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Artigos clássicos

O mundo do adolescente*
Arminda Aberastury

Se pensarmos no que há de essencial na adolescência, no que a define, diríamos que é


a necessidade de entrar no mundo do adulto. A modificação corporal, essência da puberdade,
o desenvolvimento dos órgãos sexuais e da capacidade de reprodução, são vividos pelo
adolescente como o eclodir de um novo papel que modifica sua posição frente ao mundo e
que ademais o compromete também em todos os níveis da convivência.
Creio que frente à iminência das primeiras mudanças corporais e à ansiedade que estas
provocam, o adolescente realiza uma fuga progressiva do mundo exterior e busca um refúgio
temporário em seu mundo interno.
As características deste mundo interno determinarão em sua maior parte a qualidade de
suas crises. O mundo exterior aceitando ou rejeitando sua riqueza crescente, permitirá ou
impedirá o desenvolvimento do que considero típico do pensamento e da ação do adolescente.
No temor ao crescimento e na angústia de entrar no mundo do adulto os sentimentos
de rivalidade e insuficiência que mostrarei mais adiante, desempenham um importante papel e
devo também assinalar que a criança nesse momento já sabe como e em quê não quer ser
como um adulto, mesmo que grande parte de si mesmo aspire a ser-lo de um modo geral.
É como se um pouco aterrorizado ante uma metamorfose com a qual não está muito de
acordo e à qual se sente impulsionado por forças desconhecidas atuantes dentro dele,
procurasse desesperadamente mediante uma série de planos e reformas do mundo exterior
assegurar-se de que poderia colocar limites à ação do adulto caso necessário.
O interjogo e distância entre mundo interno e realidade exterior determinará a duração
e qualidade de sua crise emocional.
Durante este período, no qual se prepara para entrar no mundo do adulto, produzem-se
algumas mudanças fundamentais no pensamento dos adolescentes de ambos sexos. Antes de
enfrentar-se com a mudança total e enquanto esta se vai produzindo são evidentes uma série
de modificações internas que se traduzem na construção do que Piaget chama estruturas
formais do pensamento. Estas estruturas lhes permitirão o acesso ao mundo do adulto.
Quando a criança sente a iminência dessas mudanças, começa a julgar com severidade
crítica aos adultos, pais, professores, etc, e expressa assim sua angústia por ter que entrar num
plano de igualdade e reciprocidade com eles.
Por exemplo, a menina, em competição com a mãe, desvaloriza sua imagem e

* Aberastury, Arminda. El mundo dei adolescente. In: Aberastury, Arminda, et ai. Adolescência. 3. ed.Buenos Aires: Ed.
Kargieman, 1976. p.337-66.Lo: Ab37ad, 1976
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sua conduta, para diminuir assim a noção de distância. Com o menino a luta é com o pai e se
expressará de múltiplas maneiras mas o significado é o mesmo.
Seus próprios valores sobressaem à medida que desvaloriza as capacidades e os
valores dos pais sem necessidade de fazer o esforço para que sobressaiam por si mesmos.
Este é o primeiro passo de uma competição na qual a conquista da vitória implica na
aniquilação da vítima, aniquilação essa que deve ser absoluta para que não seja possível a
vingança.
Mas quando realizou uma certa quantidade de conquistas adultas que lhe permitem
competir sem necessidade de aniquilar o adversário, já se sente mais poderoso, os sentimentos
de amor e gratidão podem aflorar junto com os de competição e ódio.
O adolescente sente que deve planejar sua vida (controlar as mudanças) surgindo nele
paralelamente a necessidade de adaptar o mundo exterior às suas necessidades imperativas.
Daí sua ânsia de reforma social.
A dor que lhe produz abandonar seu mundo e a noção de que existem mais
modificações incontroláveis dentro de si, leva-o a empreender reformas exteriores que lhe
assegurem a satisfação de suas necessidades na nova situação em que se encontra agora frente
ao mundo, e que ao mesmo tempo lhe servem de defesa contra as mudanças incontroláveis
internas e de seu corpo. Acontece neste momento um incremento da intelectualização para
superar a incapacidade de ação (que é a correspondente ao período de onipotência do
pensamento na criança pequena). O adolescente busca teoricamente a solução de todos os
problemas transcendentes, o amor, a liberade, o casamento, a paternidade, a educação, a
filosofia, a religião.
A inserção no mundo social do adulto com suas modificações internas e seu plano de
reformas é o que vai formando sua personalidade.
Porém nos perguntamos: o que define a qualidade desse plano de vida e de reformas?
Podemos ver que consiste na transposição ao mundo exterior das primeiras relações
com seus pais. Quanto mais harmônica e feliz é a vida de uma criança, quanto mais estável e
em paz seu mundo interno, menor será seu ressentimento familiar e social.
Seu novo plano de vida lhe exige abordar o problema dos valores éticos, intelectuais,
afetivos; implica o nascimento de novos ideais e a aquisição da capacidade de lutar para
consegui-los.
Mas ao mesmo tempo implica em um desprendimento: abandonar a solução do "como
se" da brincadeira e do aprendizado, para enfrentar o "sim" e o "não" da realidade ativa que
tem em suas mãos.
Quer dizer, implica num distanciamento do presente, e com isto a fantasia de projetar-
se no futuro e ser, tornando-se independente, e de não ser como os pais.
Tudo isto exige formar uma série de teorias, um sistema de idéias, um programa ao
qual agarrar-se e também a necessidade de algo em que possa descarregar o montante de
ansiedade e os conflitos que surgem de sua ambivalência: o impulso ao desprendimento e a
tendência a permanecer ligado.
Esta crise intensa se soluciona transitoriamente com uma fuga do mundo exterior, um
refúgio na vida de fantasia, no mundo interno, com o incremento da onipotência narcisista e a
sensação de prescindir do exterior para poder iniciar a partir daqui conexões com novos
objetos do mundo exterior.
O mundo do adolescente ,4rmínda 151
Aberastury

Em nossa fantasia inconsciente levamos dentro de nós um mundo formado a partir do


modelo das pessoas que primeiro amamos e odiamos e que representam também aspectos de
nós mesmos. Sua existência dentro de nós pode ser tanto ou mais real em nossos sentimentos
inconscientes que os acontecimentos exteriores.
Freud foi o primeiro a descobrir a existência do objeto introjetivo, como fenômeno de
nosso desenvolvimento normal dando-lhe a categoria de realidade psíquica. Em seguida
Melanie Klein, ao estudar as fantasias inconscientes em crianças pequenas ampliou o conceito
de Freud. Estas figuras de nosso mundo interno, foram e são sentidas por nós, como fazendo
parte de nós mesmos e representam o que amamos, admiramos e ambicionamos possuir;
constituem os bons e maus aspectos de nossa vida e de nossa personalidade.
O aspecto positivo destas figuras é menos consciente que seus maus aspectos, já que
são estes os que nos produzem reações de temor e ansiedade. A vida das emoções, ativa em
nós desde o nascimento até a morte, está baseada num simples modelo: tudo é mau ou bom;
nada é neutro. Os acontecimentos, as circunstâncias, os objetos e as pessoas e sobretudo
nossos próprios sentimentos e experiências são vividos em nosso íntimo como essencialmente
maus ou bons.
As palavras mau e bom estão aqui empregadas em seu sentido mais simples, como as
usaria uma criança pequena, pois conservam seu sentido original ainda que nossas
experiências sucessivas as mudem mil vezes de nome e as multipliquem até o infinito.
O adolescente em sua fuga defensiva mantém e reforça sua relação com os objetos
internos e evita os externos. Nesse momento salva-o do autismo, por exemplo, escrever seu
diário íntimo, a conexão com o amigo feito à sua imagem e semelhança.
Sua hostilidade frente aos pais e ao mundo em geral expressa-se em sua desconfiança,
na idéia de não ser compreendido, em sua recusa da realidade.
Vejamos como sai desta submersão no mundo interno e como um adolescente se torna
adulto.
Só quando sua maturidade biológica estiver acompanhada de uma maturidade afetiva e
intelectual que lhe permita sua entrada no mundo do adulto, reconciliando-se com os pais e
substitutos nos quais reconhece e aceita tanto o bom como o mau, poderá sentir gratidão e
fazer críticas tomando distância deles. Entra, então, equipado de um sistema de valores, com
uma ideologia que confronta com a de seu meio e onde a recusa a determinadas situações se
cumpre numa crítica construtiva. Confronta suas teorias políticas e sociais e se embandeira,
defendendo uma idéia. Sua idéia de reforma do mundo se traduz em ação. Tem uma resposta
às dificuldades e desordens da vida. Adquire teorias estéticas e éticas. Confronta e soluciona
suas idéias sobre a existência de Deus e sua posição não se acompanha de exigência de
submissão.
Todo este processo exige um lento desenvolvimento onde são negados e afirmados
seus princípios, onde luta entre sua necessidade de independência e sua nostalgia e
necessidade de reasseguração e dependência.
Sofre crises de susceptibilidade e de ciúmes, exige e necessita vigilância e depen-
dência, mas sem transição surgem nele a recusa ao contato com os objetos originários e a
necessidade de tornar-se independente e de fugir deles.
A qualidade do processo de amadurecimento e crescimento dos primeiros anos, a
estabilidade nos afetos, a quantidade de gratificação e frustração e a gradual adapta-
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ção às exigências ambientais, irão marcar a intensidade e gravidade destes conflitos. Por
exemplo, obter uma satisfação suficiente (adequada no tempo) às necessidades fundamentais
da sexualidade infantil, incluindo nesta satisfação tanto a ação como o esclarecimento
oportuno dos problemas, determinará no adolescente uma atitude mais livre frente ao sexo, do
mesmo modo que relações cordiais mantidas com a mãe determinarão no menino uma maior
facilidade em sua relação com a mulher o mesmo se referindo à menina com o pai.
Neste período de transição o adolescente flutua entre sua necessidade de solidão e de
comunicação, entre sua idéia de bondade e de maldade, de egoísmo e de altruísmo, de
ascetismo e de sexualidade, de tendência à sujeira e prurido, de limpeza e elegância. Na
realidade os opostos convivem nele.
Em todo este conflito interno, enfrenta-se na realidade com o mundo do adulto, que ao
sentir-se atacado, julgado, molestado e ameaçado por esta onda de crescimento tende a reagir
com uma total incompreensão, com recusa e com um reforço de sua autoridade.
Nesta circunstância a atitude do mundo exterior será decisiva outra vez para facilitar
ou entorpecer o crescimento.
Todo este processo da adolescência que assinalei em linhas gerais, quero lhes mostrar
através do diário de uma adolescente: "O Diário de Anne Frank".
A adolescência de Anne Frank sofreu a sina da perseguição nazista. Aos quinze anos
morreu num campo de concentração alemão.
Através das páginas de seu diário nos é revelada a modificação paulatina da relação
interior e exterior com seus pais, o incremento de seu amor ao pai e os ciúmes e a crítica
frente à mãe. O diário é para Anne seu refúgio. Num dado momento seus afetos se põem em
Peter, um companheiro do Refúgio, filho do casal Van Dan. Começa então a desprender-se de
seu pai, a ocupar-se de suas sensações corporais, descobre o amor e o sonho ao mesmo tempo
com suas antigas companheiras. Mas a vida de Anne se centra desde esse momento em sua
relação com Peter, desligando-se do pai.
Paralelamente à elaboração da situação edípica e à descoberta do amor por Peter, vão
surgindo ânsias de valores, de ideologias, entusiasmos estéticos, ânsia de saber e o interesse
cada vez maior pelos acontecimentos do mundo exterior, que no começo do diário aparecem
somente em relação ao seu bem-estar pessoal e imediato.

Anne era filha de comerciantes alemães estabelecidos em Frankfurt. Quando começam


as primeiras perseguições nazistas mudam-se para Amsterdã (1933), onde o pai crê encontrar
um lugar seguro para ele e os seus. Depois de 1940, quando tem 11 anos, começam para Anne
as situações mais difíceis. A guerra, a capitulação e a invasão dos alemães os levaram à
miséria.
Começam as disposições contra os judeus: devem usar a estrela, ceder suas bicicletas,
estão proibidos de subir num bonde, de dirigir um carro; devem fazer as compras em lugares
marcados como "negócio judeu" e somente das 13 às 16 horas. É-lhes proibido sair depois das
oito da noite. Nem sequer podem permanecer em seus jardins ou em casa de amigos depois
dessa hora. É-lhes proibido exercitar-se em qualquer esporte, não podem freqüentar os
cristãos e são obrigados a freqüentar escolas judaicas. Anne Frank, que estava na escola
Montessori desde o jardim de infância, teve que
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abandonar com toda a dor seus professores e companheiros e entrar no Liceu judaico, em
1940. Em 1 2 de junho de 1942 Anne inicia seu diário. Acaba de cumprir 13 anos.
A poucos dias deste grande acontecimento chegou uma citação da S.S. para seu pai.
Todos sabiam o que isso significava.
Em 9 de julho de 1942 põem-se a caminho do Refúgio que o pai de Anne vinha
preparando há mais de um ano. No diário, iniciado há um mês, Anne descreve assim a
dolorosa partida: "Os operários matinais nos olhavam com compaixão, suas caras
expressavam o pesar de não poder oferecer-nos um meio de transporte qualquer; nossa estrela
amarela era suficientemente eloqüente".
"Durante o trajeto, papai e mamãe me revelavam em migalhas e pedaços toda a
história de nosso esconderijo. Há vários meses, haviam transportado, peça por peça, uma
parte de nossos móveis, o mesmo com a roupa de cama e parte de nossa indumentária; a data
prevista de nossa desaparição voluntária havia sido fixada para 16 de julho. Por causa da
citação, houve a necessidade de adiantar em dez dias nossa partida, de maneira que íamos nos
contentar com uma instalação mais rudimentar. O esconderijo estava no edifício do escritório
de papai"
A parte da casa que serviu de esconderijo às duas famílias que ali se refugiaram de
1942 a 1944 foi chamada de "o anexo". Era uma construção freqüente nas velhas casas de
Amsterdã e consistia num pequeno apartamento que dava ao jardim ou ao pátio, separado dos
apartamentos que dão à rua.
Ali começa a prisão de Anne, da qual tenta libertar-se através de seu diário e da qual
sairá a caminho da morte.
As circunstâncias exteriores limitaram suas possibilidades de contato com o mundo
exterior justo no início de sua adolescência. A necessidade de isolar-se temporariamente do
mundo para logo se adaptar, foi-lhe então imposta de fora junto com uma brusca limitação
das satisfações normais a sua idade.
Nesta situação, o que salvou Anne Frank de uma crise de adaptação, de uma ado-
lescência transtornada?
Foi, sem dúvida a segurança e a beleza de seu mundo interior, surgido da boa relação
interiorizada com seus pais, assim como de sua capacidade de criar.
O dom extraordinário de seu pai tornou-lhe possível recriar nesse mundo limitado de
oito judeus trancados, fugindo da Gestapo, a maioria dos interesses que o mundo exterior lhe
teria proporcionado, tornou possível seu desenvolvimento de interesses e estímulos quase
normal.
Os contatos de Anne com o exterior eram unicamente um rádio, através do qual
captavam as emissões clandestinas. Alguns amigos e fornecedores que, à noite e às
escondidas, chegavam até eles quando as circunstâncias não eram demasiado perigosas.
Em 12 de junho de 1942 começou Anne Frank seu diário íntimo: "Espero te confiar
tudo como até agora não pude fazê-lo com ninguém, confio também que serás para mim um
grande apoio". Em 20 de junho —ainda no mundo exterior—, diz: "Precisava refletir sobre o
que era um diário. É uma sensação singular a de expressar meus pensamentos". E, "o papel é
mais paciente que os homens", e na continuação, diz: "Pensei nesta frase num dia de ligeira
melancolia, muito aborrecida para sair ou para ficar em casa", e também; "Estou em meu
ponto de partida. A idéia de começar um diário, não tenho nenhuma amiga". Inicia-se assim
—em Anne— a retirada do mundo exterior.
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Diz: "Ninguém pode acreditar que uma menina de treze anos se encontre sozinha no mundo.
Porém, não é totalmente exato, tenho pais a quem amo, uma irmã de 16 anos, umas 30
companheiras e, entre elas, as chamadas amigas; tenho admiradores em abundância que me
seguem com o olhar, enquanto os que, em classe, estão mal situados para ver-me, tratam de
pegar minha imagem com a ajuda de um espelhinho de bolso. Tenho família e um lar
agradável. Aparentemente não me faz falta nada, salvo a Amiga, está aqui a razão de meu
diário, evocar melhor a imagem que me forjo de uma amiga longamente esperada. Quero que
este diário a personifique. Se chamará Kitty".
Anne expressa assim a necessidade de voltar-se a seu mundo interior, de conhecer-se,
antes de enfrentar o encontro do exterior desconhecido. Expressa seu desconhecimento do
mundo interior, ao que se encaminha quando diz: "Kitty ainda ignora tudo sobre mim".
Anne pressente ali o ponto de partida de uma nova Anne, desconhecida ainda, e que há
de construir-se sobre a imagem de seus objetos internos, que confrontará logo com os do
mundo exterior novo.
Mas no primeiro momento de enfrentamento com o desconhecido, recorre ao
mecanismo de divisão de si mesma e do mundo, até chegar ao momento em que possa juntar
suas duas imagens, confrontá-las com os objetos do mundo exterior e começar a ação. Em
Anne o processo se detém com a morte.
Assistimos à perda de suas conexões com o mundo, a seu afastamento, a suas
ansiedades, a sua rebeldia. Sua reconstrução começa com o encontro de Peter e com a
descoberta do amor. Através dele surgem suas conexões com o mundo exterior, seus ideais,
suas crenças, o nascimento de ideologias.
Mas aí se detém seu diário e ela mesma. Transcreverei fragmentos desse diário
assinalando os conteúdos que me interessam para estudar sua crise de adolescência.

As primeiras mudanças corporais e o refúgio no mundo interno

"No que me diz respeito, como me encontro aqui desde ao redor de meu décimo
terceiro ano, comecei a refletir sobre mim mesma muito antes que as outras moças e me
preveni antes que elas da "independência" individual. A noite, na cama, sinto às vezes uma
necessidade inexplicável de tocar-me os seios, sentindo então a calma das batidas regulares e
seguras de meu coração".
"Inconscientemente, tive sensações semelhantes muito antes de vir para cá, porque
recordo que, ao passar a noite em casa de uma amiga, tive então a irresistível necessidade de
beijá-la, e certamente o fiz. Cada vez que vejo a imagem de uma mulher nua, como, por
exemplo, Venus, fico extasiada. Me aconteceu achar isso tão maravilhosamente belo, que me
custava reter as lágrimas".
"Se ao menos tivesse uma amiga!"

Sensações corporais e descoberta do amor

"Uma moça, durante os anos de puberdade, se recolhe em si mesma e começa a refletir


sobre os milagres que se produzem em seu corpo".
"O que me sucede me parece maravilhoso; não só as transformações visíveis de
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meu corpo, mas as que se verificam em meu interior. Mesmo que eu nunca fale a ninguém de
mim mesma, nem de todas estas coisas, penso nelas e as refiro aqui".
"Cada vez que estou indisposta —só me sucedeu três vezes— tenho a sensação de
levar comigo um segredo muito terno, a despeito da dor, da moleza e da sujeira; é porque,
apesar dos pequenos fastídios destes poucos dias, me regozijo de certo modo desde o
momento em que vou sentir esse segrego uma vez mais".
Inquietações, ambivalências, dúvidas. Divisão da personalidade

"O sol brilha, o céu é de um azul intenso, o vento é agradável e eu tenho umas
vontades loucas —umas vontades loucas— de tudo... de conversas, de liberdade, de amigos,
de solidão. Tenho umas vontades loucas... de chorar. Noto que gostaria de explodir. As
lágrimas me apaziguariam, eu sei, mas sou incapaz de chorar. Não fico quieta, vou de um
quarto a outro, me detenho para respirar através da fresta de uma janela fechada e meu
coração bate como se dissesse: • "Mas, vamos, satisfaça de uma boa vez meu desejo..."
"Creio sentir em mim a primavera, o despertar da primavera; sinto-a em meu corpo e
em minha alma. Me custa o indizível comportar-me como de costume, tenho a cabeça
emaranhada, não sei o que ler, que escrever, que fazer. Languidez... Languidez... Como te
fazer calar?...".
"Adormeço com essa sensação estranha de não ser como eu quero, ou de proceder de
maneira distinta da que eu queria ou de como sou".
Quando desabrocham os primeiros indícios de seu amor por Peter, companheiro de
refúgio, filho do casal Van Dan, diz:
"Queria estar sozinha, estritamente sozinha. Papai não deixou de notar que algo se
passa comigo, mas me seria impossível contar-lhe tudo. Queria gritar: "Deixem-me em paz,
deixem-me sozinha". Quem sabe! Talvez um dia estarei mais sozinha do que deseje".
Para que necessita Anne sua solidão? Para entender-se e comunicar-se com seu objeto
interno e para não ser invadida pelo julgamento do adulto.

Das páginas de seu diário se desprende uma progressiva zanga com a mãe, que a leva a refugiar-se na
figura idealizada de seu pai.

"Me aborreço e zango, sem poder demonstrá-lo. Gostaria de gritar, bater com os pés,
chorar, sacudir mamãe, sacudi-la bem; queria não sei quê... Como suportar de novo, cada dia
essas palavras que me machucam, esses olhares brincalhões, essas acusações como flechas
lançadas por um arco demasiado tenso, que me penetram e que são tão difíceis de retirar de
meu corpo?".
"Mas sou incapaz disso, não posso deixar transparecer meu desespero, não posso
expor aos seus olhares as feridas das quais me acusam, nem suportar sua simpática compaixão
ou suas carinhosas provocações, o que me faria gritar ainda mais. Já não posso falar sem que
se me julgue afetada, nem me calar sem ser ridícula, sou tratada de insolente quando
respondo, de astuta quando tenho uma boa idéia, de preguiçosa quando estou fatigada, de
egoísta quando como um bocado a mais, de estúpida, de
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apoucada, de calculista, etc, etc. Durante todo o dia não ouço mais que iss que sou uma
mocinha insuportável; ainda que ria e finja não entender, confesso que isso me faz efeito.
Tomaria a Deus por testemunha e lhe pediria que me desse outra natureza, uma natureza que
não provocasse a cólera alheia.
"Aqui estou em uma situação difícil. Mamãe está contra mim e papai fecha os olhos
diante do combate tácito que suscitou entre mamãe e eu. Ela está triste porque me quer muito;
eu não estou triste em absoluto, porque sei que ela o está por falta de compreensão".
"O pesar se lia em sua cara quando disse que no carinho não se manda. A verdade é
dura. Entretanto, mamãe me repeliu —é verdade também—, me oprimiu sempre com suas
observações intempestivas e sem tato, e zombou de coisas que eu resisto a aceitar como
brincadeiras. Ela estremeceu ao comprovar que todo amor entre nós desapareceu
verdadeiramente, exatamente como eu estremeci ao receber a cada dia suas duras palavras".

Em sua relação com o pai, a qual nota-se ser boa através de seus relatos, começa uma crescente pertur-
bação na medida em que se vê invadida pelas mudanças dentro de si.

"Eu me aferro a papai porque ele é o único que mantém em mim os últimos restos do
sentimento familiar, é mamãe com seu caráter e suas falhas quem pesa terrivelmente sobre
meu coração".
Há momentos em que se rebela contra ele, em outros trata de julgar objetivamente seus
valores; por momentos sente que definitivamente se desligou dele e que já não tem remédio.
Seu amor por Peter ocupa mente e corpo.
O pai não resiste à perda e sua conduta se torna mais severa. A distância se incrementa
neles pela fuga de ambos.
"Não me estenderei no que se refere a papai e a mim mesma. Pim é o mais discreto de
todos. Cuida primeiro de que cada um tenha se servido. Ele não necessita nada. Tudo o que é
bom destina às crianças. Aí está a bondade personificada... e, ao seu lado, o incurável feixe de
nervos que sou eu".

Na transição do pai a Peter, Anne busca em Peter os traços mais queridos de seu pai.

"Não podes imaginar quanto te admiro, e enquanto sinta a meu lado tua bondade e a de
papai —pois nesse sentido, eu não vejo grande diferença entre vocês dois— conservarei a
esperança de viver".

A descoberta do amor produz-se nela quando encontra no mundo exterior o duplo de seu objeto de fan-
tasia, um antigo companheiro, Peter Wessel.

"Sentirei algum dia sua face contra a minha, como senti a do outro Peter em sonho?
Oh, Peter e Peter! Vocês não são mais que um, vocês são o mesmo Peter! Eles não nos
compreendem, nunca suspeitarão que nos basta estar sozinhos, sentados um ao lado do outro,
sem falar para estar contentes. Não compreendem o que nos impulsiona um ao outro. Ah,
estas dificuldades! Quando serão vencidas? De qualquer modo, há
O mundo do adolescente Arminda 157
Aberastury

que vencê-las; assim o desenlace será belíssimo. Quando o vejo deitado, a cabeça sobre os
braços e os olhos fechados, não é mais que um menino; quando brinca com Mouschi é um
encanto; quando é encarregado das batatas ou de outras coisas pesadas, está cheio de força;
quando vai olhar os bombardeios ou surpreender os ladrões à noite é valente, e quando é
desajeitado e torpe, resulta simplesmente delicioso".
Descreve através dele, o que sente em si mesma, seus traços de criança e o que de
adulto vai surgindo através de seu amor.
"E onde estou depois de ter descido os catorze degraus? Na luz brutal, entre os risos e
as perguntas dos outros, cuidando de não lhes exteriorizar nada. Meu coração é ainda
demasiado sensível para suprimir de golpe uma impressão tal como a de ontem à noite. A
pequena Anne terna é demasiado estranha e não se deixa caçar tão facilmente. Peter me
emocionou, mais profundamente do que nunca o havia estado, salvo em sonhos, Peter me
excitou, me deu voltas como a uma luva. Depois disso, não tenho o direito, como qualquer
outro, de reencontrar o repouso necessário para situar de novo o fundo de meu ser?"
"Hoje de manhã ao acordar, por volta das cinco para as sete, lembrei o que eu havia
sonhado. Estava sentada numa cadeira; e à minha frente, Peter... Wessel; folheávamos um
livro, com ilustrações de Mary Bos. Meu sonho foi tão claro que me lembro ainda,
parcialmente, dos desenhos. Mas o sonho não havia terminado. De repente, o olhar de Peter se
cruzou com o meu e eu me afundei longamente em seus lindos olhos de um castanho
aveludado. Depois Peter me disse muito docemente: "Se eu tivesse sabido, há muito tempo
teria te socorrido". Bruscamente me voltei, porque não podia mais dominar minha vergonha.
Em seguida senti uma face contra a minha: uma face muito suave, fresca e benfeitora. Era
delicioso, infinitamente delicioso...".
Meus olhos se encheram de lágrimas diante da idéia de tê-lo perdido de novo, mas ao
mesmo tempo me regozijou a certeza de que aquele Peter continua sendo meu predileto e o
será sempre".

Um dia sente que sua crise está resolvida, sente-se desligada dos pais.

"Agora a luta terminou. Ganhei, tenho meu desquite. Sou independente de corpo e de
espírito, já não necessito de uma mãe; me tornei forte de tanto lutar".

Manifesta suas queixas contra o pai que não aceita que Anne cresça, se torne independente e ame Peter.

"Mas já te falei dessas coisas várias vezes. Preferiria deter-me no capítulo "Papai e
mamãe não me compreendem". Meus pais me mimaram sempre, me exteriorizaram muita
amabilidade, sempre tomaram minha defesa e fizeram tudo que estava em sua possibilidade
de pais. Contudo, eu me senti terrivelmente sozinha durante muito tempo; sozinha, excluída,
abandonada e incompreendida. Papai fez todo o possível para moderar minha rebeldia, mas de
nada serviu; me curei eu mesma, reconhecendo meus erros e tirando deles um aprendizado".

A distância torna-se irreparável pela dupla fuga


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"Como é possível que, em minha luta, papai nunca tenha conseguido ser para mim um
apoio e que, ainda estendendo-me uma mão em auxílio, não tenha acertado? Papai não se
situou bem; sempre me tratou como a uma criança que passa pela idade ingrata. Isto parece
estranho, porque papai é o único que sempre me confirmou amplamente sua confiança, e o
único também que me fez sentir que sou inteligente. Por outro lado, eu seria incapaz de
confiar em alguém que não me dissesse tudo de si mesmo, e como sei demasiado pouco de
Pim, é impossível aventurar-me completamente sozinha pelo caminho da intimidade".
"Pim se situa sempre no ponto de vista do pai, pessoa de mais idade, conhecedor deste
tipo de inclinações porque já passou por elas e as julga, conseqüentemente, como triviais; de
modo que é incapaz de compartir minha amizade, mesmo quando a busque com todas as suas
forças".

Arme vivência por momentos a perda e surge o sentimento de solidão e de vazio, junto à impossibilidade
de recuperar o passado.

"Cada dia me sinto mais abandonada, noto que o vazio cresce ao meu redor". "Por mais
querido que me seja (o pai) nunca poderá substituir meus amigos de antes, todo meu pequeno
domínio".

Surge nela então a rebeldia ante o mundo do adulto que não compreende seu sentimento de perda.

"Nós, jovens, temos que fazer um esforço em dobro para manter nossas opiniões, nesta
época em que todo idealismo foi esmagado e destruído, em que os homens revelam suas
piores taras, em que a verdade, o direito e Deus são postos em dúvida"
"Porque no fundo, a juventude é mais solitária que a velhice. Esta frase, lida em já não
recordo que livro, me ficou na cabeça, porque creio ser certa".
"Quem ache que os mais velhos do Anexo enfrentam uma vida muito mais difícil, não
compreende sem dúvida até que ponto estamos assaltados pelos problemas..., problemas para
os quais talvez sejamos demasiado jovens, mas que não deixam de nos ser impostos; até que,
após longo tempo, críamos haver achado a solução, geralmente uma solução que não parece
resistir aos fatos, já que terminam por destruí-la. Aí está a dificuldade desta época: assim que
os idealismos, os sonhos, as belas esperanças logram germinar em nós, são atacados e
totalmente devastados pelo espanto da realidade".
Por momentos Anne nos dá a visão do mundo exterior aterrador em que vive no qual
ela descreve o que acontece fora e o que dentro dela é também destruição e morte.
"O terror reina na cidade. Noite e dia, transportes incessantes dessa pobre gente,
providas somente de uma bolsa ao ombro e de um pouco de dinheiro. Estes últimos bens lhes
são confiscados no trajeto, segundo dizem. Separam-se as famílias, agrupando homens,
mulheres e crianças".
"As crianças, ao voltar da escola, já não encontram seus pais. As mulheres, ao voltar
do mercado, acham suas portas lacradas e notam que suas famílias desapareceram".
Também acontece aos holandeses cristãos: seus filhos são enviados obrigatoriamente à
Alemanha. Todo mundo está com medo.
Todos os estudantes que tenham terminado ou pensem prosseguir seus estudos
O inundo do adolescente Arminda 159
Aberastury

este ano foram convidados a assinar uma lista apresentada pela Direção, comprometendo-se a
simpatizar com os alemães e com a nova ordem. 80% se negou decididamente a renegar sua
consciência e suas convicções e tiveram que sofrer as conseqüências. Todos os estudantes que
não assinaram serão enviados a um campo de trabalho alemão. Se todos os jovens são
condenados a trabalhos forçados em terra de nazistas, o que restará da juventude holandesa?
"Vê-se as crianças daqui circularem com blusinha de verão, tamancos nos pés, sem
casaco, nem gorro, nem meias, e ninguém açode em sua ajuda. Não têm nada na barriga, e,
roendo uma cenoura, abandonam o apartamento frio para sair no frio e para chegar a uma
classe mais fria ainda. Muitas crianças param os transeuntes para pedir-lhes um pedaço de
pão. A Holanda chegou a isso".

Mas Anne mantém seu tom vital, se ocupa de seu corpo, de seus estudos, de seus
penteados, se sente por momentos superficial ou muito profunda, mas não por isso deixa de
assinalar e sofrer as situações reais de perigo e perseguição.
Vejamos algumas de suas reflexões:
"Me sinto oprimida, indizivelmente oprimida pelo fato de não poder sair nunca, e
tenho muitíssimo medo de que sejamos descobertos e fuzilados. Aí está, naturalmente, uma
perspectiva menos regozijante".

Tem momentos de desalento.

"Mais de uma vez me pergunto se, para todos nós, não teria sido melhor não temo-nos
ocultado e já estarmos mortos antes de ter que passar por todas estas calamidades, sobretudo
por nossos protetores, que, ao menos, não estariam em perigo. Nem sequer este pensamento
nos faz retroceder: Ainda amamos a vida, não esquecemos a voz da natureza e continuamos
esperando, apesar de tudo. Que algo aconteça bem rápido, que cheguem as bombas se for
necessário, porque elas não poderiam nos esmagar mais que esta inquietude. Que chegue o
fim, ainda que seja duro; ao menos saberemos se, no final das contas, devemos vencer ou
perecer".
"A noite tivemos um curto circuito, precisamente durante um bombardeio. Não posso
me livrar do medo dos aviões e das bombas e passo quase todas as noites na cama de papai
buscando ali proteção. É uma criancice, admito, mas se você tivesse que passar por isso... os
canhões fazem um estrondo de mil diabos, que nos deixam surdos".
"De repente, começaram a atirar com as metralhadoras, o que é cem vezes mais
aterrador que os canhões".
Mas esse desalento é passageiro nela, surgem seus desejos de vida e sente-se através
de seu diário o carinho com que realiza tudo quanto a embeleze por dentro e por fora.
Diz Anne: "Ademais tenho prazer em escovar os dentes, colocar os bobes, revisar-me
as unhas, usar pedaços de algodão embebidos de água oxigenada (para clarear o pelinho negro
de meu lábio superior) e tudo isso em pouco mais de meia hora".
"Se decido usar um novo penteado, cada qual tem o olho crítico e sempre posso
esperar a pergunta":
Que artista você imitou?
"E ninguém acredita mais em mim quando respondo que é uma de minhas criações.
160 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

"Quanto ao penteado, não dura mais que uma hora e meia, após a qual me sinto tão
contrariada pelas observações, que corro ao banheiro para arrumar meu cabelo como todos os
dias".
"Junte a isso que eu tenho uma extraordinária vontade de viver, me sinto sempre muito
forte, muito disposta a enfrentar o que seja, e me sinto muito livre e muito jovem! Quando me
dei conta disso pela primeira vez, me senti contente, porque me parece que eu não me
curvarei facilmente aos golpes dos quais ninguém nunca escapa".

Ante uma vida tão rica, tão cheia de possibilidades de amor e de criação se torna mais
sinistra a devastadora onda de morte do nazismo. Exige estar alerta para não se deixar
conduzir outra vez às primeiras concessões que levam precipitadamente à submissão e à
morte.
Também é um assinalamento do poder do amor e uma advertência de que é evitável
grande parte da ansiedade que é o sinal do adolescente, e que a construção de um mundo
interno livre e harmônico torna possível a entrada no mundo adulto sem tanto
despedaçamento e sem tanta morte.
A sociedade de adultos com suas limitações, seu aborrecimento, suas neuroses, me fez
pensar sempre com nostalgia no destino da riqueza de afetos, de imaginação criativa, de
possibilidade múltipla de comunicação que é o comum na infância. Só o maltrato e a
perseguição explicam a morte de tantos mundos ricos, libertados às vezes pela análise,
definitivamente mortos na maior parte dos casos.
Ao falar de Anne Frank, quis falar de sua adolescência e da de todos, e despertar em
vocês o impulso para lutar pela conservação da liberdade e do amor.
Se quisesse definir a irremovível chama de sua vida interior, o faria com palavras de
Dante: "Em virtude do poder do amor e do culto à liberdade me conduzistes. Preserva em
mim tão pura magnificência".
Um pequeno fragmento de seu diário me parece definir sua riqueza interior. O que
coloca Anne em sua mala? O que quer salvar de seu mundo. O caderno, as tesouras para
ondular o cabelo, lencinhos, livros escolares, pentes, cartas velhas.
Diz: "Embalei as coisas mais inverossímeis. Não lamento, porque me interessam mais
minhas recordações que meus vestidos".
Jamais as pessoas livres poderiam conceber o que os livros significam para as pessoas
escondidas. Livros, mais livros, e o rádio...
"A música, como sempre, me emociona".

Este diário é não somente a mais forte alegação em favor da liberdade e um documento
sinistro da opressão nazista, mas também um documento que mostra como a capacidade de
vida e de prazer triunfa sobre a privação e como essa riqueza e esse amor à vida estiveram
dados em Anne por sua relação feliz e constante com seus pais internos, que lhe deu
segurança e força para descobrir a vida ainda dentro da prisão que constituiu a moradia de sua
adolescência.
Por isso o livro, além da tristeza de sua vida mutilada, deixa uma sensação de alegria,
de que valeu a pena viver. Penso que isto deve ter sentido o pai de Anne, o único que
sobreviveu às privações do campo de concentração, quando na volta recuperou sua filha
através deste diário.
O inundo do adolescente Arminda 161
Aberostury

O diário de Anne Frank é também documento psicológico valioso para compreender o


processo da adolescência.
Em seu caso, as duas estruturas que mostrei como fundamentais - a qualidade do
mundo interno e a atitude do mundo externo, favorecendo ou entorpecendo - adquiriram em
sua vida características extremas.
O Anexo foi seu Refúgio, mas um refúgio cujos limites não puderam alargar-se
normalmente.
Anne poderia ter ficado presa na prisão, porém não foi assim. Podemos nos perguntar
o por quê. Em meu parecer é porque seu mundo exterior foi se configurando dentro dessa
prisão como um refúgio da realidade mais externa, cuja periculosidade e maldade eram tão
extremas que para poder sobreviver tinha-se que ficar no Refúgio.
Seu mundo externo foi um mundo externo relativo que engenhosamente seu pai lhe
recriou através do que vinha do mundo de fora, livros, estudo, música, presentes, relatos sobre
o que se passava com outros seres, desconhecidos alguns, muito distantes todos.
Existe também o fato de que no Anexo estiveram seus pais e uma irmã mais velha,
porém mais outra família, os Van Dan e seu filho, tão diferentes deles e que concentraram
durante muito tempo a curiosidade de Anne. Esta família, numa vida normal teria constituído
"a outra gente".
A presença de um personagem sozinho, constituindo uma ilhota dentro do Anexo,
permitiu o interjogo de relações sociais mínimas porém reais.
Estas relações lhe permitiram fazer os confrontos que as crianças com uma vida nor-
mal realizam com os pais e irmãos de cada um de seus amigos em diferentes grupos.
Também pôde ir confrontando as reações de cada um deles com as suas, em cada uma
das situações extremas de perigo que viveram tantas vezes nesses dois anos.
Um dos relatos mais trágicos da rigidez das portas do Refúgio, é a descrição do
profundo silêncio que deviam fazer durante horas, em determinados momentos em que o
medo de ser descobertos os forçava a não abrir as torneiras, não puxar a descarga da privada,
não mover-se, não acender a luz e suportar tudo no escuro e no silêncio mais absolutos. Numa
das páginas do diário se torna muito evidente o mecanismo de divisão de Anne. A medida que
aparece mais áspera sua crítica e rivalidade com a mãe, aparece a imagem idealizada da
Rainha da Holanda com a qual quer conectar-se.
"Me sinto mais e mais afastada de meus pais, mais e mais independente. Por mais
jovem que seja, me sinto com mais vontade de viver e mais justa, mais íntegra que mamãe.
Sei o que quero, tenho um norte na vida, formei uma opinião, tenho minha religião e meu
amor. Me sinto consciente de ser mulher, uma mulher com uma força moral e muito mais
velha".
"Se Deus me deixar viver, irei muito mais longe que mamãe. Não me manterei na
insignificância, terei um lugar no mundo e trabalharei para meus semelhantes".
"Compreendo neste instante, que a coragem e a alegria são dois fatores vitais".
Anne se desprende do mundo mas com dor. Por momentos mostra toda esta dor e a
luta do desprendimento.
"Isso não se produziu da noite para o dia. Cheguei a viver sem o apoio de mamãe ou
de quem quer que fosse, à custa de brigas, de muitas brigas, e lágrimas; me custou caro
chegar a ser tão independente como o sou agora. Podes rir e não me acreditar, mas isso não
me importa. Tenho consciência de haver crescido sozinha e não me sinto no
162 Revista FEPAL - Setembro de 2002 - Mudanças e permanências

mais mínimo responsável perante vocês. Se te digo tudo isso é porque não quero que penses
que me faço de misteriosa; no que diz respeito a meus atos, me sinto responsável comigo
mesma".
"Quando me debatia completamente sozinha, todos vocês, e você também fechou os
olhos e taparam os ouvidos; não me ajudaram; ao contrário, só recebi reprimendas porque era
demasiado estrondosa. Ao chamar a atenção assim, eu pensava fazer calar minha pena, me
obcecava por fazer calar aquela voz interior. Durante mais de um ano e meio interpretei a
comédia, dia após dia, sem queixar-me, sem afastar-me de meu papel, sem desfalecer. Agora
a luta terminou. Ganhei, tenho meu desquite. Sou independente de corpo e de espírito, já não
necessito uma mãe: me tornei forte de tanto lutar.
"E agora que tenho a certeza de ter recebido o desquite, quero prosseguir sozinha meu
caminho, o caminho que me parece que é o bom. Você não pode, não deve considerar-me
como uma menina de catorze anos, porque todas estas misérias me envelheceram; me
proponho a trabalhar segundo minha consciência, e não deplorarei meus atos.
"Obviamente poderás impedir-me que me reúna com Peter. Ou me proíbes pela força,
ou confias em mim em tudo e para tudo. e me deixas em paz!".
Mas sempre surge nela o incontrolável desejo de vida e a confiança em sua capacidade
de viver.
"Sou jovem, muitas de minhas qualidades dormem ainda, sou jovem e suficientemente
forte para viver esta grande aventura que forma parte de mim, e me nego a queixar-me todo
santo dia. Fui favorecida por uma natureza afortunada, minha alegria e minha força. Cada dia
me sinto crescer interiormente, sinto que se aproxima a liberdade.
"Apesar de meus catorze anos sei exatamente o que quero, posso dizer quem tem ou
não razão, formar uma opinião, concebo as coisas como as vejo. Tenho a impressão de ser
absolutamente independente de todos que conheço".
"Na segunda parte do ano me transformei em mocinha e os mais velhos começaram a
considerar-me melhor como uma deles. Comecei a refletir e a escrever contos ".

Vemos logo o surgimento de um plano de vida de ideais novos e novas estruturas de


pensamento, tal como mostramos no começo. Anne observa e julga o mundo exterior, e suas
opiniões sobre a guerra implicam já numa ideologia.
"Não é necessário muita imaginação para compreender esta eterna ladainha do
desespero: Para que serve esta guerra? Por que os homens não podem viver em paz? Por que
esta devastação?"
"Pergunta compreensível, mas ninguém encontrou a resposta final. Na realidade, por
que se constroem na Inglaterra aviões cada vez maiores com bombas cada vez mais pesadas e,
ao lado disso, habitações em comum para a reconstrução? Por que se gasta cada dia milhões
na guerra e não há um centésimo disponível para a medicina, os artistas e os pobres?
"Por que há homens que sofrem de fome, enquanto em outras partes do mundo os
alimentos apodrecem no lugar porque sobra? Por que os homens enlouqueceram assim?
"Jamais acreditarei que unicamente os homens poderosos, os governantes e os
capitalistas sejam responsáveis pela guerra. Não. O homem comum se alegra muito ao fazê-
la. Senão os povos há muito tempo haveriam se rebelado. Os homens nasceram
O mundo do adolescente Aminda Aberastury 163

com o instinto de destruir, de massacrar, de assassinar e de devorar; até que toda a


humanidade, sem exceção, não sofra uma enorme mudança, a guerra imperará; as
reconstruções, as terras cultivadas serão novamente destruídas e a humanidade não terá mais
que começar de novo ".
Através das páginas de seu diário vão surgindo idéias políticas, normas educacionais,
críticas ao ensino, fantasias de criação que põe à prova pela realidade e confronta logo com
seu juízo crítico. Nas últimas páginas do diário parece sentir a proximidade de seu fim. Se
aferra a seus ideais, a seu ponto de vista sobre o homem, e à ilusão de que seus pensamentos
em tempos vindouros poderiam chegar a realizar-se.
"Me assombra que eu não tenha abandonado ainda minhas esperanças, já que parecem
absurdas e irrealizáveis. Entretanto, me aferro a elas apesar de tudo, porque continuo
acreditando na bondade inata do homem. Me é absolutamente impossível construir tudo sobre
uma base de morte, de miséria e de confusão. Vejo o mundo transformado mais e mais em
deserto; ouço cada vez mais forte o fragor do trovão que se acerca e que anuncia
provavelmente nossa morte; me compadeço da dor de milhões de pessoas, e mesmo assim
quando olho para o céu, penso que tudo isso mudará e que tudo voltará a ser bom, que até
estes dias inumanos terão fim e que o mundo conhecerá de novo a ordem, o descanso e a paz.
"Na espera disso trato de colocar meus pensamentos num abrigo, de velar por eles,
para o caso de que nos tempos vindouros, talvez ainda possam ser realizáveis ".

Anne Frank morreu no campo de concentração de Bergen Belsen, dois meses antes da libertação da Holanda. Os fatos
ocorreram assim: em 4 de agosto de 1944 a destruição irrompeu no Anexo e todos os seus habitantes foram detidos e
levados a campos de concentração.
A Gestapo irrompeu no refúgio da família Frank destruindo tudo sem ter encontrado oposição.. No chão, entre objetos
desfeitos, diários e revistas, foi encontrado seu diário que termina com estas palavras proféticas:
"Sigo buscando a maneira de chegar a ser o que seria capaz de ser SE NÃO HOUVESSE PESSOAS NO MUNDO".
Numa de suas páginas ao falar de seu desejo de escrever algo transcendente diz: "Quero seguir vivendo depois de minha
morte".
Esta mensagem foi milagrosamente salva da destruição. Seu diário é um
documento e um legado para lutar pela liberdade. É um legado contra a
opressão e uma apologia da comunicação.
Queria que hoje tenha se transformado para vocês em um alarido de rebeldia contra as forças destrutivas. Contra a
submissão e contra a subordinação à morte.

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