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19/03/2020 Sabedoria Perene: Ritos e símbolos

Ritos e símbolos
O texto seguinte é uma tradução de um curto texto sobre a ligação entre os rituais e os
símbolos escrito por  René Guénon  e publicado em 1970 na  Studies of Comparative
Religion. A versão original e anotada pode ser lida em: Studies in Comparative Religion,
Vol. 4, No. 3. (Summer, 1970).

***

Todos os elementos constituintes de um rito encerram em si um sentido simbólico,


enquanto que o símbolo, por outro lado, na sua forma mais comum como suporte à
meditação, tem a função de produzir resultados semelhantes aos obtidos através dos ritos.
Podemos ainda acrescentar que os ritos e os símbolos nas suas formas verdadeiramente
tradicionais (e aqueles que não o são não são mais do que falsificações ou mesmo paródias)
têm origens “não-humanas”, o que resulta na impossibilidade de lhes atribuir um autor ou
inventor, não por razões de ignorância como alguns historiadores profanos afirmam(1), mas
como consequência natural da sua origem, a qual apenas poderá ser questionada por
pessoas totalmente ignorantes da verdadeira natureza da tradição e de tudo aquilo que a
ela está integralmente ligado, tais como os ritos e os símbolos.

Se a identidade fundamental dos ritos e dos símbolos for examinada em maior detalhe, é
possível verificar que, em primeiro lugar, um símbolo, entendido como uma figuração
gráfica, não é mais do que a fixação de um gesto ritual(2). De facto, acontece
frequentemente que a representação de um símbolo, para ser adequada, deve ser
executada sobre determinadas condições, as quais lhe oferecem todas as características de
um verdadeiro rito. Um perfeito exemplo desta ocorrência a um nível inferior, o da magia
(a qual não deixa de ser uma ciência tradicional), é ilustrado na preparação de figuras
talismã; e num plano que mais nos interessa, o desenho de “yantras” na tradição hindu
constitui um exemplo não menos relevante(3).

Mas isto não é tudo, pois a referida concepção do símbolo é demasiado limitada. Na
realidade, existem não só símbolos figurativos ou visuais mas também símbolos auditivos.
Esta divisão em duas categorias fundamentais apresenta na doutrina hindu as designações
de “yantra” e de “mantra”, tal como referido numa outra situação(4). A sua respectiva
predominância caracteriza dois tipos diferentes de ritos, relacionados na sua origem com as
tradições dos povos sedentários no caso dos símbolos visuais e com os povos nómadas no
caso dos auditivos. Esta separação não deve, obviamente, ser entendida com absoluta
(razão pela qual se utilizou a palavra predominância), dado que todas as combinações das
duas são possíveis como resultado das múltiplas adaptações ocorrentes com a passagem do
tempo, as quais deram origem às várias formas tradicionais que chegaram até nós.

Estas considerações mostram claramente a ligação que existe, de uma forma perfeitamente
geral, entre ritos e símbolos, a qual é no caso dos “mantras” imediatamente visível. De
facto, enquanto os símbolos visuais, depois de representados, mantêm-se ou podem ser
mantidos num estado permanente (razão pela qual falámos de um gesto fixo), o símbolo
auditivo, por outro lado, apenas é manifestado durante a realização do rito. Esta diferença
é, no entanto, atenuada quando é estabelecida uma correspondência entre o símbolo visual
e o auditivo, tal como na escrita, o que representa uma verdadeira fixação do som (não o
som propriamente dito mas a possibilidade permanente de o reproduzir); e quase seria
desnecessário referir que toda a escrita, pelo menos na sua origem, é essencialmente uma
figuração simbólica.

O mesmo é válido para a fala, cujo carácter simbólico não é menos inerente à sua
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natureza. É perfeitamente claro que uma palavra, qualquer que ela seja, nunca poderá ser
mais do que um símbolo da ideia que procura expressar. Assim, toda a linguagem, escrita
ou falada, é um corpo de símbolos, razão pela qual, apesar de todas as teorias
“naturalistas” inventadas para a explicar, ela nunca poderá ser mais do que uma criação
humana relativamente artificial ou um mero produto das capacidades individuais do
homem.(5)

Entre os símbolos visuais existe também um exemplo de “instantaneidade”


significativamente comparável com os símbolos sonoros: este é o caso dos símbolos que não
são representados de forma permanente, mas que são apenas utilizados como sinais em
ritos iniciáticos (particularmente os “sinais de reconhecimento” referidos em artigos
anteriores)(6) e em ritos religiosos mais correntes (o “sinal da cruz” é um exemplo
amplamente reconhecido) onde o símbolo se confunde verdadeiramente com o próprio
gesto ritual.(7) Em ambos os casos o símbolo “gráfico” é, repetimos, a própria fixação de
um gesto ou de um movimento (o movimento ou série de movimentos necessária para a sua
representação) e, no caso de símbolos sonoros, o movimento dos órgãos vocais necessário
para a sua produção (seja no caso de proferir palavras correntes ou sons musicais) é tanto
um gesto como o são todos os outros tipos de movimento corporal, do qual o símbolo nunca
poderá ser completamente isolado.(8)

Assim, a noção de gesto nesta forma mais geral (a qual está mais de acordo com o real
significado da palavra do que o uso restrito permitido pelo seu uso actual), reúne em si
todos estes diferentes casos e permite-nos discernir o seu princípio comum, e este facto
tem um significado profundo no domínio metafísico, sobre o qual não nos podemos agora
debruçar.

Neste momento, facilmente se compreende que todo o rito é literalmente constituído por
um conjunto de símbolos; e estes incluem não só os objectos utilizados ou as figuras
representadas, mas também os gestos afectados e as palavras pronunciadas (as últimas, e
de acordo com o que dissemos, não sendo mais do que um caso particular dos primeiros) –
em resumo, todos, e sem excepção, os elementos de um rito. E, desta forma, todos os
elementos têm o valor de símbolos pela sua própria natureza e não virtude de qualquer
significado adicional que se possa ter fixado através de circunstâncias exteriores e não
inerentes aos mesmos. Insistindo nestes conceitos, pode ser afirmado que os ritos são
símbolos “postos em acção”, que todo o gesto ritual é um símbolo “actuado”; esta é
apenas outra forma de dizer a mesma coisa, pondo em evidência a característica de um
rito que, como toda a acção, é algo que é necessariamente realizado no tempo(9),
enquanto que o símbolo propriamente dito pode ser considerado intemporal. Neste sentido,
é possível falar de um certa proeminência dos símbolos em relação aos ritos; mas os ritos e
os símbolos são fundamentalmente dois aspectos de uma única realidade, e isto não é mais
do que a “correspondência” que une todos os níveis da Existência universal, de tal forma
que através deles o nosso estado humano pode entrar em comunicação com estados do ser
mais elevados.

NOTAS

1 – Se por desejo de uma melhor solução eles não são levados a considerá-los como um produto de um tipo
de “consciência colectiva” que, mesmo se existisse, seria de qualquer forma incapaz de produzir coisas de
uma ordem transcendente, tais como estes.
Em relação a este aspecto aquilo que dissemos a respeito do designado folclore no nosso artigo sobre o
Santo Graal pode ser referido (ver Studies in Comparative Religion, Winter 1969, pp. 2-3).
2 – Estas considerações relacionam-se directamente com aquilo que designámos por “teoria dos gestos” e a
que referimos em variadas ocasiões sem, no entanto, ter sido possível tratar o assunto até à presente
situação.
3 – O “quadro” das Lojas na antiga maçonaria, o qual era um verdadeiro “yantra”, pode ser ligado a este.
Os ritos associados à construção de monumentos para fins tradicionais podem também ser citados como um

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exemplo, pois este tipo de monumentos tem um carácter simbólico.


4 – Ver o capítulo sobre “Caim e Abel” no Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo.
5 – Desnecessário será dizer que a distinção entre “línguas sagradas” e “línguas profanas” só surge
secundariamente; com as línguas, tal como nas artes e nas ciências, o seu carácter profano é apenas o
resultado da sua degeneração, a qual pode surgir mais cedo e mais facilmente no caso das línguas em
resultado do seu uso mais geral e corrente. Ver La Science des Lettres em Symboles de la Science sacrée.
6 – Sons que servem o mesmo propósito, como por exemplo palavras passe, caem naturalmente na
categoria de símbolos sonoros.
7 – Uma espécie de caso intermédio é aquele das figuras simbólicas que são traçadas no início de um rito ou
numa fase preparatória para este, e apagadas assim que estiver terminado; este é o caso de muitas
“yantras”, e costumava ser assim com o “quadro” das Lojas Maçónicas. A prática não representa uma mera
precaução contra a curiosidade profana, o que como explicação é demasiado simplista; deverá ser
entendida em primeiro lugar como uma consequência imediata da íntima ligação entre os símbolos e os
ritos, de tal forma que os primeiros não têm causa para subsistência visível sem os últimos.
8 – Note-se especialmente em relação a este aspecto o papel preconizado nos ritos dos gestos designados na
tradição hindu por “mudrās”, os quais formam uma verdadeira linguagem de movimentos e atitudes; o
“apertar de mãos” usado como “meio de reconhecimento” em organizações iniciáticas no Ocidente e no
Oriente é, na verdade, um caso especial de “mudrās”.
9 – Em sânscrito a palavra “karma”, cujo primeiro significado é o de “acção” em geral, é também utilizada
num sentido “técnico” para significar “acção ritual” em particular; aquilo que expressa directamente é,
nesse sentido, as mesmas características do rito que estamos aqui a referir.

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