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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


CAMILA CHANG FEITOSA – NºUSP 9329232

TERROR E MISÉRIA NA POESIA MODERNISTA:


MÁRIO E DRUMMOND ENTRE ESCOMBROS

Trabalho final de aproveitamento da


disciplina de Literatura Brasileira I –
Prof. Dr. Fabio Cesar Alves

AGOSTO
2016
TERROR E MISÉRIA NA POESIA MODERNISTA:
MÁRIO E DRUMMOND ENTRE ESCOMBROS

INTRODUÇÃO
Quando pensamos em modernismo no Brasil, não há como desvinculá-lo de nomes como
Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Ainda que tratemos a Semana de Arte Moderna
de 22 como grande marco do movimento, é notória a presença de traços fundamentais dessa estética
também na obra de Drummond e poucos o tirariam da lista dos importantes expoentes modernistas.
As proximidades entre os dois autores, longe de expressar proximidades biográficas ou de
percepções existencialistas sobre vidas muito semelhantes, estão intimamente vinculadas à
dinâmica social complexa do período pelo qual passava o Brasil, indissociável dos processos de
formação da nossa realidade social (tanto no âmbito nacional quanto internacional – e
especialmente na relação entre ambos).
Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo tratar das aproximações e afastamentos entre
duas obras dos autores mencionados, a saber, “Eu nem sei si vale a pena”1, de Mário de Andrade, e
“Com o russo em Berlim”2, de Carlos Drummond de Andrade. Assim, faremos análises das obras,
procurando reconhecer nelas algumas estruturas a partir do seu vínculo com a realidade histórico-
social em que foram escritas, buscando compreender a formação de suas estruturas composicionais,
bem como a construção das subjetividades líricas nelas presentes e expressas.

A ARTE NO MUNDO DOS HOMENS3


Buscando a diferenciação com as abordagens que pensam a literatura como fruto da
genialidade de poucos, precisamos recorrer às grandes formulações que pensam na ideia como fruto
da matéria – isto é, às abordagens materialistas. No entanto, como pode ser percebido em quase
toda a literatura (e na poesia isso adquire especial importância, dada as características específicas da
Lírica, de elisão entre sujeito e objeto e expressividade emotiva pronunciada4), essa relação não se
dá de forma mecânica e determinista; há mediações e uma prática ativa do intelecto na produção da
literatura, assim como de outras formas ideológicas e de consciência do período histórico em que
estamos inseridos. Aproximamo-nos da abordagem materialista histórico-dialética da literatura, que
a interpreta dentro do bojo de grandes formas ideológicas e de “reflexo” (como querem alguns, mas
a formulação pode ser questionada) da realidade social que as circunda e produz.

1
ANDRADE, 2012: 59-60 (Apêndice – Texto 01).
2
ANDRADE, 2000: 176-178 (Apêndice – Texto 02).
3
Pegamos emprestado o título do livro de Celso Frederico (FREDERICO, 2013) pela sonoridade e pela pertinência à
parte deste trabalho em que exporemos nossos pressupostos teóricos.
4
ROSENFELD, 2014: 15-36.
1
Esclarece-nos, assim, sobremaneira o prefácio de Marx a Para uma Crítica da Economia
Política, quando esse afirma que, a partir de seu método, chegou à conclusão de que
[...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a
uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A
totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base
real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem
formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência.5 [Grifos nossos.]
Assim, partindo dessa concepção mencionada, devemos compreender, em primeiro lugar,
como se dá a interação do ser humano com o mundo. Lukács propõe firmemente que “o fato
ontológico fundante do ser social [é] o trabalho”6. Ou seja, o que faz do homem um partícipe do
mundo social é um “pôr teleológico conscientemente realizado”7, dado na dualidade “teleologia e
causalidade”8 – ou seja, que os seres humanos produzem sua vida dentro das possibilidades
concretas de que dispõe, mas também com um grau de consciência, que dá finalidade a seus
produtos.
Entrando no campo da literatura, Terry Eagleton observa, a partir das perspectivas de Bertolt
Brecht e Walter Benjamin, que
[...] o autor é primariamente um produtor, análogo a qualquer outro fabricante de
produtos sociais. Ou seja, eles se opõem à noção romântica do autor como criador – como
uma figura divina que conjura sua obra misteriosamente do nada. Um conceito de produção
artística como esse, baseado na inspiração e no individualismo, faz com que seja impossível
conceber o artista como um trabalhador enraizado em uma história específica, com
materiais específicos à sua disposição.9
Percebe-se, assim, a nossa opção por tentar buscar nesses “materiais específicos” de que o
autor dispõe – ou seja, o mundo concreto e histórico a sua volta – os fundamentos da arte produzida
em determinada época. Essas produções artísticas, assim, vão carregar em si não apenas conteúdo
histórico determinado10, mas também forma histórica determinada. A forma, para Eagleton, será
[...] sempre uma unidade complexa composta por pelo menos três elementos: ela é moldada
em parte por uma história literária das formas “relativamente autônomas”; ela cristaliza-se a
partir de certas estruturas ideológicas dominantes; e [...] ela personifica um conjunto
específico de relações entre autor e público. [...] Ao selecionar uma forma, portanto, o
escritor descobre que sua escolha já está limitada ideologicamente. 11
Feitas essas considerações, passa a ser de fundamental importância notar qual sociedade
ofereceu o caldo ideológico, temático e formal de que se serviram os autores a serem analisados
para produzirem suas obras. Cabe-nos, portanto, explanações acerca do momento histórico pelo

5
MARX, 1996: 52.
6
LUKÁCS, 2010: 43.
7
Ibidem: 43-44.
8
Ibidem: 44.
9
EAGLETON, 2011: 123.
10
O conteúdo histórico da arte inclusive não necessariamente é contemporâneo à obra, como n os casos de Notre-Dame
de Paris, de Victor Hugo, ou Iracema, de José de Alencar, cujos conteúdos se passam séculos antes de suas escritas e
publicações efetivas.
11
EAGLETON, 2011: 53-54.
2
qual passavam o Brasil e o mundo quando da vida e da produção dos autores mencionados.
Cabe a nós, portanto, expor brevemente o contexto histórico, social e político do Brasil e do
mundo da primeira metade do século XX, a saber, o capitalismo que se instaurava no mundo (já
com resistência do socialismo soviético como contraponto). A industrialização no Brasil já se
insinuava principalmente após a dita Revolução de 30, na qual sobre Getúlio Vargas ao posto de
presidente – e depois assumindo ele próprio a cabeça do regime de traços fascistas do Estado Novo.
Simultaneamente, entra em novo declínio o modo de produção capitalista no nível internacional,
com o ponto culminante no crack da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, afundam o mundo
numa crise sistêmica do capital que só encontrará solução na produção da indústria armamentista da
Segunda Guerra Mundial.
A Segunda Guerra, por sua vez, dá continuidade (mas também reinventa) os modelos de
conflito bélico que tínhamos até o final do século XIX, tendo já a Primeira Guerra Mundial servido
de preâmbulo para as novas atrocidades tornadas possíveis pela grande indústria armamentista que
atinge ali o seu apogeu de produção e faturamento. A economia já se encontra internacionalizada ao
máximo, mas apontando para as formas de dominação entre diferentes países, no processo chamado
de Imperialismo12 13. No Brasil, vemos a manutenção de formas arcaicas de economia mesmo com
a crescente industrialização, o que, para alguns teóricos da literatura, causará grande impacto na
nossa produção14.
De um modo geral, o quadro era desolador: a Segunda Guerra Mundial provou os limites
das políticas imperialistas e os horrores perpetrados por eles, seja na sua faceta nazifascista, com os
extermínios nos campos na Alemanha, seja na sua faceta “liberal” que acabou a guerra ao jogar
duas bombas atômicas sobre o Japão setenta e um anos atrás.

MÁRIO E DRUMMOND ENTRE ESCOMBROS: REFLEXÕES SOBRE UM MUNDO


ARRASADO
Debrucemo-nos sobre os poemas a serem analisados.
Mário de Andrade produz um poema à base da melancolia urbana, da descontinuidade e da
contradição. Sua cidade-Musa, São Paulo, está aqui proposta como cenário de fundo, mas também
como partícipe e protagonista. Como num proêmio homérico, Mário canta a cidade e as glórias
dessa Ílion moderna. Ressoa o tom épico posto em
Eu nem sei se vale a pena
Cantar São Paulo na lida
e

12
PRADO JUNIOR, 1994: 270-283.
13
LENIN, 2012.
14
SCHWARZ, 2000.
3
São glórias desta cidade
São uma reproposição dos cantos de invocação da Musa, trazendo São Paulo para o rol das
cidades das epopeias, Troia, Roma etc., nas quais se desenrolam os poemas épicos. O tom alto entra
em contraste, no entanto, com a dúvida permanente do eu-lírico, que vê sua cidade permeada das
contradições mais ferozes à vida social, numa espécie de “mundo do contra”:
Muita fome pouco pão
[...]
A religião sem memória
[...]
Os estudantes sem textos
Jornalismo no cabresto
Tolos cantando vitória
[...]
Grã-finos do despudor15
[...]
A honra é uma suicida
[...]
E entre rosas a cidade,
Muito concha e relambória,
Sem paz, sem amor, sem glória,
Se diz terra progredida,
[...]
O quadro apresentado não demonstra ser duvidoso para o eu-lírico. Ele não sustenta
desconfiança em relação ao mundo que percebe; ao contrário, o compreende com bastante clareza e
percebe suas contradições. O desmantelamento das relações sociais pressupostas é central para o
entendimento (ou não entendimento) do eu-lírico da realidade que o circunda. A mercantilização da
vida aparece, então, como um ponto dos muitos que denotam esse descompasso generalizado do
poema, uma vez que “a verdade,/ Ela mesma está vendida”. Vemos similaridade dos versos acima
com a famosa passagem de Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista: “Tudo que é sólido
desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar
com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens.”16
No plano da forma, vemos o usual e tradicional emprego das redondilhas maiores durante as
várias estrofes: os esquemas rímicos e métricos são mantidos durante todo o poema, de forma
bastante regular. A oposição fica bastante clara ao vermos a dúvida de cada estrofe saltar aos olhos,
em versos de três e quatro sílabas poéticas. O questionamento acerca do mundo descompassado
quebra não só a naturalidade da vida terrível apresentada, mas também rompe os esquemas formais
tradicionais. Ainda se pensarmos no peso que dá Mário de Andrade à identidade nacional na sua
produção, somado à consagração da redondilha como metro típico da poesia tradicional e folclórica
brasileira, podemos ver que essa quebra não é meramente um desvio, mas um desvio coerente com
o próprio conteúdo de questionamento do ser social posto no mundo apresentado pelo eu-lírico.

15
Este verso também figura noutro poema, “Moça linda bem tratada”, do livro Lira Paulistana. O poema também
ironiza (com um humor mais leve do que o deste que analisamos) as classes dominantes, apontando as contradições
internas entre sua moral e sua prática.
16
MARX; ENGELS apud BERMAN, 2007: 111.
4
No entanto, “um espectro ronda” São Paulo: o descompasso entre essa vida e o que se
suporia ser uma vida decente – em última análise, a “vida”, a “glória”, o “amor” e a “paz”, centrais
no discurso ideológico da burguesia brasileira, que buscava consolidar a sua visão de nação em
torno de um patriotismo apologético, são postas em dúvida, por não corroborarem com os fatos.
Mais do que isso, há a percepção da contradição entre o nacionalismo e o imperialismo, porque,
conquanto a burguesia queira reforçar a independência e a identidade brasileira, a realidade vem à
tona:
Mas o pior desta nação
É ter fábrica de gás
Que donos-da-vida faz
Ianques e ingleses de ação,
Tudo vem de convulsão
Enquanto se insulta o Eixo,
Lights, Tramas, Corporation,
E a gente de trás pra trás,
Isso é paz?
A crítica mordaz que já se faz ao final da Segunda Guerra aos países do Eixo – Getúlio
Vargas apóia os Aliados da metade da guerra para frente, apesar de ter colaborado com os nazistas
em episódios centrais da nossa história, como na deportação de Olga Benário – não consegue
esconder que também os americanos e ingleses têm práticas de domínio similares às dos alemães,
apontando as proximidades dos regimes “liberais” Aliados e às ditaduras do Eixo no que tange a
serem facetas distintas do capitalismo em sua fase imperialista17.
No poema “Com o russo em Berlim”, vemos já o universalismo típico drummondiano
entrando em cena, em oposição à perspectiva nacional posta no poema de Mário18. Nada se fala em
Brasil no poema, e os palcos de batalhas são cidades, campos, mares, ares universais, que abarcam
toda a humanidade – que é representada, dialeticamente, na sua particularidade pela figura
recorrente do “russo em Berlim”.
Temos, nesse poema, uma chave dupla: a apresentação de um passado recente e de um
futuro por vir, marcados também pela relação entre destruição naquele e reconstrução neste. A
encarnação do “russo em Berlim” ressoa como movimento de virada, como ponto de inflexão entre
esses dois tempos (verbais e históricos) do poema.
Também a figura do “russo em Berlim” é dupla: aponta para a universalidade humana – em
que os humanos poderiam coexistir a despeito de suas diferenças nacionais – a partir do momento
de embate – visto que esses russos, como bem sabemos, são os soldados soviéticos do Exército
Vermelho que conquistaram Berlim no dia 2 de Maio de 1945. A conhecida imagem da bandeira
soviética fincada no Reichstag na capital alemã pode vir à tona como símbolo desse momento19 .

17
ZIZEK, 2013.
18
RUFINOTI, 2014.
19
Ver Apêndice – Imagem 01.
5
Pensando estruturalmente o poema, a recorrência desse elemento (inclusive graficamente
destacado das estrofes, no livro) aponta para a ideia fixa em torno dessa personagem. Assim, o eu-
lírico e o “russo em Berlim” são o contraponto um do outro. A construção do eu-lírico no poema se
dá em várias passagens, das quais podemos extrair
Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranqüilo.
[...]
O tempo que esperei não foi em vão.
[...]
Minha boca fechada se crispava.
[...]
Como lutar, sem armas, [...]?
[...]
Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. [...]
Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
[...]
Eu esperei na China e em todo canto
em Paris, em Tobruk e nas Ardenas
[...]
Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa: [...]
O eu-lírico encontra-se imóvel, entregue a uma interminável “espera”, impossibilitado de
ação política na sua única capacidade: a palavra, a voz, o logos; não possui armas, é pequeno, está
triste na sua volta para casa. Seu duplo, no entanto, encarna a esperança e a reproduz
universalmente. Irredutíveis, o eu-lírico e o “russo em Berlim” não se interpenetram e não se
modificam; nas palavras de Simone Rufinoni, é o modo drummondiano de “conceber o outro”: uma
“distância ampliada pela constatação do conflito”20.
Apesar dessa constatação do impossível, vislumbra o eu-lírico pelas frestas do horror da
guerra o centro pulsante desse mesmo horror: o capitalismo, representado por “Uma cidade atroz”,
“oculta em mil cidades”, contra a qual devem os “trabalhadores do mundo [reunirem-se]”, a fim de
“esmagá-la”, em clara referência à frase final do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e
Engels21.
Entre ambos os poemas, vemos um diálogo bastante possível. A guerra é motivo central para
ambos, e tem reflexo na estética do assombro e do absurdo que ambos criam. A recorrência de
elementos em ambos os poemas – a dúvida constante do eu-lírico de Mário e a esperança fixa do
“russo” de Drummond – é um traço vinculado às posturas em relação ao mundo que encontra-se em
escombros. Enquanto a dúvida permanente revela a dificuldade de dar sentido à experiência
particular nos marcos do desmantelamento da sociedade brasileira (foco de Mário), a manutenção

20
RUFINONI, 2014: 257.
21
MARX; ENGELS, 2001.
6
do herói futuro, da particularidade condensadora das ânsias da humanidade toda, é a esperança
única possível do eu-lírico drummondiano, uma vez que ele mesmo encontra-se distante dos
campos de batalha, distante dos exércitos em marcha e distante desse universal “russo em Berlim”.
Ambos os poemas destoam do paradigma do verso livre, que é justamente um dos grandes
modelos da arte modernista. Assim, vemos neles uma ordem e uma desordem na relação dialética
forma-conteúdo, que, se no poema de Mário se perfaz na quebra da métrica regular ao final de cada
estrofe – fundamentando a contraposição entre a clareza da compreensão do mundo problemático
que o circunda e os valores que deveriam ser os desse mundo –, no poema de Drummond provoca
uma retomada constante não do problema, mas da solução dele, encarnada no “russo em Berlim”,
portador da universalidade da emancipação humana frente ao horror da guerra e do capitalismo.
Também a cidade encontra centralidade em ambos os poemas: a concentrada e imediata São
Paulo entrando em contraposição à universal e dispersa cidade capitalista de Drummond, que está
localizada, simultaneamente, “em Paris, em Tobruk e nas Ardenas”, “em Stalingrado” e, claro, “em
Berlim”. Historicamente, isso é compreensível já pelas cidades serem o centro das contradições
capitalistas, como apontam teóricos como Peter Hall22 e David Harvey23.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos perceber, nestas poucas páginas, que há uma profunda convergência entre Mário
de Andrade e Drummond no que tangue às percepções de mundo. No entanto, como não é raro, suas
proposições de intervenção e as problemáticas através das quais percebem as questões do mundo
divergem e se aliam a perspectivas históricas que dão a eles lugar em diferentes tradições: enquanto
Mário de Andrade apresenta a mediação nacional como primeiro degrau na construção da
universalidade, Drummond traça hiatos entre o indivíduo-escritor só, incapaz de ação política, e o
homem universal, sujeito coletivo, motor da história.
De um modo geral, é fundamental ver o quanto as permanências e rupturas na forma
refletem e sustentam uma dialética de tradição-ruptura e individual/nacional-universal, contradições
postas não só na poesia dos dois autores, mas também na objetividade das relações sociais do
capitalismo na fase imperialista. Isso tudo é construído, nos poemas, com base em eus-líricos
construídos com especificidade histórica – trazendo consigo contradições do engajamento político,
do fazer artístico e da postura frente ao mundo capitalista que mostrava, mais uma vez, o seu limite
em propor melhorias para a humanidade. Também é, assim, a poesia uma mediação com um mundo
que tenta nos escapar – e tomarmos ele para nós vem a ser fundamental se queremos revolucioná-lo.

22
HALL, 2011.
23
HARVEY, 2015.
7
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2000.
ANDRADE, Mário de. São Paulo! comoção de minha vida… São Paulo: Editora Unesp; Prefeitura
Municipal; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
FREDERICO, Celso. A arte no mundo dos homens: o itinerário de Lukács. São Paulo: Expressão
Popular, 2013.
HALL, Peter. Cidades Do Amanhã - Uma História Intelectual Do Planejamento e Do Projeto
Urbanos No Século XX. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011
HARVEY, David. Paris, capital da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio popular. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípio para
uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. “Para a Crítica da Economia Política”. In: Karl Marx. (Coleção Os Pensadores). São
Paulo: Nova Cultural, 1996.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2001.
PRADO JUNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014.
RUFINONI, Simone Rossinetti. Mário e Drumond: nacionalismo, alteridade, arte. Estudos
Avançados (USP. Impresso), v. 80, p. 247-264, 2014.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora
34, 2000.
ZIZEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção. São
Paulo: Boitempo, 2013.

8
APÊNDICE

Texto 01 – Eu nem sei se vale a pena (Mário de Andrade

Eu nem sei se vale a pena


Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida
Limpa o goto e assopra a avena,
Esta angústia não serena,
Muita fome pouco pão,
Eu só vejo na função
Miséria, dolo, ferida,
Isso é vida?

São glórias desta cidade


Ver a arte contando história,
A religião sem memória
De quem foi Cristo em verdade,
Os chefes nossa amizade,
Os estudantes sem textos,
Jornalismo no cabresto,
Tolos cantando vitória,
Isso é glória?

Divórcio pra todo o lado,


As guampas fazem furor,
Grã-finos do despudor,
No gasogênio empestado,
Das moças do operariado
São os gozosos mistérios,
Isso de ter filho, néris,
E se ama seja o que for,
Isso é amor?

Mas o pior desta nação


9
É ter fábrica de gás
Que donos-da-vida faz
Ianques e ingleses de ação,
Tudo vem de convulsão
Enquanto se insulta o Eixo,
Lights, Tramas, Corporation,
E a gente de trás pra trás,
Isso é paz?

Pois nada vale a verdade,


Ela mesma está vendida,
A honra é uma suicida,
Nuvem a felicidade,
E entre rosas a cidade,
Muito concha e relambória,
Sem paz, sem amor, sem glória,
Se diz terra progredida,
Eu pergunto:
Isso é vida?

Texto 02 – Com o russo em Berlim (Carlos Drummond de Andrade)

Esperei (tanta espera), mas agora,


nem cansaço nem dor. Estou tranqüilo.
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.


Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.


Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
10
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos


ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.

pois também a palavra era proibida.


As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,


calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto


em Paris, em Tobruk e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando


na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo


espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes


me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
11
com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa


(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa: por que não
com o russo em Berlim?)

Muitos de mim saíram pelo mar.


Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.


Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,


olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.

Uma cidade existe poderosa


a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico,


pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.

Essa cidade oculta em mil cidades,


trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
12
com o russo em Berlim.

Imagem 01 – Soldado fincando a bandeira no Reichstag. Berlim, 1945. Foto tirada por Yevgeny
Khaldei.

13

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