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“Os homens, não o homem habitam a face da Terra” (ref). Tal divisa se encontra presente
em toda a obra de Hannah Arendt e seu significado reside na afirmação categórica da
pluralidade humana. Arendt se refere ao fato de que cada pessoa é única, e a manifestação
de indivíduos únicos expressa a pluralidade de que somente os homens são capazes. A
pluralidade só se torna efetiva na medida que a singularidade de cada indivíduo se
manifesta em público e materializa no conjunto de indivíduos únicos a noção da diferença.
Compreender a pluralidade humana é compreender a dicotomia estabelecida ainda na
antiguidade clássica entre a vida natural e a vida artificial, entre zoé e bíos: a vida enquanto
zoé, que é a vida que se define pelo entrelaçamento com a natureza, e a vida enquanto bíos,
a vida artificial que é vivida entre instituições e cultura criadas pelos homens. A distinção
entre bíos e zoé encontra eco em toda a obra de Arendt, especialmente na distinção entre
trabalho e ação. A atividade do trabalho, tal como descrita por Arendt, é definida como
‘metabolismo do homem com a natureza 1’, ou seja, o trabalho compreende o homem como
um habitante do âmbito natural e visa satisfazer as necessidades naturais, isto é, as
necessidades corpóreas dos homens. Em contraste, a ação tem seu lugar no âmbito da
existência criado pelos homens e, se não apresenta um objetivo imediatamente disposto, a
ação se caracteriza, principalmente, pelo acontecimento disruptivo que interrompe o
movimento cíclico do natural.
O movimento cíclico é que caracteriza a natureza, e, portanto, é possível inferir que na
natureza por ocorre sempre os mesmos eventos e os movimentos naturais são facilmente
previsíveis. Nos organismos vivos, incluindo os homens, a característica cíclica da
natureza se manifesta na configuração das necessidades corpóreas em que assim que o
corpo é satisfeito, após um breve período de tempo a necessidade se mostra novamente.
Consequentemente o contraste entre trabalho e ação se mostra ainda mais acentuado na
expressão da pluralidade humana: a ação mostra o imprevisível que cada indivíduo é
capaz, imprevisível este conectado à singularidade individual, enquanto o âmbito natural é
habitado por corpos que funcionam de maneira igual pois pertencem a mesma espécie.
Cabe enfatizar, porém, que a pluralidade só pode ser expressa na ação e no discurso se
estas se estas atividades forem performadas em público, na presença de semelhantes. Se
cada indivíduo nasce com a diferença potencial consigo, é na ação e no discurso que essa
diferença se torna visível e manifesta. Arendt define como um “segundo nascimento” a
entrada do indivíduo no espaço público onde tem lugar a ação e o discurso (ref).
Como atividades pelas quais a pluralidade se torna manifesta, a ação e o discurso são
diametralmente opostos á atividade do trabalho. Se o trabalho é cíclico, seguindo os
ditames da natureza, Arendt, em contraste, enfatiza o carácter imprevisível e disruptivo da
ação, isto é, a ação é capaz de romper com a ordem estabelecida. Por esse ato ao mesmo
tempo inédito e imprevisível é o que torna visível e efetiva. A visibilidade da ação e do
discurso reside no que Arendt denomina “teia de relações humanas”. A imagem da teia
conjura a noção de ligação entre agentes e, como Arendt descreve, essa ligação decorre do
fato de cada agente se tornar paciente simultaneamente (ref). Ou, em outras palavras, cada
ação é capaz de influenciar outro indivíduo capaz de iniciar uma nova ação e assim
1
marx
sucessivamente, em uma reação em cadeia que atinge a todos que dividem o mesmo
espaço público.