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Classificação das psicoses endógenas de Karl Leonhard

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Paulo C Sallet Wagner Gattaz


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REVISÃO DE LITERATURA

Classificação das psicoses endógenas de Karl Leonhard


Paulo Clemente Sallet1
Wagner Farid Gattaz2

Recebido: 5/4/2002 Aceito: 17/5/2002

RESUMO
O artigo apresenta uma síntese dos subtipos nosológicos descritos por Karl Leonhard na sua classificação das
psicoses endógenas, comumente arrolados sob o diagnóstico de “esquizofrenia” ou “transtorno esquizoafetivo” nos
sistemas diagnósticos internacionais (DSM e CID). Leonhard subdivide as doenças do espectro esquizofrênico em
três grupos principais: psicoses ciclóides, com início abrupto, sintomatologia polimorfa, em que ocorrem sintomas de
tipos opostos (bipolares) e plena remissão após as crises; esquizofrenias não-sistemáticas, que evoluem com surtos
de sintomatologia bipolar ao longo de diferentes funções psíquicas, tais como afeto, pensamento e psicomotricidade,
com remissão parcial nos períodos intercrise; e esquizofrenias sistemáticas que, em geral, apresentam início precoce
e insidioso, com sintomatologia mais bem delimitada levando a estados residuais de defeito mais pronunciados.
Unitermos: Psicose ciclóide; Esquizofrenia; Subtipos; Classificação.
ABSTRACT
Karl Leonhard's classification of endogenous psychoses
The paper presents a summary of the diagnostic subtypes of the Leonhard's classification generally defined as
“schizophrenia” or “schizoaffective disorder” in the international diagnostic systems (DSM and ICD). Leonhard
subdivides the schizophrenia spectrum disorders in three major groups. Cycloid psychoses are characterized by
abrupt onset, severe polymorphous symptomatology in which opposite types of symptoms occur, and which have
a complete recovery from each phase. Non-systematic schizophrenias follow a periodic course of bipolar
symptomatology comprising different psychic functions, such as affect, thinking, and psychomotor function, with
partial remission between the episodes. Systematic schizophrenias generally show an early insidious onset and a
well-defined symptomatology, with more pronounced residual symptoms.
Keywords: Cycloid psychoses; Schizophrenia; Subtypes; Classification.

Histórico hipóteses testáveis às investigações no campo da


psiquiatria biológica.
A classificação das psicoses endógenas de A psiquiatria moderna, inicialmente ancorada em
Leonhard deve mais apropriadamente ser denominada concepções filosófico-religiosas, assume uma direção
classificação de Wernicke-Kleist-Leonhard. Embora neuroanatômica com Griesinger (1817-1868) (Die
entre esses autores haja discordâncias quanto a alguns pathologie und therapie der psychischen krankheiten,
aspectos teóricos, seus fundamentos exibem uma 1845). Griesinger propõe que psiquiatria e neuropa-
continuidade que os distingue das demais tendências tologia falam a mesma língua e são regidas pelas mesmas
no pensamento psiquiátrico do século XX. A primazia leis, de modo que o primeiro passo para o entendimento
do enfoque neurobiológico associada às descrições dos transtornos psíquicos é a sua localização, ou seja,
psicopatológicas constitui um corpo teórico que oferece sua compreensão a partir de alterações patológicas

1
Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
2
Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Endereço para correspondência:
Instituto de Psiquiatria – HCFMUSP
Rua Ovídio Pires de campos, s/n – São Paulo, SP
E-mail: pcsallet@usp.br

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cerebrais empiricamente verificáveis. A partir da teórica de Wernicke e Kleist. Há entretanto que se referir
neuroanatomia de Meynert e da neurofisiologia de Hitzig algumas distinções entre essas concepções:
houve uma série de descobrimentos baseados na loca- Wernicke fundamenta sua teoria baseado no
lização cerebral de funções psíquicas mais simples, tais chamado arco reflexo psíquico, um modelo funcional
como as implicadas na afasia e na agnosia. Nesse localizatório das funções psicossensorial, intrapsíquica
contexto surge Wernicke (1848-1905) com seu cons- e psicomotora. Na sua hipótese da sejunção, agrega
truto de uma psiquiatria anatômico-localizatória e neuro- que perturbações nas vias de associação entre essas
patológica. áreas levam a processos irritativos com perda irreversível
Kraepelin (1856-1925), em parte baseado em das funções implicadas (Wernicke, 1990). Leonhard
Kahlbaum (1828-1899), propôs um agrupamento bipartido evita a hipótese da sejunção, na medida em que atribui
das psicoses com ênfase no seu aspecto prognóstico. uma recuperação plena das funções no caso das psicoses
Assim, de um lado concebeu como dementia praecox as ciclóides (Franzek, 1990).
psicoses endógenas progressivas que evoluem para um Kleist concebe que para cada subforma de
estado de “defeito” [defekt]; de outro, os transtornos esquizofrenia corresponde um distúrbio de sistema
maníaco-depressivos caracterizados por formas de curso neuropsíquico específico, especialmente no caso das
fásico e potencialmente curáveis. formas sistemáticas. Ele formulou sua teoria da
Bleuler (1857-1939) cunhou o termo “grupo das personalidade com base na patologia e estudo clínico
esquizofrenias” em substituição ao de “demência de lesões cerebrais (Kleist, 1935). Leonhard, que
precoce”, conceito que trouxe consigo uma maior identificou 19 subformas de esquizofrenia, mostra-se
abrangência, arrolando sob seu diagnóstico outras cético em atribuir sintomas individuais a áreas espe-
psicoses que seriam vistas originalmente por Kraepelin cíficas do cérebro, tal como tentara Kleist no assim
no âmbito dos transtornos maníaco-depressivos. chamado "localizacionismo". O próprio Kleist,
Leonhard (1904-1988) sugere que esta mudança assumindo uma postura crítica diante da tentativa de
acabou por comprometer o princípio prognóstico atribuir certas funções e distúrbios a áreas específicas
kraepeliniano, na medida em que algumas psicoses do sistema nervoso, admitia que quanto mais global fosse
definidas neste aspecto como esquizofrênicas a função tanto mais difusos seriam os centros funcionais
apresentavam cura ou remissão completa. Uma vez implicados. Leonhard, por sua vez, desenvolveu uma
relativizado o princípio prognóstico, permanece como teoria da personalidade com base mais psicológica
alternativa uma classificação baseada em sintomas, o (Leonhard, 1970a; 1970b), assumindo a concepção de
que tornaria a classificação das psicoses bem menos que nas esquizofrenias há comprometimento de sistemas
consistente (Leonhard, 1995). não necessariamente no sentido morfológico, mas sim
Wernicke rejeitou a classificação de seu contem- funcional. Portanto, como veremos neste e nos dois
porâneo Kraepelin e propôs uma divisão não a partir do artigos seguintes, Leonhard distingue as diferentes
prognóstico, mas sim do quadro sintomatológico de psicoses do seu sistema diagnóstico com base em
estado. Kleist (1879-1960) adotou seus ensinamentos ao diferenças funcionais e genéticas.
mesmo tempo em que procurou respaldá-los no princípio
prognóstico proposto por Kraepelin que, embora tenha
visto o agrupamento original de forma bipartida, também Classificação
procurou descrever quadros exatos no campo das A seguir, nos limitaremos a uma exposição resu-
esquizofrenias, principalmente no que se refere aos mida das psicoses descritas por Leonhard que são
estados residuais. Isso propiciou uma divisão das psicoses comumente arroladas nos sistemas diagnósticos atuais
baseada no quadro sintomatológico das formas (CID-10 e DSM-IV) como esquizofrenia ou psicoses
nosológicas propostas por Wernicke, mas não tão do espectro esquizofrênico (Quadro 1). As psicoses
somente na sintomatologia, como também no seu curso fásicas (doença maníaco-depressiva, melancolia, mania,
e resultado final. Dessa maneira, no campo das psicoses depressão e euforia puras) não apresentam dificuldades
endógenas surgiram formas autônomas, através das quais no diagnóstico diferencial com as esquizofrenias, sendo
sobretudo o grupo das esquizofrenias foi novamente em geral designadas nos sistemas diagnósticos
restrito às formas de prognóstico desfavorável. internacionais como transtornos de humor com
Em suas investigações, Leonhard parte também dos características psicóticas, motivo pelo qual não serão
estados esquizofrênicos de defeito, portanto seguindo a abordadas neste artigo. O leitor não familiarizado com
Kraepelin. Entretanto, quanto à psicopatologia das a língua alemã pode consultar a tradução da classificação
psicoses endógenas, baseia suas concepções na linha de Leonhard em língua inglesa, referida na bibliografia.

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Quadro 1 Classificação das psicoses endógenas segundo Karl Leonhard


Classificação das psicoses endógenas segundo K. Leonhard*
1. Psicoses fásicas (phasischen psychosen) (exceto as ciclóides):
1.1. Doença maníaco-depressiva (manisch-depressive krankheit);
1.2. Melancolia pura e mania pura:
1.2.1. Melancolia pura (reine melancholie);
1.2.2. Mania pura (reine manie).
1.3. Depressões puras e euforias puras:
1.3.1. Depressões puras (reine depressionen):
1.3.1.1. Depressão agitada (gehetzte depression);
1.3.1.2. Depressão hipocondríaca (hypochondrische depression);
1.3.1.3. Depressão auto-torturada (selbsquälerische depression);
1.3.1.4. Depressão desconfiada (argwöhnische depression);
1.3.1.5. Depressão apática (Fria?) (teilnahmsarme depression).
1.3.2. Euforias puras (reine euphorien):
1.3.2.1. Euforia improdutiva (unproduktive euphorie);
1.3.2.2. Euforia hipocondríaca (hypochondrische euphorie);
1.3.2.3. Euforia (exaltada) (schwärmerische euphorie);
1.3.2.4. Euforia confabulatória (konfabulatorische euphorie);
1.3.2.5. Euforia apática (teilnahmsarme euphorie).
2. Psicoses ciclóides (zykloiden psychosen):
2.1. Psicose de angústia/felicidade (angst-glück-psychosen);
2.2. Psicose confusional excitada/inibida (erregt-gehemmte verwirrtheitspsychose);
2.3. Psicose da motilidade hipercinética/acinética (hyperkinetisch-akinetische motilitätspsychose).
3. Esquizofrenias não-sistemáticas (unsystematischen schizophrenien):
3.1. Parafrenia afetiva (affektvolle paraphrenie);
3.2. Catafasia ou esquizofasia (kataphasie oder schizophasie);
3.3. Catatonia periódica (periodische katatonie).
4. Esquizofrenias sistemáticas (sytematischen schizophrenien):
4.1. Esquizofrenias sistemáticas simples:
4.1.1. Formas catatônicas (katatonen formen):
4.1.1.1. Catatonia paracinética (parakinetische katatonie);
4.1.1.2. Catatonia maneirista (manierierte katatonie);
4.1.1.3. Catatonia proscinética (proskinetische katatonie);
4.1.1.4. Catatonia negativista (negativistische katatonie);
4.1.1.5. Catatonia parafêmica (sprechbereite katatonie);
4.1.1.6. Catatonia hipofêmica (sprachträge Katatonie).
4.1.2. Formas hebefrênicas (hebephrenen formen):
4.1.2.1. Hebefrenia pueril (läppische hebephrenie);
4.1.2.2. Hebefrenia excêntrica (verschrobene hebephrenie);
4.1.2.3. Hebefrenia embotada (flache hebephrenie);
4.1.2.4. Hebefrenia autística (autistishe hebephrenie).
4.1.3. Formas paranóides (paranoide formen):
4.1.3.1. Parafrenia hipocondríaca (hypochondrische paraphrenie);
4.1.3.2. Parafrenia fonêmica (phonemische paraphrenie);
4.1.3.3. Parafrenia incoerente (inkohärente paraphrenie);
4.1.3.4. Parafrenia fantástica (phantastische paraphrenie);
4.1.3.5. Parafrenia confabulatória (konfabulatorische paraphrenie);
4.1.3.6. Parafrenia expansiva (expansive paraphrenie).
4.2. Esquizofrenias sistemáticas combinadas:
4.2.1. Catatonias sistemáticas combinadas;
4.2.2. Hebefrenias sistemáticas combinadas;
4.2.3. Parafrenias sistemáticas combinadas.
(*) Conforme a última publicação da sua divisão das psicoses endógenas, em 1986, 7a . edição, 1995.

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Psicoses ciclóides Psicose de angústia-felicidade


As síndromes psicóticas descritas por Leonhard A psicose de angústia-felicidade apresenta-se
no âmbito das psicoses ciclóides (PC) já haviam sido como uma perturbação básica do afeto. Assim como as
descritas por Wernicke (1900) e Kleist (1928). demais psicoses ciclóides, esquizofrenias não-siste-
Leonhard, entretanto, agrupou-as com algumas dife- máticas e distúrbios afetivos bipolares, caracteriza-se
renças: por apresentar quadros dentro de um espectro bipolar.
No pólo caracterizado por angústia-ansiedade, a
Wernicke apresentou a psicose de angústia-feli-
cidade em duas formas separadas: de um lado, a psicose angústia é acompanhada de desconfiança, idéias de auto-
de angústia; de outro, a autopsicose expansiva devido a referência, hipocondríacas e de desvalia. Também
idéias autóctones. Kleist considerou a psicose de angústia costumam ocorrer alterações sensoperceptivas, às vezes
acompanhadas de vivências de influência. No seu pólo
e a psicose de felicidade, que ele denominou psicose de
oposto encontramos um estado de êxtase caracterizado
inspiração, como psicoses marginais paranóides.
por idéias de felicidade, com as quais costumam estar
O conceito de psicose da motilidade, também associadas idéias de referência e alterações sensoper-
cunhado por Wernicke, abrangia as psicoses posterior- ceptivas.
mente classificadas por Leonhard como catatonia
periódica, portanto, no âmbito das formas esquizo- Esses sintomas básicos, entretanto, não neces-
frênicas não-sistemáticas. O diagnóstico diferencial em sariamente aparecem em primeiro plano. Podem surgir
oposição às formas esquizofrênicas foi estabelecido mais quadros com traços mais ou menos nítidos do distúrbio
tarde por Fünfgeld (1936). Wernicke compreendeu afetivo bipolar, da psicose confusional ou da psicose da
ambos os pólos da doença com a designação psicose motilidade. O aspecto sintomatológico multiforme é tão
da motilidade cíclica. característico da psicose de angústia-felicidade quanto
das demais psicoses ciclóides.
A psicose confusional foi apresentada por Wernicke
como alopsicose maníaca periódica ou também como As fases de angústia são mais freqüentes do que
confusão agitada. A psicose confusional inibida é as de êxtase, podendo ocorrer isoladamente, enquanto
reconhecida no seu conceito de acinesia intrapsíquica. raramente encontramos quadros isolados de psicose de
Kleist falava neste caso de um “estupor perplexo”. O felicidade. Podem ocorrer, entretanto, quadros mistos
conceito de “confusionalidade” [verwirrtheit] provém de com uma rápida ciclagem entre humor angustioso e
Meynert. Kleist, por sua vez, definiu ambas, a psicose da extático numa mesma fase. Os estados sintomáticos
motilidade e psicose confusional, como psicoses costumam ter uma duração semelhante à do distúrbio
marginais ciclóides. afetivo bipolar.
O principal aspecto que distingue as Psicoses Leonhard sugere que essas psicoses costumam
Ciclóides das formas esquizofrênicas é a sua completa apresentar como características de personalidade pré-
remissão após cada fase. Evoluções crônicas são muito psicótica uma tendência à irritabilidade afetiva, o que
raras e amiúde correspondem a um certo déficit ele denomina temperamento exaltado (Leonhard, 1970b).
conativo decorrente da institucionalização, sendo,
portanto, reativas e iatrogênicas. As remissões das Psicose confusional excitada-inibida
psicoses ciclóides foram confirmadas pelos acompa- O sintoma central implicado na psicose confu-
nhamentos conduzidos por Leonhard e Trostorff sional refere-se ao distúrbio do pensamento: na fase
(1964). Ulteriormente, Perris (1974) ocupou-se das excitada ocorre incoerência e, na fase inibida, inibição
psicoses ciclóides e confirmou seu prognóstico favo- do pensamento. Nos casos mais leves de excitação do
rável. pensamento ocorre o que Leonhard chama de “incoerên-
Embora esses estudos tenham demonstrado uma cia na escolha do tema”1. A excitação do pensamento
clara distinção prognóstica, as psicoses ciclóides apre- costuma estar associada a uma pressão da fala. Como
sentam um certo parentesco com as formas de esqui- alterações do conteúdo, na excitação sobrevêm princi-
zofrenia não-sistemáticas no que se refere à sintoma- palmente equívocos no reconhecimento das pessoas,
tologia e ao caráter bipolar, mas são diferenciadas no aos quais freqüentemente estão associadas idéias de
que tange ao quadro clínico e à evolução, como veremos referência e alterações sensoperceptivas, sobretudo de
a seguir. natureza acústica.

1
A incoerência na escolha do tema caracteriza-se por uma série de pensamentos alheios às circunstâncias (vividas pelo paciente ou
sugeridas pelo entrevistador) e entre si desconexos. Difere da fuga de idéias ou do pensamento arborescente por não apresentar a típica
distratibilidade com eventos circunstanciais, característica dos quadros maníacos.

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Na fase inibida, a inibição do pensamento associa- discursiva incoerente e com interrupções, é caracte-
se a um empobrecimento da fala que pode chegar ao rística da psicose da motilidade. Quando a isto vem se
mutismo. Também agregam-se à “perplexidade” (ou somar uma pressão da fala incoerente, o que é relati-
“reação catastrófica”) idéias de referência e de signi- vamente comum na hipercinese, há uma sobreposição
ficação. Podem ocorrer alucinações, embora mais raras com as psicoses confusionais que torna difícil o seu
na fase inibida. diagnóstico diferencial.
Entretanto, é comum que o quadro não se apre- Também aqui, baseado nas observações de
sente de forma pura, mas demonstre o caráter multi- Trostorff, Leonhard refere como constituição pré-
forme da psicose confusional através de traços caracte- psicótica um “temperamento de movimento”
rísticos da psicose da motilidade, da psicose de angústia- [bewegungstemperament], com riqueza de movimentos
felicidade e do transtorno maníaco-depressivo. expressivos e amiúde um talento para a dança, assim
O curso é variável, muitas vezes com o predomínio como predomínio do tipo físico leptossômico.
de apenas um dos pólos, embora seja bastante freqüente
a ciclagem entre ambos. Psicoses ciclóides: aspectos diagnósticos
Leonhard sugere que esses pacientes, em sua maioria Leonhard assumiu o conceito de PC a partir de
com constituição física pícnica, têm como características Kleist e as dividiu em três tipos, cada qual com dois
pré-psicóticas uma tendência ao pensamento digressivo pólos. Kleist considerava as PC, em sua natureza, mais
ou, no pólo contrário, a um pensamento lento. próximas das psicoses afetivas, enquanto Leonhard
passa a considerá-las como formas separadas, tanto
Psicose da motilidade hipercinética-acinética das psicoses afetivas quanto das esquizofrenias. Essa
delimitação tem sido aceita pela maioria dos estudiosos
Como o nome sugere, a psicose da motilidade está
de Leonhard. Entretanto, o caráter polimorfo e as
diretamente relacionada aos sintomas psicomotores. Na
manifestações clínicas, com freqüentes sobreposições
fase caracterizada por hipercinese, a psicose da moti-
de sintomas pertencentes aos diferentes subtipos de PC,
lidade caracteriza-se por uma inquietação motora que afeta
têm levado alguns autores à conclusão de que as
principalmente os movimentos expressivos e reativos
distinções de Leonhard quanto aos subgrupos das PC
(involuntários). Na fase acinética, também os movimentos
são clinicamente problemática (Cutting, 1990).
expressivos e reativos estão comprometidos. Em
condições mais severas, também os movimentos Perris (1974) propôs uma definição operacional
voluntários podem ser afetados. Em casos mais leves, das psicoses ciclóides a partir dos seguintes critérios:
ainda com movimentos voluntários preservados, pode- 1. Estado psicótico: perda de contato com a
se reconhecer o quadro a partir da rigidez na postura e realidade;
na mímica. O quadro pode evoluir para uma acinese. 2. Remissão completa: em estudo conduzido por
Como nas outras formas de psicose ciclóide, é Cutting et al. (1978), de 73 pacientes somente
relativamente freqüente ocorrer numa mesma fase uma sete não haviam remitido plenamente dentro
oscilação circular para ambos os pólos. As acineses de um ano, três deles após dois anos e os
são relativamente mais raras e de duração mais longa, quatro restantes não tiveram seguimento;
podendo prolongar-se por meses. Em contrapartida, as 3. Oscilações de humor durante o estado
hipercineses costumam ser mais freqüentes e apre- psicótico: ocorrem flutuações do humor rá-
sentam duração restrita a poucas semanas. pidas e freqüentes. No curso de 24 h o pa-
Junto à síndrome central da psicose da motilidade, ciente pode apresentar uma ou mais fases de
aparecem freqüentemente traços de uma das outras elação, depressão ou ansiedade extrema. No
doenças bipolares. curso de um mês, pode haver dezenas de
diferentes fases de humor, intercaladas por
A acinese da psicose da motilidade deve ser períodos de normalidade (há casos em que o
distinguida do estupor da psicose confusional, o que paciente tem alta após uma semana de humor
requer uma investigação acerca de qual dentre os estável para retornar em seguida com um
sistemas motores está mais comprometido, se os quadro psicótico completamente diferente).
movimentos voluntários (psicose confusional) ou invo- Embora alterações dessa natureza possam
luntários (psicose da motilidade). algumas vezes serem vistas na depressão e
O diagnóstico diferencial com a psicose confu- sejam um pouco mais freqüentes na mania,
sional também pode ser complicado na fase excitada: essas oscilações rápidas raramente ocorrem
uma incoerência formal, onde é verbalizada uma forma nas psicoses afetivas típicas;

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4. No mínimo duas das seguintes características: rencial. Ambas apresentam estados bipolares e cada uma
a. Sintomas paranóides: delírios ou ideações das psicoses ciclóides guarda semelhança clínica com
delirantes ou experiências perceptivas (aluci- uma subforma correspondente de esquizofrenia não-
nações) incongruentes com o humor; sistemática: a psicose de angústia-felicidade com a para-
frenia afetiva; a psicose de motilidade com a catatonia
b. Distúrbio do movimento: diferente dos movi-
periódica; e a psicose confusional com a catafasia (ou
mentos catatônicos (qualitativamente anor-
esquizofasia).
mais), o movimento na PC tem sua velocidade
aumentada ou diminuída em relação aos A distinção entre as formas curáveis das PC e as
movimentos normais (diferença quantitativa); ENS está não somente no fato de que apresentam
c. Confusão: varia de uma leve perplexidade até quadros sintomatologicamente distintos, mas principal-
confusão grosseira (alteração formal do pensa- mente porque as ENS levam a um quadro de defeito.
mento); depois dos sintomas paranóides, a Tanto as esquizofrenias não-sistemáticas quanto
confusão é o sintoma mais comumente as sistemáticas levam a um estado de defeito, mas “em
encontrado; sua essência não têm nada a ver uma com a outra. O
d. Ansiedade generalizada: medo de que algo nome comum justifica-se apenas pela tradição: desde
funesto está para acontecer, freqüentemente Kraepelin e Bleuler tem-se por hábito agrupar todas as
relacionado à morte iminente de si ou de outras psicoses endógenas que levam a um defeito sob o
pessoas; conceito de esquizofrenia.” (Leonhard, 1995, p.86).
e. Êxtase: distinto da simples elação pelo fato de O diagnóstico diferencial entre as formas não-
que o paciente quer trazer salvação e júbilo à sistemáticas e sistemáticas não oferece maiores dificul-
humanidade. dades, pois em ambas as formas tanto a sintomatologia
quanto a evolução são bastante diferentes. As formas
Esses critérios dificilmente se ajustam às categorias
sistemáticas evoluem insidiosa e progressivamente,
descritivas dos sistemas diagnósticos internacionais. No
enquanto as não-sistemáticas exibem quadros pouco
caso do DSM-IV, o distúrbio esquizofreniforme com-
circunscritos e de ampla variação sintomatológica, via
preende uma duração máxima de seis meses e o trans-
de regra evoluindo sob a forma de surtos agudos, e não
torno esquizoafetivo pressupõe sintomas residuais. No
da maneira insidiosa característica das doenças degene-
caso do CID-10, o distúrbio psicótico polimorfo agudo
rativas. Outro aspecto relevante na diferenciação entre
com sintomas de esquizofrenia tem como critério uma
as formas não-sistemáticas e sistemáticas consiste na
duração máxima de um mês.
predisposição genética: pacientes diagnosticados com as
Embora do ponto de vista descritivo as PC se formas não-sistemáticas apresentam um maior número
assemelhem mais ao transtorno afetivo bipolar (com de casos entre familiares, o que é menos comum nas
sintomas psicóticos, humor incongruente e episódio formas sistemáticas. O caráter remissivo entre os surtos
misto), estudos retrospectivos de casos revelam que de reagudização e o componente genético implicados nas
estes pacientes em sua maioria são diagnosticados formas não-sistemáticas apontaria para uma possível
como esquizofrênicos: Cutting et al. (1978) revisaram alteração cerebral de natureza metabólica e cíclica. As
retrospectivamente pacientes psicóticos internados formas sistemáticas, por outro lado, pelo seu curso insi-
no Instituto de Psiquiatria de Londres. Seguindo os dioso e pela relativa ausência de história familiar, sugerem
critérios operacionais de Perris (1974), 73 pacientes outras causas, possivelmente externas, implicadas na
foram diagnosticados como PC, mas os diagnósticos etiopatologia.
nos prontuários foram: esquizofrenia (45%);
transtorno esquizoafetivo (27%); psicose afetiva Parafrenia afetiva
(15%); psicose atípica (12%). Beckmann et al. (1990) A parafrenia afetiva pode apresentar curso remis-
referiram os diagnósticos do DSM-III-R em 26 sivo ou insidioso, com uma síndrome de referência
pacientes com PC: transtorno esquizoafetivo (50%); como primeira manifestação. Tanto no início quanto no
esquizofrenia (27%); distúrbio esquizofreniforme curso mais tardio ocorrem oscilações afetivas no sentido
(15%); mania (8%). de angústia ou êxtase. Esses afetos estão sempre acom-
panhados de uma construção patológica de idéias: na
Esquizofrenias não-sistemáticas
angústia encontramos auto-referências e freqüentemente
As esquizofrenias não-sistemáticas (ENS) guar- também alucinações; no êxtase também ocorrem
dam muitas semelhanças com as psicoses ciclóides (PC), alterações sensoperceptivas, mas predominam as idéias
o que muitas vezes torna difícil o seu diagnóstico dife- de felicidade.

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No início pode ser difícil distinguí-la de uma por uma pressão de fala confusa que, nos casos severos,
psicose de angústia-felicidade benigna, mas em geral constitui verbalizações incompreensíveis. Isso contrasta
as idéias delirantes e alterações sensoperceptivas com o fato de que os doentes em sua maior parte
tornam-se tão ilógicas que não mais podem ser apresentam-se ordenados em suas condutas e mantêm
deduzidas a partir do afeto angustioso ou extático. As suas atividades relativamente preservadas. Em
distorções sensoperceptivas somáticas, que na psicose compensação, observa-se um achatamento afetivo. No
de angústia-felicidade costumam ser atribuídas pelos estado inibido, os casos mais severos de catafasia
pacientes ao estado anormal (constituem, portanto, caracterizam-se por um mutismo, enquanto nos casos
pseudoalucinações), na parafrenia afetiva desde o mais leves ocorre um laconismo.
início assumem um caráter alucinatório no sentido de O distúrbio do pensamento, perturbação central
influência externa. Com freqüência, as oscilações da catafasia, revela seu parentesco com a perturbação
afetivas estão ligadas a uma irritabilidade que se vista na psicose confusional, embora na excitação vá
desenvolve de maneira gradual, via de regra a partir além de uma simples incoerência e, na inibição, além de
da angústia. Pode-se então encontrar uma síndrome uma simples inibição do pensamento. Na catafasia
de referência irritável com um conteúdo menos excitada encontra-se uma severa perturbação lógica que
angustioso e mais relacionado a interpretações hostis também afeta o elemento lingüístico, resultando em
do ambiente. A parafrenia afetiva pode permanecer confusão de palavras, neologismos e uma ordenação
muito tempo nesse estágio. Também podem ocorrer gramatical deficitária. Na catafasia inibida também
leves alterações de humor extático que permanecem ocorrem erros lógicos, mas aqui distingue-se sobretudo
como um estado de longa duração, resultando num a inibição do pensamento que, tal como na psicose
delírio de grandeza crônico. Por fim, ainda mais confusional, leva a um estado perplexo. Entretanto,
freqüente é a oscilação patológica da afetividade para pode-se ao mesmo tempo reconhecer na fisionomia uma
ambos os pólos, de forma que podem ocorrer idéias apatia interna. Além disso, ao invés de responder, o
persecutórias e de grandeza ao mesmo tempo. paciente tende a dirigir um olhar fixo ao entrevistador.
Ocasionalmente pode ocorrer uma sistematização das Na catafasia excitada freqüentemente ocorrem confa-
idéias delirantes, cuja expressão remete a um quadro
bulações e, na forma inibida, idéias de referência. Além
de Paranóia no sentido de Kraepelin.
das catafasias excitada ou inibida, há casos com severas
É freqüente que a parafrenia afetiva progrida além perturbações do pensamento e da linguagem que não
desse estágio. O caráter ilógico, que pode ser identifi- apresentam loquacidade ou pobreza de palavras,
cado já no início, evidencia-se sempre mais claramente evidenciando, portanto, somente o sintoma-defeito
no quadro delirante, tanto que resulta em francas estru- central da doença: a alteração do pensamento.
turações fantásticas com idéias de grandeza, falsi-
Da mesma forma como vimos na parafrenia
ficações da memória, equívocos no reconhecimento
afetiva, na catafasia freqüentemente encontram-se
das pessoas, idéias absurdas e alterações sensoper-
misturados traços de outras esquizofrenias não-siste-
ceptivas em todas as áreas do sentido. Entretanto, estes
máticas e das psicoses ciclóides. Freqüentemente encon-
sintomas não são tão regularmente expressos como
tramos oscilações entre sentimentos angustiosos e
nas formas sistemáticas da parafrenia fantástica. Alguns
extáticos. O curso da catafasia pode ser insidioso e
podem estar ausentes, enquanto outros podem mani-
festar-se em maior intensidade. Aqui, a relação com o progressivo, com períodos de remissões, ou até mesmo
afeto é chave no diagnóstico diferencial: enquanto os de curso periódico.
parafrênicos sistemáticos demonstram pouca vincu-
Catatonia periódica
lação afetiva com seus conteúdos delirantes e falam
deles sem expressão afetiva intensa, os parafrênicos A catatonia periódica cursa em estados hiperci-
afetivos ancoram fortemente suas ideações delirantes néticos e acinéticos. Entretanto, são raros os estados
no afeto. Os pacientes falam de suas idéias com com uma forma pura, sendo mais freqüente a mistura
irritação profunda ou com orgulho e entusiasmo, por de sintomas de ambos os pólos.
mais absurda que seja a ideação delirante. Entretanto, A hipercinese, devido ao acréscimo de traços
fora do tema envolvendo seu delírio, os parafrênicos acinéticos, passa a exibir uma certa rigidez. Os movi-
afetivos costumam apresentar embotamento. mentos perdem a harmonia natural e tornam-se rígidos,
curtos e irregulares. Devido a esta alteração no curso do
Catafasia ou esquizofasia movimento, o caráter objetivo que originalmente o
A catafasia também ocorre em dois pólos, um exci- compunha muitas vezes é perdido. Os movimentos
tado e outro inibido. A catafasia excitada caracteriza-se reativos não são mais reconhecíveis como tais; ainda

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mais afetados são os movimentos expressivos, que das não-sistemáticas a princípio pela nitidez de sua
perdem sua objetividade e sentido. Os gestos tornam-se forma sintomatológica. Enquanto na catatonia periódica,
movimentos indefinidos e descoordenados e a mímica catafasia e parafrenia afetiva há sempre um caráter
passa a compor-se de caretas. Estes movimentos, que polimorfo que não permite uma delimitação exata, nas
modificam a naturalidade dos movimentos normais, dão formas sistemáticas encontramos quadros claramente
à excitação da catatonia periódica um caráter paracinético. circunscritos.
Na acinese percebe-se de forma ainda mais inequí- Leonhard compara as esquizofrenias sistemáticas
voca a atividade intrínseca do pólo oposto. Apesar de com as formas puras das psicoses fásicas (depressão e
uma genérica rigidez da postura e da mímica, podem mania) no sentido de que ambas implicam áreas fun-
ocorrer movimentos despropositados de uma extremi- cionais circunscritas, o que lhes confere delimitação
dade, na maioria das vezes com um caráter uniforme, sintomatológica constante. Contudo, as áreas funcionais
estereotipado. Da mesma forma, nas estereotipias da comprometidas seriam diferentes: nas depressões e
postura sobrevêm estados que, apesar da pobreza de euforias puras trata-se de um comprometimento da
movimentos, sempre mais ativamente assumem deter- região timopsíquica relacionada à área nervosa vege-
minadas posturas. Em outra forma, traços hipercinéticos tativa; enquanto nas esquizofrenias sistemáticas há
misturam-se à acinese, de maneira tal que a escassez de comprometimento dos estratos superiores relacionados
movimento pode dar lugar a ações impulsivas freqüen- aos processos do pensamento e da volição, filogeneti-
temente relacionadas com agressividade. Além disso, camente mais recentes (Leonhard, 1970a). Tal como
alguns pacientes relativamente destituídos de impulso Kleist, Leonhard supõe que essas áreas funcionais
exibem repentinas explosões de um riso exagerado. específicas constituem sistemas (“associações celulares
Após os surtos agudos catatônicos sobrevêm com seus respectivos feixes nervosos”) cuja lesão leva
a estados de defeito específicos. Nas esquizofrenias
períodos de remissão. Estados hipercinéticos têm um
não-sistemáticas, esses sistemas estão afetados de
prognóstico relativamente bom. Mesmo após diversas
maneira distinta, externamente, já que envolvem dife-
crises, os estados de defeito são pouco pronunciados.
rentes domínios funcionais (sintomas acessórios). Nas
As acineses evoluem mais rapidamente para defeitos
formas sistemáticas, o processo patológico encontra-se
residuais. Quando os defeitos manifestam-se de forma
primariamente no sistema correspondente ao estado de
leve ocorre uma genérica lentificação (ou déficit de
defeito, claramente identificável nos estágios finais da
movimento), mas a afetividade também está compro-
doença. Entretanto, nos estágios iniciais das formas
metida. Em graus mais severos pode-se falar de um
sistemáticas encontram-se misturados sintomas
embotamento. Em todos os casos pode permanecer uma acessórios (oscilações de humor, auto-referências e
irritabilidade que facilmente leva à agressão. Também
alterações sensoperceptivas) que caracterizam o início
nos estados finais observam-se sintomas de ambos os de todas as psicoses, em parte também devidos às
pólos da doença justapostos. Junto ao empobrecimento reações psicológicas diante da psicose (por exemplo
dos impulsos ocorrem movimentos faciais em forma vivências catastróficas, humor disfórico e idéias
de caretas, movimentos impulsivos e às vezes também explicativas). Independentemente disso, a síndrome de
uma impulsividade verbal que pode resultar numa fala defeito surge desde o início da doença e manifesta-se
tangencial e desconexa. de modo crescente, o que já permite um diagnóstico
Em casos mais leves, a doença pode temporaria- acurado. O fato de que se trata de uma forma sistemática
mente imitar uma psicose da motilidade. O quadro pode via de regra pode já ser identificado pelo início insidioso
também apresentar-se em referência tanto às psicoses e relativamente pobre de sintomas de processo2.
fásicas multiformes quanto a ambas as outras esqui-
zofrenias não-sistemáticas. Esquizofrenias sistemáticas simples
Na maioria dos casos, apenas um dos sistemas
Esquizofrenias sistemáticas
psíquicos é afetado, resultando nas formas patológicas
As esquizofrenias sistemáticas, grupo que que constituem a síndrome de base na qual evoluem as
Leonhard também designa como nuclear, diferenciam-se esquizofrenias sistemáticas, ou seja, não numa mistura

2
Sintomas de defeito [defektsymptomen] referem-se ao estado psíquico deficitário, estável e irreversível, decorrente da evolução da doença.
Na literatura alemã, defeito pode ser definido como empobrecimento do impulso, indiferença, incapacidade de vinculação afetiva e empatia
com os outros, confusão do pensamento, inatividade e isolamento social. Os sintomas de defeito devem ser diferenciados dos sintomas de
processo, sintomas esquizofrênicos agudos que, ao longo do curso da doença, gradualmente diminuem de intensidade, assim permitindo
uma expressão mais clara dos sintomas de defeito (Leonhard, 1948, p.119). Reações catastróficas (ratlosigkeit = “perplexidade”), idéias
explicativas e reações psicológicas ao exórdio psicótico amiúde constituem os sintomas de processo.

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indistinta de sintomas isolados, mas em associações de tornam-se entrecortadas, como que “disparadas” em
sintomas específicos. Leonhard acentua a importância sílabas isoladas, constituindo frases curtas e agra-
da associação de sintomas: “… suponho tratar-se de maticais. Tanto na expressão oral como na escrita, os
uma esquizofrenia fonêmica não necessariamente porque doentes alternam afirmações ora adequadas, ora desco-
o fonema aparece em primeiro plano no quadro clínico, nexas e carentes de qualquer sentido. O pensamento
mas apenas quando tratar-se de uma determinada forma pode exibir mudanças de conteúdo tão rápidas e
de vozes, as quais vêm acompanhadas de uma afetivi- impulsivas quanto os movimentos paracinéticos: pulam
dade e de um distúrbio do pensamento característicos. de um tema para outro.
A determinação de uma forma específica depende Dentre os catatônicos, os paracinéticos costumam
justamente de que se possa sempre verificar uma exata apresentar uma afetividade mais preservada. Com um
associação de sintomas antes de o diagnóstico ser humor de fundo contente e despreocupado, costumam
firmado.” (Leonhard, 1995, p.121). interessar-se pelos familiares e demonstram alegria
quando visitados. Podem apresentar crises de
Formas catatônicas irritabilidade expressas nas paracinesias. Não costumam
O caráter “sistemático” das esquizofrenias nu- ocorrer delírios e alucinações.
cleares torna-se evidente sobretudo nas catatonias. Tal Ao contrário das demais formas sistemáticas,
como na coréia ou no parkinsonismo, nas catatonias Leonhard encontrou diversos casos de catatonia
ocorre o comprometimento de sistemas, embora aqui paracinética com história familiar.
os sistemas afetados estejam mais superiormente
integrados, ou seja, sistemas de um significado não Catatonia maneirista
apenas neurológico, mas já tributários de significação A catatonia maneirista manifesta-se por um empo-
psíquica. O caráter de oposição entre os sintomas da brecimento crescente da motricidade involuntária, ao
catatonia também argumenta em favor de uma origem ponto de produzir-se uma rigidez na postura. A este
sistemática: no sistema nervoso encontramos com quadro sobrevêm os maneirismos, que no início
regularidade pares de sistemas com funções entre si costumam ser mais evidentes do que a rigidez.
antagônicas, cujo equilíbrio regula a expressão fisio- Ao longo da evolução, a motricidade restringe-se
lógica correspondente. cada vez mais às formas de movimento repetidas e
Catatonia paracinética estereotípicas, maneirismos que podem comprometer
a maioria dos movimentos. O empobrecimento motor
Diferente das excitações paracinéticas observadas torna-se ainda mais pronunciado quando os “manei-
no início da catatonia periódica, a paracinese da catatonia rismos motores” retrocedem e o quadro passa a ser
paracinética desenvolve-se de forma tão gradual e dominado por “maneirismos de omissão”. Então pode
inconspícua que, no início, costuma passar desper- manifestar-se um empobrecimento motor particular-
cebida (caretas fugazes, movimentos despropositados mente severo no qual o doente encontra-se sempre no
breves dos braços, tronco, mãos, etc.). mesmo lugar, numa postura e mímica rígidas. Uma
A hipercinese da catatonia paracinética carac- terapia ocupacional adequada pode coibir esse quadro
teriza-se pela maneira singular com que os movimentos severo, na medida em que as formas de movimento
são realizados: movimentos voluntários são executados que são repetidamente executadas tendem a ser
de forma rude, sem a harmonia natural; os movimentos preservadas.
involuntários estão ainda mais afetados. Há uma A rigidez peculiar desses pacientes deve-se menos
genérica perda da coordenação entre os movimentos: à redução dos movimentos voluntários e mais ao desa-
um movimento é deflagrado, pode parar por um parecimento dos movimentos involuntários, particu-
instante, quando surge repentinamente o próximo larmente os movimentos expressivos. Há um genérico
movimento. empobrecimento da mímica facial, embora a expressão
Os movimentos involuntários podem apresentar- mostre-se ainda compreensível ao examinador. O quadro
se como movimentos reativos desfigurados ou como assemelha-se ao parkinsonismo neuroléptico induzido,
movimentos expressivos da mímica facial com caretas embora na catatonia os movimentos voluntários tenham
vívidas. Os movimentos mais simples lembram a coréia. uma velocidade normal. Observa-se uma marcha robo-
As paracineses são variáveis nos estados de defeito, tizada.
mas algumas apresentam-se como gesticulações bizarras Os maneirismos podem assumir atitudes que
que se repetem. A particular perturbação do movimento sugerem ações compulsivas, tais como ajoelhar-se, tocar
exprime-se também nas verbalizações: as palavras objetos ou pessoas, colecionismo de objetos inúteis,

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etc. A fala costuma perder a prosodia, tornando-se conseguem responder, pode-se comprovar que suas
monótona. Em estágios mais tardios pode haver respostas são incompletas, embora não-ilógicas.
mutismo. Também aqui podem ocorrer crises repentinas Catatonia negativista
de ação impulsiva, com agressividade física. A afeti-
vidade costuma estar relativamente preservada. Mesmo A catatonia negativista é caracterizada por uma
nos estágios mais avançados, os pacientes costumam resistência aos estímulos, não necessariamente como
se sentir ofendidos por provocações. Nos casos mais negação, pois o negativismo manifesta-se predominan-
leves, o pensamento mostra-se relativamente preservado. temente sob a forma de uma omissão. Nos casos mais
Nos casos severos observa-se um certo declínio cog- leves, no início os pacientes são ainda capazes de
nitivo, possivelmente relacionado à inibição do pensa- respostas coerentes e comportamento adequado às
mento, embora os pacientes ainda sejam capazes de demandas. Durante as entrevistas olham indiferentes
realizar tarefas cognitivas simples e conservem um certo para o lado e evitam contato visual com o entrevistador.
interesse pelo ambiente. Quanto mais se tenta contato com o paciente, tanto
mais evidente é a resistência. Se num estado de humor
Catatonia proscinética
amigável, o paciente exibe um sorriso embaraçado
Quando interpelados, os catatônicos proscinéticos característico, como que se desculpando pela resistência
dirigem-se ao entrevistador com uma expressão facial ao estímulo, o que sugere sua ambivalência em relação
que, embora destituída de mímica, indica um certo à resistência. Ao ser pressionado, o paciente mostra-se
interesse. Quando estimulados, os doentes podem disfórico e assim evidencia mais claramente a
apresentar um murmúrio incompreensível que assume resistência: o doente puxa a mão para trás quando
a forma discursiva singular de uma verbigeração. Nos tentamos pegá-la, afasta-se, produz sons de irritação,
casos mais leves, há uma fala monótona, com respostas foge e torna-se agressivo. Quando se contraria a resis-
às vezes desconexas e repetitivas, embora ainda com- tência de forma mais severa, facilmente pode-se desen-
preensíveis. Quando estimulado, o paciente mexe e cadear uma excitação negativista, amiúde de caráter
manipula objetos, puxa as roupas, esfrega a pele e assim bastante violento. Também na ausência de causa externa
por diante. Pode-se constatar um automatismo impulsivo podem surgir nos doentes estados de excitação, em sua
mediante experiências de sugestão: quando o entrevis- maior parte de curta duração e freqüentemente relacio-
tador estende a mão, o paciente a segura repetidas vezes; nados a ações violentas. A totalidade da motricidade
uma leve pressão em qualquer parte do corpo produz apresenta-se algo impulsiva e grosseira, "aos arranques".
um acompanhamento ativo do estímulo, de forma que Freqüentemente o doente apresenta uma postura
a parte do corpo é levada a qualquer posição, por mais singularmente contorcida. Em conexão com o elevado
desconfortável que seja. Quando se dá ao paciente uma grau de empobrecimento da motricidade voluntária,
contra-sugestão, os automatismos de segurar e surge uma excitabilidade anormal dos mecanismos
acompanhar são temporariamente suspensos, mas basta motores mais profundos, resultando em um automa-
que haja desvio da atenção para que o paciente os tismo impulsivo.
recomece automaticamente. Os catatônicos negativistas apresentam compro-
A iniciativa dos pacientes proscinéticos encontra- metimento do pragmatismo e da afetividade, embora
se severamente restrita, tanto que, apesar de sua dispo- conservem uma impulsividade veemente, em geral
sição motora, eles apresentam uma conduta pobre em manifesta na sua avidez pela alimentação e por tendências
movimentos. Entretanto, quando externamente estimu- eróticas. O pensamento encontra-se relativamente
preservado.
lados, os pacientes conseguem ocupar-se de forma
relativamente adequada. Catatonia parafêmica
A afetividade encontra-se severamente embotada, O sintoma essencial da catatonia parafêmica é
em sua maior parte sob a forma de um contentamento constituido pelas chamadas pararrespostas [vorbeireden],
despreocupado, o que contrasta com a irritabilidade dos espécie de alteração formal da linguagem caracterizada
catatônicos negativistas. Menos comumente do que nos por um “falar sem sentido” ou “falar a esmo”. As parar-
outros catatônicos, a alguns doentes sobrevêm alterações respostas podem ser provocadas quando se questiona o
do humor que podem ser liberadas sob a forma de paciente de maneira breve e concisa, ocasião em que as
xingamentos e agressividade. respostas surgem também breves, mas destituídas de
Nos estágios mais adiantados, quando os pacientes sentido. Com freqüência, os doentes ainda oferecem
apenas murmuram verbigerações, o pensamento não é respostas corretas a perguntas mais simples; porém, à
mais passível de avaliação. Quando os doentes ainda medida que as perguntas tornam-se mais difíceis e

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afetivamente acentuadas, os doentes passam a dar é de se supor que suas reações indolentes decorram
respostas incompreensíveis. Uma análise mais acurada de sua permanente distratibilidade, em conseqüência
irá revelar uma espécie de curto-circuito, uma reação da qual eles pouco atendem aos estímulos vindos de
imediata da fala: a questão formulada não é racionalmente fora.
decodificada pelo paciente, e será respondida com o que Os catatônicos hipofêmicos apresentam déficit de
estiver mais ou menos disponível no seu pensamento. atenção e, quando questionados, demoram para respoder
Com freqüência o paciente repete as palavras que se lhe ou sequer respondem; enquanto os parafêmicos aten-
diz em um contexto completamente inadequado, dem imediatamente ao questionamento e respondem
resultando em um quadro aparente de perseveração. rapidamente.
Também é freqüente que associações externas Os hipofêmicos exibem uma postura anormal:
completamente aleatórias, às vezes até mesmo de rima, costumam sentar-se encurvados, inclinados para a
determinem a resposta. Tais associações podem surgir frente. A expressão facial também é pobre, embora
sob a forma de neologismos. Cada pergunta é respondida menos evidente do que nos catatônicos parafêmicos.
apenas por um curto impulso de fala que logo se extingue,
A iniciativa encontra-se apagada, de forma que
de tal forma que as respostas em sua maioria são curtas, um impulso próprio é verificado apenas em relação às
fragmentadas e expressas de forma agramatical. As
alterações sensoperceptivas. Também o afeto é obser-
respostas são, entretanto, sempre oferecidas, independen- vado somente nas discussões excitadas contra as vozes.
temente de quantas vezes se pergunte. Nisso confirma-se Devido à incomunicabilidade, é difícil estimar o pensa-
a presteza da fala. Entretanto, não existe qualquer pressão mento dos “catatônicos distraídos”. Embora esse pareça
de fala e os doentes, quando não estimulados, costumam ser expresso sobretudo por incoerência, Leonhard
ser descritos como em mutismo. sugere que a completa incongruência entre as perguntas
Iniciativa e afetividade encontram-se embotadas. do entrevistador e as respostas oferecidas pelo paciente
A motricidade revela-se algo comprometida. A mímica resulta em parte do diálogo alucinatório e não neces-
é particularmente vazia, inexpressiva, tanto que não pode sariamente do afrouxamento das associações.
dizer muito dos processos psíquicos internos do
paciente. Além disso, o aspecto de inacessibilidade Formas hebefrênicas
acentua-se por meio de um autismo pronunciado, no O conceito leonhardiano de hebefrenia, tal como
qual o paciente parece nunca estar interessado no nas concepções de Hecker (1871) e Kleist (1934),
ambiente, embora não seja diretamente estimulado. implica essencialmente o rebaixamento afetivo. É impor-
Catatonia hipofêmica tante salientar que o diagnóstico de hebefrenia em
Leonhard difere marcadamente do diagnóstico baseado
Nos estágios iniciais, os catatônicos hipofêmicos na tradição bleuleriana, com sintomatologia polimorfa e
costumam responder de modo indolente; nos estados distúrbio formal do pensamento. Como nas demais
tardios, praticamente não respondem: olham distraídos esquizofrenias sistemáticas, a hebefrenia é caracterizada
de um lado para outro, amiúde com movimentos labiais também por um curso insidioso. Hebefrenias e catatonias
de sussurro. De tempos em tempos podem tornar-se compartilham de inícios relativamente precoces.
fortemente excitados, quando falam alto consigo De acordo com Leonhard, as hebefrenias têm
próprios ou apresentam excitações pronunciadas, apresentação clínica simples, o que torna o seu diag-
durante as quais voltam-se para si próprios e xingam nóstico mais difícil na medida em que as alterações
contra as vozes, gesticulando visivelmente. Isso afetivas não são tão facilmente advertidas, ou pelo menos
contrasta com a excitação dos catatônicos negativistas, não da forma tão explícita quanto os sintomas cata-
caracterizada por início súbito, menor duração e tônicos ou paranóides. Os quadros residuais fornecem
agressividade voltada para o ambiente externo. os sintomas específicos de forma mais clara, enquanto
Nos estágios iniciais, as declarações dos doentes nos estágios iniciais estes podem estar ainda encobertos
demonstram que eles padecem continuamente de por sintomas de processo inespecíficos. Os episódios
muitas alucinações: apresentam confabulações fantás- de alteração de humor depressivo e eufórico ocorrem
ticas que provavelmente também ocorrem nos estados com freqüência. Especialmente nos estágios iniciais,
finais, embora seja difícil comprová-las devido à podem surgir estados acompanhados de excitação e
inacessibilidade dos doentes. Nos estados finais, os inibição que lembram a catatonia. Também podem
catatônicos hipofêmicos encontram-se retardados não sobrevir excitações violentas acompanhadas de irritação
apenas nas verbalizações, mas também em suas outras e agressividade. Especialmente no início dos sintomas,
reações. Entretanto, visto que durante as excitações as alterações afetivas são freqüentemente acompanhadas
eles falam muito e demonstram uma motricidade vívida, de delírios e alucinações.

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Hebefrenia pueril permanecem superficialmente acessíveis e responsivos,


podendo-se com eles entabular conversações de cunho
A hebefrenia pueril caracteriza-se por embota-
prático. O achatamento afetivo leva à falta de interesse e
mento afetivo acompanhado de um estado de humor
redução na iniciativa, embora os doentes adaptem-se às
contente ou até mesmo elevado. Nos estágios iniciais,
atividades do dia-a-dia, ainda que sem motivação própria.
os hebefrênicos pueris demonstram uma tendência para
Em geral, o humor manifesta-se como uma espécie de
brincadeiras infantis “maldosas”, o que sugere um
contentamento despreocupado. Esse estado permanente,
embotamento ético. Essas atitudes maldosas, em geral
em que a deficiência de afeto parece ser o único sintoma,
no confronto com outros pacientes, podem também
será de tempos em tempos interrompido por curtos
resultar de alterações de humor que transformam
temporariamente o estado de contentamento despreocu- estados de humor alterado nos quais os doentes
apresentam-se irritáveis, angustiados ou, mais raramente,
pado em humor irritável. Uma genérica tendência ao
eufóricos. Durante a irritabilidade eles estão propensos a
riso é bastante característica, evidenciando-se a cada
estímulo externo. idéias de referência e podem tornar-se excitados e
agressivos.
Nos estágios agudos da doença é freqüente que
As alterações sensoperceptivas também são
haja alterações de humor da mais variada forma:
eufórico, depressivo e irritável. Juntamente com o embo- características na alteração de humor e podem abranger
tamento afetivo, restringe-se também a atividade. Os todas as áreas do sentido, embora prevaleçam as
doentes perdem cada vez mais sua iniciativa e passam alucinações auditivas. Entretanto, ainda que na excitação
o dia todo inativos. Nos estados finais mais severos, o os doentes possam xingar contra as vozes, tal como os
empobrecimento do afeto e do impulso podem lembrar doentes paranóides, posteriormente eles sempre
a catatonia. Entretanto, a postura e os movimentos não demonstram um claro juízo do caráter patológico das
têm nada em si de catatônicos, enquanto o riso continua mesmas, de formas que aqui Leonhard fala de
sempre sugerindo o aspecto hebefrênico. pseudoalucinações.

Hebefrenia excêntrica Hebefrenia autista

A hebefrenia excêntrica começa freqüentemente Os hebefrênicos autistas vivem para si, não se
com sintomas compulsivos que podem gradualmente apegam a ninguém e parecem não ser afetados pelos
passar a maneirismos. acontecimentos do ambiente. Sua fisionomia acentua a
impressão de autismo, parece impenetrável, não permite
Mais tarde, encontramos uma fala monótona e uma
saber o que acontece no íntimo do doente. Apesar disso,
tendência ao comportamento querelante que dão a
pode-se dizer que são afetivamente embotados e
impressão de maneirismos ou excentricidades. Quanto
empobrecidos quanto à sua vida interior, pois perdem o
ao humor, os doentes em sua maioria apresentam-se
interesse e a iniciativa. Apenas em estados de alteração
algo tristes. Entretanto, prevalece o achatamento afetivo
do humor, que surgem de tempos em tempos, evidencia-
e, mesmo durante as querelas, não se observam emoções
se um afeto irritável que facilmente transforma-se em
mais profundas.
agressividade.
Associado a isso ocorre também um embotamento
O exame da inteligência revela uma insuficiência,
ético. No início da doença, juntamente com o crescente
que de resto não é muito pronunciada quando o doente
achatamento afetivo, com freqüência observam-se
está disposto a responder as questões formuladas:
estados disfóricos que podem estar associados a exci-
respondem de forma lacônica e desinteressada.
tações irritáveis. Em estágios posteriores, apenas
oscilações afetivas mais leves são características da A iniciativa encontra-se prejudicada, embora os
hebefrenia excêntrica. pacientes possam ser instruídos em atividades que
requeiram uma certa independência de ações.
Embora o pensamento esteja empobrecido, a
performance cognitiva encontra-se relativamente O humor em geral caracteriza-se por traços mal-
preservada. humorados e um aspecto de desânimo. Eles lembram a
condição afetiva dos hebefrênicos excêntricos e
Hebefrenia embotada contrastam com o contentamento despreocupado dos
A hebefrenia embotada manifesta-se como embo- hebefrênicos pueris e embotados.
tamento afetivo. Em conversas simples, desaparecem as
flutuações no tom afetivo, ficando evidente a falta de Formas paranóides
comoção profunda dos doentes para com temas que As parafrenias se caracterizam por delírios e aluci-
normalmente deveriam provocá-la. Com isto, os pacientes nações. O distúrbio do pensamento constitui a alteração

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de base nas parafrenias de Leonhard: quanto mais severo Mais do que nas outras formas, no início encon-
o distúrbio do pensamento, tanto mais expressivos os tram-se estados depressivos. A afetividade está bem
sintomas paranóides. A parafrenia incoerente, com o preservada, tanto quanto o interesse nos familiares.
mais grave transtorno do pensamento exibe ao mesmo O pensamento está perturbado quanto à forma,
tempo as formas mais graves de alucinações. Nos pois os doentes dificilmente se fixam e estão propensos
estágios agudos das parafrenias freqüentemente ocorrem a descarrilamentos da fala, condição que Leonhard
sintomas acessórios: perturbações afetivas, sobretudo designa como pensamento desconcentrado.
de caráter angustioso-ansioso; estados de perplexidade
e idéias de referência. Parafrenia fonêmica
Essas manifestações podem aparecer em primeiro A parafrenia fonêmica na maioria das vezes
plano, de modo que os sintomas específicos ainda não começa já com alucinações auditivas, às quais podem
são evidentes, embora via de regra sejam já demons- juntar-se também outros sintomas, tais como alterações
tráveis. afetivas e idéias de referência. Aqui as vozes se diferen-
Entretanto, não são comuns sintomas situados fora ciam daquelas da parafrenia hipocondríaca: se ajustam
do contexto paranóide. As oscilações afetivas mais estreitamente ao pensamento dos doentes, mas são mais
profundas são pouco habituais e fazem pensar muito relacionadas ao afeto. Seu conteúdo é francamente
mais numa forma inicial de parafrenia afetiva do que desagradável e sentido pelo doente como importunante.
numa forma sistemática. O diagnóstico é tão mais Nos estágios agudos podem também ocorrer sensações,
questionável quanto mais agudo for o início da psicose, mas representam apenas sintomas acessórios que mais
pois o início agudo é muito mais característico das tarde diminuem de intensidade. Com freqüência, os
esquizofrenias não-sistemáticas. doentes queixam-se de suas alucinações com palavras
No início, as parafrenias sistemáticas freqüente- indignadas, embora aqui não haja o caráter torturante
mente cursam de maneira tão insidiosa que os sintomas visto nos parafrênicos hipocondríacos. O humor parece
de processo não são advertidos, sendo identificados mais equilibrado. A afetividade também está preservada.
apenas os sintomas de defeito (confusão do pensa- Em geral, o pensamento parece não estar pertur-
mento), ainda que pouco manifestos. bado nas conversas do dia-a-dia. Entretanto, ao serem
Nas catatonias e hebefrenias, Leonhard descreve propostas tarefas de inteligência, ocorrem alterações
pares de estados sintomatológicos antagônicos. Essa regulares nas quais os doentes não seguem um
analogia não é possível nas parafrenias ou pelo menos pensamento objetivo de maneira lógica, senão que fazem
não pode tão facilmente ser deduzida do quadro clínico. digressões imprecisas, vagas, em torno dos assuntos
Portanto, Leonhard classifica as parafrenias a partir de propostos, espécie de tangencialidade que Leonhard
suas características externas. designa como pensamento vago.
Parafrenia hipocondríaca Parafrenia incoerente

A parafrenia hipocondríaca caracteriza-se sobre- A parafrenia incoerente exibe alucinações pronun-


tudo por sensações de caráter alucinatório que em geral ciadas que, no início, ainda podem estar associadas a
se relacionam com órgãos internos. A isto acrescentam- alucinações somáticas (radiações pelo corpo, puxões
se alucinações auditivas, preferencialmente de conteúdo nas pernas, correntes pelo corpo, moléstias sexuais,
insultuoso, embora o paciente sinta-se menos importunado etc.), embora mais tarde sejam quase tão somente de
pelo conteúdo do que pelo aparecimento das vozes em natureza acústica. A fisionomia e o olhar indicam que
si. Parece tratar-se de formas discursivas entrecortadas esses pacientes estão sempre voltados para o seu interior:
sem um sentido reconhecível, pois o doente pouco se sussurram consigo próprios, de tempos em tempos
fixa no seu conteúdo. caem em excitações alucinatórias, nas quais xingam e
Entretanto, o conteúdo das vozes costuma apre- falam com as vozes. O comportamento dos pacientes
sentar relação íntima com os pensamentos do doente, sugere que eles alucinam de modo ininterrupto, inclusive
podendo resultar no sintoma de sonorização do durante as entrevistas. Isso os distingue das outras
pensamento. Mais do que as vozes, as sensações são parafrenias alucinatórias.
percebidas pelo doente como ainda mais molestas. Eles Em nível interpessoal, não demonstram nenhum
freqüentemente queixam-se e reclamam delas de interesse ou iniciativa, senão que parecem embotados e
maneira querelante. O fundamento para isto parece ser pobres de impulso. Quando questionados, dão respostas
o humor de fundo triste e mal-humorado que caracteriza lacônicas, geralmente algo superficiais e em baixo tom
a parafrenia hipocondríaca. de voz. Suas verbalizações revelam um severo distúrbio

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do pensamento, em geral associado a incoerências e adequadamente apreciado. A crítica do paciente


contaminações do pensamento. presumivelmente faz com que as confabulações se
apliquem somente a outros lugares. Deve-se em parte
Parafrenia fantástica
também à crítica o fato de que alguns pacientes
Leonhard descreve a parafrenia fantástica como descrevam a vivência dos acontecimentos fantásticos
uma forma de esquizofrenia onde delírios e alucinações pretendidos como estados oníricos ou de transe. As
manifestam-se em proporções semelhantes. As falsificações sensoperceptivas podem ser explicadas pela
alucinações somestésicas (batidas, queimaduras, cortes simbolização das representações. Nas confabulações
pelo corpo, etc.), geralmente descritas de forma gro- sempre ocorrem idéias de grandeza que, freqüentemente,
tesca, estão sempre presentes. Alucinações auditivas e assumem proporções desmedidas. Elas são acom-
visuais também fazem parte do quadro clínico. As panhadas por um humor algo elevado, característico
experiências cênicas são especialmente características da parafrenia confabulatória. Esse humor elevado
da parafrenia fantástica: nelas predomina o aspecto provavelmente participa dos estados emergentes de
visual, embora seja freqüente o acréscimo de manifes- coloração fantástica, favorecendo o caráter sensacional
tações acústicas e somatopsíquicas. Com freqüência das confabulações. Em geral há uma forma singular de
os doentes alucinam coisas assustadoras, como tortura perturbação do pensamento abstrato: os pacientes
e assassinato de pessoas, o que já sugere um traço mantêm a crítica para os acontecimentos do dia-a-dia e
fantástico. mostram-se adequados, mas falham nas tarefas que
exigem abstração, revelando o que Leonhard designa
De semelhante caráter ilógico são os equívocos
como forma de pensamento pictórico.
no reconhecimento das pessoas: o doente confunde as
pessoas do ambiente, preferencialmente com persona- Parafrenia expansiva
lidades famosas. As idéias de grandeza também têm um No início, a parafrenia expansiva pode apresentar-
caráter absurdo, na medida em que os doentes elevam- se com alucinações; com o desaparecimento dos sin-
se de maneira desmedida. Entretanto, os delírios de tomas acessórios permanece um quadro clínico pura-
grandeza não repercutem demasiadamente no compor- mente delirante. O delírio tende a ser expansivo. Em
tamento dos pacientes. geral, as idéias de grandeza mantêm-se limitadas ao seu
A afetividade dos doentes é superficial: quando as conteúdo, mas os doentes empenham-se continuamente
pessoas riem de suas idéias ou se os provoca, freqüen- em viver seu delírio de grandeza também exteriormente.
temente irritam-se um pouco, mas o afeto nunca é Enquanto os pacientes fantásticos e confabulatórios
profundo. Por outro lado, eles mantêm um certo apenas falam de sua elevada posição, sem comportarem-
interesse nos acontecimentos do ambiente e nas suas se de modo expansivo, os pacientes expansivos
famílias. Permanecem naturais em sua postura mais procuram demonstrar continuamente por meio de sua
geral. Quando apresentam suas idéias fantásticas, em conduta que são superiores. O conjunto da personalidade
geral parecem algo confusos, mas com perguntas é aqui, portanto, bem mais afetado pelo delírio de
adequadas pode-se trazer clareza ao curso do pen- grandeza. O doente faz-se de importante na postura e
samento. Em exames com a ajuda de testes de inteligência movimentos, no trato com outras pessoas, no modo de
verifica-se que a característica do seu distúrbio do vestir, em escritos cheios de segredo e assim por diante.
pensamento é o descarrilamento. Em geral, suas atividades expansivas são muito
uniformes e com isso revelam sua pobreza de idéias, o
Parafrenia confabulatória
que de novo contrasta com a riqueza de idéias dos
O quadro clínico da parafrenia confabulatória é pacientes fantásticos e confabulatórios. Quando os
dominado por falsificações da memória [erinnerun- doentes falam de seu delírio de grandeza, apresentando
gstäuschungen]3 que aparecem sob a forma de vivências seus motivos e queixas e reclamando dos outros
interconectadas. Têm em geral um caráter fantástico e pacientes, freqüentemente o fazem com uma certa
relacionam-se a países, continentes ou até mesmo outros loquacidade. Também ocupam-se de seus costumes
planetas. Parece que as desenfreadas e crescentes expansivos com um certo zelo. Entretanto, demonstram
representações assumem o caráter de sensações físicas pouca iniciativa e interesse.
que se mostram como lembranças. O ambiente Em geral apresentam comprometimento da
circunstante não está incluído nas confabulações, sendo verbalização, com muitos erros de gramática e na

3
Erinnerungstäuschung [erinnerung = recordação, lembrança, memória; täuschung = engano, ilusão]. Diz-se do suposto rememorar
(lembrar) de acontecimentos do passado que na realidade nunca aconteceram, mas sua lembrança é vivida com convicção delirante.

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construção de palavras. Na sua perturbação do pensa- FÜNFGELD, E. – Die Motilitätspsychosen und Verwirrtheiten. Karger,
Berlin, 1936.
mento, os pacientes empregam conceitos que não são
GRIESINGER , W. – Die Pathologie und Therapie der Psychischen
de todo errados, mas mostram-se inexatos, pouco Krankheiten. Braunschweig, 1845.
precisos, condição que Leonhard designa como inexa- HECKER, E. – Die Hebephrenie. Virchows Arch Path Anat Physiol
tidão do pensamento rudimentar. 52: 395-429, 1871.
KAHLBAUM, K.L. – Gruppierung der Psychischen Krankheiten.
Esquizofrenias sistemáticas combinadas Kafemann, Danzig, 1863.
KLEIST , K. – Über zykloide, Paranoide und Epileptoide Psychosen
Leonhard também descreve casos em que há und Über die Frage der Degenerationspsychosen. Schweiz Arch
combinações de sintomas de diferentes subformas, Neurol Psychiat 23: 1, 1928.
embora sejam raros os casos de combinação entre KLEIST , K. – Gehirnpathologie. Ambrosius Barth, Leipzig, 1934.
formas (não-sistemáticas e sistemáticas). Assim, KLEIST, K. – Leitvortrag über Gehirnpathologie und Klinik der
Persönlichkeit und Körperlichkeit. Arch Psychiatr 103: 301-
descreve catatonias sistemáticas combinadas, hebe- 9, 1935.
frenias sistemáticas combinadas e parafrenias siste- KRAEPELIN, E. – Psychiatrie - 8. Aufl., Ambrosius Barth, Leipzig,
máticas combinadas. 1913.
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