma redução ou
mesmo isenção de direitos aduaneiros ou a sua inclusão em contingentes tarifários
sujeitos a regimes mais favoráveis. A existência de regimes preferenciais era
igualmente comum nas relações entre as metrópoles europeias e as suas colónias,
tendo sido utilizada no período posterior a 1933 pela Alemanha Nazi como um
poderoso instrumento de controlo das economias de diversos países da Europa Central
e de Leste, em particular devido à crise da balança de pagamentos alemã e à escassez
de divisas para fazer face à crescente procura de matérias-primas importadas
(sobretudo destinadas ao rearmamento alemão e à alimentação).
Como é evidente, o tratamento preferencial constitui uma forma de
discriminação internacional, condenável (ainda que só de iure condendo na ausência
de proibição pelo Direito Internacional) quer em termos jurídicos à luz do princípio da
igualdade soberana, quer quando confrontado com a lei económica da vantagem
comparada.
Com a multilaterização da cláusula da nação mais favorecida e a sua
consagração de modo incondicional no GATT de 1947, os regimes preferenciais
pareciam condenados.51 No entanto, o próprio artigo I do GATT admitia já a
possibilidade de manutenção de certas preferências históricas, ainda que sujeitas a
certos limites (n.ºs 2 a 4). Mais significativas se viriam a revelar as excepções àquele
princípio em sede das integrações económicas (artigo XXIV do GATT) e do
tratamento diferenciado dos países em vias de desenvolvimento, estas últimas
traduzidas nos sistemas generalizados de preferências.

3.4. O desenvolvimento de um princípio geral de não discriminação52

Por via convencional, em particular através do GATT que proclama no seu


preâmbulo a intenção das respectivas partes contratantes de contribuir para a
eliminação do tratamento discriminatório no comércio internacional, tem-se vindo a
desenvolver progressivamente um princípio de não discriminação. No entanto, este

50
Sobre a problemática do direito ao desenvolvimento ver Eduardo PAZ FERREIRA, Valores e
Interesses, Almedina, Coimbra, 2004.
51
No plano monetário, o artigo VIII, secção 3, do Estatuto do FMI cria a obrigação de evitar práticas
monetárias discriminatórias, outra forma que podia revestir um regime preferencial.

16
princípio tende a ser limitado na sua concretização por numerosas excepções. Não se
pode ainda afirmar que exista um princípio de natureza consuetudinária que proíba a
discriminação. Destacamos apenas duas das principais consagrações deste princípio
em desenvolvimento, particularmente eficazes no sistema do GATT/OMC: a cláusula
da nação mais favorecida, que visa proibir a discriminação entre países, e o princípio
do tratamento nacional, que pretende impedir que aos produtos e agentes económicos
estrangeiros seja concedido um tratamento menos favorável do que o concedido aos
produtos e agentes económicos nacionais.

3.4.1. O tratamento de nação mais favorecida ou a igualdade na preferência53

A cláusula da nação mais favorecida consagra um princípio de não


discriminação entre Estados (ou entre estes e territórios aduaneiros autónomos ou
espaços de integração económica, como a União Europeia). O tratamento de nação
mais favorecida implica a extensão ao seu beneficiário de qualquer tratamento mais
favorável que seja dado pelo Estado concedente a outro Estado (ou aos produtos e/ou
agentes económicos provenientes desse Estado), por força de uma convenção
internacional ou a título unilateral.
Significa isto que o Estado que se vincula ao tratamento de nação mais
favorecida pode atribuir um tratamento preferencial a terceiros, devendo, contudo,
estender esse tratamento aos Estados a quem, convencional ou unilateralmente,
conceda aquele estatuto. Trata-se, antes de mais, de um princípio de igualdade na
preferência, que permite aos Estados beneficiários obviar a eventuais discriminações
na concessão de tratamento preferencial pelo Estado concedente.54

52
V. Karl Josef PARTSCH, “The Final Act of Helsinki and Non-discrimination in International
Economic Relations”, ZaöRV, 1985, 45/1, p. 1.
53
Ver SCHWARZENGERBER, “The Principles and Standards...”, pp. 70 a 77; Endre USTOR, “Most-
Favored-Nation Clause”, in Encyclopedia of Public International Law, vol. III, North Holland,
Elsevier, 1995, p. 468; John JACKSON, “International Economic Law”, pp. 27 a 29; Claude
ROSSILLION, “La clause de la nation la plus favorisée dans la jurisprudence de la Cour internacionale
de Justice”, J.D.I., 1955, p. 76 (com ampla referência a doutrina publicada na primeira metade do
século XX e uma análise dos dois principais acórdãos proferidos pelo Tribunal Internacional de Justiça
sobre a cláusula da nação mais favorecida, caso Anglo-Iranian Oil Co. e Direitos dos nacionais dos
Estados Unidos em Marrocos). Entre nós, v. José Manuel PUREZA, “A cláusula da nação mais
favorecida”, Documentação e Direito Comparado, nºs 29/30, 1987, pp. 479-622.
54
A questão da igualdade de tratamento entre o Estado beneficiário e o Estado favorecido foi muito
valorizada pelo Tribunal Internacional de Justiça nas circunstâncias particulares do caso Direitos dos
nacionais dos Estados Unidos em Marrocos, França c. E.U.A., CIJ, Recueil 1952, p. 107, onde os
Estados beneficiários tinham renunciado, total ou parcialmente, ao tratamento mais favorável que lhes
era dado pelo Estado concedente.

17
Em termos económicos, a cláusula da nação mais favorecida permite o
funcionamento do mecanismo da vantagem comparada na medida em que a sua
generalização tende a eliminar a discriminação internacional por regimes
preferenciais. Colocados em igualdade de condições de acesso ao mercado do Estado
concedente, a eficiência produtiva reflectida no preço (supondo que se trata de um
mercado onde há concorrência perfeita, logo onde o preço é igual ao custo marginal
de produção) favorecerá o produtor com menor custo de produção. Por outro lado, ao
estabelecer uma preferência (igual para os Estados favorecidos e para os Estados
beneficiários) face aos restantes Estados, o regime da cláusula da nação mais
favorecida constitui um factor de atracção para a participação nas organizações
multilaterais que consagram esse tratamento, como foi o caso do GATT e é agora a
situação da OMC.
Note-se que as obrigações assumidas para com o Estado favorecido
“representam o tratamento que deve ser aplicado ao beneficiário, mas o conteúdo da
cláusula é um conteúdo abstracto, é apenas o direito a usufruir do tratamento da
nação mais favorecida, não esse mesmo tratamento”.55 Por outras palavras, o
tratamento a que o Estado beneficiário tem direito deve ser aferido, em cada
momento, pelo regime mais favorável aplicado pelo concedente a qualquer outro
Estado. O tratamento da nação mais favorecida esgota-se nessa igualdade na
preferência, independentemente do nível efectivo de favorecimento que essa
igualdade implique.
Do ponto de vista do seu regime, a cláusula da nação mais favorecida pode ser
condicional ou incondicional. Para facilidade de exposição, pensemos na seguinte
hipótese: os Estados A e B celebram entre si um tratado comercial pelo qual se
obrigam reciprocamente ao tratamento de nação mais favorecida.
Na sua formulação condicional, a extensão ao Estado beneficiário A de um
tratamento mais favorável concedido por B (bilateral ou unilateralmente) a um Estado
terceiro C fica sujeita à aceitação por B das contrapartidas que lhe sejam oferecidas
por A, as quais devem (em princípio) ser equivalentes às conferidas por C. Desta
forma mantém-se a flexibilidade do enquadramento jurídico das relações comerciais
de cada uma das partes contratantes, garantindo-se uma renegociação de cada vez que
seja estendida uma vantagem a um Estado terceiro. A cláusula da nação mais

55
Claude ROSSILLION, op.cit., p. 90.

18
favorecida condicional, uma invenção francesa como afirma SCHWARZENBERGER
(sendo disso exemplo o acordo entre a França e os Estados Unidos de 6 de Fevereiro
de 1778), foi particularmente utilizada no final do século XIX e princípio do século
XX.
Com o final da II.ª Guerra Mundial e a criação de estruturas jurídicas e
institucionais de carácter multilateral, generalizou-se a cláusula da nação mais
favorecida incondicional, consagrada no artigo I do GATT e retomada nos artigos II
do GATS e 4.º do TRIPS, bem como em muitos acordos bilaterais sobre
investimentos e em outras áreas da cooperação económica.56 Como a sua designação
indica, a extensão de benefícios concedidos a terceiros opera automaticamente, pondo
fim à necessidade de negociações para determinar um nível equivalente de
concessões. Esta incondicionalidade do regime da cláusula da nação mais favorecida
não deixa de ter inconvenientes, pois incentiva atitudes oportunistas que podem criar
um clima desfavorável a um aumento das concessões sempre que parceiros
importantes se recusam a negociar por esperarem obter “gratuitamente” os benefícios
negociados por outros. Por outro lado, a incondicionalidade dessa cláusula significa
que, quanto maior a abertura de um Estado ao comércio com outros países, maior será
o alcance dos benefícios auferidos pelos Estados com quem está ligado por aquela
cláusula, mesmo que estes não tenham igual nível de liberalização do seu comércio
externo (veremos como esta questão levou a uma formulação original da cláusula no
GATS). Isso significa que a cláusula incondicional apenas pode funcionar num
quadro de equilíbrio de concessões alargado, acompanhado da previsão de cláusulas
de salvaguarda, para evitar uma pressão no sentido da desvinculação do regime,
sempre que se crie a percepção de um desequilíbrio grave dos direitos e obrigações
das partes.
Apesar de alguns esforços nesse sentido, não parece possível reconhecer à
cláusula da nação mais favorecida o estatuto de norma consuetudinária, sendo o seu
fundamento sempre uma norma convencional ou um acto unilateral.57 Do mesmo
modo que os Estados dispõem do poder de regular o comércio com agentes situados
no interior do seu território, têm também o direito de regular as condições em que esse

56
V. Endre USTOR, op. cit., p. 468.
57
V. John JACKSON, “International Economic Law”, p. 28; ZAMORA, op. cit., pp. 28-29; Endre
USTOR, op. cit., pp. 469-470. Sobre as tentativas de codificação sob a égide da Sociedade das Nações
e, posteriormente, da Organização das Nações Unidas e do Instituto de Direito Internacional, v.
USTOR (que foi relator do IDI), p. 472.

19
comércio ocorre e conceder tratamento preferencial a um ou mais Estados. Esse poder
reflecte a natureza política subjacente ao controlo pelos Estados do seu comércio
externo, sendo os benefícios comerciais muitas vezes contrapartida de alianças
políticas.
Outra questão que tende a gerar dificuldades na aplicação da cláusula da nação
mais favorecida diz respeito à definição do seu âmbito de aplicação. Que tipo de
vantagens devem ser estendidas ao Estado beneficiário? Podem essas vantagens
decorrer de tratados que têm uma natureza distinta? No essencial não é possível
fornecer uma resposta geral a estes problemas, já que se trata de um problema de
interpretação do acto (convencional ou unilateral) que concede esse tratamento. A
redacção muito genérica deste tipo de cláusulas favorece interpretações generosas,
como sucede, por exemplo, com o n.º 1 do artigo I do GATT que define como seu
objecto “qualquer vantagem, favor, privilégio, ou imunidade ... será... extensiva a
todos os produtos similares ...”.
Por último, é necessário referir que o alcance da cláusula da nação mais
favorecida como instrumento de igualdade entre os Estados no comércio internacional
sofre de algumas limitações, bem visíveis nas duas principais excepções admitidas no
sistema GATT/OMC. Em primeiro lugar temos a discriminação positiva
relativamente aos países em vias de desenvolvimento, que pode igualmente ser
apresentada como respeitando um princípio de igualdade material. Em segundo lugar,
temos outra excepção que abrange sobretudo o comércio dos países desenvolvidos e
respeita às integrações económicas.

3.4.2. O tratamento nacional

No sistema OMC encontramos o princípio do tratamento nacional nos artigos


III do GATT de 1994, XVII do GATS (ainda que com um âmbito de aplicação mais
limitado) e 3.º do TRIPS. A sua consagração em matéria de protecção dos
investimentos é mais controversa, na medida em que aos estrangeiros pode aproveitar
um regime mais favorável a título de tratamento mínimo, caso o tratamento nacional
seja inferior ao previsto pelo “standard” mínimo. O tratamento nacional tende a
garantir ao estrangeiro ou aos produtos importados um tratamento não menos
favorável do que o reservado aos seus nacionais e as seus produtos. Tal não impede,
pois, um tratamento mais favorável dos estrangeiros e dos produtos importados, o que

20
se traduzirá numa discriminação inversa que, em princípio, apenas interessa ao direito
interno desse Estado (podendo eventualmente violar garantias constitucionais de
igualdade dos seus nacionais e promover um alinhamento dos direitos pelo nível de
protecção mais elevado).
Abstraindo, por agora, dos problemas colocados pela aplicação do princípio do
tratamento nacional no âmbito daqueles acordos, a questão central que se coloca a
este respeito é o facto de o conteúdo das obrigações que decorrem deste princípio ser
determinado, em concreto, pelo Estado que está obrigado a conceder esse tratamento.
Este princípio parece, pois, respeitar as competências do Estado quanto à regulação da
sua economia e à prossecução de interesses públicos relevantes (como a segurança
alimentar, a protecção do ambiente, etc.).
Simultaneamente, ao instituir obrigações internacionais quanto à aplicação de
um nível de tratamento definido pela legislação ou prática administrativa internas, o
princípio do tratamento nacional internacionaliza indirectamente as matérias que
caem no seu âmbito. O Estado não pode dizer que a forma como aplica aquelas
disposições internas constitui domínio reservado, logo excluído do âmbito da
intervenção do Direito Internacional. É que o Direito Internacional Económico não se
pode alhear totalmente do conteúdo desse tratamento, nem sequer das modalidades da
sua aplicação, sob pena de as obrigações de tratamento nacional serem esvaziadas por
diferenças de tratamento fundadas em classificações arbitrárias.
Daqui decorre uma exigência de um exame de racionalidade/razoabilidade das
eventuais diferenças de tratamento e, consequentemente, a sindicabilidade dos
fundamentos e modos de aplicação da legislação interna. Esta exigência torna-se cada
vez mais visível à medida que se aprofunda a integração da economia internacional e
em que são assumidas obrigações quanto a matérias que exigem uma análise da
própria regulação pública das condições de acesso e de exercício de actividades
económicas no interior do território de um Estado, como sucede com os serviços.
O desiderato da eliminação dos obstáculos ao acesso ao mercado (muitas
vezes confundidos com a intervenção do Estado) e a necessidade de protecção das
expectativas das partes contratantes leva, assim, a um exame cada vez mais
meticuloso da aplicação do tratamento nacional. Suscita-se então a questão de definir
quais os fundamentos da intervenção do Estado que podem justificar um eventual
entrave ao acesso ao mercado, bem como de princípios de proporcionalidade na sua
execução.

21
4. Os espaços de auto-regulamentação pelos agentes económicos

Numa Ordem Económica Internacional que é essencialmente liberal, e onde os


participantes nas transacções internacionais são agentes económicos privados ou,
mesmo quando públicos, de natureza empresarial, o espaço de autonomia desses
agentes é considerável. Essa autonomia manifesta-se, desde logo, a par da autonomia
contratual na ordem jurídica interna, na definição das condições contratuais e na
sujeição dos litígios emergentes desses contratos a arbitragem voluntária. Mas ela é
também evidente na criação de associações, normalmente ao abrigo da lei de um
Estado, que representam os interesses dos operadores económicos. Por último, os
operadores económicos exercem ainda um importante poder de auto-regulação pela
organização de mercados (como acontece no sector financeiro com os chamados
euro-mercados) e pela adopção de standards ou normas técnicas, em regra
voluntárias, mas que podem adquirir força obrigatória quando incorporados em
regulamentos técnicos adoptados pelos Estados.
Embora inserida no âmbito da disciplina de Direito do Comércio
Internacional, é importante fazer aqui uma breve chamada de atenção para um
fenómeno que muitos autores qualificam como uma terceira ordem jurídica: a lex
mercatoria.58
A coexistência de diferentes ordens jurídicas nacionais e a inevitável presença
de elementos de conexão com mais de uma ordem jurídica nas transacções
internacionais colocam obstáculos ao desenvolvimento destas transacções, em
especial quando subsistem diferenças significativas no direito material aplicável. Por
outro lado, quanto à resolução de diferendos, a dependência de um sistema judicial
organizado essencialmente para resolver litígios localizados no interior da ordem
jurídica do foro, para já não falar dos problemas de determinação do tribunal
internacional e internamente competente, cria igualmente dificuldades particulares ao
comércio internacional.

58
V. Philippe KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria:
concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, in Études Berthold Goldman, Litec, Paris, 1982,
p. 97; Michel VIRALLY, “Un tiers droit? Réflections théoriques”, id., p. 373. Ver, mais recentemente,
Eric LOQUIN, “Où en est la lex mercatoria?”, in Mélanges Phillipe Kahn, Litec, Paris, 2000, p. 23;
Alain PELLET, “La lex mercatoria ‘tiers ordre juridique’? Remarques ingenues d’un internationaliste
de Droit public”, id., p. 53. Entre nós ver a importante obra de Luís de Lima PINHEIRO, “Joint

22
A própria inércia e complexidade dos processos formais de criação de direito a
nível internacional, em particular face a novas realidades económicas como o
comércio electrónico, estimulam o recurso a formas de auto-regulação que,
precedendo e antecipando a reacção unilateral ou internacional dos Estados, a moldam
nos seus contornos definitivos. O próprio Direito Internacional não é alheio a estes
movimentos e procura interiorizá-los, destacando-se a acção da Comissão das Nações
Unidas para o Direito Comercial Internacional (conhecida pela sua sigla inglesa,
UNCITRAL), que está na origem de algumas importantes convenções internacionais
e elabora também “Leis modelo” (que têm, quando muito, o carácter de
recomendações) sobre diferentes aspectos do Direito do Comércio Internacional
(incluindo o comércio electrónico).59
O desejo de eliminar ou reduzir os custos de transacção inerentes à incerteza
quanto à lei material aplicável, de desenvolver disciplinas materiais que tenham em
conta as especificidades das transacções em causa e de ter acesso a mecanismos
céleres de resolução de litígios, de preferência cooptados pelos próprios agentes
económicos, parece estar na base do movimento de formação de um direito comercial
material aplicável às transacções internacionais e da instituição de mecanismos
próprios de resolução de litígios, de carácter arbitral, que permitam manter a evolução
das regras aplicadas sob o controlo institucional desses meios profissionais.
Estas formas de auto-regulação fundam-se numa organização dos interesses
profissionais em jogo (os traders ou agentes que participam no comércio
internacional) em torno de regras padronizadas, que podem permanecer facultativas
ou assumir o carácter de usos do comércio internacional e vincular dessa forma os
agentes que participam nesse comércio, e de mecanismos mais ou menos
institucionalizados de assegurar a resolução dos litígios decorrentes dos contratos
comerciais internacionais. Assume particular relevo a actuação da Câmara do
Comércio Internacional (uma associação privada de direito francês, criada em 1919 e
com sede em Paris), responsável pelos Incoterms (condições contratuais padronizadas
para a compra e venda de mercadorias à distância) e que dispõe de elaboradas regras
sobre arbitragem comercial internacional.60

venture” – Contrato de empreendimento comum em Direito Internacional Privado, Cosmos, Lisboa,


1998, em particular pp. 605 a 734.
59
Para uma breve apresentação da UNCITRAL e uma recolha dos textos por ela elaborados, ver o site:
www.uncitral.org.
60
V. o site: www.iccwbo.org.

23
À margem das ordens jurídicas nacionais, ou melhor nos espaços intersticiais
deixados pela autonomia contratual e pelo reconhecimento da arbitragem comercial,
nasce assim um direito profissional, cooptado pelos agentes económicos.61 É a este
respeito que “nas principais concepções favoráveis à existência de Direito autónomo
do comércio internacional” se fala da lex mercatoria como sendo “todo o Direito
material especial do comércio internacional dotado de um certo grau de uniformidade
internacional ou uma ordem jurídica autónoma do comércio internacional
caracterizada por processos específicos de formação das suas normas”.62
Não nos interessa aqui tomar posição quanto à existência ou não desse direito
autónomo, nem sequer quanto à adequação de a ele nos referirmos como se de uma
terceira ordem jurídica se tratasse (i.e., entre as ordens jurídicas nacionais e a ordem
internacional).63 O problema colocado ao Direito Internacional Económico é o de
delimitar certas situações de fronteira: (1) a escolha, a título principal ou subsidiário,
em certos contratos comerciais internacionais dos princípios gerais de direito e/ou dos
princípios gerais do direito internacional; (2) a natureza dos usos do comércio face às
normas consuetudinárias que regulam as relações entre Estados; (3) a natureza dos
mecanismos de arbitragem mista.
Quanto à primeira questão, ela assume particular relevância quando essas
cláusulas de lei aplicável são inseridas em contratos entre um particular (normalmente
um investidor estrangeiro) e um Estado (o país de acolhimento do investimento que
constitui objecto do contrato). Esta questão envolveria uma análise da teoria da
internacionalização dos contratos, que procura transformar esses contratos (fonte de
obrigações à luz da lei aplicável ao contrato) em quase-tratados (consequentemente
fonte de obrigações no plano internacional), colocando em igualdade de
circunstâncias ambas as partes. Mas mesmo o recurso aos princípios gerais do direito
e/ou aos princípios gerais do direito internacional no quadro das relações comerciais
privadas pode influenciar a regulação das relações entre Estados ou entre estes e
particulares, na medida em que as decisões dos tribunais arbitrais que são chamados a

61
A doutrina associada à Escola da Análise Económica do Direito tende a identificar uma função
económica do direito dos contratos (entre nós incluído na disciplina do Direito das Obrigações) ao
eliminar custos de transacção através da formulação de regras supletivas. V. Ian AYRES e Robert
GERTNER, “Filling Gaps in Incomplete Contracts: An Economic Theory of Default Rules”, Yale L. J.,
vol. 87, 1989, p. 87. Sobre a formação de um direito corporativo na indústria dos diamantes por efeito
da cooptação acima aludida v. Lisa BERNSTEIN, “Opting Out of the Legal System: Extralegal
Contractual Relations in the Diamond Industry”, J.Legal Studies, vol. 21, 1992, p. 115.
62
V. Luís de Lima PINHEIRO, op. cit., p. 606.
63
Quanto a estas questões reenviamos o leitor para as indicações bibliográficas da nota 55, supra.

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resolver litígios contratuais podem ser utilizadas como meios auxiliares de
determinação do direito à luz do artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de
Justiça. Sobretudo quando esses tribunais recorrem a métodos de direito comparado
para concretizar princípios gerais de direito, as soluções assim estabelecidas podem
igualmente inspirar os tribunais chamados a resolver litígios entre Estados.
Quanto à segunda questão, destacam-se na doutrina do Direito Internacional
Económico, autores como SEIDL-HOHENVELDERN que assimilam esses usos a
verdadeiras regras consuetudinárias no plano internacional, ainda que a sua posição
pareça assumir que essas regras apenas são vinculativas nas relações entre os agentes
económicos que as criaram ou que operam no meio profissional onde elas se
desenvolveram. Contudo, parece pouco razoável admitir que um Estado soberano
fique vinculado por usos emergentes da prática de particulares, ainda que o Direito
Internacional possa obrigar um Estado a reconhecer validade a esses usos nas relações
entre particulares.
O terceiro problema, a que já fizemos referência, refere-se a um tema que
extravasa o âmbito deste trabalho, em particular os mecanismos de resolução de
diferendos no Direito Internacional Económico.

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