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OS CAMPOS ELÍSIOS EM ENTRE DOURO E MINHO

Aqui temos nós, de meus conterrâneos, certo que, com outros, por minha inópia exclui
impropositalmente da minha galeria dos Portuenses Ilustres.
Proponho-me corrigir esses erros e emendar faltas tais, na outra série, já encetada, de
correspondentes volumes, subordinados ao título, sintético e genérico, de O Porto Culto, dos quais o
segundo se encontra em via de publicação. Mas, entretanto, aqui desse portuense falemos, que ao nosso caso
de agora, em vária maneira e por diversos títulos, acode e vem. Ele é João Nunes Freire, ademais de outras
obras, autor do volume Os Campos Elísios, impressos no Porto, com todas as licenças necessárias, por João
Rodrigues, no ano de 1626. Do autor, Inocêncio nos informa que ele fora presbítero, secular, capelão-mor da
Santa Casa da Misericórdia do Porto e professor da língua latina na mesma cidade, da qual foi natural, não
havendo sido possivel verificar as datas de seu nascimento e morte, sabendo-se apenas que vivia na primeira
metade do século XVII. Escrevera e publicara três opúsculos concernentes ao ensino da língua latina, os
quais Inocêncio registra, observando, porém, que o uso desses opúsculos nas aulas caducara de todo com a
promulgação da lei que aboliu o ensino pela Arte do P. Álvares, à qual serviam de ilustração, e nessa parte
Inocêncio nota que parece que os estudantes tiravam deles bastante utilidade, segundo confessam os críticos
do partido oposto, que estão como tais fora de toda a suspeita.
Além desses opúsculos pedagógicos, o padre João Nunes Freire escrevera os mencionados Campos
Elisios, cuja impressão o Catálogo chamado da Academia erradamente dera como feita em 1624.
Da obra, Inocêncio explica que é uma novela, ou romance pastoril em doze jardins ou capítulos,
escrito à semelhança da Lusitânia Transformada, ou da Primavera, etc., de Francisco Rodrigues Lobo,
contendo intercalados vários pequenos poemas em diversos géneros de metro. Os exemplares - observava -
são hoje (1859) mui dificeis de achar, e valem no mercado preço subido.
Teve Inocêncio por conveniente, para dar melhor ideia da obra, reproduzir ali a censura do revedor,
que é característica do tempo. E lhe pareceu curiosa por diversos respeitos. Deu-a a seguir com a própria
ortografia do impresso, assim diz. Dera-a, em S. Domingos de Lisboa, o 1.º de Novembro de 1625, frei
Tomás de S. Domingos, Magister. O qual assevera que nesse livro intitulado Campos Elísios, composto por
João Nunes Freire, nele não achara cousa alguma contra nossa santa fé, ou bons costumes. Pelo contrário.
“Hé muito curioso & no género de fingidos amores pastoris dos mais honestos que atee agora vi; porque assi
trata estas galantarias dos pastores & pastoras, que a ninguem dá materia de lascivos pensamentos, antes
entretem, com algumas humanidades poeticas & historicas; & pois se permittem tantos outros livros de
pouco artificio & quasi nenhum proveito, este que vay tam cheo de historias & poesiasme parece que pode
sair á luz pera entretenimento dos que honestamente gastam algum tempo em ler livros profanos; que em
fim tudo ajuda a bem se filosofar, quando a liçam do profano hé bem ordenada & fora de toda obscenidade,
como hé a presente obra.”
No tomo décimo do Dicionário Bibliográfico Português, terceiro de seu Suplemento, já da lavra de
Brito Aranha, se registra que dos Campos Elisios (n.º 1078) a Biblioteca Nacional arrematou, no leilão
Gubian, um exemplar por 10$000 réis.
Desta obra, oferecida ao Senhor Luís Correia, Abade da Igreja, e Mosteiro de Lordelo, Doutor em os
sagrados Cânones, e Mestre em Artes pela Universidade de Coimbra, tenho aqui sob os olhos, imper feito,
outro exemplar, no qual noto a dedicatória ao referido Senhor Luís Correia, e nesta alusão ao continuado
estudo deste, como pode testemunhar o doctíssimo livro de Immunitate Ecclesiarum, ad Caput Inter alio,
que ele agora tirara à luz, impresso na sua igreja e mosteiro de Lordelo, para onde levou a impressão,
“porque se não gabe Benavente em Portugal que só ele teve essa preeminência no livro de Solicitandis, etc.,
por mercê do Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor o Bispo D. Rodrigo d'Acunha, seu Autor, que costuma
honrar sempre os lugares onde está, fazendo-os famosos com a impressão, e a mandou vir para esta cidade
do Porto, onde está há tantos anos, não havendo nunca nela impressor de porte, senão o da impressão onde
mandou imprimir o seu jubileu tão douto, o Catálogo dos Bispos da cidade des o princípio, e está cada hora
esperando para imprimir os seus tomos sobre o Decreto”.
Do padre Lourenço de Santa Ana, religioso de S. João Evangelista, se segue uma poesia encomiástica,
ao autor, João Nunes Freire, no seu afã meritório de Os Campos Elísios:

EI floreciente jardín
De tu ingenio delicado
Estes campos ha esmaltado
De toda Rosa, y jazmín,
Aquí de la invidia el fin
En fama transformarás,
Y discreto mostrarás
A las censuras del necio,
Que lo que es de mayor precio
Es lo que se invidia más.

En estos campos Amores


Por modo sutil, y honesto
Tan doctos los has compuesto,
Que son de ingenio esplendores,
Cante el Duero tus valores,
Y con grave, y dulce son
Llege al monte de Helicón,
Que, si mira atento el caso,
De los campos del Parnaso
Son tus Elíseos blasón.

O plano do livro de João Nunes Freire é interessante e curioso e, no seu tanto, tem cunho próprio e
original. Ele assenta sobre esta ideia de que os Campos Elísios da antiguidade clássica estavam no ocidente
da nossa Espanha e aqui, mesmo até, em nossa província Durimínia. Esta hipótese viria a constituir para frei
Manuel Pereira de Novais o tema dos capítulos derradeiros de sua Anacrisis historial, ao presente em termo
de publicação pela Biblioteca do Porto; ele ali a desenvolveria com agudeza de engenho e imensidade de
erudição. Porém um dos traços característicos da originalidade de João Nunes Freire, e o que dá a feição
particular ao seu volume, é o enxerto de imaginar nesses Campos Elísios outros Campos Elísios especiais, os
Campos Elísios do Amor.
A despedir e acompanhar seu camarada espanhol, se vão os dois pastores Niso e Flerício e se perdem
no caminho, após a esse o perderem, pois que, buscando em todo aquele lugar do bosque por todas as
partes, por mais diligências que puseram, o não puderam ver; e achando no bosque um atalho seguido, que
naquela espessura estava, quando viram que o trabalho de o buscar era sem proveito, determinaram de
seguir o seu caminho. Não se sentirá acaso aqui a reminiscência vaga do intróito do Dante, a selva oscura,
ché la diritta via era smarrita? Pois, tendo andado muito espaço de caminho, foi declinando ao Oceano o
Sol com tanta pressa que os deixou a luz do dia em uma charneca grande, anoitecendo-lhes em um lugar
solitário.
Ora, estando assim em embaraço, perplexos e desaconselhados da boa razão, foi crescendo da noite a
escuridade, de sorte que quase se não viam os dous pastores um ao outro, ouviram ladrar alguns rafeiros, e
outros cães de pastores, e atentando para onde latiam os cães, viram de longe fogos, que na escuridade da
noite campeavam muito, e ouvindo os apupos dos pegureiros, que recolhiam o gado pelo escuro da noite,
foram guiando seguindo o farol dos lumes, que na aldeia apareciam muito de longe, para se recolherem com
aqueles pastores, e tendo caminhado um pedaço, seguindo para esta parte, era tanto o escuro que naquela
campina não puderam atinar com o farol dos lumes que seguiam, e assim perdidos deram em um profundo
vale, tão escondido que já lhe desapareciam nele os lumes por onde se governavam, e somente ouviam os
cães da aldeia em alguns intervalos, porém não viam por onde pudessem tirar-se deste lugar, para seguir
este sinal. A escuridade da noite era tão grande que não atinavam nem por onde punham os pés, e porfiando
neste embaraço, para se saírem de aquele lugar, por seguirem o caminho da aldeia, onde ouviram os latidos
dos rafeiros, que a seu parecer estava perto, com o engano da quietação da noite, andaram muito grande
espaço sem se poderem sair daquele vale, antes parece que, como em labirinto, tornavam ao mesmo lugar
donde partiram, muitas vezes, sem poderem dar no fim deste embaraço, que o notável escuro da noite fazia
mais embaraçado; ficaram Nisio e Flerício embaraçados e atónitos, e muitas vezes se assentaram para
passarem a noite naquele vale, até que a manhã clara os tirasse daquela confusão em que se viam; mas,
ouvindo os apupos dos pastores, o reboliço do fato, e a inquietação dos cães que guardavam o gado,
tornavam a porfiar para se saírem daquele triste vale, por passarem a noite com os pastores vizinhos, com
mais comodidades, pois lhes parecia que os tinham mais perto do que estavam.
Porém todas estas diligências eram sem proveito, porque, quanto mais cuidavam que se saíam
daquela confusão, mais se achavam enredados na espessura das árvores e na concavidade escura daquele
lugar, onde para nenhuma parte podiam atinar com caminho que os livrasse dele. E tantas voltas deram,
perdidos na escuridade deste vale, embaraçados com a noite, sobremodo escura, que, no fim de muitas
voltas dadas sem proveito, se acharam metidos em outro bosque, mais melancolizado e confuso, onde viram
uma cova de larga entrada, pela qual aparecia uma grande claridade, não de tanta luz como a do Sol, porém
mais resplandecente que luar de noites serenas, quando, em Agosto, engana tanto a muitos a luz da
formosa Diana que imaginam ser a do irmão, que tão pouca diferença havia na claridade que resplandecia
pela boca da cova à luz do Sol, e guiados por ela os dois pastores entraram pela abertura dentro, que não era
muito íngreme, antes era de bom caminho, cheio de flores e de boninas; assim na abóbada de cima, feita a
modo de fresca parreira como pelo chão por onde caminhavam, vinha tão suave cheiro de flores e Rosas pela
abertura que levava os sentidos, maravilhosamente recreados com a suavidade de tal regalo. Não tinham
andado muito espaço pelo caminho da abertura da cova, quando saíram a uns campos, muito grandes, de
muitas e várias árvores e flores cheirosas, em cuja planície de sua descoberta campina todas as boninas,
Rosas e ervas engraçadas estavam com muita abundância; de sorte que, no mundo todo, os mais mimosos
campos não as poderiam melhores produzir: ali na planície havia mais claridade que na entrada da abertura
da cova, porque nenhuma diferença fazia o dia da luz que nestes campos alumiava aos que os viam, antes
havia ali tanta claridade como em um dia muito formoso costuma o Sol fazer.
Cruzavam as frescas ervas alguns pequenos ribeiros de água muito clara, com um saudoso som,
manso e engraçado, nascendo de formosíssimas fontes obradas maravilhosamente, cujo soído à porfia
arremedavam os passarinhos de várias cores cantando suavemente. O que dava maior graça a estes campos
eram os curiosos jardins, feitos em vários labirintos, que tinham de obra excelentíssima de murta de
infinitas figuras, obradas tão perfeitamente nesta obra que pareciam vivas. Admirados os dous amigos deste
sucesso, e embaraçados sem poderem saber o que era aquilo, nem em que lugar estavam, alevantou Flerício
os olhos, e viu uma alta murta dedicada a Vénus, muito copada e cheia de flores cheirosas, que
maravilhosamente alcatifava o chão, bordando de branco uns malmequeres dourados e outras ervas verdes e
cheirosas. Esta árvore formosa, que estava na entrada daqueles campos, tinha no tronco liso entalhadas
estas letras (p. 205):

Quem tão venturoso for


Que a ver isto possa entrar
Saiba que é este lugar
Campos Elísios d'Amor.

Recebeu Flerício notável contentamento de se ver, depois de tanta confusão, em lugar onde tanto
desejava: e bem creu ele que não sem mistério o trouxera ali sua ventura, que o guardava para tanto bem.
Niso estava pasmado vendo tantas figuras de murta e tão bem feitas, como estavam repartidas em
ruas larguíssimas, pela largueza daqueles jardins. Entrando ambos a vê-las, começaram a notar muitas
delas, e viram, em um lugar alto e levantado, um trono Imperial feito de murta, como eram todas as mais
figuras, no meio de infinitos retratos da mesma obra, que de arredor em muito grande espaço estavam
cercando o trono; nele estava assentado o menino Cupido, nu, com suas asas, como comummente se pinta,
cego dos olhos, aljava de setas às costas, arco na mão esquerda, e nela embaraçado um escudo com uma
Romã por divisa nele (como Alciato o pinta), pelo gosto que dá sua aspereza, significado nesta fruta, na
qual, suposto que amargue a casca de fora, de dentro é muito doce e agradável ao gosto, e de muita recreação
na formosura da vista, com que também agrada, com uma letra na orla deste escudo, que dizia: Amor
jucundus amaror. Na mão direita tinha um corisco, por a violência com que fere onde acha mais resistência,
na cabeça uma coroa Imperial, de flores e Rosas que vinham trepando, subtilmente escondidas por entre as
murtas e acabavam fazendo a Imperial coroa com que estava ornado.
Debaixo do trono do Amor estavam aparecendo ceptros quebrados, elmos, escudos, bastões, ginetas,
bandeiras, espadas, lanças, arcabuzes, bombardas, varas, atambores, e todo o mais género de armas,
pisadas todas aos pés do menino Monarca, que de tudo estava triunfando, assentado no seu trono Imperial.
Digamos agora e aqui ponderemos.
Toda esta simbólica, no muito que diz, muito mais diz no que encobre, e não é de admirar que
pastores a entendessem, porque os pastores de João Nunes Freire, além de bem falantes, como todos os
pastores deste género literário (só literário?), até mesmo várias línguas cultas e cultíssimas sabiam, o latim e
o italiano, como seu criador, João Nunes Freire, se não cansa de dizer e repetir. E onde as haviam
aprendido?
Nos seus ajuntamentos, juntas, Academias, como seu criador, João Nunes Freire, se não cansa
outrossim de dizer e repetir. (Verbi gratia, p. ex., logo nas p. 3 e 4: “Contente o pastor Flerício com esta
novidade que via, chamou, para festejarem a nova entrada de tão aprazível Primavera, alguns pastores de
sua conversação, que com ele gastaram muitos anos em os campos do Mondego, onde tinham aprendido
todos várias artes juntamente com a humanidade, na língua latina e toscana, que todos sabiam, porque a
aprenderam nas Academias e juntas dos pastores daquelas ribeiras, para as quais Minerva transplantou com
maior satisfação os favores que dantes os campos da celebrada Atenas possuíam. E, como a companhia de
aprender a língua latina e a toscana, com a humanidade e outras ciências, costuma a criar maior
conversação entre aqueles que juntamente aprendem, entre Flerício e os outros pastores seus amigos,
naturais das mesmas ribeiras do Douro que com ele ficaram, inteirados na língua latina e toscana, com as
letras humanas, que com os pastores dos campos do Mondego, em suas Academias, alcançaram, ficou tão
grande a amizade entre todos que, havendo de obedecer, e sair de sua cabana, lhe foi necessário dar conta
disto a estes pastores seus amigos, para que, com sua companhia, ficasse mais comunicado o contentamento
que tinha este pastor de obedecer ao recado do Amor e do desejo”).
Não deve, pois, causar-nos espanto que esses pastores citem autores famosos, e quais? Precisamente
aqueles que a Aroux e a Rossetti foram e seriam suspeitos: um Camões, um Petrarca, um Garcilaso (p. 74).
Assombro não cabe, assim, que nos promovam as mostras de crítica de singulares pastores
antecipando-se ao seu tempo, como nas ironias para com o famoso Laymundo, “escrito com letras góticas
em latim” (p. 155). Não nos pasmem, portanto, observações e reparos como este: “Bem quisera o engenhoso
Petrarca, no seu triunfo do Amor, a quem seguiu o famoso Luís de Camões, etc.”. Menos estranhada
surpresa nos suscite, evidentemente, a cópia de dizeres rebuçados, frases encobertas, preciosidades,
requintes, significados esquisitos, sentidos ocultos, alegorias, negaças, conceitos e alusões, excepto algu mas
acirrantes referências, como a misteriosa aos cravos de Arrochela, que aqui são cravos, algures eram rosas;
Arrouchelas portuguesas são insignificantes lugarejos sem toada, de qualquer espécie, do último dos que
enumera, na Beira Baixa, dizendo-nos Pinho Leal que apenas restam as ruinas, porque arrasado pelos
castelhanos em 1704; e o cravo diz-nos Ângelo de Gubernatis, na Mitologia das plantas, que, atribuída sua
primeira cultura ao rei Renato, ele é agora a flor bem-amada de todos os aldeãos; “supõe-se que representa o
amor ardente”.
Da Rosa, nada digamos agora. Tão-só lembraremos que, em seu Tratado das significações das
plantas, flores, e frutos que se referem na Sagrada Escritura, tiradas de divinas, e humanas Letras, com
suas breves considerações, o padre frei Isidoro de Barreira, religioso da Sagrada Ordem de Cristo (1622),
recordou que dizia a famosa Safo, em seus versos líricos, que, se Deus houvesse de dar rei às flores, só a Rosa
o seria entre elas. Na ideação literária de João Nunes Freire, o trono não é régio, mas sim Imperial.

Porto, 18.II.915

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