Você está na página 1de 12

Das bases constitucionais do Direito Penal

Ivan Luiz da Silva

Sumário
1. Direito Penal e Constituição. 2. Das rela-
ções entre Direito Penal e Constituição. 3. Das
normas penais constitucionais. 3.1. Da classifi-
cação quanto às conseqüências proposta por
Nuvolone. 3.2. Da classificação quanto à maté-
ria proposta por Palazzo. 3.3. Da classificação
quanto ao conteúdo e destinatário proposta por
Maurício Ribeiro Lopes. 4. Dos princípios pe-
nais constitucionais.

As relações estabelecidas entre Direito


Penal e Constituição podem ser estudadas
sob três prismas: o dos princípios constitu-
cionais do Direito Penal; o da correlação
entre princípios específicos e institutos pró-
prios do Direito Constitucional e a operacio-
nalização do Direito Penal; e, por último, o
da teoria dos delitos constitucionais (LO-
PES, 2000, p. 35). Neste trabalho, interessa-
nos apenas a primeira perspectiva, e o obje-
to de estudo serão as normas constitucio-
nais informativas do Direito Penal.
O Direito Penal de um Estado de Direito
democrático é informado por princípios que
visam garantir os direitos individuais mais
fundamentais do cidadão, verbi gratia, os
direitos inerentes à pessoa humana 1. Assim,
Ivan Luiz da Silva é Mestre em Direito Pú-
consagrados esses princípios nos códigos
blico pela UFPE, Pós-graduado pela Escola Su-
perior da Magistratura de Pernambuco – ES-
de Direito Penal, foram transportados, re-
MAPE, Professor substituto da Escola Superior flexamente, para as Constituições. Com efei-
da Magistratura de Alagoas – ESMAL, Advo- to, a fonte primária do Direito Penal é a pró-
gado, Procurador de Estado/AL, Ex-Procura- pria Constituição, da qual haure a legitimi-
dor de Estado/SE. dade e fundamento para sua intervenção
Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 41
punitiva sobre os direitos fundamentais dos cidas. Ela regula procedimentos de venci-
cidadãos, mormente o jus libertatis. mento de conflitos no interior da coletivida-
A necessidade, portanto, de se apresen- de. Ela ordena a organização e o procedi-
tar um estudo sobre as bases constitucio- mento da formação da unidade política e
nais do Direito Penal decorre da íntima re- da atividade estatal. Ela cria bases e norma-
lação entre os princípios penais e o Direito liza traços fundamentais da ordem total ju-
Constitucional. Nesse sentido é magistral a rídica. Em tudo, ela é o plano estrutural fun-
lição de Maurício Ribeiro LOPES (1999, p. 154): damental, orientado por determinados prin-
“(...) A história dos princípios orientadores cípios de sentido, para a configuração jurí-
do Direito Penal, em certo sentido, coincide dica de uma coletividade” (1998, p. 37).
com a história do Direito Constitucional”. Da análise dos conceitos acima no que
concerne à relação entre Direito Penal e Cons-
1. Direito Penal e Constituição tituição, Ribeiro LOPES assim conclui: “os
conceitos propostos por Canotilho e Hesse
O Direito Penal mantém estreitas rela- contêm todos os elementos indispensáveis
ções com a Constituição, pois, sendo esta o na compreensão dos fenômenos relacionais
estatuto político da nação, constitui a pri- entre a Constituição e o Direito Penal, por-
meira manifestação legal da política penal, quanto fundam o conceito de Constituição
dentro de cujo âmbito deve enquadrar-se a em elementos basilares e comuns também
legislação penal, em razão do princípio da às premissas de ordenação e desenvolvi-
supremacia constitucional2. mento do sistema penal” (2000, p. 59).
A Constituição é um instituto jurídico O Direito Penal é o ramo do Direito que
idealizado e criado pelos homens para a protege os bens jurídicos mais fundamen-
organização básica das regras de convivên- tais para a sociedade, tais como a vida, a
cia social, política e jurídica de um povo. liberdade etc., pois, para proteção de tais
Consiste na carta de intenções fundamen- valores sociais, os demais ramos do Direito
tal das regras de convivência de um país. não são suficientes, ou já não mais o são.
Em sendo assim, esses preceitos de convi- Assim, as normas penais são regras de con-
vência têm de se preocupar com algumas vivência de especial relevo, já que o Direito
regras de convivência de especial importân- Penal é um conjunto de normas jurídicas
cia no seu elenco de suas normas jurídicas, que tutela os bens jurídicos de alta relevân-
que são as regras que interessam à Lei Pe- cia, bem como guarnece os demais ramos
nal (BENETI, 1992, p. 155). jurídicos, pois serve de proteção às demais
Dois conceitos de Constituição que per- normas jurídicas3.
mitem relacioná-la ao Direito Penal são apre- Esse também é o entendimento de René
sentados por Canotilho e Hesse. Para CA- DOTTI: “o Direito Penal é a ciência destina-
NOTILHO, “Constituição é uma ordenação da a proteger os valores e os bens funda-
sistemática e racional da comunidade polí- mentais do homem. A sua tutela envolve
tica, plasmada num documento escrito, me- também a comunidade e o Estado como ex-
diante o qual se garantem os direitos funda- pressões coletivas da pessoa humana, em
mentais e se organiza, de acordo com o prin- torno de quem gravitam os interesses de
cípio da divisão dos poderes, o poder políti- complexa e envolvente ordem. Desde o di-
co” (1995, p. 12). reito à vida até o direito à sepultura, começo
Por sua vez, HESSE ensina que “a cons- e fim da aventura da existência, movimen-
tituição é a ordem fundamental jurídica da ta-se um amplo repertório de bens e de inte-
coletividade. Ela determina os princípios resses que têm no ser individual os pontos
diretivos, segundo os quais deve-se formar de partida e de chegada. Em todos os tre-
unidade política e tarefas estatais a ser exer- chos do funcionamento do sistema, o ho-

42 Revista de Informação Legislativa


mem deve ser a medida primeira e última A Constituição influencia diretamente o
das coisas, razão pela qual se proclama que, Direito Penal ao dispor sobre o alcance e
na categoria dos direitos humanos, o Direi- limites do jus puniendi, em face dos direitos
to Penal é mais relevante, o de maior trans- e garantias fundamentais do cidadão. As
cendência” (1985, p. 23). condições estabelecidas são de duas clas-
Para exercer essa função garantidora da ses: formais, que se referem aos aspectos
ordem jurídica, o direito Penal apresenta-se exteriores da intervenção punitiva; e mate-
armado de uma força sem similar nos ou- riais, relativas ao conteúdo das normas pe-
tros ramos do Direito, qual seja: a coercitivi- nais (LOPES, 2000, p. 179).
dade, a imposição de sanções criminais gra- A influência constitucional sobre o Di-
ves a quem viola seus mandamentos. Essa reito Penal é lapidarmente trazida a lume
força do Direito Penal tem seu nascedouro por PALAZZO5 ao citar Woesner, “segun-
na Constituição, como observa BENETI: “A do o qual legislação penal – por natureza –
força do Direito Penal não vem apenas dele deve ser lei de atuação da Constituição”,
próprio. Para ser suficientemente forte, a concretizando, necessariamente, uma rela-
ponto de sobre-reger a convivência na socie- ção entre indivíduo e autoridade, cujas li-
dade, no campo que lhe é reservado, firma- nhas de fundo são traçadas na Constitui-
se ele no Direito Constitucional, de modo ção, e Eser, “pelo qual, de um lado, a Cons-
que o que infunde força ao Direito Penal é o tituição dá o quadro dos valores de fundo
direito Constitucional. E, a rigor, essa as- do Direito Penal e, de outro, este último aco-
sunção de força pelo Direito Constitucional, lhe as limitações aos direitos de liberdade
relativamente ao Penal, é mais intensa do constitucionalmente garantidas”.
que no tocante a outros ramos do Direito, A base constitucional do Direito Penal
como o Civil” (1992, p. 155). evidencia-se em razão de sua missão pri-
Devido à sanção penal atingir direitos meira, que consiste em proteger os bens jurí-
fundamentais do cidadão, como, v.g., a li- dicos mais relevantes contra as formas mais
berdade, mister é que essa intervenção pu- graves de agressão. Assim, como a Consti-
nitiva esteja em conformidade com a ordem tuição alberga os bens jurídicos e interesses
constitucional. Portanto, o Direito Penal mais importantes para a sociedade, é, pois,
busca a legitimidade e conteúdo de suas nesse assentamento constitucional que a Lei
normas diretamente na Constituição. Penal busca o fundamento para sua inter-
Esse vínculo é apontado por Ribeiro venção punitiva. Portanto, o Direito Penal
LOPES (2000, p. 18)4, que assim expõe: “A toma o Texto Magno como parâmetro de re-
crescente influência do Direito Constitucio- ferência para realizar sua missão de salva-
nal sobre o Direito Penal, principalmente a guardar os bens jurídicos relevantes e cri-
partir dos novos movimentos constitucio- minalizar os fatos lesivos a esses bens.
nais do último quarto deste século, foi per- A origem desse contato remonta à gêne-
cebida pela doutrina, que passou a ser abun- se do próprio constitucionalismo, como dito
dantemente influenciada não apenas pelos na abertura deste capítulo. A doutrina, de
movimentos de reforma, mas por uma nova um modo geral, ensina que o constituciona-
ritualística na interpretação do direito pu- lismo nasceu em 1215, quando o rei inglês
nitivo. Giovanni Flora, por exemplo, reco- João Sem-Terra assinou a Magna Charta Li-
nhece expressamente, no campo da relação bertatum, na qual impunha limitações ao
entre a Constituição e o Direito Penal, a evo- poder monárquico.
lução da sensibilidade constitucional da Maurício Ribeiro LOPES (1999, p. 154-
ciência penal, da qual, dentre outras con- 161) aponta duas células mater da atual base
clusões, afirma o reflexo na produção dou- constitucional do Direito Penal na Magna
trinária mais recente”. Charta de 1215: o art. 20, que trata das penas

Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 43


pecuniárias; e o art. 39, que dispõe sobre o cípio norteador do Direito Penal. Corolário
devido processo legal. da proibição ao Poder Legislativo de editar
O art. 20 , do texto acima referido, preco- leis retroativas é a obrigatoriedade da edi-
niza que: “A multa a pagar por um homem ção de lei em matéria penal. Com efeito, se a
livre, pela prática de um pequeno delito, será lei não fosse necessária, porque seria proibi-
proporcionada à gravidade do delito; e pela do editá-la para que tivesse vigência em data
prática de um crime será proporcionada ao pretérita? Extrai-se, pois, que a própria lega-
horror deste, sem prejuízo do necessário à lidade penal decorre do due process of law.”
subsistência e posição do infrator; a mesma Exsurge, pois, que esses dois dispositi-
regra valerá para as multas a aplicar a um vos normativos constituem o embrião da
comerciante e um vilão, ressalvando-se para base constitucional que hoje informa o Di-
aquele a sua mercadoria e para este a sua reito Penal, sendo lapidar a observação de
lavoura” (p. 155). Ribeiro LOPES (p. 155): “A Magna Charta
Assim, muitas garantias penais no que tornou-se, assim, a declaração de direitos
tange à aplicação das penas decorreram que primeiro estabeleceu paradigmas daqui-
desse primeiro dispositivo. Nesse sentido lo que viria a ser chamado modernamente de
LOPES (p. 155) ensina: “A redação conferi- princípios constitucionais do Direito Penal”.
da ao art. 20 da Magna Charta Libertatum teve Na história do Direito brasileiro, segun-
seu significado ampliado posteriormente do Paulo QUEIROZ (1998, p. 21-22), pode-
para abranger alguns princípios básicos mos notar uma primeira influência do Di-
para cominação de penas aos delitos. Note- reito Constitucional sobre o Direito Penal
se, aliás, que não só as penas pecuniárias no Aviso de 28 de agosto de 1822, no qual o
foram resgatadas pela regra, mas também príncipe D. Pedro determinara que os juízes
as penas privativas de liberdade deveriam do crime deviam guiar-se pelas bases da
estar sujeitas ao princípio da proporciona- Constituição monárquica portuguesa, de 10
lidade da sanção. Tal premissa constava de março de 1821. Entre essas bases consti-
também do ideário de Beccaria, séculos de- tucionais, destacava-se o art. 12, que preco-
pois, e hoje consta do rol de garantias pre- nizava: “Nenhuma lei, e muito menos a pe-
vistas em várias Constituições”. nal, será estabelecida sem absoluta necessi-
O art. 39, do mesmo texto, assim dispõe: dade. Toda pena deve ser proporcionada ao
“Nenhum homem será preso ou detido em delito, e nenhuma deve passar da pessoa
prisão, ou privado de suas terras, ou posto do delinqüente. A confiscação de bens, a
fora da lei, ou banido, ou de qualquer ma- infâmia, os açoites, o baraço e o pregão, a
neira molestado; não procederemos crimi- marca de ferro quente, a tortura, e todas as
nalmente contra ele, nem o condenaremos penas cruéis ficam em conseqüência aboli-
senão por um julgamento legítimo de seus das”. Nessa linha de orientação, a nossa
pares e pela lei da terra” (p. 159). primeira Constituição, de 25 de março de
Ao comentar esse dispositivo legal, Ri- 1824, viria dispor, em seu art. 179, itens 19 e
beiro LOPES (p. 159) ensina que nele se en- 20: “desde já ficam abolidos os açoites, a
contra a base do devido processo legal – due tortura, a marca de ferro quente e todas as
process of law; sendo que tal garantia não seria mais penas cruéis”; “Nenhuma pena pas-
apenas de natureza processual, mas tam- sará da pessoa do delinqüente. Portanto, não
bém material. Nesse sentido é a lição do haverá caso algum de confiscação de bens,
mestre citado: “À evidência que a última das nem a infâmia do réu se transmitirá aos pa-
regras tradicionais do due process of law [proi- rentes em qualquer grau que seja”.
bição de leis retroativas], citada por Ada No atual estágio do constitucionalismo,
Pellegrini, não é garantia da órbita proces- a influência constitucional sobre o Direito
sual, mas sim da material. É autêntico prin- Penal mostra-se intensa, uma vez que a

44 Revista de Informação Legislativa


Constituição contém entre suas normas uma da norma constitucional, que atua como cen-
série de princípios penais, que orientam e tro de fundação do Direito e constitui o pa-
informam a construção e aplicação das nor- drão de validade das normas penais (LOPES,
mas penais6. 1999, p. 164; 2000b, p. 193; 2000a, p. 20).
A Constituição, portanto, atua como base Entre essas relações, duas se mostram
de fundamentação e legitimidade das nor- mais relevantes, a saber: a) a Constituição
mas penais, devendo estas exercerem a tu- como fonte do Direito Penal, e b) a Consti-
tela dos bens jurídicos em conformidade tuição como redutor do Direito Penal.
com o ideal de justiça propugnado pela or-
dem constitucional vigente. É oportuna a a) A Constituição como fonte do
lição de Márcia Dometila CARVALHO Direito Penal
(1992, p. 23-24)7, que assim ensina: É cediço que a Constituição desempenha
“(...) a não fundamentação de uma relevante papel na construção das normas
norma penal em qualquer interesse penais, uma vez que atua como centro (fon-
constitucional, implícito ou explícito, te) de autorização e legitimação do jus puni-
ou o choque mesmo dela com o espíri- endi, sendo que, em matéria penal, a lei como
to que perambula pela Lei Maior, de- fonte de Direito possui um significado mui-
veria implicar, necessariamente, na to mais intenso que em outros ramos jurídi-
descriminação ou não aplicação da cos, haja vista ser mister atender-se à exi-
norma penal. gência do Princípio da Legalidade8.
(...) Lícito, pois, concluir que a dis- No que tange aos princípios penais, Ri-
funcionalidade, antinomia, enfim, fal- beiro LOPES (2000a, p. 23; 2000b, p. 196)
ta de harmonia entre a norma penal assim observa: “Flora aponta o tema da
concretizada e a justiça positivada ou Constituição no papel de fonte do Direito
almejada pela Constituição, deve ser Penal como o primeiro e privilegiado terre-
traduzida como inconstitucionalida- no de nascimento e de desenvolvimento da
de. Ao contrário, a sanção penal será atenção aos princípios constitucionais in-
precedente e legítima, quando abso- formadores do Direito Penal.” Nesse senti-
lutamente necessária para a salvação do é lapidar a lição do mestre citado: “A
das bases fundamentais em que se principal fonte normativa, enquanto tradu-
assenta a sociedade justa e livre que a ção dos princípios políticos penais, é o esta-
Constituição visa construir.” tuto jurídico do Estado, ou seja, a própria
Nessa mesma linha de raciocínio, Ribei- Constituição” (2000b, p. 237).
ro LOPES (2000, p. 175) preleciona: “(...) Assim, as normas penais – tanto os prin-
Constituição e Direito Penal existem, ambos, cípios como as regras jurídicas – têm sua
como reservatório das liberdades humanas, fonte primeira na Constituição, a qual for-
de modo que apenas um afinado concerto nece os parâmetros para a fundamentação
entre eles torna possível a legitimação de e legitimação do jus puniendi.
uma incriminação”. O Direito Penal, portanto, encontra sua
base fundamental no texto constitucional,
2. Das relações entre Direito Penal e que lhe determina o alcance e limites. É a
Constituição Constituição, pois, a fonte da legitimidade
e da coercitividade da Lei Penal. Esse tam-
O íntimo relacionamento entre Direito bém é o entendimento de Beneti: “(...) O Di-
Penal e Constituição se traduz em inúme- reito Penal jamais sobreviveria se não tives-
ras relações decorrentes desse contato. A se um forte substrato constitucional, porque
característica preponderante dessas rela- é na Constituição que o Direito Penal vem
ções consiste na superioridade hierárquica auferir a legitimidade – para interferir em

Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 45


direitos fundamentais dos cidadãos, visto pios e garantias constitucionais que decor-
que, se não houvesse a previsão do sancio- rem do rol de direitos e garantias individu-
namento penal na Constituição, todo cida- ais consagrados na Constituição. Por exem-
dão estaria previamente isento da sanção plo: é vedada a criação de pena de morte,
penal” (BENETI, 1992, p. 155). uma vez que tal norma seria contrária ao
Nesse sentido é a lição de NUVOLONE direito à vida propugnado pela Lei Magna
(1981, p. 40), para quem as normas e princí- (LOPES, 1999, p. 167).
pios constitucionais são o parâmetro da le- As limitações formais, por sua vez, im-
gitimidade das leis penais ordinárias e de- pedem a edição de normas em desconformi-
limitam o âmbito de sua aplicação. Nessa dade com os princípios constitucionais que
linha de raciocínio, René DOTTI prelecio- regulam a elaboração da lei penal. Por exem-
na: “conforme Souza Brito, o Direito Penal plo: a vedação às leis penais retroativas (LO-
‘funda-se na Constituição, no sentido de que PES, 1999, p. 167).
as normas que o constituem, ou são elas pró- Assim, a Constituição reduz o alcance
prias normas formalmente constitucionais, do Direito Penal ao informar material e for-
ou são autorizadas ou delegadas por ou- malmente a construção e aplicação das nor-
tras normas constitucionais. A Constituição mas penais. Nessa linha de raciocínio, Már-
não contém normas penais completas, isto cia Dometila CARVALHO (1992, p. 37) pon-
é, normas que para ações ou omissões nelas tifica: “A nova Constituição traz um caráter
previstas estatuem penas, medidas de se- limitador das leis penais, no momento em
gurança ou outras entidades jurídico-penais. que regula os direitos e liberdades funda-
Mas contém disposições de direito penal, mentais, contemplando, implicitamente, ou
que determinam em parte o conteúdo das mesmo de forma explícita, os limites do po-
normas penais” (1985, p. 25). der punitivo e os princípios informadores
A ilação dessa argumentação é que o do direito repressivo: as proibições penais
Direito Penal nasce e recebe sua legitimida- não se podem estabelecer para fora dos li-
de da Carta Excelsa, sem a qual não conse- mites que permite a Constituição, isto signi-
guiria cumprir sua função garantidora dos ficando, também, que não podem ser afron-
bens jurídicos penalmente tutelados. Vale tra- tados os princípios éticos, norteadores da
zer a lume a lição de BENETI nesse tocante: Lei Maior, mesmo que instituídos em dispo-
“de uma certa maneira, podemos ver, no di- sitivos programáticos, sem regulamentações
reito Constitucional, o verso e reverso do Di- que lhes garantam uma existência real”.
reito Penal. Vemos o Direito Penal encaixan-
do-se na Constituição naquilo que a Consti- 3. Das normas penais constitucionais
tuição o apóia, libera-o; e vemos o Direito Pe-
nal limitado pela Constituição naquilo em que O Direito Penal marca presença nas
a Constituição lhe veda a invasão à esfera de Constituições por meio de postulados que
liberdade dos cidadãos” (1992, p. 156). resguardam as garantias individuais à me-
dida que restringem a intervenção punitiva
b) A Constituição como redutor do do Estado; por outro lado, ampliam o cam-
Direito Penal po de atuação da Lei Penal com vistas a pro-
A Constituição, ainda, influencia as nor- teger um maior número de bens jurídicos.
mas penais ao atuar como redutor do Direi- As normas constitucionais em matéria
to Penal, sendo as limitações constitucio- penal podem ser classificadas de várias
nais de duas espécies: de natureza material formas; contudo, para fins deste estudo,
e de natureza formal. três classificações merecem destaque, a
As limitações materiais impedem a cria- saber: a) a classificação de Pietro Nuvo-
ção de normas penais contrárias aos princí- lone, b) a classificação de Francesco Pa-

46 Revista de Informação Legislativa


lazzo, e c) a classificação de Maurício An- 3.2. Da classificação quanto à matéria
tônio Ribeiro Lopes. proposta por Palazzo
3.1. Da classificação quanto às conseqüências Para PALAZZO (1989, p. 22-23), as nor-
proposta por Nuvolone mas constitucionais em matéria penal po-
Apresenta Pietro NUVOLONE (1981, dem ser classificadas em duas espécies:
p. 39-40) uma classificação das normas princípios de Direito Penal constitucional e
constitucionais quanto às suas conseqüên- princípios constitucionais pertinentes à
cias em relação à lei ordinária. matéria penal.
Assim, há as normas constitucionais Os princípios constitucionais especifica-
postas no mesmo plano de abstração das mente penais referem-se exclusivamente às
normas penais: sempre que houver incom- normas que formam a base constitucio-
patibilidade com uma lei penal, esta deve nal de elaboração do Direito Penal. No que
ser considerada tacitamente revogada. tange a esses princípios, PALAZZO (1989,
Por exemplo: o art. 5 º, XLVII, da Consti- p. 23) preleciona que “(...) apresentam um
tuição vigente, veda a criação de pena de conteúdo típico e propriamente penalístico
morte (salvo em caso de guerra declara- (legalidade do crime e da pena, individuali-
da); portanto, qualquer lei penal que co- zação da responsabilidade etc.) e, sem dú-
minar essa modalidade de pena será ab- vida, delineiam a ‘feição constitucional’ de
rogada em razão do texto constitucional um determinado sistema penal, a prescin-
(NUVOLONE, 1981, p. 39; LOPES, 1999, dir, eventualmente, do reconhecimento for-
p. 174). mal num texto constitucional. Tais princí-
Existem, também, as normas constitu- pios, que fazem parte, diretamente, do siste-
cionais colocadas num plano de maior ma penal, em razão do próprio conteúdo, têm,
abstração em relação às do Código Penal; ademais, características substancialmente
são, na realidade, os princípios informa- constitucionais, enquanto se circunscrevem
tivos do Direito Penal, que podem entrar dentro dos limites do poder punitivo que si-
em conflito com leis penais que, num pla- tuam a posição da pessoa humana no âmago
no mais sólido, ditam regras para o caso do sistema penal; em seguida, vincam os ter-
concreto. Nesse caso a regra mais densa é mos essenciais da relação entre indivíduo e
inconstitucional (1981, p. 39) 9. Exemplo Estado no setor delicado do direito penal”.
disso seria a criação de norma penal ins- Os princípios penais constitucionais
tituindo penas corporais; que violaria o stricto sensu podem ser divididos em princí-
princípio penal da dignidade humana pios explícitos e implícitos. Os explícitos são
previsto pela Carta Magna. enunciados de forma expressa no texto cons-
Por último, existem normas constitucio- titucional. Os implícitos são deduzidos das
nais que contemplam determinados direi- normas constitucionais, uma vez que se en-
tos de liberdade que, mesmo não sendo ab- contram latentes no interior da ordem jurí-
solutamente contrários à lei penal, entram dica constitucional.
parcialmente em conflito com algumas pos- Os princípios constitucionais penais
síveis aplicações de uma lei penal. Nesse stricto sensu informam a ordem jurídica pe-
caso, a conduta pode ser considerada justi- nal, já que são as normas que compõem a
ficada pelo limite descriminante do exercí- base constitucional do Direito Penal. São
cio do direito (NUVOLONE, 1981, p. 39; exemplos desses: o da legalidade dos deli-
LOPES, 1999, p. 174). Veja-se, verbi gratia, a tos e das penas10.
compatibilização da liberdade de imprensa Os princípios constitucionais pertinen-
com os tipos penais previstos na Lei de Im- tes à matéria penal não são estritamente de
prensa (Lei nº 5250/67). Direito Penal, impondo-se tanto ao legisla-

Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 47


dor penal quanto ao legislador civil, tribu- indenizações, de caráter tributário
tário etc. Referem-se, predominantemente, ao prevendo tributos especiais e multas
aspecto de conteúdo das incriminações no etc., e, também, se efetivamente neces-
sentido de fazer com que o Direito Penal se sário, normas incriminadoras penais.
constitua um poderoso instrumento de tu- Os referidos princípios, embora em
tela dos bens de relevância social (LUISI, quase sua totalidade traduzam exi-
1992, p. 10). Assim, condicionam a função gências de criminalização para pro-
garantidora das demais normas jurídicas, teção de bens coletivos, episodicamen-
que é exercida pelo Direito Penal. te podem ser concernentes aos aspec-
PALAZZO (1989, p. 23) assim os define: tos gerais do direito penal. Mas via de
“Os princípios (ou valores) pertinentes à regra se caracterizam por ampliarem
matéria penal, se atêm à específica matéria a área de abrangência da resposta
constitucionalmente relevante (economia, penal, alargando o campo dos bens
administração pública, matrimônio e famí- penalmente tutelados, neles incluin-
lia), da qual traçam, freqüentemente, os gran- do os de natureza transindividual.”
des rumos disciplinadores. Embora sejam Não obstante não sejam princípios exclu-
princípios de condição obviamente consti- sivamente penais, impõem a obrigação de se
tucional, seu conteúdo se revela heterogê- elaborar uma tutela penal para os bens jurí-
neo e, por isso, não exatamente característi- dicos de alta relevância, como o meio ambi-
cos do direito penal; impõe-se tanto ao le- ente, a atividade econômica etc. Contudo, essa
gislador civil, ou administrativo, como ao tutela penal deve estar em consonância com
penal que intervier – não raro de forma ne- os princípios constitucionais especificamen-
cessária – na respectiva matéria. O fenô- te penais, sob pena de haver a eiva da incons-
meno de sua influência no direito penal titucionalidade da norma penal elaborada.
moderno pressupõe o caráter ‘sanciona-
tório’, em certo sentido, do direito penal 3.3. Da classificação quanto ao conteúdo
em si, enquanto – diferentemente dos prin- e destinatário proposta por Mauricio
cípios de direito penal constitucional – Ribeiro Lopes
condicionam, com prevalência, o conteú- Ao tratar das normas penais inseridas
do, a matéria penalmente disciplinada, e na Constituição, Mauricio Ribeiro LOPES
não a forma penal de tutela, o modo de (1999, p. 178-180) apresentou uma classifi-
disciplina penalística”. cação baseada em critérios de conteúdo da
Ainda sobre esses princípios, Luiz LUI- norma e segundo o destinatário.
SI (1992, p. 11) ensina que: No que tange à classificação segundo o
“Os princípios ditos apenas perti- conteúdo, os princípios penais dividem-se
nentes ao direito penal traduzem, em em princípios constitucionais, que se refe-
geral, orientação ao legislador penal rem ao crime, e aqueles outros que dirigem a
no sentido de determinar ao mesmo a pena. Os primeiros são aqueles que disci-
elaboração de normas incriminadoras plinam e organizam o preceito primário da
destinadas à proteção de valores tran- lei penal (descrição do fato típico), não obs-
sindividuais. Constituem exemplos tante possam interferir sobre a elaboração
destes postulados as determinações da sanção penal, como sói fazer o Princípio
contidas nas Constituições contempo- da Legalidade, da Irretroatividade da lei
râneas no sentido de proteção ao meio penal etc. Os segundos referem-se exclusi-
ambiente, ao trabalho etc. Para a con- vamente à elaboração da regras referentes à
creção dessas indicações constitucio- sanção penal, como são os princípios que
nais o legislador ordinário deverá edi- dizem respeito à limitação, aplicação e exe-
tar normas de caráter civil prevendo cução das penas (p. 179).

48 Revista de Informação Legislativa


A segunda classificação dos princípios propondo, ainda, a adoção de um Direito
penais proposta por Ribeiro Lopes diz res- Penal mínimo, ou seja, dirigido exclusiva-
peito ao destinatário do comando normati- mente para aqueles fatos sociais que de-
vo. Assim, em razão da tríplice separação monstram materialmente a necessidade de
dos poderes do Estado, tríplice também é o uma repressão penal12.
exercício do jus puniendi (p. 180). No que tange à identificação dos
Há, portanto, princípios penais que são princípios fundamentais do Direito Penal,
dirigidos diretamente para cada um dos cumpre inicialmente trazermos a lume a li-
poderes do Estado. Nessa linha de raciocí- ção de Nilo BATISTA (1996, p. 61): “A pro-
nio, Ribeiro LOPES (p. 180) pontifica: “As- cura de princípios básicos do Direito Penal
sim, há normas constitucionais em matéria exprime o esforço para, a um só tempo, ca-
penal que são dirigidas ao legislador do racterizá-lo e delimitá-lo. Existem, efetiva-
Estado, como por exemplo a que exige a exis- mente, alguns princípios básicos que, por
tência de lei anterior ao fato para que o mes- sua ampla recepção na maioria dos ordena-
mo possa ser tido como delituoso. Há nor- mentos jurídico-penais positivos da família
mas dirigidas aos membros do Poder Judi- romano-germânica, pela significação polí-
ciário, estas principalmente as de cunho tica de seu aparecimento histórico ou de sua
adjetivo, embora já nos tenhamos manifes- função social, e pela reconhecida importân-
tado sobre o tema, mas também há normas cia de sua situação jurídica (condicionado-
que decorrem da adoção do princípio da ra de derivações e efeitos relevantes), cons-
estrita legalidade, impedindo assim a cria- tituem um patamar indeclinável, com ilimi-
ção jurisprudencial em prejuízo ao acusa- tada valência na compreensão de todas as
do, através de raciocínio analógico in pejus. normas positivas. Tais princípios básicos,
Há ainda normas dirigidas aos administra- embora reconhecidos ou assimilados pelo
dores representantes do Poder Executivo, ao direito penal, seja através de norma expressa,
exigir destes a verificação de pressupostos seja pelo conteúdo de muitas normas a eles
mínimos para a execução material das pe- adequadas, não deixam de ter um sentido pro-
nas cominadas, principalmente em se tra- gramático, e aspiram ser plataforma mínima
tando de penas privativas de liberdade”. sobre a qual possa elaborar-se o direito penal
de um Estado de direito democrático” 13.
4. Dos princípios penais Assim, os princípios fundamentais do
constitucionais Direito Penal podem ser encontrados, ex-
pressa ou implicitamente, no texto constitu-
A Constituição brasileira possui entre cional, já que a construção e aplicação das
suas normas vários princípios fundamen- normas penais devem, imperiosamente, es-
tais em matéria penal, que são informado- tar em consonância com o sentido de justiça
res do Direito Penal. Podem ser denomina- e liberdade proposto pela Constituição.
dos princípios constitucionais fundamen- Os princípios penais são mandamentos
tais de garantia do cidadão ou, simplesmen- fundamentais que irradiam um comando
te, princípios fundamentais do Direito Pe- superior e vinculante sobre o processo de
nal democrático. São garantias do cidadão construção e aplicação das normas jurídi-
perante o poder punitivo do Estado11. cas do Direito Penal, assumindo, assim, a
Esses princípios constitucionais formam função de alicerce e molde constitucional
o alicerce do ordenamento jurídico-penal, do sistema penal.
configurando-se em base constitucional do Nesse sentido também ensina Ribeiro
Direito Penal moderno, uma vez que visam LOPES (1999, p. 179)14, para quem “os prin-
garantir os direitos fundamentais dos cida- cípios constitucionais do Direito Penal, em
dãos em face do poder punitivo do Estado, sua acepção estrita, compreendem as nor-

Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 49


mas formuladoras de regras a serem obede- ção constitucional do Direito Penal, enten-
cidas originariamente pelo legislador penal de merecer destaque os princípios da legali-
ordinário”. dade e da culpabilidade.
Na doutrina espanhola, é magistral a Cézar BITENCOURT (1999, p. 37-50) re-
conceituação de Juan Antonio MARTOS laciona os seguintes princípios: legalidade,
NÚÑEZ (1991, p. 217), que assim os define: intervenção mínima, fragmentariedade, cul-
“Os princípios informadores do pabilidade, humanidade, irretroatividade,
Direito Penal são aqueles pressupos- adequação social e insignificância.
tos técnico-jurídicos que configuram Luiz Régis PRADO (2000, p. 77-86), por
a natureza, características, fundamen- sua vez, aponta estes princípios: legalida-
tos, aplicação e execução do Direito de, irretroatividade, culpabilidade, exclusi-
Penal. Constituem, portanto, os pila- va proteção dos bens jurídicos, intervenção
res sobre os quais descansam as ins- mínima, fragmentariedade, pessoalidade,
tituições jurídicopenais: os delitos, as individualização da pena, proporcionalida-
faltas, as penas e as medidas de segu- de, humanidade, adequação social e insig-
rança, assim como os critérios que ins- nificância.
piram as exigências político-criminais. Maurício Ribeiro LOPES (1999, p. 64-107)
Os princípios informadores não só relaciona os seguintes princípios penais
respondem a exigências da Ciência constitucionais: legalidade, taxatividade,
penal e do Direito Judicial, senão que, insignificância, proporcionalidade, inter-
ademais, expressam as exigências e venção mínima, fragmentariedade, subsidi-
garantias de um Estado Social e De- ariedade, adequação social, culpabilidade,
mocrático de Direito (...).” humanidade, exclusiva proteção dos bens
Partindo desse contato entre Constituição jurídicos, pessoalidade da pena e individu-
e Direito Penal, vejamos os princípios penais alização da pena.
básicos apresentados pela doutrina pátria. Não obstante a diversidade das relações,
Nilo BATISTA (1996, p. 64-105), apresen- todas têm em comum a circunstância de
ta cinco princípios: legalidade (ou reserva apresentarem um elenco de princípios pe-
legal, ou intervenção legalizada), interven- nais presentes no texto constitucional e em
ção mínima, lesividade, humanidade e cul- consonância com a proteção do princípio
pabilidade. da liberdade que permeia as estruturas de
Para Luiz LUISI (1991, p. 13-40), são: um Estado de Direito Democrático material.
princípio da legalidade, intervenção míni-
ma, da humanidade e os da pessoalidade e
da individualização da pena.
René Ariel DOTTI (1985, p. 27-39), se- Notas
gundo as bases constitucionais do direito 1
Ensina Paulo de Souza QUEIROZ (2001, p.
Penal, apresenta os seguintes: intervenção 121), que “o perfil do Direito Penal – autoritário ou
mínima, intervenção legalizada, legalidade democrático – dependerá da conformação político-
dos ilícitos e das sanções, irretroatividade constitucional que se lhe dá (ao Estado)”. Portan-
to, Os limites do Direito Penal são os limites do
da lei mais severa e retroatividade da lei mais próprio Estado, uma vez que é a Constituição que
benigna, personalidade e individualização estabelece as bases e os limites do jus puniendi.
das sanções, responsabilidade em função da 2
LOPES (1999, p. 181). Em torno dessas rela-
culpa, retribuição proporcionada, reações ções, Francesco PALAZZO (1989, p. 16) assim pon-
penais como processo de diálogo (finalidade tifica: “Relações estreitíssimas, porque o direito
penal é, por natureza, instrumento privilegiado de
da pena) e humanidade das sanções. política e de utilidade social, tornando-se, por isso,
Márcia Dometila CARVALHO (1992, um tema político por excelência, como se dá no
p. 53-74), discorrendo sobre a fundamenta- eterno conflito entre o indivíduo e a autoridade es-

50 Revista de Informação Legislativa


tatal representativa da comunidade. Se de um lado, formal menos cruel do que aquele que predominou
a ação delituosa constitui, de fato, ao menos como durante o Estado Absolutista, impondo limites à
regra, o mais grave ataque que o indivíduo desfere intervenção estatal nas liberdades individuais.
contra os bens sociais máximos tutelados pelo Es- Muitos desses ‘princípios limitadores’ passaram a
tado, por outro lado, a sanção criminal, também, integrar os Códigos Penais dos países democráti-
por natureza, dá corpo à mais aguda e penetrante cos e, afinal, receberam assento constitucional, como
intervenção do Estado na esfera individual”. garantia máxima de respeito aos direitos funda-
3
Essa função é denominada caráter subsidiário mentais do cidadão”.
do Direito Penal, ou seja, atua como o último re- 12
Em torno desse ponto, Ribeiro LOPES (1999,
curso do Direito para impor a ordem pública; é a p. 73) assim argumenta: “Todos esses princípios,
ultima ratio extrema, seu uso só é indicado quando hoje inseridos, explícita ou implicitamente, em nos-
as sanções civis e administrativas falharam. Por sa Constituição (art. 5º), têm a função de orientar ao
outro lado, o uso indiscriminado – hipertrofia – do legislador ordinário para a adoção de um sistema de
Direito Penal pode retirar-lhe a legitimidade social controle penal voltado para os direitos humanos,
penal. Vide: QUEIROZ (1998). embasado em um Direito Penal da culpabilidade,
4
Esse mesmo autor, com apoio em Jakobs, ain- um Direito Penal mínimo e garantista.” Nesse senti-
da observa que o Direito Penal legitima-se formal- do também é o entendimento de Antonio Roberto
mente mediante a aprovação de leis penais confor- SYLLA (2000, p. 103): “ Os princípios constitucio-
me a Constituição. nais de Direito Penal delimitam a relação penal do
5
PALAZZO (1989, p. 18). Vide também LO- Estado, visando a garantir a exigência de segurança
PES (2000a, p. 180). LOPES (2000, p. 20). jurídica formal e material imposta pelo Estado De-
6
Nesse sentido, Luiz LUISI (1991, p. 9) obser- mocrático de Direito. Esses princípios são de orien-
va: “As Constituições promulgadas nos últimos tação básica ao legislador infraconstitucional”.
decênios se caracterizam pela presença no elenco 13
Sobre esse ponto, René Ariel DOTTI (1985,
de suas normas de instâncias de prerrogativas in- p. 26) assim observa: “A dignidade científica das
dividuais, e concomitantemente de instâncias que normas penais e sua harmonia com a Constituição
traduzem imperativos de tutela de bens transindivi- reclamam a adoção de princípios básicos. Alguns
duais ou coletivos. Ou seja: os princípios do Rechtss- deles devem ser claramente enunciados na Lei Fun-
taats e, ao mesmo tempo do Sozialstaats. Os primei- damental visando não somente informar material-
ros configuram-se em preceitos asseguradores dos mente a positivação do Direito Penal como tam-
direitos humanos e da cidadania. Os segundos se bém orientar sua compreensão”.
fazem presentes na tutela dos valores sociais”. 14
Luiz LUISI (1991, p. 12) assim observa sobre
7
Nesse sentido também é o entendimento de o tema: “(...) Em verdade nos princípios constitucio-
Paulo QUEIROZ (1998, p. 24): “As disposições nais se situam de um lado, os fundamentos do
penais, enfim, servem à Constituição Federal; cum- direito de punir do Estado, indicando seu fins e seu
prem funções constitucionais, razão por que so- alcance como também as suas fontes e as exigências
mente valem e obrigam sempre que respondam, de seus enunciados e, principalmente fixando os
funcionalmente, aos mandamentos, princípios e seus infranqueáveis limites, e de outro lado, as exi-
normas constitucionais fundamentais”. gências do Sozialstaats, fazendo do Direito Penal
8
Sobre a lei como fonte do Direito Penal, vide um instrumento na construção de uma sociedade
GOMES (1990, p. 257-268). que, mantendo-se fiel às instâncias inderrogáveis
9
Aqui é mister salientarmos que as normas ju- dos postulados iluministas, almeje, também, ser
rídicas constitucionais são de duas espécies: prin- mais igualitária, isto é, mais justa”.
cípios jurídicos e regras jurídicas; sendo que os prin-
cípios possuem menor densidade que as regras ju-
rídicas, as quais detêm maior densidade para solu-
ção de problemas concretos.
10
Sobre esses princípios, Luiz LUISI (1989, p. 11) Bibliografia
assim ensina: “Tais princípios e outros similares,
como os da intervenção mínima, da individualiza-
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal bra-
ção da sanção penal e da humanidade, originam e
sileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
condicionam o poder punitivo do Estado, e segundo
magistério de F. Palazzo, ‘situam a posição da pes- BENETI, Sidnei Agostinho. A Constituição e o sis-
soa humana no âmago do sistema penal’”. tema penal. Revista Ajuris, Porto Alegre, n. 156, 154/
11
Cezar BITENCOURT e Luiz PRADO (1996, 176, 1992.
p. 81) assim observam em relação a esses princípios:
BITENCOURT, Cezar Roberto; PRADO, Luiz Re-
“As idéias de igualdade e de liberdade, apanágios
gis. Princípios fundamentais do direito penal. Re-
do iluminismo, deram ao Direito Penal um caráter
Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 51
vista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, ______. Teoria constitucional do direito penal. São
p. 80-88, 1996. Paulo: RT, 2000b.
BITENCOURT, Cézer Roberto. Manual de direito LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Por-
penal: parte geral. 5. ed. São Paulo: RT, 1999. to Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito consti- MARTOS NÚÑEZ, Juan Antonio. Principios pena-
tucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. les en el Estado social y democrático de derecho.
Revista de Derecho Penal y Criminologia, Madrid, n. 1,
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Funda-
p. 217-299, 1991.
mentação constitucional do direito penal. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1992. NUVOLONE, Pietro. O sistema do direito penal. São
Paulo: RT, 1981.
DOTTI, René Ariel. As bases constitucionais do di-
reito penal democrático. Revista de Informação Legisla- PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e di-
tiva, Brasília, Senado Federal, v. 22, n. 88, p. 21-44, reito penal . Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
out./dez. 1985. 1989.
GOMES, Luiz Flávio. A lei forma como fonte única PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro.
do direito penal (incriminador). Revista dos Tribu- 2. ed. São Paulo: RT, 2000.
nais, São Paulo, v. 656, p. 257-268, jun. 1990.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional direito penal: lineamentos para um direito penal
da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Ser- mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
gio Antonio Fabris, 1998.
_______. Funções do direito penal: legitimação ver-
LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. O papel da cons- sus deslegitimação do sistema penal. Belo Hori-
tituição, seus valores e princípios na formação do zonte: Del Rey, 2001.
direito penal. In: LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro;
SYLLA, Antonio Roberto. O “preâmbulo” da Cons-
LIBERATI, Wilson Donizeti (Orgs.). Direito penal e
tituição brasileira e sua relevância para o direito
Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000a.
penal. In: LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro; LIBE-
______. Princípios políticos do direito penal. São Pau- RATI, Wilson Donizeti (Orgs.). Direito penal e Cons-
lo: RT, 1999. tituição. São Paulo: Malheiros, 2000.

52 Revista de Informação Legislativa

Você também pode gostar